O mito familiar no cuidado de enfermagem à criança em sofrimento psíquico^*

RESUMO

Trata-se de um estudo teórico com o objetivo de refletir sobre a contribuição do conceito de mito familiar para o cuidado de enfermagem à criança em sofrimento psíquico, sendo metodologicamente estruturado em três tópicos: importância da família no cuidado de crianças; perspectiva do cuidado de enfermagem centrado na família de crianças em sofrimento psíquico; e contribuição do entendimento de mito familiar para o cuidado de enfermagem à criança em sofrimento psíquico. Considera-se a dialética: a família, tida pela literatura atual como unidade harmônica, também desencadeia conflitos familiares que podem ser a causa de sofrimentos psíquicos. O conceito de mito familiar surge como possibilidade de ancoragem teórica ao cuidado de enfermagem à criança em sofrimento psíquico ao permitir que o enfermeiro considere os significantes que marcam a estruturação psíquica da criança e constroem seu sintoma. Desvendar o lugar que a família destina à criança viabiliza ao enfermeiro auxiliá-la a construir e elaborar um local próprio enquanto sujeito em sua subjetividade.

DESCRITORES
Cuidados de Enfermagem; Criança; Saúde Mental; Família; Psicanálise

ABSTRACT

This is a theoretical study aimed at reflecting on the contribution of the concept of family myth to nursing care for children in psychological distress. It is methodologically structured around three topics: the importance of the family in caring for children; the perspective of family-centered nursing care for children in psychological distress; and the contribution of the understanding of family myth to nursing care for children in psychological distress. The following dialectic is considered: the family, considered by current literature to be a harmonious unit, also triggers family conflicts that can be the cause of psychological suffering. The concept of family myth emerges as a possible theoretical anchor for nursing care for children in psychological distress, as it allows nurses to consider the signifiers that mark the child’s psychological structure and construct their symptoms. Uncovering the place that the family assigns to the child enables nurses to help them construct and elaborate their own place as a subject in their subjectivity.

DESCRIPTORS
Nursing Care; Child; Mental Health; Family; Psychoanalysis

RESUMEN

Se trata de un estudio teórico dirigido a reflexionar sobre la contribución del concepto de mito familiar a los cuidados de enfermería a niños con sufrimiento psicológico. Metodológicamente se estructura en torno a tres temas: la importancia de la familia en el cuidado de los niños; la perspectiva de los cuidados de enfermería centrados en la familia para niños con sufrimiento psicológico; y la contribución de la comprensión del mito familiar a los cuidados de enfermería a niños con sufrimiento psicológico. Se plantea la dialéctica: la familia, considerada por la literatura actual como una unidad armoniosa, también desencadena conflictos familiares que pueden ser causa de sufrimiento psicológico. El concepto de mito familiar emerge como anclaje teórico para los cuidados de enfermería a los niños en malestar psicológico, ya que permite a las enfermeras considerar los significantes que marcan la estructura psicológica del niño y construyen sus síntomas. Desvelar el lugar que la familia asigna al niño permite a las enfermeras ayudarle a construir y elaborar su propio lugar como sujeto en su subjetividad.

DESCRIPTORES
Cuidados de Enfermería; Niño; Salud Mental; Familia; Psicoanálisis

INTRODUÇÃO

Estima-se que a prevalência mundial de transtornos mentais em crianças e adolescentes chegue a 13,4%, demonstrando que a saúde mental infanto-juvenil constitui um problema de saúde pública global, agravado pela dificuldade de acesso a serviços comunitários direcionados a esta modalidade de cuidado(¹,²).

No Brasil, a prevalência estimada de transtornos psiquiátricos na população de crianças e adolescentes é de 13,1%, o que se aproxima dos dados levantados mundialmente(³). Neste contexto, a partir de 2002, foram criados os Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenis (CAPSij), serviços estratégicos e direcionados à atenção em saúde mental de crianças e adolescentes em sofrimento psíquico intenso, seguindo os preceitos do modelo de atenção psicossocial(⁴).

A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC) considera essencial a existência de um ambiente favorável ao crescimento e desenvolvimento pleno das capacidades e habilidades físicas, mentais e emocionais do sujeito, defendendo para tal a vinculação da criança com seu contexto familiar(⁵). Em função disso, é importante que a escuta e o olhar das equipes de saúde seja dirigido a ambos, criança e família, e ao vínculo estabelecido entre eles(⁵).

