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A maré e a casa: as raízes do mangue e do parentesco na constituição de pessoas e paisagens na ilha de Matarandiba 1 1 Este artigo resulta de um dos capítulos da minha tese de doutorado defendida em 2019 no PPGAS - USP. Apresentei diferentes extratos deste texto na APA, no Seminário Casa Corpo e Políticas da Terra (PPGES-UFSB), no encontro NUAP (Museu Nacional - UFRJ) e por fim no seminário GRBC - EHESS. Agradeço os comentários preciosos de Heloisa Pontes, Ana Carneiro Cerqueira, Marcela Rabello, Thomas Cortado e demais participantes destes eventos. Agradeço também a leitura atenta de Laure Empereire, Timothée Narring, Lilian Papini e Rosa Vieira, além da revisão de Mazé Guimarães.

The tide and the house: the roots of the mangrove and kinship in the constitution of people and landscapes on the island of Matarandiba

La marea y la casa: las raíces del manglar y del parentesco en la constitución de personas y paisaje en la isla de Matarandiba

Resumo

Este artigo trata das relações de parentesco tecidas por mulheres nas atividades cotidianas de mariscagem (coleta/captura de mariscos e crustáceos). O foco central da análise é a produção de parentes entre as casas e a maré, mediante as trocas cotidianas e ancestrais de um saber-fazer: a mariscagem. Com base na etnografia realizada entre as marisqueiras da ilha de Matarandiba (BA), procurou-se entender em que medida a maré, no seu sentido temporal, espacial e biossocial, pode compor a conjunção casa/corpo. Analisa-se como as relações de parentesco são tecidas a partir de uma circulação que acontece entre a casa e a maré por meio do ritmo da mariscagem. Propõe-se uma narrativa baseada na trajetória das comadres marisqueiras, focando principalmente nas relações afetivas enraizadas por elas no mangue.

Palavras-chave:
Maré; Marisqueiras; Parentesco; Mangue; Ritmo

Abstract

This article deals with the kinship relationships woven by women in the daily activities of mariscagem (collecting/catching shellfish and crustaceans). The central focus of our analysis is the production of kin between houses and the tide through the daily and ancestral exchanges of a know-how: shellfish gathering. Based on ethnography carried out among shellfish gatherers on the island of Matarandiba (BA), we seek to understand the extent to which the tide, in its temporal, spatial and biosocial sense, can make up the house/body conjunction. We analyze how kinship relationships are woven into the circulation that takes place between the house and the tide through the rhythm of shellfish gathering. We propose a narrative based on the trajectory of the comadres marisqueiras, focusing mainly on the affective relationships these women have, rooted in the mangrove swamp.

Keywords:
Tide; Marisqueiras; Kinship; Mangrove; Rhytms

Resumen

Este artículo indaga en las relaciones de parentesco tejidas por las mujeres en las actividades cotidianas del marisqueo (recogida/captura de mariscos y crustáceos). El eje central del análisis se centra en la producción de parentesco entre las casas y la marea, a través de los intercambios cotidianos y ancestrales de un saber hacer: el marisqueo. A partir de la etnografía realizada entre las mariscadoras de la isla de Matarandiba (BA), buscamos comprender hasta qué punto la marea, en su sentido temporal, espacial y biosocial, puede conformar la conjunción casa/cuerpo. Se analiza cómo las relaciones de parentesco se entretejen en la circulación que tiene lugar entre la casa y la marea a través del ritmo de la recolección de marisco. Propone una narrativa basada en la trayectoria de las comadres marisqueiras, centrándose principalmente en las relaciones afectivas que han arraigado en el manglar.

Palabras clave:
Marea; Mariscadores; Parentesco; Manglar; Ritmo

Introdução

De longe, desde o porto, eu posso avistá-las em posição agachada. Elas dão um colorido ao cinza da lama na maré vazia. Caminham de um lado ao outro, se agacham por um tempo e, em seguida, vão a outro ponto, se agacham, cavam e esse movimento dura horas. Horas suficientes para que a maré, de maneira quase imperceptível, retome seu espaço e cubra a lama já marcada pelos passos dos incessantes movimentos feitos pelas marisqueiras. São marcas de uma jornada de trabalho. Compreendo mais de perto o movimento que elas fazem e a velocidade com que fazem, vejo um ritmo sincrônico, no qual as duas mãos entram em ação. Rapidamente, com o cavador (faca arqueada ou colher), retira a lama, e com a outra mão recolhe os mariscos. O ritmo precisa ser mantido até que a mão esteja cheia. Posso escutar o som produzido pela fricção do cavador sobre as conchas de marisco ao raspar a flor da areia, a camada mais clara e fina de areia que fica na superfície da lama. Ao depositar os mariscos no ajuntador, pequeno balde que ajuda a juntar os mariscos, uma nova cadência é empregada. Elas cavam tudo ao seu redor e, em seguida, partem para outro lugar, repetindo, assim, o ritmo e o movimento anterior. A maré avança e cobre as marcas deixadas na lama. Vejo os baldes quase cheios de mariscos que resultam de uma longa jornada de trabalho.

Esta breve descrição condensa a movimentação das mulheres marisqueiras na maré vazia, no entorno da ilha de Matarandiba , localizada na Baía de Todos os Santos - Bahia. A mariscagem 2 2 A mariscagem é uma atividade pesqueira artesanal podendo ser realizada de maneira autônoma ou segundo o regime de economia familiar, para consumo próprio ou comercialização. Em 13 de novembro de 2019, foi sancionada a Lei 13.902 de 2019, que “[...] dispõe sobre a política de desenvolvimento e apoio às atividades das mulheres marisqueiras” (Agência Senado 2019). Dentro do projeto de lei, foi vetado pelo presidente da República da extrema direita, Jair Bolsonaro, o artigo que daria prioridade às mulheres para o recebimento de pagamentos de indenizações nos casos de desastres ambientais. Apesar da regulamentação tardia, as marisqueiras já acessavam os benefícios, oriundos do “regime especial” de aposentadorias da Previdência Social, destinados aos trabalhadores rurais de economia familiar e os pescadores artesanais. é uma atividade realizada por mulheres, no mangue ou na beira do mangue, entre as marés de vazante (preia-mar) e enchente (baixa-mar). Nas marés de vazante, as marisqueiras saem com panos enrolados na cabeça que dão equilíbrio aos baldes. Elas retornam na maré de enchente, por volta de seis horas depois. Ao chegar em casa, o trabalho continua: este é o momento de escaldar o marisco no fogo a lenha e catar casca por casca com a ajuda de outras mulheres, as marisqueiras aposentadas, as filhas e as vizinhas.

A Vila de Matarandiba pertence ao distrito de Jeribatuba, Vera Cruz. Em um recenseamento, não oficial, 3 3 O recenseamento foi realizado, em 2008, no âmbito do projeto de economia solidária da Universidade Federal da Bahia (UFBA). a comunidade contava com uma população de 600 pessoas, 4 4 Tomando como referência os dados gerais do município de Vera Cruz, a maioria da população se autodeclara preta ou parda, segundo dados do censo IBGE 2010. Grande parte dos habitantes vive da pesca ou da mariscagem, das aposentadorias/pensões, benefícios e dos empregos ofertados pela empresa mineradora que explora salgema na ilha. A Vila está localizada nas terras pertencentes à mineradora Dow Química, instalada na região nas décadas de 1960/70. A existência da comunidade é anterior à chegada da empresa, porém a ausência de políticas ambientais consistentes, além da prática comum da grilagem no Brasil permitiram que “legalmente” a empresa seja proprietária de quase toda a extensão da ilha e da maioria das terras da comunidade já ocupadas. 5 5 A ilha de Matarandiba tem uma área de 11,7 km². A mineradora DOW Brasil é proprietária de 97% desse território. (Brasil, Ministério de Minas e Energia 2018).

A minha experiência etnográfica entre as marisqueiras da Vila de Matarandiba levou-me a compreender a maré não apenas como um fenômeno cíclico definido pelo avanço e o recuo das águas, mas também como paisagem-tempo, de afetos, o lugar de pesca/coleta de marisco e do movimento das águas e dos corpos que asseguram os modos de existência da comunidade. Assim, amplio a noção habitual de “maré” - como fenômeno cíclico de avanço e recuo das águas - para entender as socialidades, os engajamentos e os ritmos que envolvem o saber-fazer das marisqueiras. Ao definir a maré como paisagem-tempo das águas, recorro à noção da paisagem 6 6 Para Ingold (1993), a paisagem difere de espaço por carregar uma noção estática e seria também diferente de natureza por pressupor uma realidade exterior aos seres que a compõem ( Bailão 2016). como um contínuo fluxo de transformação vital que envolve a relação dos diferentes seres que a compõem e são compostos por ela ( Ingold 1993INGOLD, Tim. 1993. “The Temporality of the Landscape”. World Archaeology, 25 (2):152-174. ; Tsing 2019TSING, Anna. 2017. Le champignon de la fin du monde: Sur la possibilité de vivre dans les ruines du capitalisme. Paris: Éditions La Découverte.). A maré, enquanto paisagem, vai sendo constituída através da “articulação de vários ritmos” - os ritmos da maré; os ritmos de gente, animais e plantas ( Krause 2013KRAUSE, Franz. 2013. “Seasons as Rhythms on the Kemi Rive in Finnish Lapland. Ethnos, 78 (1):23-46. ). As marisqueiras fazem referência à categoria ritmo para definir a maneira como os gestos, os ciclos, as dinâmicas sociais e ecológicas são aprendidas ao longo da vida, através da experiência sensorial na maré. Para Krause, o ritmo pode ser compreendido como “[...]uma dinâmica conjunta e periódica da vida social e ecológica” 7 7 Krause (2013) analisa como os habitantes de uma comunidade pesqueira se adaptam e ao mesmo tempo moldam os ritmos do rio na prática de suas atividades cotidianas. ( Krause 2013KRAUSE, Franz. 2013. “Seasons as Rhythms on the Kemi Rive in Finnish Lapland. Ethnos, 78 (1):23-46. :26). Esta noção me ajuda a analisar de que maneira o parentesco vai sendo tecido a partir de uma “rede de relações entre os múltiplos ritmos” dos quais a própria paisagem da maré é constituída ( Krause 2013KRAUSE, Franz. 2013. “Seasons as Rhythms on the Kemi Rive in Finnish Lapland. Ethnos, 78 (1):23-46. ; Ingold 1993INGOLD, Tim. 1993. “The Temporality of the Landscape”. World Archaeology, 25 (2):152-174. ).

