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Prisioneiros, prisões e violência política: fundamentos e estratégias para um diálogo historiográfico

Prisoners, Prisons, and Political Violence: Fundamentals and Strategies for a Historiographic Dialogue

Prisioneros, prisiones y violencia política: fundamentos y estrategias para un diálogo historiográfico

De presos políticos a presos comuns. Estudos sobre experiências e narrativas de encarceramento. Galeano, Diego; Corrêa, Larissa Rosa; Pires, Thula. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2021. 316

Galeano, Diego; corrêa, Larissa Rosa; Pires, Thula. De presos políticos a presos comuns. Estudos sobre experiências e narrativas de encarceramento. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2021. 316 p. (e-book)

A reflexão sobre questões relacionadas com a abordagem do prisioneiro e da prisão como sujeito e espaço político é de longa data. Assim é a distinção controversa entre violência política e violência social no contexto de regimes políticos autoritários. Dentro desta continuidade reflexiva, é possível identificar pontos de encontro e desacordo que, devido à sua natureza sensível e polêmica, merecem uma análise mais aprofundada. Com relação a essas questões, existem pelo menos duas posições principais:

Por um lado, um horizonte de interpretação que, por convenção, chamaremos de “Estado-centrado”. Esse horizonte examina a condição do preso político, direcionando a atenção para o exercício parcial da violência e justiça, lidando com sua instrumentalização no jogo de tensões, negociações e disputas sobre o poder do Estado (PEREIRA, 2010PEREIRA, Anthony. Ditadura e repressão. O autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.). Nesse contexto, prisioneiros e prisões tornam-se objetos de estudo políticos, enquanto o pesquisador considera ambos (agentes e espaços) como partes mutuamente dependentes dos fechamentos e aberturas das liberdades políticas no cenário nacional. Um importante setor da historiografia centrado nas experiências de autoritarismo nos países do Cone Sul mostra essa perspectiva, especialmente quando identifica os prisioneiros e os desaparecidos como as principais vítimas das ditaduras militares, enquanto define as prisões como o epicentro da violência política perpetrada pelo poder do Estado. Entretanto, há uma tendência a ignorar a ressalva, muitas vezes necessária, de que o perfil dessas vítimas (estudantes, trabalhadores, militantes comunistas, ativistas de causas sociais, líderes comunitários, comunidades periféricas, organizações negras, povos indígenas, mulheres, dissidentes sexuais etc.) foram – e continuam sendo – alvos de perseguição pelo braço repressivo do Estado. Há frequentemente uma tendência a ignorar a existência de uma continuidade repressiva que percorre os enquadramentos que delimitam na historiografia a sucessão de regimes autoritários e suas contrapartes democráticas ao longo do século XX.

Por outro lado, encontramos um segundo horizonte que desvia a atenção das periodizações historiográficas da grande política nacional. Dentro dessa perspectiva, a análise se concentra na relação entre a violência estatal e as chamadas “questões sociais”. O caráter político das desigualdades estruturais que medeiam os processos de repressão e justiça é destacado, enquanto o divórcio entre as categorias analíticas coletiva e individual, bem como política e social, é visto com desconfiança (BUTLER, 2011BUTLER, Judith. Violencia de Estado, guerra, resistencia. Por una nueva política de la izquierda + Las categorías nos dicen más sobre la necesidad de categorizar los cuerpos que sobre los cuerpos mismos (entrevista de D. Gamper Sachse). Buenos Aires: Katz, 2011.). Nesse segundo enquadramento, o papel político do prisioneiro e da prisão é analisado à luz das alteridades e assimetrias globais. Um exemplo importante pode ser traçado nas discussões de Angela Davis (2018)DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? São Paulo: Difel, 2018. sobre a dupla relação entre “sistema prisional e escravidão” e “direitos civis e abolicionismo”; ou na formulação de Jackie Wang (2018)WANG, Jackie. Carceral Capitalism. South Pasadena: Semiotext(e), 2018. sobre o “capitalismo carcerário”.