Após a Reforma Psiquiátrica, o enfermeiro, como parte essencial da equipe multiprofissional, passa a atuar como agente terapêutico durante a relação enfermeiro-paciente para construção do processo de enfermagem, desenvolvendo o cuidado ao considerar a subjetividade do sujeito, compreender suas vivências e auxiliar na reinserção ao convívio social(⁶). Para isso, deve olhar a criança como sujeito que vive em um meio social composto por outros indivíduos, em especial seus familiares(⁵).

Com esse intuito, é fundamental que o enfermeiro se ancore em um referencial teórico para firmar sua assistência. Uma possibilidade que aborda a família em sua relação com a criança é o referencial psicanalítico, o qual considera que adoecimentos psíquicos podem ter origem na infância, período em que estruturam-se a psique e os modos de responder aos impasses que surgem ao longo da vida(⁷). Assim, mesmo que o sofrimento psíquico não esteja presente na infância, ele pode emergir em qualquer idade a partir do que é estruturado psiquicamente nesta fase.

É na infância que a criança se constitui enquanto sujeito falante por meio da inserção de significantes fundamentais que proporcionam sua entrada na linguagem(⁷). Este tesouro de significantes apresentado ao bebê tem como nome mito familiar, conceito utilizado em psicanálise para representar o que a criança respira onde está colocada, ou seja, é composto por componentes valiosos para a família e sociedade em que ela será introduzida(⁷,⁸).

Assim, o enfermeiro atuante em saúde mental infantil que toma a psicanálise como referencial teórico para estabelecer o cuidado e a relação terapêutica, atua por meio da transferência com o objetivo de apreender a lógica do inconsciente, considerando para tal o mito familiar em que a criança está inserida(⁶–⁸).

Esse estudo justifica-se pelas altas taxas de transtornos mentais na população infantil e pela dificuldade de acesso a serviços comunitários direcionados a esse público, evidenciando a necessidade de consolidação da assistência integral à criança, a qual pode ser realizada por meio do cuidado do enfermeiro à criança em sofrimento psíquico, destacando a importância da família no desenvolvimento infantil e no processo de adoecimento(¹,²,⁵,⁷,⁸). Dito isto, este trabalho tem como objetivo refletir sobre a contribuição do conceito de mito familiar para o cuidado de enfermagem à criança em sofrimento psíquico.

Do ponto de vista metodológico, este estudo teórico está estruturado em três tópicos: o primeiro visa compreender a importância da família no cuidado de crianças; o segundo pretende descrever a perspectiva do cuidado de enfermagem centrado na família de crianças no contexto da saúde mental; e, por fim, o terceiro tópico objetiva refletir sobre como o entendimento do conceito de mito familiar pode contribuir para o cuidado de enfermagem à criança em sofrimento psíquico.

IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA NO CUIDADO DE CRIANÇAS

Considerando o contexto brasileiro de saúde infantil, a partir do final da década de 1980, a criança passou a ser beneficiada com políticas e programas que buscam ampliar o acesso aos serviços de saúde e garantir o cuidado integral, englobando seu contexto familiar e social(⁹).

O Estatuto da Criança e do Adolescente, publicado em 1990, firma como direito da criança ser criada e educada em uma família, em ambiente que garanta seu pleno desenvolvimento(¹⁰). A organização de ações e serviços para a criança e sua família deve ser articulada com a rede de atenção à saúde, potencializadora dos recursos disponíveis, garantindo a continuidade do cuidado integral(⁵,⁹,¹¹,¹²).

A PNAISC considera a família um eixo fundamental a ser incluído no cuidado, visto que julga a primeira infância, entre zero e cinco anos, como decisiva para o desenvolvimento saudável do ser humano, ao passo que as experiências familiares podem acarretar influências ao longo da vida, tanto positivas quanto negativas(⁵).

Defende que a base da saúde mental do sujeito se constrói no período de desenvolvimento psíquico, com início em seu nascimento e se estendendo até o marco em que a criança se reconhece como um sujeito distinto da figura materna, paterna e de outros integrantes do núcleo familiar(⁵,¹²). Para a construção desta autonomia, é preciso que a família também seja alvo de cuidados(⁵,⁹,¹¹,¹²).