Ao acompanhar os ritmos que caracterizam a mariscagem, analiso as relações de parentesco que são tecidas com base em uma circulação que acontece entre a casa e a maré. É importante lembrar que a “casa” tem sido objeto de interesse de uma literatura antropológica que se desenvolveu desde a publicação da obra coletiva About the House: Lévi-Strauss and Beyond, coordenada por Carsten e Hugh-Jones em 1995. Na introdução da coletânea, os autores defendem que corpo e a casa estão intimamente ligados e seriam “[...] lócus de teias de significado e modelo cognitivo para estruturar, pensar e experimentar o mundo” (1995:03). Busco expandir a conjunção casa/corpo no intuito de incluir outros lugares/espaços/paisagens na produção de corpos e parentes. No caso de Matarandiba, diante da centralidade da maré na vida das mulheres, pensar com base na casa ou na “configuração de casas” 8 8 Vale lembrar que no âmbito das pesquisas realizadas no Brasil é o trabalho de Marcelin (1999) que se destaca ao colocar no centro da reflexão dos estudos do parentesco a noção de “configuração de casas”, bastante discutida e referenciada nos últimos anos ( Marques 2014; Cortado 2021; Motta 2021; Dalmaso 2021). Em sua etnografia sobre famílias afro-americanas de um bairro popular do Recôncavo Baiano, a casa só existe na sua relação com uma rede de unidades domésticas, ou seja, em uma relação entre várias casas que participam de sua construção num sentido tanto concreto quanto simbólico ( Marcelin 1999). ( Marcelin 1999MARCELIN, Louis Ermes. 1996. A invenção da família Afro-americana: Família, parentesco e domesticidade entre os negros do Recôncavo da Bahia, Brasil. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) somente faz sentido se acrescentarmos a circulação que ocorre entre essa paisagem e os espaços domésticos (casas/quintais). Ademais, neste contexto, a casa carrega a ambiguidade de ser, ao mesmo tempo, o lugar de afetos, onde os filhos são gerados, nutridos, criados e de ser também o espaço onde as violências domésticas se reproduzem ( Ávila & Ferreira 2020ÁVILA Maria B. & FERREIRA, Vera. 2020. “Feminismo e marxismo; uma relação dialética”. In: Danilo Enrico Martuscelli (org.), Os desafios do feminismo marxista na atualidade. Chapecó, Coleção marxismo 21:111-128.; Freitas Machado & Delgado 2022FREITAS MACHADO, M. & DELGADO, J. A. 2022. “Sob a égide da crise e da barbárie: Comunidades Quilombolas e Capitalismo Contemporâneo”. Revista Fim do Mundo, 3 (8):94-116.). Embora o foco deste artigo não seja discutir tal ambiguidade, não posso deixar de pontuar que, na expansão dos espaços, a maré pode ser também um lugar de “refúgio” para as mulheres da vila.

Seguindo esta sequência argumentativa, tomo como referência os Xikrin, 9 9 Grupo de língua kayapó que vive no estado do Pará, ao norte do Brasil. em que “[...] o conjunto casa e roça produz pessoas e corpos aparentados via comensalidade” ( Mantovanelli 2016MANTOVANELLI, Thais. 2016. Os Xikrin do Bacajá e a Usina Hidrelétrica de Belo Monte: uma crítica indígena à política dos brancos. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.:210). Em outros exemplos etnográficos, entre os Tukano, a roça se estabelece a partir da conjunção ou conexão com a casa de forno, “epicentro da vida familiar” ( Emperaire 2021EMPERAIRE, Laure. 2020. Dissonâncias vegetais: entre roças e tratados. In: Joana Cabral de Oliveira et al. (orgs.), Vozes vegetais: diversidade, resistências e histórias da floresta. São Paulo: Ubu Editora.:60). Ou no contexto das comunidades do Vale do Jequitinhonha estudado por Alves (2018ALVES, Yara. 2018. “As Mães que Enraízam e o Mundo que Gira: Criação e Movimento no Vale Do Jequitinhonha-MG”. Tessituras, (6-2):193-213. ), em que a produção de pessoas e os ensinamentos que envolvem essa produção “passam pela grande roda do fogão”. E, ainda como descrito por Carneiro (2020), as mulheres do “buraco” vivem entre a cozinha, o quintal e o rio (Carneiro 2020). No decorrer do artigo, mostro de que maneira a maré assume função análoga à ocupada pela roça, pela casa de forno, pela “roda do fogão” e pela cozinha.

Nos relatos das marisqueiras é comum que a educação dos filhos, o sustento e a manutenção da casa se apresentem como uma responsabilidade feminina ( Motta 2014MCCALLUM, C. A. 2015. “Espaço, pessoa e movimento na socialidade ameríndia: Sobre os modos Huni Kuin de relacionalidade” . Revista de Antropologia, v. 58:223-256. ). Na vila o mais comum é encontrar habitações monoparentais 10 10 No trabalho de Marcelin (1999), citado anteriormente, as mulheres também assumem, como mães, um lugar central nas despesas da casa e na criação/educação dos filhos e netos, em comparação com a quase ausência dos homens ( Dalmaso 2021). onde mulheres da mesma família dividem a mesma casa ou terreno, ou seja avós, irmãs, sobrinhas, filhas/filhos e netos. Na maioria dos casos, o genitor das crianças não está presente, seja afetivamente, ou materialmente. Assim, é possível perceber como as mulheres marisqueiras têm encontrado outros arranjos sociais e familiares que garantem a reprodução social 11 11 Entendendo a reprodução social como um conjunto de relações sociais, afetivas e engajamentos envolvidos na continuidade da vida de uma geração para outra ( Guérin; Hillenkamp & Verschuur (2022); Narring 2022). e material da comunidade.

O foco central de análise deste artigo é a produção de parentes entre as casas e a maré através das trocas cotidianas e ancestrais de um saber-fazer: a mariscagem. Procuro entender em que medida a maré, no seu sentido temporal, espacial, social e simbólico, pode compor a conjunção casa/corpo. Para compreender esta questão central, mostro como os filhos e as filhas de Matarandiba são feitos e puxam a raiz da mãe através de uma “experiência sensorial” em uma “paisagem-tempo” das águas, a maré ( Ingold 1993INGOLD, Tim. 1993. “The Temporality of the Landscape”. World Archaeology, 25 (2):152-174. ). Aqui o parentesco é compreendido “[...] como pedagogia, como memória e como prática, que tanto se agregam às bases estruturais ou simbólicas do parentesco - a consanguinidade e a afinidade, a substância e o código - quanto potencialmente as subvertem” ( Marques & Leal 2018 MARQUES, Ana Cláudia & LEAL, Natacha Simei. 2018. “Introdução”. In: MARQUES, Ana Cláudia & LEAL, Natacha Simei(orgs.), Alquimias do parentesco: casas, gentes, papéis e territórios. Rio de Janeiro: Gramma/Terceiro Nome. pp. 135-168. :24).

Na perspectiva de aprofundar a interconexão entre casa/corpo/maré, proponho usar como referência o conceito de substância frequentemente aludido em etnografias sobre o parentesco ( Coelho de Souza 2004COELHO DE SOUZA M et al. 2016. "T/terras indígenas e territórios conceituais: incursões etnográficas e controvérsias públicas". Enteterras ,1 ( 1 ):1-60.; McCallum 2012MCCALLUM, C. A. 2015. “Espaço, pessoa e movimento na socialidade ameríndia: Sobre os modos Huni Kuin de relacionalidade” . Revista de Antropologia, v. 58:223-256. ; Belaunde 2006BELAUNDE, Luísa Elvira. 2006. “A força dos pensamentos, o fedor do sangue: hematologia e gênero na Amazônia”. Rev. Antropol., Jan.:49-51. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-77012006000100007 . Acesso em: 04/08/2023.
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). Tal noção é definida pela produção de corpos, pessoas e parentes que ocorre através da ingestão ou da exposição às substâncias materiais e imateriais ( Carsten 2014CARSTEN, Janet. 2014. “A matéria do parentesco”. R@U - Revista de Antropologia da UFSCAR, 6 (2):103-118. Dossiê Parentesco. ). A autora amplia esta noção, além da perspectiva dos fluidos corporais e alimentos, para incluir outros vetores do parentesco, tais como a alimentação, as casas, o território. Assim, meu objetivo é incluir a maré como um desses vetores ( Carsten 2014CARSTEN, Janet. 2014. “A matéria do parentesco”. R@U - Revista de Antropologia da UFSCAR, 6 (2):103-118. Dossiê Parentesco. ), como uma substância do parentesco que nutre os corpos física e afetivamente. Ao focar nas relações tecidas na maré, contribuo para ampliar as discussões contemporâneas sobre os diferentes modos de se produzirem e de se fazerem parentes ( Carsten 2014CARSTEN, Janet. 2014. “A matéria do parentesco”. R@U - Revista de Antropologia da UFSCAR, 6 (2):103-118. Dossiê Parentesco. ; Pina-Cabral; Marques & Leal 2018 MARQUES, Ana Cláudia & LEAL, Natacha Simei. 2018. “Introdução”. In: MARQUES, Ana Cláudia & LEAL, Natacha Simei(orgs.), Alquimias do parentesco: casas, gentes, papéis e territórios. Rio de Janeiro: Gramma/Terceiro Nome. pp. 135-168. ; Belaunde 2006BELAUNDE, Luísa Elvira. 2006. “A força dos pensamentos, o fedor do sangue: hematologia e gênero na Amazônia”. Rev. Antropol., Jan.:49-51. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-77012006000100007 . Acesso em: 04/08/2023.
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).