Analiticamente, as interseções entre a violência estatal e as desigualdades de raça, etnia, gênero e classe social vêm ganhando terreno no campo da história do tempo presente, compensando as tentativas de silenciamento que a ditadura civil-militar (1964-1985) dirigiu ao exercício das Ciências Sociais no Brasil nos mais de vinte anos de autoritarismo (TRAPP, 2021TRAPP, Rafael. A sociologia censurada: raça, classe e a pesquisa em ciências sociais na ditadura militar brasileira (1971-1977). Revista de História, n. 180, p. 1-32, 2021.). A visibilidade que as agendas políticas progressistas adquiriram recentemente alimentou o interesse dos jovens historiadores pelas agências dentro dos movimentos negro, indígena, feminista e LGBTQI+ durante regimes autoritários passados e presentes, além do renovado interesse dos historiadores marxistas pelas agendas políticas da classe trabalhadora nas suas interseções com as ditas agendas. Essa situação cria uma tensão positiva entre dois tipos de argumentos que, geralmente, têm sido tratados separadamente. Por um lado, a leitura contingente da grande política nacional. Por outro lado, o paradigma sobre a longa duração das desigualdades sociais que até hoje medeiam os processos de repressão e justiça. A análise cautelosa dessa tensão consegue capturar em maior detalhe os sinais políticos da continuidade repressiva, desafiando assim o uso acrítico da dicotomia “ditadura contra democracia” em voga na história política nacionalista.

É neste complexo e inacabado cenário de discussões que o livro De presos políticos a presos comuns. Estudos sobre experiências e narrativas de encarceramento deve ser enquadrado. Este último foi organizado pelos pesquisadores Diego Galeano, Larissa Rosa Corrêa e Tula Pires e publicado pela Editora PUC-Rio em 2021. O livro envolve uma constelação de pesquisadores de várias instituições. A arquitetura do livro revela três estratégias que facilitam o diálogo entre as tradições acima mencionadas. A primeira mostra um uso vantajoso da transdisciplinaridade. As contribuições contêm perspectivas da história, sociologia, ciência política e direito. Isto permite cruzar discussões teóricas, categorias historiográficas e fontes que, na maioria dos capítulos, levam ao problema da memória histórica e aos atritos permanentes que ameaçam a realização do Estado de Direito, da justiça e da igualdade nos contextos considerados. A segunda estratégia tem a ver com uma leitura de longa data que cobre o século XX em sua totalidade. A terceira estratégia mostra um diálogo internacional entre os colaboradores do livro. Os capítulos se movem entre o Brasil e a Argentina, em simultâneo, em que refletem o cuidado dos autores pelas conexões transnacionais nos casos de estudo selecionados.

Tematicamente, é possível identificar quatro blocos analíticos. De nove capítulos, três estão inscritos dentro da perspectiva de gênero e da história das mulheres. Nesse segmento estão as contribuições de Camilla Caetano La Pasta, “Tratamento mais humano para as mulheres delinquentes: encarceramento na Penitenciária Feminina da Capital Federal, anos 1940” (p. 93-125); Ayssa Yamaguti Norek, “Cárcere, presas políticas e gênero: os casos do Instituto Penal Talavera Bruce e do Presídio Tiradentes (1968-1979)” (p. 127-155); e Elaine Barbosa, “Vozes, narrativas e memórias de mulheres encarceradas: criminalização política no Brasil” (p. 157-191). Os próximos dois capítulos estão no campo de estudos da memória. Aqui encontramos as contribuições de Priscila Sobrinho de Oliveira, “Um olhar para os presos comuns nas memórias dos presos políticos da Era Vargas” (p. 61-92); e Andrea Siqueira Forti, “Agência de presos políticos: diferentes estratégias de resistência nos cárceres paulistas durante a ditadura militar” (p. 193-223). Os outros dois capítulos refletem sobre o uso político da figura do criminoso e do crime de terrorismo como um meio de modificar o funcionamento do sistema de justiça através da aprovação de leis persecutórias e discriminatórias. Nesse bloco estão as contribuições de Isabella Furtado Alves, “Perigoso agitador: as narrativas policiais e jornalísticas no caso Vacirca” (p. 23-59); e Sabrina Castronuovo, “Tortura comum: presos políticos, presos comuns e acusados de terrorismo na Argentina (1958-1962)” (p. 225-286). Os dois últimos capítulos refletem sobre o tratamento da alteridade, utilizando as categorias analíticas de raça e etnia. As contribuições de Gustavo Simi, “Reformatório, campo de trabalho e colônia penal: o confinamento de indígenas na ditadura militar” (p. 225-254); e Malu Stanchi e Tula Pires, “Quem é o preso político da necropolítica?” (p. 287-312) estão incluídas aqui.