Ainda, considera primordial fortalecer os vínculos familiares, reconhecendo que a relação entre mãe e bebê, os cuidados da família com a criança e como ela é recebida e endereçada ao mundo, são fatores fundamentais para seu desenvolvimento saudável(⁵). Assim, a intervenção com crianças deve envolver os membros familiares, orientando-os quanto à continuidade do cuidado no ambiente domiciliar e oferecendo apoio e suporte necessários a toda a família(⁵,¹²).

A Estratégia Saúde da Família (ESF) constitui a porta de entrada nas redes de atenção à saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) e um dos pontos mais importantes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), ao defender e viabilizar o cuidado integral à saúde(¹¹–¹³). É por meio dela que o cuidado em saúde mental encontra possibilidades de acolhimento, incorporação, estruturação e desenvolvimento, potencializando a construção de novos espaços de produção de saberes e intervenções(¹²).

Assim, considerando a assistência em rede, a ESF e os CAPSij são os principais dispositivos de cuidado em saúde mental infantil, tendo como prioridade o protagonismo da criança, sendo ela considerada em sua dinâmica familiar(¹³).

O reconhecimento do papel da família no cuidado da criança contribui para a manutenção e promoção do vínculo, construindo uma relação de confiança entre usuário e serviço de saúde(⁵,¹⁴). É preciso respeitar os valores, crenças, princípios e fragilidades do meio familiar, com o objetivo de proporcionar a melhor forma de conduzir a assistência(¹⁴).

Isto posto, os profissionais de saúde devem perceber a família integralmente, pois o que afeta um de seus membros pode afetar todo o sistema familiar e, por consequência, influenciar diretamente na saúde da criança(¹¹,¹⁴). Assim, o vínculo deve ser estabelecido não só com ela, mas também com sua família, visando reduzir os riscos de adoecimento de seus integrantes, proporcionando o fortalecimento familiar e contribuindo para a promoção do desenvolvimento e tratamento da criança(⁵,¹⁴).

Dito isto, é notória a importância da inclusão da família no cuidado à criança em sofrimento psíquico, o que é evidenciado pela inclusão de familiares nas políticas e nos serviços direcionados ao tratamento deste público(⁵,⁹,¹¹–¹⁴).

PERSPECTIVA DO CUIDADO DE ENFERMAGEM CENTRADO NA FAMÍLIA DE CRIANÇAS EM SOFRIMENTO PSÍQUICO

Neste tópico será apresentada uma possibilidade de leitura do cuidado de enfermagem centrado na família de crianças em sofrimento psíquico, abordagem considerada nas políticas e literaturas atuais. O enfermeiro é central para realizar o cuidado integral à criança, pois desenvolve vínculo e atua em conjunto com ela e sua família, ao considerar o meio no qual está inserida, o que possibilita a integralidade e sistematização da assistência(¹¹).

Assim, uma das principais recomendações para o cuidado de enfermagem em saúde mental infantil é a atuação em parceria com os pais e/ou familiares, considerando o cuidado centrado na família ao envolvê-los no tratamento e desenvolver um relacionamento de confiança(⁵,¹²,¹³). Alguns autores apontam, inclusive, a necessidade de, por vezes, direcionar o cuidado de enfermagem aos familiares(¹³).

A atuação em parceria com os pais/familiares é consoante com os princípios do modelo de atenção à saúde biopsicossocial, que defende o cuidado centrado na família desenvolvido com respeito à dignidade humana, o que pode repercutir positivamente na reabilitação psicossocial e viabilizar a autonomia, além de formar e capacitar sujeitos(¹⁵).

A enfermagem pediátrica, enquanto modalidade de cuidado, também defende ser fundamental a inclusão da família no cuidado à criança, permitindo sua presença e envolvimento ativo(¹⁶). Para isso, o enfermeiro deve reconhecer o papel vital da família, visando planejar e atender a criança e os familiares em um trabalho de parcerias mutuamente benéficas, compreendendo-os como seres únicos, reconhecendo sua singularidade e totalidade, e garantindo estabilidade na relação enfermeiro-criança-família(¹⁶).

Neste contexto, é preciso que o enfermeiro busque compreender a narrativa das famílias e como o tratamento pode atender melhor às suas necessidades, desenvolvendo relações com os familiares com o objetivo de criar ambientes promotores de saúde para a criança(²).