Recentemente, algumas etnografias têm mobilizado um interesse particular na compreensão do ecossistema do mangue, do ponto de vista antropológico. Dois trabalhos merecem atenção sobre os manguezais no litoral nordestino, a exemplo da contribuição de Pereira e Silveira (2021PEREIRA, Lucas Coelho & SILVEIRA, Pedro Castelo Branco. 2021. “Humanos e caranguejos nos manguezais do Delta do Parnaíba: histórias da paisagem” . Revista AntHropológicas, ano 25, volume 32 (1)) que colocam o mangue como protagonista da narrativa ao tratar das relações multiespécies, caranguejos, manguezais e catadores de caranguejo (caranguejeiros) no Delta do Parnaíba. Além do trabalho de Buti e Silveira (2020BUTI, Rafael Palermo. 2020. “Imagens do petroceno: habitabilidade e resistência quilombola nas infraestruturas do petróleo em manguezais do Recôncavo Baiano”. Amazônica: Revista de Antropologia, v.12:277-301.) que explora as malhas relacionais da coexistência dos caranguejos com agrupamentos humanos. Mesmo partindo de campos etnográficos diferentes, percebo pontos de convergência entre as duas contribuições. Assim como percebo nos trabalhos mencionados uma abertura e uma fonte de inspiração para um olhar mais atento à dinamicidade da paisagem, às suas temporalidades e à relacionalidade entre humanos, mariscos e crustáceos. Ainda que meu foco central seja uma análise dos coletivos humanos entre si, é importante estar atenta a uma perspectiva que envolve as relações de parentesco e os processos de apreensão das técnicas como um modo de experimentação sensorial do mangue e da maré.

Este artigo é resultado da pesquisa de campo, de um ano e oito meses, realizada durante o doutorado entre 2014 e 2018. Acompanhada das marisqueiras, participei ativamente das atividades que envolvem coleta e beneficiamento do marisco, com o olhar atento para as interações e/ou mediações na maré ( Sautchuck 2007SAUTCHUK, Carlos Emanuel. 2007. O arpão e o anzol: técnica e pessoa no estuário do Amazonas (Vila Sucuriju, Amapá) . Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade de Brasília.). Ademais, as descrições presentes neste artigo estão impregnadas de minhas memórias de infância sobre a maré, as fontes e a mata, pois parte da minha família é originária da comunidade.

Trago como fio narrativo a trajetória e os discursos das comadres marisqueiras. Foco, especialmente, nos laços de afetividades que são costurados por elas na maré. Três mulheres assumem o protagonismo nesta narrativa. Primeiramente, Edna, que eu acompanhei durante um tempo nas atividades cotidianas na maré. Em seguida, Gelita e Suzana, marisqueiras experientes e aposentadas. Divido esta narrativa em quatro seções. Na primeira delas, analiso o gênero da mariscagem. Em seguida, descrevo os ritmos de um mariscar. Em seguida, procuro entender como os filhos e as filhas são feitos na maré através dos ritmos que definem a atividade da mariscagem. Por fim, a última seção trata das relações de comadres tecidas na maré

O gênero da mariscagem

As atividades que homens e mulheres fazem na maré diferem em relação às espécies coletadas, às técnicas, aos lugares ocupados e às temporalidades. O objetivo aqui é partir destas diferenças para uma compreensão mais ampla do gênero da mariscagem. Para tal fim, tomo como referência a noção de gênero como “[...] um operador de diferenças que dá sentido às relações sociais” (Strathern 2007; Piscitelli, 1992PISCITELLI, Adriana. 1994. “The gender of the gift por Marilyn Strathern”. Cadernos Pagu, v. 2:211-219.:219). O gênero não se caracteriza por atributos predeterminados ou dicotomias clássicas ocidentais como mostrou Strathern (2014STRATHERN, Marilyn. 2014. “Sujeito ou objeto? As mulheres e a circulação de bens de valor nas terras altas da Nova Guiné”. In: STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify .), são as capacidades de agir nas atividades cotidianas que constituem as diferenças entre homens e mulheres.

O fato de uma determinada atividade ser realizada por homens ou por mulheres não pressupõe que a técnica se defina como masculina ou feminina, mas, pelo contrário, é a execução de “[...] técnicas masculinas ou femininas que fabricariam homens e mulheres” ( Hamberger & Fanciulli 2022HAMBERGER, Klaus & FANCIULLI, Francesca. 2022. “Le genre comme style technique”. Techniques & Culture, 77.:2). Isto significa que, ao realizar determinada técnica e repetir alguns gestos e posturas, aos poucos, vão se fabricando corpos. No caso da mariscagem, o corpo é marcado por ritmos incessantes de ir e vir sob a lama do mangue, pelo curvamento da coluna ocasionado por uma postura agachada ou curvada e pelas cicatrizes nos braços provocadas pelos cortes das ostras. O corpo vai sendo marcado pela atividade técnica e assim vai se constituindo a mulher marisqueira ( Belaunde 2006BELAUNDE, Luísa Elvira. 2006. “A força dos pensamentos, o fedor do sangue: hematologia e gênero na Amazônia”. Rev. Antropol., Jan.:49-51. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-77012006000100007 . Acesso em: 04/08/2023.
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).

Em Matarandiba, escuto com frequência a expressão "amanheceu mamãe carinhosa " ,em referência aos dias em que as marés grandes das noites de lua cheia tornam-se um convite à mariscagem . As marisqueiras vivem da maré: cavando o chumbinho ( anomalocardia brasiliana), tirando a ostra ( Crassostrea sp.), ou pegando o sururu ( mytella charruana) e o aratu, pequeno caranguejo do mangue ( aratus pisonii). A mariscagem é realizada no mangue ou na beira do mangue. Ver, pegar, tirar, mariscar ou catar tornam-se sinônimos e caracterizam as diferentes maneiras de nomear as etapas que contemplam a atividade de mariscagem.

O marisco é uma categoria genérica que engloba quase todas as espécies (bivalves ou crustáceos) encontradas no mangue, na beira do mangue e na coroa (banco de areia onde são colocados os pesqueiros). Enquanto os homens se envolvem mais na captura dos crustáceos (na vazante), com a mediação de objetos 12 12 Os homens utilizam gaiolas com iscas depositadas na maré vazia e recuperadas na maré cheia. (Tabet 2014 ), as mulheres se concentram na coleta dos moluscos, com exceção apenas para alguns crustáceos, o aratu, encontrados no mangue. Apesar de os homens também capturarem algum tipo específico de marisco, o peguari, por exemplo, dificilmente eles se denominam ou são denominados marisqueiros. A coleta do peguari requer uma técnica de mergulho em apneia, durante o período de maré morta (maré de menor amplitude), uma inversão do tempo e do espaço que define a atividade da mariscagem.

Em outros contextos etnográficos, a exemplo do Delta do Parnaíba, estudado por Lucas Pereira ( Pereira & Silveira 2021PEREIRA, Lucas Coelho & SILVEIRA, Pedro Castelo Branco. 2021. “Humanos e caranguejos nos manguezais do Delta do Parnaíba: histórias da paisagem” . Revista AntHropológicas, ano 25, volume 32 (1)), é comum a reivindicação da categoria pescador para os catadores de caranguejo, na sua maioria homens. O mesmo ocorre em relação à captura do guaiamum (Cardisoma guanhumi) em comunidades do Recôncavo Baiano, região muito próxima de Matarandiba (Silveira & Buti 2020BUTI, Rafael Palermo. 2020. “Imagens do petroceno: habitabilidade e resistência quilombola nas infraestruturas do petróleo em manguezais do Recôncavo Baiano”. Amazônica: Revista de Antropologia, v.12:277-301.). Nessas etnografias, são os homens que tendem a ocupar o mangue na maré baixa para a atividade da cata do caranguejo ( Pereira & Silveira 2021PEREIRA, Lucas Coelho & SILVEIRA, Pedro Castelo Branco. 2021. “Humanos e caranguejos nos manguezais do Delta do Parnaíba: histórias da paisagem” . Revista AntHropológicas, ano 25, volume 32 (1); Buti & Pereira 2020BUTI, Rafael Palermo. 2020. “Imagens do petroceno: habitabilidade e resistência quilombola nas infraestruturas do petróleo em manguezais do Recôncavo Baiano”. Amazônica: Revista de Antropologia, v.12:277-301.). Em Matarandiba, a cata do caranguejo é uma atividade secundária, já que os homens estão engajados na pesca ou na captura de outros crustáceos com o uso de gaiolas de cipó (armadilha).

