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Eventos Cardiovasculares Evitáveis: Um Sério Efeito Colateral da Pandemia de COVID-19

Palavras-chave
COVID-19; Betacoronavírus; Pandemia; Infarto do Miocárdio; Insuficiência Cardíaca; Doenças Cardiovasculares/mortalidade; Vacinação

Logo após o início da pandemia de COVID-19, um sentimento geral surgiu entre os médicos: muitos pacientes teriam desfechos desfavoráveis devido à demora na procura por serviços médicos por medo de contaminação. Pacientes com infarto agudo do miocárdio, insuficiência cardíaca descompensada ou acidente vascular cerebral (AVC) permaneceriam em casa ou iriam para o hospital tardiamente. A investigação de doenças possivelmente graves como o câncer seria adiada. Além disso, o colapso do sistema de saúde seria um fator contribuinte para o cuidado inadequado de doenças outras que não a COVID-19.

Levou alguns meses para que os pesquisadores coletassem dados sobre as nuances desse fenômeno. Diversas publicações têm confirmado as expectativas, lançando luz sobre um aspecto que deve ser discutido e divulgado.

Nesse contexto, este número da ABC publica uma análise do impacto dos primeiros meses da pandemia sobre o número de procedimentos médicos, internações e óbitos intra-hospitalares por doenças cardiovasculares no âmbito do serviço público de saúde brasileiro.11. Normando PG, Araujo-Filho JA, Fonseca GA, Rodrigues REF, Oliveira VA, Hajjar, LA, et al. Reduction in Hospitalization and Increase in Mortality Due to Cardiovascular Diseases during the COVID-19 Pandemic in Brazil. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(3):371-380. Os números esperados para março a maio de 2020, baseados nas tendências de 2016 a 2019, foram confrontados com os números observados durante a pandemia. Os principais resultados indicam que o número de procedimentos, cirurgias, internações e óbitos hospitalares foi muito inferior ao esperado. Os autores descrevem uma redução de 15% nas internações por doenças cardiovasculares. Os óbitos hospitalares por doenças cardiovasculares também diminuíram, mas não na mesma proporção (-8%). Como consequência, a letalidade intra-hospitalar aumentou 9%.11. Normando PG, Araujo-Filho JA, Fonseca GA, Rodrigues REF, Oliveira VA, Hajjar, LA, et al. Reduction in Hospitalization and Increase in Mortality Due to Cardiovascular Diseases during the COVID-19 Pandemic in Brazil. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(3):371-380.

O número reduzido de procedimentos cardíacos e internações hospitalares devido a urgências cardiovasculares é compatível com outros relatos do Brasil e de outros países.22. Mafham MM, Spata E, Goldacre R, Gair D, Curnow P, Bray M, et al. COVID-19 pandemic and admission rates for and management of acute coronary syndromes in England. Lancet. 2020;396(10248):381-9.44. De Rosa S, Spaccarotella C, Basso C, Calabro MP, Curcio A, Filardi PP, et al. Reduction of hospitalizations for myocardial infarction in Italy in the COVID-19 era. Eur Heart J. 2020;41(22):2083-88. Essa observação, por si só, não seria um problema se desfechos relevantes como óbitos, insuficiência cardíaca pós-infarto do miocárdio e incapacidades pós-AVC não tivessem aumentado. Infelizmente, não é o caso. Brant et al.55. Brant LCC, Nascimento BR, Teixeira RA, Lopes MACQ, Malta DC, Oliveira GMM, et al. Excess of cardiovascular deaths during the COVID-19 pandemic in Brazilian capital cities. Heart. 2020;106(24):1898-905. publicaram uma análise abrangente do excesso de mortalidade cardiovascular de março a maio de 2020 nas seis capitais brasileiras com maior número de óbitos por COVID-19. Os autores encontraram um excesso no total de óbitos cardiovasculares na maioria das cidades, principalmente devido a causas cardiovasculares não especificadas, que foram correlacionadas com um aumento nos óbitos domiciliares.55. Brant LCC, Nascimento BR, Teixeira RA, Lopes MACQ, Malta DC, Oliveira GMM, et al. Excess of cardiovascular deaths during the COVID-19 pandemic in Brazilian capital cities. Heart. 2020;106(24):1898-905.

As questões relacionadas às consequências indiretas e nocivas da pandemia não se restringem às doenças cardiovasculares. Várias publicações têm destacado demanda reduzida por serviços oncológicos e menor número de exames diagnósticos e procedimentos terapêuticos para o câncer durante a pandemia.66. Lai AG, Pasea L, Banerjee A, Hall G, Denaxas S, Chang WH, et al. Estimated impact of the COVID-19 pandemic on cancer services and excess 1-year mortality in people with cancer and multimorbidity: near real-time data on cancer care, cancer deaths and a population-based cohort study. BMJ Open. 2020;10(11):e043828.99. Riemann S, Speck I, Gerstacker K, Becker C, Knopf A. Collateral damage of the COVID-19 pandemic: an alarming decline in critical procedures in otorhinolaryngology in a German university hospital. Eur Arch Otorhinolaryngol. 2020 Dec 15;1-7. [Epub ahead of print].