Para que isso seja possível, estimula-se a construção de sistemas de cuidado com a finalidade de reduzir as disparidades e facilitar o acesso, sendo os enfermeiros essenciais para fortalecer e ampliar essa modalidade de cuidado, considerando para tal que a possibilidade de entrada da criança em redes de saúde possam ser locais onde suas famílias interagem naturalmente, como escolas(²).

Desta forma, para que o cuidado de enfermagem em saúde mental infantil seja centrado na família, é preciso considerá-la uma unidade de cuidado, tendo como principais objetivos estimular seu vínculo com a criança e assegurar a participação dos familiares no planejamento de ações em saúde(⁵,¹²,¹⁴,¹⁶). Ou seja, consiste em um ato comunicativo entre o profissional, a criança e sua família(¹⁶).

Logo, é de extrema valia que o enfermeiro inclua a família em sua prática, dado que o apoio e envolvimento desta aumenta a qualificação do cuidado à criança em sofrimento psíquico(¹⁷). Ao incluir os familiares, o profissional contribui para que eles elaborem sentido na vivência do sofrimento, construam novos significados ao processo saúde-doença, ampliem conhecimentos e potencializem habilidades no contexto do cuidar(¹⁷).

Evidencia-se que as políticas e literaturas atuais sobre o cuidado de enfermagem na saúde mental infantil versam sobre o cuidado centrado na família, convocada para a construção dos projetos terapêuticos(¹¹–¹³). A família é, portanto, tida como uma unidade idealizada em que reina a harmonia e o equilíbrio, uma possibilidade de consolidação de parcerias com os serviços de saúde(¹⁸).

Contudo, o que se objetiva neste artigo é a construção de um cuidado de enfermagem direcionado à criança em sofrimento psíquico em sua singularidade, considerando para tal o contexto familiar em que está inserida. Para Lacan, a família é tida como o lugar dos complexos mais estáveis e típicos, denominados complexos familiares, os quais são permeados de conflitos e promovem as disputas psíquicas que possibilitam o surgimento de um sujeito singular(¹⁸,¹⁹). Ou seja, ao ser defrontada com a castração, frustração e privação que o universo familiar impõe, a criança constrói e utiliza seu arsenal simbólico para significar seu lugar nesta dinâmica familiar, o que abre possibilidade de estruturação do sujeito(¹⁸,¹⁹).

Assim, a demanda da criança deve ser escutada em sua singularidade, pois marca uma expressão particular deste ser que ocupa um lugar no complexo familiar estabelecido(¹⁸). Os conflitos familiares, neste contexto, não são tidos como um impasse à estruturação da criança, e sim como “organizadores” do desenvolvimento psíquico, sendo necessários para a emergência de um sujeito e capazes de produzir saúde por meio de sua elaboração(¹⁸,¹⁹).

Enquanto os complexos familiares são descritos como as disputas psíquicas, o mito constitui a narrativa dessas disputas(¹⁹). Munido desses dois conceitos, o psicanalista Ricardo Rodulfo formulou o conceito de mito familiar, o qual foi considerado para elaboração deste trabalho e será extensamente discutido no tópico a seguir.

CONTRIBUIÇÃO DO ENTENDIMENTO DE MITO FAMILIAR PARA O CUIDADO DE ENFERMAGEM À CRIANÇA EM SOFRIMENTO PSÍQUICO

Definir criança é, primeiramente, circunscrever os significantes que possuem estreita relação com ela, os quais são produzidos por quem a rodeia(⁸). Ou seja, para atuar na clínica de crianças em sofrimento psíquico é preciso olhar para a história de sua família, visto que o que precede este pequeno ser é determinante para ele, antes mesmo que exista(⁸).

Ao nascer, o bebê requer um cuidador que atuará como intérprete da linguagem na função de Outro, também chamado de função materna, o qual nomeia os atos do recém-nascido conforme interpreta seu estado e produz significações capazes de apaziguá-lo(⁷). Vale salientar que o termo “função materna” não indica que este encargo é exclusivo da mãe, e sim é exercido por todos aqueles que circundam esse bebê e exercem a função de inseri-lo na linguagem(⁷). É preciso desmistificar a centralidade da família ao compreender que há outros laços possíveis na organização subjetiva de uma criança e considerar que a função materna pode ser exercida por outros cuidadores, em especial no contexto brasileiro, em que nem sempre há presença de um pai, mas há avós e tias, por exemplo.