Há uma invisibilidade das mulheres no mundo da pesca que repercute nas políticas de enfrentamento de riscos, nas políticas sociais, na seguridade social e no acesso ao dinheiro ( Maneschy; Siqueira & Alvares 2012MANESCHY, M. C.; SIQUEIRA, D. & ÁLVARES, M. L. M. 2012. “Pescadoras: subordinação de gênero e empoderamento”. Estudos Feministas, 20 ( 3):713-737.). A pesca masculina tem mais prestígio social e é mais rentável em comparação ao trabalho de marisqueira. Um pescador em Matarandiba ganha mais do que uma marisqueira e, como colocado por Tabet (2014), em contextos etnográficos distintos, o uso de equipamentos, redes, gaiolas para capturar siri, embarcações, dentre outros, faz com que a produção semanal do pescador seja muito mais volumosa em relação ao que é produzido pela marisqueira.

Para Tabet (2014), existe um aspecto que não foi considerado pela Antropologia (principalmente nos estudos clássicos da disciplina): o acesso aos instrumentos e/ou utensílios que homens e mulheres fazem uso nas diferentes atividades executadas. Tabet (2014) sustenta que as mulheres fazem determinados trabalhos e “[...] são excluídas de outros em função dos instrumentos utilizados nestas atividades” (:112). No caso da pesca, “[...] a utilização ou não de ferramentas e o uso ou não de uma embarcação convergem para fixar os limites da atividade das mulheres na pesca” (Tabet 2014:139). A autora aponta um “[...] subaparelhamento das mulheres na pesca” (2014:142). Mesmo que o gênero se fabrique cotidianamente, a partir das atividades realizadas ( Strathern 2014SILVA, Vanda Aparecida da & PINA-CABRAL, João de. 2013. Gente Livre: Consideração e. Pessoa no Baixo Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome.), há, sem dúvida, um subaparelhamento das mulheres na mariscagem. Assim, levo em consideração algumas formas recorrentes de controle dos corpos e dos instrumentos de trabalho que produzem e reproduzem as desigualdades de gênero, sem, no entanto, sobrepor ou contradizer uma análise que parte da noção de uma fabricação contínua e cotidiana do gênero.

A mariscagem é feita praticamente à “mão nua”, sem instrumentos (Tabet 2014). Como pontuei no início do artigo, os utensílios utilizados pelas mulheres têm sua origem na própria cozinha, são rudimentares, impedem um maior rendimento e tornam a atividade ainda mais longa, monótona e repetitiva. Apesar da presença do cavador, é o corpo da marisqueira que se apresenta como o próprio aparato técnico. Este corpo é responsável por manter o ritmo do duplo movimento cavar/recolher e manter o equilíbrio dos baldes no caminhar tortuoso pelo mangue. É o corpo engajado na execução da atividade de coleta, transporte e separação que caracteriza a atividade da mariscagem. O corpo, neste sentido, apresenta-se como o principal instrumento técnico ( Mauss 2003MAUSS, Marcel. 2003 [1936]. “Les techniques du corps”. Journal de Psychologie, XXXII, 1936. ne, 3-4, 15 mars-15 de abril. Trad. Bras. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify.).

Em relação à diferença espaço-temporal, as mulheres circulam com mais frequência pelos mangues ou muito próximas deles. Em geral, esta circulação ocorre na maré vazia, assim, elas ocupam os lugares mais afastados da água, “interiorizados” ( Hamberger & Fanciulli 2022HAMBERGER, Klaus & FANCIULLI, Francesca. 2022. “Le genre comme style technique”. Techniques & Culture, 77.). Já os homens ocupam os espaços mais profundos do mar, “exteriorizados”, circulam em barcos e, com mais frequência, na maré cheia. Mesmo quando a maré está vazia, os homens circulam em lugares de maior profundidade das águas.

Uma divisão da ocupação dos espaços de acordo com o gênero foi anteriormente desenvolvida por E. Woortmann (1991TSING, Anna. 2017. Le champignon de la fin du monde: Sur la possibilité de vivre dans les ruines du capitalisme. Paris: Éditions La Découverte.) no seu trabalho sobre as mulheres de pescadores em comunidades pesqueiras do Nordeste do Brasil. No entanto, como pontuado anteriormente, a diferença no contexto etnográfico que apresento não diz respeito apenas ao espaço, mas abrange também o tempo. Assim, defino a maré como maré-paisagem e maré-tempo para entender essas diferenças.

A maré-paisagem envolve o mangue, a beira do mangue (feição lavado) e a restinga. As pessoas da vila costumam se referir à maré como local onde se pesca e se tira o marisco, sendo muito comum escutar das marisqueiras e dos pescadores: “tô indo para maré ver caranguejo, chumbinho ou ostra, ou, tô indo para maré pra fazer um lance de rede”. Buti e Silveira (2020BUTI, Rafael Palermo. 2020. “Imagens do petroceno: habitabilidade e resistência quilombola nas infraestruturas do petróleo em manguezais do Recôncavo Baiano”. Amazônica: Revista de Antropologia, v.12:277-301.) fazem uma breve referência ao termo “Ir para a maré” como frequentemente utilizado entre os pescadores do Nordeste brasileiro como sinônimo de “ir pescar”.

A maré-tempo, nos seus diferentes ciclos diários e quinzenais, informa sobre o tempo que passa, ela marca o tempo da comunidade e sua rotina diária. A maré-tempo é apropriada de maneira distinta por homens e mulheres. Elas mariscam quando a maré começa a esvaziar e eles pescam quando a maré começa a encher. Do ponto de vista da maré-paisagem, isto significa circular nos lugares das vazantes, descobertos pela água na maré vazia para coletar o marisco. Ou, no caso da pesca, circular pelas águas na maré cheia.

Assim, mostrei que o gênero da mariscagem se fabrica a partir da execução de uma técnica específica que envolve o corpo das mulheres como um todo e que se desenvolve em espaços e temporalidades distintas. Analisar as temporalidades da mariscagem me leva a aprofundar os ritmos que estruturam a vida de uma grande parte das mulheres da comunidade.

Ritmos de um mariscar

Foi com Edna, uma senhora marisqueira de meia-idade, que aprendi o ritmo da mariscagem. Um ritmo marcado por passos incessantes que começam ainda no quintal de casa e seguem pelos caminhos da mata, do mangue e da vazante da maré. Sendo assim, proponho nas linhas que seguem acompanhar um dia de mariscagem para mostrar como se dá o ritmo dessa atividade.

Passei a seguir o ritmo de Edna: atravessamos os quintais, a mata e os mangues. Ela me guiava pelos caminhos. O “silêncio” do nosso caminhar às vezes era quebrado pela fricção da alça da panela que eu carregava ou pelas minhas tentativas de diálogo. Ela sempre me falava dos filhos, do dia a dia na maré, do tempo que passou em Salvador trabalhando como cozinheira. Enquanto caminhamos, Edna apanha um ou outro pedaço de madeira para o fogo à lenha que escaldaria os mariscos mais tarde. Nosso destino é o Caboto, uma clareira um pouco mais alta em relação ao nível do mar que desemboca no mangue. Lá, tem uma cabana de palha e uma montanha de cascas de chumbinho e ostra que se acumulam, os sambaquis de um futuro distante. Foi o filho de Edna quem fez uma cabana de palha improvisada para proteção do sol. É sob a proteção da cabana que Edna, sobretudo no verão, passa as tardes catando o marisco com a ajuda da filha ou das irmãs. Um pouco mais atrás, escondidos embaixo da árvore, vejo todos os instrumentos para a mariscagem: balde, ajuntador (balde ou panela pequena), cavador e vários grandes sacos de nylon que servem para lavagem e para o transporte do marisco.

Depositamos nossas sandálias, pegamos o material necessário e descemos para o mangue. Até o local onde Edna costuma mariscar é necessário caminhar quase dez minutos por dentro do manguezal. A lama cobre nossos tornozelos. Algumas clareiras de areia bem branca, os apicuns, se abrem em meio ao mangue, fazendo contraste com o cinza escuro da lama. Ao caminhar sobre a lama sinto as raízes do mangue que se entrelaçam sob meus pés. Ao longo do itinerário, foi possível ver os aratus (pequenos caranguejos) que se assustam com a nossa presença e percorrem os galhos do mangue.

Assim que chegamos na beira do mangue, depositamos os baldes. Edna se prepara para começar o trabalho, vestindo o casaco para se proteger do sol. Enquanto isso, me abaixo na lama e começo a cavar. Quando ela viu, repreendeu-me dizendo que a maneira correta era cavar sobre a flor da areia (a camada mais fina, clara e seca da lama) e que se eu continuasse daquele jeito cavaria um buraco para me afundar. A minha falta de habilidade gerou risos e, por vários dias, Edna contava às outras marisqueiras essa anedota.

No lugar de tentar encontrar o meu próprio ritmo de mariscagem, passei a observar atentamente os movimentos rápidos que Edna faz com o cavador - raspando a flor de areia - e escutava a fricção do cavador sobre a casca do chumbinho. Ela costuma ficar de pé com o corpo curvado. Às vezes, alterna esse movimento, permanecendo de cócoras. Quando cansada de permanecer na mesma posição, ela deixa que o peso do corpo penda para uma das pernas. Enquanto ela cava com a mão direita, com a esquerda ela segura os chumbinhos e despeja os mariscos no ajuntador somente quando a mão está suficientemente cheia. À medida que tudo ao seu redor era cavado, ela mudava de lugar, em um movimento circular pela beira do mangue. A maré, aos poucos, avançava e cobria as marcas que ela deixava pela lama e nos dava a referência do tempo que passava.