As contribuições de La Pasta, Norek e Barbosa tratam de problemas comuns. As três questões principais foram [i] a complexa relação das presas políticas com a imprensa nacional e internacional, o que facilitou certos modos de agência; [ii] as fronteiras imprecisas, dinâmicas e porosas entre os diferentes tipos de crime, os “puníveis judicialmente”, e uma ampla gama de infrações morais, os “socialmente repreensíveis”; [iii] o papel que a maternidade e a violência sexual desempenharam tanto nas experiências dentro da prisão quanto na construção de itinerários de liberdade, diferentes das experiências de seus companheiros de cela. A perspectiva de gênero revela como o cânone da decência e da moralidade – aplicável às mulheres – complementou e/ou justificou as sanções penais das prisioneiras políticas em vários períodos da história brasileira. Mostra também como a ideia de violação deste cânone moral não foi totalmente negativa para as mulheres prisioneiras. Às vezes, as mulheres aproveitavam a ficção da beleza, perigo e sensualidade que lhes foi atribuída nas narrativas sensacionalistas que eram divulgadas pela imprensa, gerando rejeição nos setores mais conservadores da sociedade brasileira, mas também despertando a simpatia de um amplo setor do público que mais tarde foi instrumentalizado por elas como uma espécie de capital simbólico que lhes permitia negociar sua situação dentro das prisões.

As contribuições de Oliveira e Forti trazem dois pontos-chave para o debate. A primeira tem a ver com o duplo papel desempenhado pelas memórias biográficas dos presos políticos na construção de narrativas historiográficas sobre as experiências carcerárias. Por um lado, são relatos autoconstruídos de um passado épico, seja distante ou próximo. Isto, de certa forma, situa esses discursos como narrativas fictícias. Por outro lado, é um documento válido que fornece dados impossíveis de serem encontrados em fontes mais hierárquicas. A pesquisa de Oliveira faz uma leitura crítica “de dentro” que passa por essa dupla dimensão. A partir de uma posição céptica, a autora analisa os processos através dos quais alguns condenados construíram uma imagem de si mesmos como prisioneiros políticos. Essa autoimagem foi construída a partir de uma alteridade com a qual eles viveram de perto durante seu tempo na prisão: o chamado prisioneiro comum. Dessa forma, os antigos presos políticos perpetuaram uma hierarquia simbólica sobre as experiências carcerárias, tornando o crime político um motivo eticamente justificável diferente de seu homólogo, o “crime comum”. O segundo ponto é complementar ao primeiro. As nuances da pesquisa de Forti questionam a categoria genérica do preso político, revelando as várias estratégias discursivas e associativas utilizadas pelos acusados na prisão. Um exemplo disso pode ser encontrado na distinção feita pelos militantes que continuaram olhando a prisão como uma trincheira de luta contra a ditadura, e que se diferenciaram dos traidores colaboracionistas e dos artistas arrependidos que alegavam a pouca gravidade de seus crimes em relação à gravidade colossal dos crimes cometidos pelos primeiros. O diálogo entre as duas investigações revela a continuidade das referenciadas identidades em condições de cativeiro e liberdade.

As contribuições de Alves e Castronuovo discutem as leis e medidas excepcionais sancionadas a fim de conter a mobilização política dissidente e, ao mesmo tempo, justificar a violação das liberdades fundamentais das pessoas que foram consideradas ameaças à segurança nacional. Alves analisa a prisão e a deportação do anarquista italiano Vicenzo Vacirca. Ela estuda como a divulgação de informações sobre esse caso na imprensa brasileira contribuiu para a aprovação da chamada Lei Adolpho Gordo, em 1907. Esta lei permitiu a expulsão de estrangeiros considerados perigosos, uma situação que ajudou a enfraquecer a organização popular que deu origem às greves dos trabalhadores durante a Primeira República. Passando ao presente, Castronuovo focaliza sua análise no contexto argentino durante o governo de Frondizi (1958-1962). A autora analisa as tensões entre o projeto repressivo desenvolvido pelo Poder Executivo – através do decreto de medidas como o Plan Conintes – e a tentativa de justiça realizada pela Comisión Investigadora de Supuestos Apremios Ilegales da Câmara de Deputados da Argentina. O diálogo entre os dois capítulos permite ao leitor formular um quadro complexo dos bastiões de resistência que enfrentaram a escalada da violência pelo braço repressivo do Estado. A maioria dos capítulos do livro analisa a resistência a partir da perspectiva de agentes fora da estrutura governamental. Entretanto, a pesquisa da Castronuovo mostrou que os projetos repressivos nunca foram totalmente homogêneos e consensuais; eles contiveram contradições internas que permitiram a resistência dentro do tecido institucional do governo. Ambos os capítulos mostram como essas contradições funcionaram como catalisadores de reformas que tornaram o sistema de direito e justiça historicamente contingente.