A criança será inserida na lógica da linguagem conforme adentra em uma ordem social que lhe é anterior, representada pelos significantes a ela oferecidos(⁷,⁸). Ou seja, a dimensão social familiar é fundamental à constituição do sujeito do inconsciente, pois há uma ordem simbólica instaurada e um sistema de relações pré-existentes de ordem significante que o antecede, visto que o Outro que lhe precede já está tomado pela linguagem(⁷,⁸). Como resultado, a criança faz uso dos significantes encontrados no Outro, articulados em cadeia, a fim de encontrar um lugar para se inscrever e nomear suas experiências e sensações(⁶).

Dito isto, para atuar com a criança em sofrimento psíquico, o enfermeiro precisa considerar não apenas seus primeiros anos de vida, mas sua pré-história em direção às gerações anteriores, ou seja, onde ela ainda não estava, a história da família(⁸).

O lugar da família, neste contexto, é ofertar significantes ao bebê, os quais ele tomará como seu um ou outro, imprevisivelmente(⁸). Isto é, o mito familiar não tem por função decretar à criança uma direção unívoca, da qual ele mesmo carece pois seus caminhos são imprevisíveis, devendo o enfermeiro observar a escolha de direção da criança sem a pretensão de saber quais aspectos deste mito ela tomará como seus e quais rejeitará(⁸). A variação e abundância de significantes que é oferecida a uma criança, desde até antes do seu nascimento, possui estreita relação com a posição que ela ocupará na dinâmica familiar(⁸).

Neste processo, o Outro, enquanto tesouro de significantes, possibilita a formação de uma estrutura significante constituída de elementos significativos para a família e sociedade em que o bebê está inserido, o que equivale ao conceito de mito familiar(⁷,⁸). Este compreende um saber real ou fantasmático que cada novo membro da família é confrontado, ou seja, é essencial para a compreensão da criança, que é marcada por ele(²⁰).

É por meio do mito familiar que os significantes são apresentados à criança em seu primeiro momento de elaboração de si, por meio de práticas cotidianas que incluem atos, ditos, normas educativas, regulações do corpo, entre outras, sendo infactível prever quais elementos vão predominar em sua constituição psíquica(⁸). Este mito a recebe e esculpe suas pulsões nascentes, possibilitando acesso à vida, à civilização e aos desejos, e possui estreita relação com o arranjo de possíveis sofrimentos, ou seja, pode ser a origem e a causa de problemas psíquicos(²⁰).

É preciso que o enfermeiro, durante a clínica com crianças em sofrimento psíquico, compreenda que o mito familiar não aparece como uma unidade acabada, pois não é um material congruente, unitário, sistematizado e harmônico, sendo de complexa visualização(⁸). Ele se assemelha mais a uma rede de pequenos mitos, devendo o profissional deduzi-lo ao longo do tratamento, por meio de frases e fragmentos mais ou menos esclarecedores, sendo extraído aos pedaços ao percorrer suas incongruências, contradições, lacunas e dissociações(⁸).

Vale ressaltar que o mito familiar enquanto lugar onde a criança busca significantes é, antes de mais nada, o corpo materno como alojamento matricial que contempla os significantes de abertura, visto que a corporeidade se concebe a partir do Outro da linguagem(⁸,²¹). Isto é, o recém-nascido é tomado por este outro materno que significa sua existência, em um movimento dialético em que deseja por ele e toma-o como objeto do próprio desejo(²⁰). O termo “corpo materno” deve ser considerado como o lugar onde se encontra o tesouro de significantes, ou seja, pode ser atribuído a diversos membros familiares, não sendo exclusivo da mãe(⁸,²¹).

Logo, o corpo materno é apresentado à criança como o continente universal de todos os objetos primordiais em desordem primitiva, preenchido com materiais diversos, despedaçados e fragmentados(⁸,²²). A experiência da relação da criança com este corpo lhe ensinará a assimilar tamanha pluralidade apresentada a ela, o que abrirá caminhos para formar sua própria unidade(⁸,²²). Para isso, é fundamental que o Outro insira o bebê na linguagem e inscreva-o em um corpo orgânico, assegurando a estruturação de seu aparelho psíquico(⁷,⁸,²²).