Edna é uma marisqueira assídua na sua rotina de mariscagem. Ela marisca praticamente todos os dias da semana, independente da maré grande ou morta. Somente na maré tardeira (maré vazia durante o período da tarde) 13 13 Horário de grande incidência solar que torna a mariscagem ainda mais exaustiva. é que ela diminui um pouco a sua presença. Ela cata com muita frequência o chumbinho, mas, quando há alguma encomenda, ela tira ostra ou ela passa parte do dia na beira do mangue mariscando e a outra parte no Caboto (localidade próxima aos manguezais, a 15 minutos da vila), ou no quintal de casa, catando os mariscos, quase sempre na companhia das suas irmãs que também mariscam, da filha, dos filhos ou do neto.

Foi com a mãe, Inês, que Edna aprendeu a mariscar. Inês era tia de Suzana e comadre de parto 14 14 Gelita se refere desta maneira a Teresa, mãe de Edna, já que ela ajudou no parto de quase todos os filhos de sua velha amiga. de Gelita, as marisqueiras aposentadas que protagonizam esta narrativa. Edna habita uma casa simples recém-construída no Cercado, antigo sítio da vila. Quando não está na mata, é no quintal de casa que ela divide seu tempo entre os cuidados da casa e o escaldar e separar do marisco trazido da maré no dia anterior. O fogo à lenha que ela montou ao lado da antiga casa também é utilizado para preparar a comida para os filhos e netos. Ela escalda o chumbinho ao mesmo tempo em que prepara o feijão.

As cascas do chumbinho catado são despejadas no próprio quintal, cobrem a terra, os objetos e os brinquedos esquecidos que contam a história da casa/família. As cascas dos mariscos compõem a paisagem e indicam alguns anos de trabalho árduo. Neste sentido, seria a casa, assim como a maré, como proposto por Ingold (1993INGOLD, Tim. 1993. “The Temporality of the Landscape”. World Archaeology, 25 (2):152-174. ), uma “paisagem tarefa” que vai se compondo a partir dos registros das vidas e das atividades de humanos, de animais e de plantas ( Ingold 1993INGOLD, Tim. 1993. “The Temporality of the Landscape”. World Archaeology, 25 (2):152-174. )? A paisagem da vila, que inclui as ruas, as casas e os quintais, vai sendo composta pelas conchas que resultam dos ritmos da atividade de mariscagem.

Indagava com frequência sobre as diferentes etapas que caracterizam a mariscagem. As minhas indagações eram sempre explicadas com base em um aprendizado corporal dos gestos que ocorrem mediante uma experiência vivenciada com as mães na maré. Os gestos corporais eram definidos por ritmos, aprendidos com as mães, tias, avós ou as próprias comadres marisqueiras. O ritmo pode ser compreendido pelo conjunto de gestos que definem e caracterizam a atividade técnica. É muito comum, na vila, as pessoas se referirem ao ritmo como ao mesmo tempo gesto técnico e memória. Eu escutava constantemente: “peguei esse ritmo de minha mãe ou aprendi com minha mãe esse ritmo de mariscar”. Como vemos, o ritmo empregado neste contexto parece indicar a construção de um saber que perpassa várias gerações. Como pontuado por Krause (2013KRAUSE, Franz. 2013. “Seasons as Rhythms on the Kemi Rive in Finnish Lapland. Ethnos, 78 (1):23-46. ), os ritmos são parte integrante das atividades de pessoas.

A noção de ritmo mobilizado pelas marisqueiras é uma abertura para o tema no qual desenvolvo o meu argumento: a relação entre a técnica de mariscagem na construção do parentesco. Nesse sentido, a referência dada à maneira como sua mãe fazia e a importância de manter esse mesmo ritmo colaboram para pensar a técnica como produção de corpos aparentados. Como bem colocado por Marques e Leal (2018 MARQUES, Ana Cláudia & LEAL, Natacha Simei. 2018. “Introdução”. In: MARQUES, Ana Cláudia & LEAL, Natacha Simei(orgs.), Alquimias do parentesco: casas, gentes, papéis e territórios. Rio de Janeiro: Gramma/Terceiro Nome. pp. 135-168. :53), “[...] o parentesco somente se realiza em compo­sição” [ sic]. No caso aqui analisado, tais composições ocorrem a partir dos ritmos que caracterizam a mariscagem e uma infinidade de elementos que compõem esta dinâmica de produção de parentes, a exemplo da maré, das casas, dos quintais e do próprio território/maré.

Criando as filhas e os filhos na maré

As meninas começam, ainda bem jovens, a catar mariscos, a maioria das marisqueiras com as quais conversei disse ter começado a fazer esse trabalho com 10 ou 12 anos. Atualmente, é menos comum esse início precoce nas atividades na maré. 15 15 Atualmente as meninas e os meninos têm mais anos de estudo que suas mães e avós. O transporte escolar gratuito para as localidades vizinhas facilita a continuidade dos estudos no segundo ciclo do ensino fundamental e médio fora da Vila. É importante lembrar que a vila conta apenas com uma escola que vai até o primeiro ciclo do ensino fundamental. Apesar de já acompanharem suas mães quando crianças, fazem mais para brincar ou ajudar. Brincar ocupa um sentido específico de inserção paulatina no mundo pesqueiro ( Sautchuck 2007SAUTCHUK, Carlos Emanuel. 2007. O arpão e o anzol: técnica e pessoa no estuário do Amazonas (Vila Sucuriju, Amapá) . Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade de Brasília.). A inserção na paisagem da maré pode ser pensada tanto para a mariscagem quanto para a pesca. Aos poucos, as crianças se habituam à maré e lentamente aprendem os ritmos que definem esta atividade. Essa aproximação, ou maneiras de brincar, garante uma fabricação contínua do corpo. Como pontuado por Ingold (2018INGOLD, Tim. 2018 [2013]. “Marchez avec les dragons”. Paris: Zones Sensibles.), há nessa aprendizagem um processo de experimentação, seja pelo toque, sabor, odor ou som, um processo de “afinamento das capacidades de percepção do ambiente” (:49, tradução minha) no sentido de descoberta. Assim, as brincadeiras de criança na maré garantem a percepção do ambiente e uma “poética do habitar” ( Ingold 2018INGOLD, Tim. 2018 [2013]. “Marchez avec les dragons”. Paris: Zones Sensibles.:49).

Uma das filhas de Edna, Nanda, também é marisqueira. Parou de mariscar por um tempo para trabalhar como arrumadeira e faxineira nas pousadas da vila. Ela diz que prefere mariscar, mas “o dinheiro do marisco é incerto: o marisco, você pega e fica um tempão parado na geladeira, sem ter quem compre, na pousada o dinheiro é todo mês” . Kayin, neto de Edna, e filho de Nanda, estava com quase 2 anos à época e costumava ir para a maré com a avó quando não tinha quem cuidasse dele em casa. Ele tinha muita familiaridade com a mata e o mangue, comia todos os frutos e mariscos que encontrava pelo caminho, do Caboto até a maré: jamelão, dendê, coco de buriti, maria preta, peguari, dentre outros . Os mariscos também o encantavam, e era motivo de choro a possibilidade de não poder comê-los sempre. Edna cozinhava então uma maria preta ou peguari e dava ao neto. Kayin passava a tarde futucando e comendo o chumbinho que sua avó catava. Algumas vezes, era reprimido por comer uma quantidade exagerada. Na maioria das vezes, entretanto, ele tinha a liberdade para a experimentação e descoberta da comida. Edna conta que também criou os seus filhos na maré. Ela os colocava quando eram bebês sobre um pano à sombra dos pequenos arbustos do mangue.

Aos poucos, ao experimentar os mariscos, observar os gestos e brincar com os artefatos, Kayin afina suas capacidades de percepção das espécies (mariscos), lugares (manguezal e mata) e temporalidades da maré (maré morta, maré grande). Ou seja, ele afina sua capacidade de percepção dos ritmos que caracterizam a mariscagem. Enquanto Kayin brincava de mariscar, sua avó dizia aos risos: “parece que esse menino foi feito no mangue”. Certa vez, quando atravessamos de canoa os dois manguezais situados na costa da ilha de Matarandiba e da ilha do Cal, ao vê-lo fascinado com a canoa, Edna comenta: “esse menino parece que foi feito dentro da canoa”. Vejo na fala de Edna que o sentido da feitura empregado está associado à concepção da criança, mas do mesmo modo pode ser uma referência à maneira como a criança ainda está sendo feita (criada) na maré. Essa feitura é socialmente construída no momento da experiência da criança no caminhar pela lama, ao se aproximar do universo da pesca/mariscagem e pela maneira como é nutrido no mangue pelos alimentos que daí provêm. O marisco é o que dá sustança, é um alimento considerado forte, aquele que nutre bem. O objetivo aqui não é aprofundar a discussão da alimentação, no entanto, não se pode negar a importância deste tema para uma análise do parentesco e das substâncias que o produzem. A ingestão do marisco é referenciada positivamente pelas marisqueiras que criaram os filhos na maré, elas pontuam a qualidade de alguém que foi bem nutrido com os alimentos que vêm da maré.