Portanto, os danos colaterais da pandemia de COVID-19 são claros e alarmantes, e estratégias para minimizar eventos evitáveis devem ser desenvolvidas e implementadas. Isto é especialmente verdadeiro no contexto das doenças cardiovasculares, principal causa de óbitos no mundo e no Brasil.1010. Oliveira GMM, Brant LCC, Polanczyk CA, Biolo A, Nascimento BR, Malta DC, et al. Cardiovascular statistics - Brazil 2020. Arq Bras Cardiol. 2020;115(3):308-439.

Obviamente, a solução ideal é controlar a própria pandemia, o que leva tempo e dependerá do sucesso do programa de vacinação, que está sempre ameaçado pelo surgimento de novas variantes do coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). Enquanto a transmissão comunitária do vírus estiver em níveis elevados, outras iniciativas podem ajudar.

Em primeiro lugar, é obrigatório alertar os médicos e pacientes para o perigo de delongas no diagnóstico e no tratamento de doenças cardiovasculares, malignidades e outros processos patológicos. Os médicos devem dominar a tarefa frequentemente difícil de equilibrar os benefícios e riscos de encaminhar pacientes para procedimentos diagnósticos e internações hospitalares. O correto discernimento sobre a urgência depende de um misto de educação continuada, capacitação e bom senso. Campanhas públicas voltadas para leigos também podem ser úteis.

Em segundo lugar, os serviços de saúde devem estar preparados para minimizar os riscos aos pacientes e profissionais de saúde durante a pandemia. As sociedades médicas têm o papel de orientar os profissionais de saúde para a realização de procedimentos com segurança, como a Sociedade Brasileira de Cardiologia tem feito por meio da emissão de documentos com recomendações específicas.1111. Grossman GB, Sellera CAC, Hossri CAC, Carreira LTF, Avanza Jr AC, Albuquerque PF, et al. Position statement of the Brazilian Society of Cardiology Department of Exercise Testing, Sports Exercise, Nuclear Cardiology, and Cardiovascular Rehabilitation (DERC/SBC) on activities within its scope of practice during the COVID-19 pandemic. Arq Bras Cardiol. 2020;115(2):284-91.1313. Bittencourt MS, Generoso G, Melo PHMC, Peixoto D, Miranda EJFP, Mesquita ET, et al. Statement - protocol for the reconnection of cardiology services with patients during the COVID-19 pandemic - 2020. Arq Bras Cardiol. 2020;115(4):776-99. Hospitais de referência e ensino também podem contribuir compartilhando suas experiências e protocolos que podem ser utilizados por centros menores.1414. Chamié D, Oliveira F, Braga S, Costa JR, Siqueira DAA, Staico R, et al. Adapted catheterization laboratory practices during the COVID-19 pandemic: The Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia Protocol. Arq Bras Cardiol. 2020;115(3):558-68.

Em terceiro lugar, devemos tirar proveito do atendimento de saúde remoto para preencher parcialmente a lacuna de acesso restrito à assistência médica nestes tempos de pandemia. Uso inteligente da telemedicina,1515. Nascimento BR, Brant LC, Castro ACT, Froes LEV, Ribeiro ALP, Cruz LV, et al. Impact of a large-scale telemedicine network on emergency visits and hospital admissions during the coronavirus disease 2019 pandemic in Brazil: Data from the UNIMED-BH system. J Telemed Telecare. 2020 Oct 25;1357633X20969529. visitas da equipe de saúde e coleta de sangue em domicílio, bem como teletransmissão do eletrocardiograma são alguns exemplos de práticas que podem ser adotadas.

Em conclusão, agora está claro que os impactos da pandemia de COVID-19 vão muito além dos óbitos por pneumonia viral e aspectos socioeconômicos. Os pacientes estão mais relutantes e têm adiado investigações médicas, em grande parte devido ao medo de serem infectados pelo SARS-CoV-2. Embora compreensíveis do ponto de vista do paciente, essas atitudes apresentam riscos elevados, principalmente quando se trata de doenças cardiovasculares e câncer. Esforços devem ser feitos para limitar os eventos evitáveis e para minimizar as consequências trágicas dessa pandemia em curso ou outras tragédias que possam nos atingir futuramente.

  • Minieditorial referente ao artigo: Redução na Hospitalização e Aumento na Mortalidade por Doenças Cardiovasculares durante a Pandemia da COVID-19 no Brasil

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Mar 2021
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