Como consequência, não há nada no corpo de um sujeito que não seja habitado pela linguagem, de modo que ainda no útero o bebê está inserido nela, pois participa do corpo materno, composto por significantes próprios(²¹). Ou seja, a criança, no real de seu corpo, está envolvida no simbólico da linguagem que a ela preexiste, surgindo como acontecimento real em um campo que pertence ao Outro(⁸,²¹,²²).

Este corpo do Outro, como já dito, é o depósito de significantes por excelência, e será nas trocas entre mãe e filho que haverá a inscrição destes no corpo do bebê(⁸,²¹). Este, por sua vez, oferece seu corpo a alguém que o cuida, limpa e nomeia, possibilitando a emersão de uma relação em que o bebê equivale ao falo, o que permite o nascimento de um sujeito desejante, sujeito do inconsciente(²⁰).

A transmissão deste mito familiar, derivado do corpo materno, acontece por meio de narrativas, intervenções concretas, carícias e entonações que, por repetição, tornam-se significantes, no tato, audição, na proximidade, calor ou distância de contato(⁸). Assim, o corpo materno é o mito familiar e, se a criança se dispõe de maneira favorável em relação à ele, interagindo de forma satisfatória no universo de insígnias representado pelos comportamentos de quem exerça a função materna, poderá instalar suas tendências, pulsões e desejos(⁸,¹⁹,²²).

Deste encontro com o corpo materno, permeado pelo mito familiar que o entranha e tinge suas atitudes, posições, ditos e fantasias, com o corpo do bebê, surgirá um corpo imaginado, representado por um lugar preparado, em um mundo simbólico, para que a criança viva(⁸).

Isto é, na medida que a mãe estabelece vínculo com o bebê, o situa como sujeito que, por meio de uma relação especular, torna possível a ele uma construção imaginária de si, dando contorno e unificando o que estava despedaçado enquanto não-imagem deste corpo(²⁰). Assim, é estabelecida uma relação de corporeidade, possibilitando a saída de um corpo do real para um corpo imaginário e simbolizado(²⁰).

Como resultado, o bebê tem como lugar de inscrição o discurso familiar, e o encontro entre seu corpo e o de sua mãe, por meio do toque, da voz e do olhar, lhe permite tornar-se sujeito de linguagem, o que possibilita sua expressão por meio de palavras(⁷,⁸,²⁰,²¹). Ou seja, o bebê retira do corpo do Outro, ao extrair os significantes do mito familiar indispensáveis para se constituir, os materiais que necessita para se elevar à ordem simbólica da intersubjetividade(⁸).

Logo, é de suma importância que o bebê assuma a tarefa ativa de esburacar o discurso do Outro, processo que consiste em encontrar e extrair significantes que o representem frente e dentro do campo desejante do discurso familiar, ação necessária para que se constitua enquanto sujeito em um corpo próprio e não seja objeto passivo de sua pré-história(⁸).

É também essencial que a criança, a partir de certa idade, perceba e procure contradições neste mito familiar que a contorna, para que produza rupturas que põem à prova versões consolidadas, ou seja, é preciso que interrogue(⁸). Assim, ela não responderá passivamente aos modos de investimentos daqueles que a rodeiam e se constituirá enquanto sujeito que endereça a si mesmo, de modo ativo, os impasses decorrentes do mito familiar que lhe precede(²⁰).

Neste contexto, o enfermeiro precisa considerar que o bebê vem investido, designado e desejado por seus pais e por sua família antes de seu nascimento, estando precocemente envolvido no cerco inicial de uma representação do que será sua presença na vida dessas pessoas, e de qual lugar ocupará onde for recebida(²⁰).

Ou seja, existe uma dialética entre o bebê imaginário, efeito das projeções e idealizações da família, e o bebê real com suas capacidades próprias, e o enfermeiro deve explorar como a família assume tal discrepância(⁸). É imprescindível que haja reconhecimento deste filho em sua diferença com o bebê imaginário, para que se aproprie das marcas de sua história sem que haja uma simples repetição do passado(⁸).

Assim, a criança, imersa no registro simbólico da linguagem, faz sintoma, e este revela a verdade parental, visto que ela está alocada em uma família e constitui uma problemática para cada um de seus pais, antes de nascer, pois para ela é esboçado um destino em que a base da trama edípica já está instaurada(²⁰). Ou seja, o sintoma da criança é a condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar(¹⁹,²⁰).

