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Ciência e impossível: uma perquisição psicanalítica do evidence-based

Science and impossible: an psychoanalytic investigation of evidence-based

Resumo:

Partindo da leitura lacaniana de que a ascensão do discurso científico produziu uma mudança na posição do médico, interrogam-se os efeitos do estabelecimento do evidence-based como paradigma para a prática médica. Se a inferência estatística exemplifica a convergência entre matematização e objetividade, lança-se mão de uma vinheta relativa à prática em um ambulatório de Distúrbios da Diferenciação Sexual para interpelar os impasses relativos à designação do sexo nesses casos. Pretende-se evidenciar a diferença entre a práxis da psicanálise e a abordagem médica que se orienta na direção da universalização, situando assim seus limites frente ao real do sexo.

Palavras-chave:
psicanálise; prática médica; evidence-based

Abstract:

From the Lacanian interpretation that the rise of scientific discourse produced a change in the physician’s position, the effects of the establishment of evidence-based as a paradigm for medical practice are examined. If the statistical inference exemplifies the convergence between mathematization and objectivity, an example related to the practice in a Sexual Differentiation Disorders clinic is used to question the impasses related to the designation of sex in these cases. It is intended to highlight the difference between the praxis of psychoanalysis and the medical approach that is oriented towards universalization, thus placing its limits related to the real of sex.

Keywords:
psychoanalysis; medical practice; evidence-based

Em uma conferência a médicos, Lacan (1966/2001LACAN, J. O lugar da psicanálise na medicina (1966). Opção Lacaniana, n. 32, p. 8-14, 2001., p. 9) discutiu o lugar da psicanálise na medicina a partir das novas demandas que entendia se colocarem para aqueles, na medida em que estariam submetidos às exigências sociais impostas “pelo aparecimento de um homem que sirva às condições de um mundo científico”. Com a questão relativa aos efeitos do avanço da ciência em nossa época, que remete à introdução de um elemento não regulável, devida à possibilidade do puro manejo das letras matemáticas, pretende abordar o que se teria passado, nessas circunstâncias, quanto à posição do médico. Provido de novos poderes de investigação e de pesquisa, esse último se encontraria, segundo Lacan (1966/2001LACAN, J. O lugar da psicanálise na medicina (1966). Opção Lacaniana, n. 32, p. 8-14, 2001., p. 9), interpelado pelos problemas inéditos que deles decorreriam: “Quero com isto dizer que o médico nada mais tem de privilegiado na organização desta equipe de peritos diversamente especializados nas diferentes áreas científicas”. O privilégio a que se refere era o de sua figura padrão como “homem de prestígio e autoridade” (Lacan, 1966/2001LACAN, J. O lugar da psicanálise na medicina (1966). Opção Lacaniana, n. 32, p. 8-14, 2001., p. 8), deslocada pela modificação muito rápida que teria se produzido com a intensificação da presença da ciência no mundo. Em função disso, passou a ser “do exterior de sua função, especialmente da organização industrial, que lhe são fornecidos os meios, ao mesmo tempo que as questões, para introduzir as medidas de controle quantitativo, os gráficos, as escalas, os dados estatísticos” (Lacan, 1966/2001LACAN, J. O lugar da psicanálise na medicina (1966). Opção Lacaniana, n. 32, p. 8-14, 2001., p. 9).

É a partir da introdução desses meios e das questões correlatas - através dos quais se asseveraria uma medida externa à função do médico - que Lacan (1966/2001LACAN, J. O lugar da psicanálise na medicina (1966). Opção Lacaniana, n. 32, p. 8-14, 2001., p. 9) concluiu descolar-se “a evidência do sucesso, condição para o advento dos fatos”. Ele estaria, assim, antevendo o rumo que, por essa via, veio efetivamente a estabelecer a estratificação das evidências em sentido hierarquizado como ideal de cientificidade para a prática médica, privilegiando os resultados menos afeitos à experiência imediata do médico. Interrogaremos, então, em que dimensão o que é por Lacan indicado - e que se viu de fato elevado ao zênite com a consolidação, a partir da década de 1990, de uma medicina baseada em evidência (do inglês evidence based medicine - EBM) - convoca a leitura do psicanalista. Trata-se sobretudo de propormo-nos a ler seus efeitos, assim como aquilo de que é efeito; zelando - o próprio autor (Lacan, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. (O seminário, 17), p. 99) alerta - em não cair no mal-entendido “de que minhas palavras poderiam implicar que se devesse frear essa ciência”. A preocupação quanto ao risco de uma deriva reacionária também se encontra explicitada quanto à atitude inversa, de entusiasmo quanto aos rumos da ciência: “No que quer que eu articule com uma certa visada de clarificação não existe a menor ideia de progresso, no sentido de que esse termo implicaria uma solução feliz” (Lacan, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. (O seminário, 17), p. 99).