As contribuições de Simi, Stanchi e Pires refletem conjuntamente sobre os processos de criminalização das diferenças étnicas e raciais dentro do Estado-nação. Especificamente, Simi analisa as estratégias e formas de violência dirigidas aos povos indígenas em um “Reformatório – Campo de Trabalho” administrado pela instituição militar em Minas Gerais durante o período mais repressivo da ditadura civil-militar brasileira (1969-1972). O autor conclui que as práticas repressivas no Reformatório tinham, em princípio, um “objetivo civilizatório” que se baseava na premissa de que a condição dos povos indígenas era transitória. Ao contrário das prisões, onde a duração da sentença das pessoas dependia do grau de severidade de seu crime, no Reformatório, a duração da pena dependia do comportamento diário do indígena durante sua presença nesse espaço. A tese da “civilização” pesava tanto quanto a própria ideia de punição. O trabalho destaca as diferenças entre as estratégias disciplinares aplicadas aos indígenas e aquelas aplicadas a outros tipos de “inimigos políticos”. Por outro lado, Stanchi e Pires investiram seus esforços em um exercício de reflexão capaz de conectar as categorias de raça e de aprisionamento político. Ambas contribuíram para uma visão racializada dos sistemas de punição e justiça. Para isso, elas adaptaram a noção de “zona de não-ser” formulada por Frantz Fanon e, com base nela, denunciaram a continuidade histórica das estruturas que justificam o tratamento desumanizado dos setores sociais racializados. De modo mais geral, ambos os capítulos analisam os limites, distinções, inclusões, exclusões e exceções envolvidas nos processos de construção judicial de vários tipos de inimigos, bem como o exercício diferenciado e direcionado da violência estatal para vários setores da sociedade.

O livro como um todo revela um forte diálogo historiográfico com obras publicadas em instituições no Brasil e na Argentina, embora também revele um diálogo com os campos intelectuais norte-americano e britânico. O padrão de referências do livro revela os contornos de uma esfera historiográfica centrada principalmente, embora não exclusivamente, nas experiências repressivas no Cone Sul durante o Ciclo de Ditaduras de Segurança Nacional (1964-1990). A busca de conexões e comparações entre experiências repressivas nos países do Cone Sul deve ser entendida em um cenário de guerra franca e aberta contra o excepcionalismo nacionalista, um tipo de legado do “Nacionalismo Metodológico” que tanto tem sido questionado pelas diversas vertentes da história atlântica e da história global. Acredito que debates futuros seriam alimentados positivamente pelas trocas e colaborações com tradições historiográficas que estão discutindo esses problemas desde contextos localizados em países africanos e europeus. Estou pensando, por exemplo, em diálogos potenciais com pesquisas que estudam a transformação das ilhas coloniais em campos de trabalho forçado e prisões políticas, especialmente no contexto da resistência do Estado colonial ao avanço internacional dos Movimentos de Libertação Nacional Africano, ou dos projetos museológicos emergentes que transformaram antigas prisões políticas europeias em espaços de resistência memorial ao autoritarismo.

Referências

  • BUTLER, Judith. Violencia de Estado, guerra, resistencia. Por una nueva política de la izquierda + Las categorías nos dicen más sobre la necesidad de categorizar los cuerpos que sobre los cuerpos mismos (entrevista de D. Gamper Sachse). Buenos Aires: Katz, 2011.
  • DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? São Paulo: Difel, 2018.
  • GALEANO, Diego; CORRÊA, Larissa Rosa; PIRES, Tula. De presos políticos a presos comuns. Estudos sobre experiências e narrativas de encarceramento. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2021.
  • PEREIRA, Anthony. Ditadura e repressão. O autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.
  • TRAPP, Rafael. A sociologia censurada: raça, classe e a pesquisa em ciências sociais na ditadura militar brasileira (1971-1977). Revista de História, n. 180, p. 1-32, 2021.
  • WANG, Jackie. Carceral Capitalism South Pasadena: Semiotext(e), 2018.
Editora responsável: Luiza Larangeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2022
  • Aceito
    02 Maio 2023
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