Portanto, existe uma relação entre o lugar que a criança é posicionada por seus pais e o sintoma que ela manifesta como resposta ao que existe de sintomático na dinâmica familiar(²⁰). É na relação com os pais que ela constrói seu sintoma, incorporando sua subjetividade e livrando-se do cerco mortificante reproduzido por eles(²⁰).

O enfermeiro, neste contexto, tem como possibilidade de intervenção considerar as condições que foram dadas a esta criança de ocupar um lugar na linguagem e qual forma ela encontra para responder às demandas do Outro(¹⁹,²⁰).

A título de exemplo, muitas vezes um comportamento considerado agitado pode ser resultante de conflitos pessoais e/ou familiares, que a criança ainda não consegue expressar verbalmente. Ou seja, será na interação com terceiros, neste caso o enfermeiro, que ela encenará a apropriação dos significantes do Outro e seu sintoma deve ser percebido como uma expressão da linguagem que informa sobre uma fantasia parental(²⁰).

Neste contexto, o enfermeiro não tem como função modificar o comportamento manifesto, e sim trabalhar com a subjetividade do sujeito, dispondo de escuta singular, compreendendo os sintomas e explorando como a criança processa suas experiências de vida(⁶,²⁰). Assim, sua função é acompanhar a criança na construção de uma forma de existência que a sustente(²³).

Portanto, a clínica do enfermeiro pautada na leitura teórica aqui proposta não possui qualquer intento de regular comportamentos, e sim fazer uma leitura da criança e de seu sintoma, resgatando o lugar simbólico que ela ocupa no mito familiar e permitindo sua estruturação enquanto sujeito(⁸,²⁰).

Constata-se que o sintoma incorporado no corpo da criança é um representante simbólico da dinâmica psíquica dos pais, que não consegue escoamento por outra via(²⁰). Intervir sobre a criança, nesta perspectiva, implica o reconhecimento das marcas do Outro em seu corpo(²⁰). Assim, o enfermeiro deve considerar atender também os pais para que, além de apreender o mito familiar, seja produzido algum efeito no discurso dessa família e se construa a possibilidade de uma relação de confiança que mantenha-os comprometidos com o trabalho terapêutico direcionado à criança(⁸).

Contudo, não há regra fixa para a inclusão dos pais no tratamento, é preciso escutar e atuar conforme a especificidade de cada caso, devendo o enfermeiro avaliar como se dará esta entrada, o que depende do lugar que a criança ocupa no mito familiar(⁸). Pode ser conveniente realizar entrevistas pontuais com os pais, entrevistas com os pais paralelamente às consultas de enfermagem com a criança ou, até mesmo, incluí-los nelas(⁸). Por exemplo, se a criança é calada pelos pais, é preciso que seja atendida na ausência deles, de maneira que possa expressar-se subjetivamente para elaborar seu sintoma e encontrar uma possibilidade de estruturação enquanto sujeito.

Vale ressaltar que não se trata de considerar o mito familiar puramente um problema que fosse possível viver sem(⁸). O enfermeiro, inserido neste cuidado, toma o mito familiar como alternativa em que a criança se faça própria dele e com ele, desferindo-lhe uma diferença singular e irredutível, ao invés de ocupar, durante boa parte da vida ou toda ela, um lugar que lhe forneceram, no qual não exerce alterações(⁸).

Logo, o resultado esperado para esse cuidado não se dirige a uma cura, e sim à possibilidade de transformação do sujeito, por meio da formação de uma experiência radicalmente nova de si mesmo, considerando todos os significantes do mito familiar carregados por ele(²⁴).

Assim, considerar a pré-história tem sua importância, mas é preciso haver cuidado, pois dar protagonismo à ela constitui um reducionismo, fazendo com que o profissional escute e atenda apenas o que vem dos pais, dos avós, e de outras pessoas que permeiam o mito familiar(⁸). Ou seja, é por meio da verdade do discurso parental que surge uma demanda, que deve ser vista pelo enfermeiro como um sintoma apresentado pelos pais, o qual nunca corresponde ao que a criança imprime sob o efeito transferencial(²⁰).

A relação transferencial emerge na medida em que a criança endereça ao enfermeiro seu próprio sintoma, desarticulado da demanda apresentada pelos pais(²⁰). Ou seja, o profissional deve considerar que o pedido dos pais quase nunca corresponde ao que a criança precisa, pois sua própria demanda só será descoberta quando ela, sob efeito transferencial com o enfermeiro, falar sobre seu sintoma(²⁰).