As marisqueiras carregam os filhos mesmo antes do nascimento. Dona Gelita (marisqueira local) conta como foi difícil todas as vezes em que ficou grávida, foram sete gestações ao todo, mas que não deixava de mariscar :

Eu estava com as pernas inchadas e acostumada à amargura de não comer nada quando grávida, comi um prato de caruru que me lambuzei e logo as pernas melhoraram [...]. [Eu] ia de sandália por dentro dos mangues... Eu mariscava de sandália pelo meio dos mangues, porque os pés ficavam fino... o pé inchava, mas, mesmo assim, eu catava, eu catava e vomitava. E as meninas diziam: “Coitada de Gelita”. Diziam: “Não vá, não, Gelita”. E eu dizia: “Eu vou pra maré”.

Quando nasciam as filhas e os filhos, continuavam na maré com as mães, como conta Dona Gelita:

Todos eles sabem mariscar, mas nenhum marisca, não. Somente Conceição mariscava, mas essa doença do mundo [o câncer] levou ela. Eu ia pra maré, botava os dois meninos, arranjei uma cestinha assim [gesto com a mão], aí eu dizia, vocês vão ver siri e eu vou tirar o sururu. Quando eles saíam de dentro do mangue, eles gritavam: “Mainha, vem vê uma coisa, tá cheinho”. Aí eu lavava tudo, um sol quente, ia comer fogo mesmo.

Outras marisqueiras partilhavam da mesma experiência, a exemplo de Dona Suzana, comadre de Gelita e tia de Edna:

Eu mariscava, criei meus filhos tudo na maré, todos eles. Muito antes de ter essa estrada aí, era caminho fechado de mato. Eu ia lá pra baixo mariscar, criei meus filhos tudo aí na maré. Rosa, minha filha, até hoje marisca, Marina e Cida também vai [sic]. Todo mundo puxou a raiz da mãe. Criei meus filhinhos tudo aí, lutando. Levava quando eles estavam pequenos. Enquanto não estavam estudando, eu levava, quando ia para o colégio, não. Agora eles estão indo pra escola pequenos, mas, naquele tempo, não tinha colégio pra eles não, aí levava pra maré. Quando eles não quiseram estudar, eu dizia: “Não quer estudar, não? Umbora pra maré mariscar”. Aí que levava todo dia. Só era botar a farinhazinha no saco, na lata, para comer meio-dia, pra comer lá. Se panhasse um siri, cozinhava e comia, se panhasse um aratu, ostra, o que tivesse cozinhava e eles comiam. Criei meus filhos tudo aí.

Neste relato é a noção puxar a raiz da mãe que mais se sobressai. A categoria puxar a algo ou alguém é uma alusão à natureza (personalidade) da criança que vai se constituindo tendo como referência os parentes. Fulano puxou à mãe ou ao pai, tios, avós, diz-se com grande frequência quando algum aspecto da natureza da criança remete a um parente próximo - em alusão a quando o sangue puxa, não há como negar o parentesco. O sangue que puxa é o mesmo que define uma ou outra característica física ou da natureza (personalidade) da criança e vai se revelando ao longo da vida . Exemplos não faltam para ilustrar a utilização corriqueira desta categoria. Muitas vezes, escutava: “Veja como esse menino puxou à mãe” . De maneira similar, comentava-se: “Esse menino é igualzinho à tia, o sangue puxa”. Carneiro (2010CERQUEIRA, Ana Carneiro. 2010. O "povo" parente dos buracos: Mexida de prosa e cozinha no cerrado mineiro. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), em outro contexto etnográfico, investe bastante atenção na categoria “puxar o sangue de um parente”, fazendo referência a alguma característica que o indicaria como aparentado a alguém ( 2010CERQUEIRA, Ana Carneiro. 2010. O "povo" parente dos buracos: Mexida de prosa e cozinha no cerrado mineiro. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.:123). Puxar, no sentido aqui apresentado, pode ser uma noção que aproxima mães e filhos/as da maré.

Como bem descrito por Cortado (2021CORTADO, T. J. 2021. “Aos poucos: Agenciando pessoas, casas e ruas na periferia do Rio de Janeiro”. Sociologia & Antropologia, 11 (1):195-217.), em exemplos provenientes da autoconstrução em um loteamento do Rio, puxar se traduz como continuidade. O autor faz referência a uma “bricolage insfraestrutural” (:199) comum aos bairros e às localidades populares, nas quais parentes e vizinhos auxiliam na construção de casas e “puxadinhos”. A maneira como o autor analisa a noção de puxadinho me ajuda a considerar o puxar a raiz da mãe em associação com os ritmos da mariscagem e a sua continuidade no tempo.

No caso específico da raiz, ou melhor, a raiz da mãe, diria que ela está estritamente associada à maré e ao trabalho ali realizado. Esta expressão supõe que a raiz da mãe vem da maré. O que os filhos herdam dessas mães são memórias das atividades produtivas realizadas e uma experiência relacionada a essa paisagem: suas dinâmicas, ritmos, espécies e temporalidades. Ou seja, diria que são as memórias associadas a essa paisagem que são inscritas gradualmente nos corpos ( McCallum 1996MCCALLUM, C. A. 2015. “Espaço, pessoa e movimento na socialidade ameríndia: Sobre os modos Huni Kuin de relacionalidade” . Revista de Antropologia, v. 58:223-256. ).

Faço uma analogia da raiz da mãe, sobre a qual Dona Suzana faz referência, com as raízes do mangue que ficam descobertas: aparentes na maré seca e expostas por mais tempo na maré morta. As raízes do mangue se entrelaçam, não se vê nem o começo e nem o fim, são como as relações de comadres e, ainda mais, são os abrigos para as relações de parentesco costuradas na maré. Enraizar - no sentido dos vínculos e afetividades - os filhos às atividades práticas da maré.

No caso etnográfico apresentado por Alves (2018ALVES, Yara. 2018. “As Mães que Enraízam e o Mundo que Gira: Criação e Movimento no Vale Do Jequitinhonha-MG”. Tessituras, (6-2):193-213. ), a raiz é a casa da mãe, lugar em que os filhos são enraizados e são ensinados a sempre retornar em uma dinâmica relacional que se estabelece entre a casa e o mundo. No caso de Matarandiba, a raiz é a própria mãe e os ritmos são aqueles que enraízam as pessoas à maré e aos mangues.

A categoria raiz da mãe é o que me faz considerar a maré como substância do parentesco, conforme apontado por Carsten (2014CARSTEN, Janet. 2014. “A matéria do parentesco”. R@U - Revista de Antropologia da UFSCAR, 6 (2):103-118. Dossiê Parentesco. ). A maré nutre no seu sentido literal, é a substância de troca nas relações de parentesco estabelecidas. A maré define o parentesco. A noção de pessoa é construída a partir da raiz da mãe, e a raiz da mãe se constitui na - e através da - maré. Substância, neste sentido, implica fluxos e trocas ( Carsten 2014CARSTEN, Janet. 2014. “A matéria do parentesco”. R@U - Revista de Antropologia da UFSCAR, 6 (2):103-118. Dossiê Parentesco. ). Da maré provêm os alimentos, os mariscos que dão sustança e que são compartilhados nas relações de parentesco estabelecidas; mas, principalmente, é na maré que são estabelecidos os vínculos de parentesco nas idas e vindas da maré até a casa, levando assim a concluir que a maré é o lugar onde são reativadas as memórias desses vínculos.

As comadres marisqueiras: noite e abraço de maré vazia

É comum que pessoas da mesma família costumem sair para mariscar juntas, mas esta não é a única possibilidade. Em geral, elas também se organizam em pequenos grupos para fazer esta atividade. São as mulheres que já possuem algum nível de proximidade - amigas ou comadres que se agrupam. Elas costumam fazer uma parte do trabalho de maneira individual, mas também se ajudam mutuamente, o que acontece principalmente no momento da separação do miolo da concha, ou na separação da carne da casca, como no caso dos crustáceos. Esse momento envolve outras pessoas que não têm a mariscagem como fonte de renda. Várias vezes, nos quintais das casas, grupos de mulheres se juntam para conversar e catar o marisco, mesmo que elas não tenham ido à maré e, mesmo que não ganhem com a venda dos frutos do mar, elas se juntam. É parte de um trabalho coletivo feito no intuito de ajudar a marisqueira.

O convívio diário e a participação nas atividades práticas na maré são motivações para o fortalecimento das relações entre elas. Por muitas vezes, as relações entre comadres surgiram do convívio iniciado na maré. As marisqueiras mais velhas com as quais conversei faziam referências aos momentos compartilhados com outras marisqueiras e contavam entusiasmadas sobre momentos específicos vivenciados.

Sobre as comadres 16 16 Algumas etnografias contribuíram de maneira importante para discussão do compadrio no Nordeste brasileiro e em zonas rurais do sul do Brasil. Cito o trabalho de E. Woortman (1991) sobre heranças e obrigações das relações de compadrio, focado sobretudo na relação entre padrinhos e afilhados. A autora centra sua análise na herança e nas obrigações dos padrinhos com seus afilhados na vida adulta. Já Clerc-Renaud (2016) esteve interessada em analisar os compadrios em comunidades pesqueiras no Ceará. A autora foca sua análise no ritual do batismo e a coloca em relação à família biológica (pai e mãe) e espiritual (madrinha, padrinho) da criança, assim como na entrada da criança no mundo cristão no qual o próprio ritual do batismo implica. Os dois exemplos citados não dialogam diretamente com a discussão que pretendo fazer aqui, pois a relação entre comadres não assume um protagonismo nas duas contribuições. é possível afirmar que elas ocupam um papel central nas relações de parentesco na Vila. Em geral, as comadres são escolhidas em função da amizade anteriormente estabelecida. A própria ideia de consideração aparece no relato de Dona Gelita como importante para a escolha das suas comadres. A consideração é algo frequentemente associado à costura das relações de parentesco estabelecidas em Matarandiba. Nos termos propostos por Silva e Pina-Cabral (2013SAUTCHUK, Carlos Emanuel. 2007. O arpão e o anzol: técnica e pessoa no estuário do Amazonas (Vila Sucuriju, Amapá) . Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade de Brasília.), “a ‘consideração” é o que dá significado às relações entre pessoas, é o que lhe atribui relevância. Dona Gelita remete a esta categoria quando perguntada sobre quais eram os motivos que pesavam na escolha de uma comadre. Ela afirmou:

Eu gostava de [escolher] uma pessoa simples. Quem tem condições [sociais] eu não queria não. Eu queria assim que nem você, que não tinha nada, noite e abraço de maré vazia, não tinha nada, mas me considerava. Esses que têm [condições] não consideram ninguém, não. Minha filha, tem gente que vai por interesse, mas eu não, quero que faça meu filho cristão (Dona Gelita).