O contrário também deve ser considerado: o reducionismo inverso conduz centrar-se exclusivamente na fantasmática produzida pela criança, encerrando o tratamento em seus processos imaginários(⁸). Como consequência, exclui-se a consideração dos discursos que circulam na família sobre ela, a quem vem substituir, quais lugares herda, etc(⁸).

Assim, cabe ao enfermeiro trabalhar com a dialética entre considerar a pré-história e, ao mesmo tempo, rompê-la. Para isso, é preciso que a criança seja ouvida à medida que suas aquisições linguísticas e manifestações psicomotoras se desenvolvam, para que se constitua enquanto sujeito e não só o adulto que a acompanha seja atendido(⁵). É essencial que o profissional observe os caminhos de autonomia e busca de diferenciação que a criança constrói rumo à independência do meio, o que dificilmente acontece sem certa agressividade dirigida à própria família, como quando, durante uma brincadeira, o filho mata a própria mãe(²⁵).

Logo, o enfermeiro que atua neste referencial teórico tem como função, em sua avaliação inicial de enfermagem, investigar se há sofrimento por parte da criança, enquanto condição para o tratamento, sendo essencial que seu sintoma se desarticule daquele encontrado nos pais(²⁰,²⁶). Isto pois ela responde a um desejo anterior à sua existência e, por isso, é preciso saber se ela reage de forma traumática à tentativa de responder a este lugar que os pais lhe impõem(²⁰).

Por meio dessas estratégias, reconhece-se a criança como prioridade, pois constitui um dos grupos mais vulneráveis da humanidade(⁵). Sua dependência dos adultos, em especial de sua família, exige que a perspectiva de atenção em saúde integral garanta vínculos muito bem estabelecidos entre a criança, a família e o profissional responsável(⁵,²⁷). Atuando desta maneira, o enfermeiro possibilita a transformação do sujeito, alcançada pela construção de uma experiência nova de si mesmo, considerando o mito familiar em que está inserido(²⁴).

A forma de cuidar aqui apresentada pode ser considerada pelo enfermeiro em diversos contextos de atuação, como na atenção básica, considerada a porta de entrada para os casos de transtornos mentais infantis, e também em pontos de atenção especializada da RAPS, como os CAPSij(¹²). Neles, o enfermeiro deve atuar em parceria com a família, considerando as diretrizes do modelo de atenção biopsicossocial, os princípios do SUS sobre cuidado integral à saúde e as políticas direcionadas à assistência da criança(¹¹,¹⁵).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo respondeu ao objetivo de refletir sobre a contribuição do conceito de mito familiar para o cuidado de enfermagem com crianças em sofrimento psíquico, ao considerar a importância da família na assistência em saúde mental infantil e como o enfermeiro pode se inserir neste contexto de atuação, apropriando-se de um referencial teórico que o capacite a compreender os conflitos nascentes para a estruturação de um sujeito, como possibilidade de produção de saúde.

É consenso nas políticas atuais que a família constitui um eixo fundamental no cuidado à criança. Neste cenário, torna-se oportuno considerar a dialética presente no contexto familiar, que nem sempre se porta como a unidade harmônica descrita nas políticas e literatura atuais, sendo inclusive a causa de conflitos essenciais para a estruturação da criança enquanto sujeito. Pensar a família desta forma é considerar o conceito de mito familiar, composto pelos significantes apresentados à criança em seu primeiro momento de elaboração de si.

A contribuição do mito familiar ao cuidado de enfermagem à criança em sofrimento psíquico consiste em considerar os significantes que marcam sua estruturação psíquica, o lugar em que foi colocada pela família e a forma de construir e elaborar um local próprio. Ou seja, é preciso que o enfermeiro apreenda os fragmentos do mito familiar para que, ao cuidar da criança, descubra quais de seus aspectos lhe produzem marcas que constroem seu sintoma. A partir disso, o cuidado junto à criança é dirigido de maneira a romper com o lugar que lhe foi destinado, para que se estruture enquanto sujeito em sua subjetividade.

• Apoio financeiro
  O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

REFERENCES

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Editado por

EDITOR ASSOCIADO

Ivone Evangelista Cabral

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  20 Maio 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  20 Dez 2023
• Aceito
  04 Abr 2024