Ainda nos dias de hoje, é muito comum encontrar na vila crianças que não foram registradas pelos pais ou, quando o registro ocorre, é comum que essa paternidade esteja ausente. No caso de Dona Suzana e Dona Gelita, a primeira reclamava que o pai das crianças fazia uso abusivo de bebidas alcoólicas, participava pouco das despesas da casa e costumava ser violento com ela. Dona Gelita, por sua vez, perdeu o marido cedo, quando seus filhos ainda eram pequenos. Ela conta que a notícia da viuvez veio acompanhada das dívidas nas vendas locais (pequeno comércio) que o marido havia contraído. Segundo seu relato, essa notícia a obrigou a trabalhar em dobro na maré. Outras marisqueiras compartilham histórias de vida parecidas, a exemplo de Rosita, que teve seis filhos, ela terminou a união com o pai da sua primeira filha ainda muito jovem, depois teve mais cinco filhos com um rapaz da vila que era marinheiro no Rio de Janeiro e só aparecia de vez em quando. Ela enfatiza: “A cada nova aparição uma barriga (gravidez)”. No entanto, segundo Rosita, ele não sustentou nenhum deles. Foi através da maré e do trabalho como lavadeira que ela conseguiu sustentar as crianças. Mesmo que seja essencial pontuar essas habituais ausências paternas, privações e violências, é importante ressaltar que não seria apenas a falta o principal motivo para a produção da figura da comadre nas relações de parentesco estabelecidas.

Do ponto de vista do ritual de batismo, ele nem sempre está associado ao cânone católico; apesar de Dona Gelita apontar a importância de tornar alguém cristão, é muito diversa a maneira como os batizados ocorrem. Tornar alguém cristão, neste sentido, pode não passar necessariamente por um batismo que acontece dentro da igreja seguindo os rituais católicos. Como sugere Dona Suzana ao narrar o batismo de seu filho:

A gente ia para a maré de manhã, ficava o dia todo por lá, quando era tarde a gente vinha embora, depois eu tive Djalma [filho], aí a gente saiu pra festa de São Simão em Barra Grande, aí ela disse: “Vamos no rio?”. Eu disse: “Vamos”. Quando chegamos lá, aquele rio tão bonito, aí [eu] disse: “Gelita, batize Djalma aqui!”. Ela foi e batizou no rio, [a gente] passou a se chamar de comadre. [Era no] rio em Paratinga, tomamos banho, minha amizade com ela dobrou, mas se eu já gostava dela, ainda mais passei a gostar, todo canto que ela ia, eu ia atrás, quando ela dizia: “Vou pra Barra Grande”, eu dizia: “Também vou”. Aí, pronto, a gente corria pra mariscar, a gente ia lá pro Matange [mangue], mariscava o dia todo, a maré toda, quando era de tardinha a gente vinha embora; se desse pra gente pegar carona, a gente pegava, se não desse, a gente vinha andando de lá até aqui (Dona Suzana).

As duas comadres moram ainda hoje na mesma rua, suas casas ficam apenas a 100 metros uma da outra. Os filhos e os afilhados, já crescidos, também se instalaram por ali, construíram seus puxadinhos ( Cortado 2021CORTADO, T. J. 2021. “Aos poucos: Agenciando pessoas, casas e ruas na periferia do Rio de Janeiro”. Sociologia & Antropologia, 11 (1):195-217.) nos terrenos da família, o que resultava em “configurações de casas”, explicitado anteriormente ( Marcelin 1999MARCELIN, Louis Ermes. 1996. A invenção da família Afro-americana: Família, parentesco e domesticidade entre os negros do Recôncavo da Bahia, Brasil. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.).

A maré é a ligação entre comadres e entre as mães, seus filhos e filhas. Foi com Dona Gelita que Suzana aprendeu a mariscar, ela conta que, quando mais jovem, pedia a Gelita que a levasse para maré, até que um dia seu pedido foi aceito e foi assim que elas começaram a mariscar juntas até a velhice, quando não tinham mais condições físicas para continuar mariscando. Mesmo sendo nostálgicas em relação ao tempo da maré, as senhoras marisqueiras não negam a dureza que este trabalho simbolizou em seus corpos.

Tem uns dois, três anos que parei [de mariscar], mas eu ainda tenho esperança que vou aí na praia ver [pegar] peguari. Eu já fui uma vez, peguei uma sacolinha de peguari, mas eu fui aqui [perto]. Os meninos [filhos e netos] que não quer [sic] que eu vá, mas eu já disse, eu vou. Eu falei com Coco [neto], se ele tivesse a canoa ainda, eu ia ficar na beira do mangue mariscando, depois voltava de canoa, mas ele vendeu a canoa (Dona Gelita).

Figura 1.
Caminhar tortuoso

Considerações finais

A mariscagem é uma atividade essencial para a comunidade e garante sua reprodução social e material. Neste sentido, destaquei a importância das marisqueiras como produtoras do sustento da casa; como mães - criando sozinhas os filhos e as filhas na maré -; e como mulheres da maré que recriam - por meio de ritmos - relações entre elas, com o mangue, a maré e os seres que ali circulam.

O exercício que me propus a fazer neste artigo, com base na etnografia realizada entre as marisqueiras da ilha de Matarandiba, foi seguir o enredo da narrativa local sobre a maré, as memórias e os afetos. O conceito de casa, como nos lembra Motta (2014MCCALLUM, C. A. 2015. “Espaço, pessoa e movimento na socialidade ameríndia: Sobre os modos Huni Kuin de relacionalidade” . Revista de Antropologia, v. 58:223-256. ), já demonstrou “ser produtivo para os estudos do parentesco e da família por integrar seus aspectos simbólicos e materiais em um nível analítico” (:151, tradução minha). Aqui a noção de casa, enquanto espaço íntimo, de trocas e de nutrição de corpos se expande para incluir o quintal e a maré. Percebi que, na circulação das mulheres entre a maré e a casa, o espaço doméstico e o espaço produtivo se confundem e a maré torna-se o lugar de sustento e criação dos filhos, onde são tecidas as relações de parentesco, em especial as relações entre comadres. Assim, a maré é a própria substância do parentesco ( Carsten 2014CARSTEN, Janet. 2004. After Kinship. Cambridge: Cambridge University Press. pp. 230. ), pois é deste lugar que provêm os alimentos que são trocados nas relações de parentesco estabelecidas e, principalmente, é na maré que são construídos os vínculos afetivos entre filhas, filhos, irmãs e comadres. As pessoas e os parentes são feitos de uma maneira particular de experimentar, sentir e viver em uma “paisagem-tempo” das águas ( Ingold 1993INGOLD, Tim. 1993. “The Temporality of the Landscape”. World Archaeology, 25 (2):152-174. ).

O mangue-vermelho tem sua estabilidade ou ancoragem devido às ramificações que se formam através de suas raízes aéreas aparentes. Tais raízes saltam aos olhos, chamam a atenção no caminhar tortuoso pela lama movente que caracteriza este ecossistema particular das zonas tropicais e intertropicais. Esta peculiar estrutura aérea das raízes de mangue, “além de servir como substrato para algas, fornece abrigo e alimento a muitos animais” ( Atlas dos Manguezais do Brasil 2018ATLAS dos Manguezais do Brasil. 2018. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Brasília: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.:26) - espécies visíveis e invisíveis, vertebrados e mamíferos, incluindo o ser humano e outros seres que dependem direta ou indiretamente do mangue para sua sobrevivência. As raízes aparentes e por vezes encobertas pela lama que configuram a cobertura vegetal do mangue são como as relações de parentesco que se ramificam e se entrelaçam ao longo dos anos na maré. A raiz da mãe vai além de uma metáfora, é uma categoria que explicita o modo como as marisqueiras compõem e fabricam parentes e mundos. As marisqueiras mobilizam a paisagem para nos explicar como os filhos aprendem os saberes que envolvem os modos de habitar uma paisagem de águas salgadas. Este modo de habitar implica uma forma de experimentar e de se relacionar com as espécies marinhas e com a cobertura vegetal do mangue.

O puxar a raiz da mãe envolve também a apreensão de um ritmo de atividade e vida. E numa ideia mais ampla, o ritmo envolve a maré tempo e a maré paisagem. O ritmo pode ser definido como um conjunto de saberes que caracterizam uma atividade na vila, seja ela a pesca, a mariscagem, a fabricação ou a manutenção de canoas, dentre outros. Nos diferentes ritmos empregados há sempre uma referência à memória dos mais velhos, daqueles que passaram e que fazem parte da história do lugar.

Não custa lembrar que a precariedade da atividade de mariscagem e a invisibilidade do saber-fazer das marisqueiras revelam a emergência de um debate que pode se orientar em torno da arte de observar, de estar atenta, analisar e contar o que as mulheres fazem e como percebem essas paisagens. Assim, busquei estabelecer uma “perspectiva feminina para produzir um relato inteligível de um mundo social no qual as mulheres são os principais agentes na gestão da casa (gestão financeira, planejamento e preparação dos alimentos), nos cuidados, nas trocas cotidianas” ( Motta 2014MCCALLUM, C. A. 2015. “Espaço, pessoa e movimento na socialidade ameríndia: Sobre os modos Huni Kuin de relacionalidade” . Revista de Antropologia, v. 58:223-256. 125) - e principalmente no trabalho na maré.

Ao fim desta experiência etnográfica, busquei descrever e refletir sobre como o parentesco é definido, toma corpo e é materializado na maré. Uma contribuição importante para pensar a amplitude dos estudos do parentesco não só por incluir outros vetores na análise do parentesco, a exemplo do quintal e da maré, mas principalmente por propor uma perspectiva transversal interessada em estudar um saber-fazer local que constitui as relações de parentesco que são tecidas na maré ( Marques & Leal 2018 MARQUES, Ana Cláudia & LEAL, Natacha Simei. 2018. “Introdução”. In: MARQUES, Ana Cláudia & LEAL, Natacha Simei(orgs.), Alquimias do parentesco: casas, gentes, papéis e territórios. Rio de Janeiro: Gramma/Terceiro Nome. pp. 135-168. ).

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Notas

  • 1
    Este artigo resulta de um dos capítulos da minha tese de doutorado defendida em 2019 no PPGAS - USP. Apresentei diferentes extratos deste texto na APA, no Seminário Casa Corpo e Políticas da Terra (PPGES-UFSB), no encontro NUAP (Museu Nacional - UFRJ) e por fim no seminário GRBC - EHESS. Agradeço os comentários preciosos de Heloisa Pontes, Ana Carneiro Cerqueira, Marcela Rabello, Thomas Cortado e demais participantes destes eventos. Agradeço também a leitura atenta de Laure Empereire, Timothée Narring, Lilian Papini e Rosa Vieira, além da revisão de Mazé Guimarães.
  • 2
    A mariscagem é uma atividade pesqueira artesanal podendo ser realizada de maneira autônoma ou segundo o regime de economia familiar, para consumo próprio ou comercialização. Em 13 de novembro de 2019, foi sancionada a Lei 13.902 de 2019, que “[...] dispõe sobre a política de desenvolvimento e apoio às atividades das mulheres marisqueiras” (Agência Senado 2019). Dentro do projeto de lei, foi vetado pelo presidente da República da extrema direita, Jair Bolsonaro, o artigo que daria prioridade às mulheres para o recebimento de pagamentos de indenizações nos casos de desastres ambientais. Apesar da regulamentação tardia, as marisqueiras já acessavam os benefícios, oriundos do “regime especial” de aposentadorias da Previdência Social, destinados aos trabalhadores rurais de economia familiar e os pescadores artesanais.
  • 3
    O recenseamento foi realizado, em 2008, no âmbito do projeto de economia solidária da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
  • 4
    Tomando como referência os dados gerais do município de Vera Cruz, a maioria da população se autodeclara preta ou parda, segundo dados do censo IBGE 2010. Grande parte dos habitantes vive da pesca ou da mariscagem, das aposentadorias/pensões, benefícios e dos empregos ofertados pela empresa mineradora que explora salgema na ilha.
  • 5
    A ilha de Matarandiba tem uma área de 11,7 km². A mineradora DOW Brasil é proprietária de 97% desse território. (Brasil, Ministério de Minas e Energia 2018).
  • 6
    Para Ingold (1993INGOLD, Tim. 1993. “The Temporality of the Landscape”. World Archaeology, 25 (2):152-174. ), a paisagem difere de espaço por carregar uma noção estática e seria também diferente de natureza por pressupor uma realidade exterior aos seres que a compõem ( Bailão 2016BAILÃO, André. 2016. "Paisagem - Tim Ingold". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: http://ea.fflch.usp.br/conceito/paisagem-tim-ingold.
    http://ea.fflch.usp.br/conceito/paisagem...
    ).
  • 7
    Krause (2013KRAUSE, Franz. 2013. “Seasons as Rhythms on the Kemi Rive in Finnish Lapland. Ethnos, 78 (1):23-46. ) analisa como os habitantes de uma comunidade pesqueira se adaptam e ao mesmo tempo moldam os ritmos do rio na prática de suas atividades cotidianas.
  • 8
    Vale lembrar que no âmbito das pesquisas realizadas no Brasil é o trabalho de Marcelin (1999MARCELIN, Louis Ermes. 1996. A invenção da família Afro-americana: Família, parentesco e domesticidade entre os negros do Recôncavo da Bahia, Brasil. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) que se destaca ao colocar no centro da reflexão dos estudos do parentesco a noção de “configuração de casas”, bastante discutida e referenciada nos últimos anos ( Marques 2014MARQUES, Ana Cláudia. 2014. “Considerações familiares ou sobre os frutos do pomar e da caatinga”. R@u - Revista de Antropologia da UFSCar, 6 (2).; Cortado 2021CORTADO, T. J. 2021. “Aos poucos: Agenciando pessoas, casas e ruas na periferia do Rio de Janeiro”. Sociologia & Antropologia, 11 (1):195-217.; Motta 2021MOTTA, Eugênia. 2014. "Houses and economy in the favela". Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, v. 11 n. 1:118-158.; Dalmaso 2021DALMASO, Flávia Freire. 2021. “Mutualidades e casas: configurações entre o Brasil e o Haiti”. Mana, 27 (2).). Em sua etnografia sobre famílias afro-americanas de um bairro popular do Recôncavo Baiano, a casa só existe na sua relação com uma rede de unidades domésticas, ou seja, em uma relação entre várias casas que participam de sua construção num sentido tanto concreto quanto simbólico ( Marcelin 1999MARCELIN, Louis Ermes. 1996. A invenção da família Afro-americana: Família, parentesco e domesticidade entre os negros do Recôncavo da Bahia, Brasil. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.).
  • 9
    Grupo de língua kayapó que vive no estado do Pará, ao norte do Brasil.
  • 10
    No trabalho de Marcelin (1999MARCELIN, Louis Ermes. 1996. A invenção da família Afro-americana: Família, parentesco e domesticidade entre os negros do Recôncavo da Bahia, Brasil. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), citado anteriormente, as mulheres também assumem, como mães, um lugar central nas despesas da casa e na criação/educação dos filhos e netos, em comparação com a quase ausência dos homens ( Dalmaso 2021DALMASO, Flávia Freire. 2021. “Mutualidades e casas: configurações entre o Brasil e o Haiti”. Mana, 27 (2).).
  • 11
    Entendendo a reprodução social como um conjunto de relações sociais, afetivas e engajamentos envolvidos na continuidade da vida de uma geração para outra ( Guérin; Hillenkamp & Verschuur (2022GUERRIN, I.; HILENKAMP, I. & VERSCHUUR, C. 2022. “Économie solidaire, reproduction sociale et féminisme”. In: Josette Combes (éd.), L'économie solidaire en mouvement. Toulouse: Érès. pp. 66-69.); Narring 2022NARRING, T. 2022. "Les fils partent, les dettes restent: Les économies morales de la dette dans une favela de Vitória (Espírito Santo, Brésil)". Terrains & travaux, 41:181-201.).
  • 12
    Os homens utilizam gaiolas com iscas depositadas na maré vazia e recuperadas na maré cheia.
  • 13
    Horário de grande incidência solar que torna a mariscagem ainda mais exaustiva.
  • 14
    Gelita se refere desta maneira a Teresa, mãe de Edna, já que ela ajudou no parto de quase todos os filhos de sua velha amiga.
  • 15
    Atualmente as meninas e os meninos têm mais anos de estudo que suas mães e avós. O transporte escolar gratuito para as localidades vizinhas facilita a continuidade dos estudos no segundo ciclo do ensino fundamental e médio fora da Vila. É importante lembrar que a vila conta apenas com uma escola que vai até o primeiro ciclo do ensino fundamental.
  • 16
    Algumas etnografias contribuíram de maneira importante para discussão do compadrio no Nordeste brasileiro e em zonas rurais do sul do Brasil. Cito o trabalho de E. Woortman (1991WOORTMANN, Klaus. 2008. “Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano e pessoas”. Caderno Espaço Feminino, 19 (01).) sobre heranças e obrigações das relações de compadrio, focado sobretudo na relação entre padrinhos e afilhados. A autora centra sua análise na herança e nas obrigações dos padrinhos com seus afilhados na vida adulta. Já Clerc-Renaud (2016CLERC-RENAUD, Agnès. 2016. “D’un monde à l’autre. Fragments d’une cosmologie brésilienne”. In: Coll. “ En temps et lieux”. Paris: Éditions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales) esteve interessada em analisar os compadrios em comunidades pesqueiras no Ceará. A autora foca sua análise no ritual do batismo e a coloca em relação à família biológica (pai e mãe) e espiritual (madrinha, padrinho) da criança, assim como na entrada da criança no mundo cristão no qual o próprio ritual do batismo implica. Os dois exemplos citados não dialogam diretamente com a discussão que pretendo fazer aqui, pois a relação entre comadres não assume um protagonismo nas duas contribuições.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Comeford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2022
  • Aceito
    21 Fev 2024
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