A EVIDÊNCIA CIENTÍFICA ELEVADA AO ZÊNITE

Se, para além da objeção ou da adesão, Lacan firma o interesse do psicanalista nos efeitos reportáveis à presença da ciência no mundo, devemos apreciar mais de perto o processo através do qual o evidence-based veio a se inscrever como referência para a prática científica no âmbito da medicina e de domínios conexos. Segundo Davidoff (1999 apudSTEICHEN, 2018STEICHEN, O. De la médecine d’observation à la médecine factuelle: histoire critique de l’evidence-based medicine. Paris: Hermann Éditeurs, 2018., p. 44, tradução nossa), “a EBM não é uma revolução, mas um simples deslizamento na importância relativa atribuída aos diferentes elementos da decisão clínica”. Detendo-nos brevemente no contexto histórico e epistêmico em que se passou esse simples deslizamento, Sackett (1995SACKETT, D. Evidence-based medicine. Lancet, v. 346, n. 8983, p. 1171, 1995, Oct 28.), com quem teve início a Evidence based medicine, remonta suas origens à chamada medicina de observação de Pierre Louis, no século XIX. O quadro à época era de embate entre os defensores do método numérico, então emergente na medicina, e aqueles que se opunham a que tanto a decisão clínica quanto a própria ciência médica viessem a se apoiar em resultados estatísticos. Entre os que refutavam a matematização da ciência médica, era enaltecida a busca efetiva das causas em nível anatomopatológico.

Desrosières mostrou, em sua História da razão estatística (2010DESROSIÈRES, A. La politique des grands nombres: histoire de la raison statistique. Paris: La Découverte, 2010.), como se estabeleceu, da parte dos médicos, a resistência ao método numérico, ainda que este, com o tempo, tenha vindo a prevalecer. Predomina hoje não apenas na medicina, embora tenha sido seu sucesso nessa área que o instituiu como uma espécie de farol para o campo epistêmico referenciado ao domínio da saúde. No século XIX, todavia, a doença e seu tratamento ainda eram considerados, pela maioria dos médicos, um evento único. O paradigma estatístico, visando agrupar a experiência em categorias, era considerado ameaçar a singularidade do encontro entre o médico e o doente. Foi preciso que a doença viesse a ser tomada como problema coletivo, requerendo soluções globais, para que, no registro das epidemias e de sua prevenção, uma forma de estatística médica pudesse se estabelecer. Do colóquio singular com o doente, o médico passou a intervir - no contexto de uma epidemiologia - no debate público e na organização da sociedade (Foucault, 1984FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984.). Na clínica médica, contudo, a aceitação dos métodos quantitativos seguiu sofrendo resistências, em especial quando se propunha submeter à prova estatística a eficácia comparada dos diferentes modos de tratar um doente.

Desrosières (2010DESROSIÈRES, A. La politique des grands nombres: histoire de la raison statistique. Paris: La Découverte, 2010.) situa, assim, a controvérsia que se estabeleceu no início do século XIX, relativa ao modo de relacionar os casos na clínica médica: de um lado, a emergente estatística médica, de outro, a tradição. Segundo Piquemal (1974PIQUEMAL, J. Succès et décadence de la méthode numérique en France, à l’époque de Pierre Louis. Médecine de France, n. 250, p. 11-22, 1974.), para os entusiastas do método numérico -- tendo por figura de proa Pierre Louis, de quem Sackett e a EBM se veem tributários - era preciso classificar as doenças, avaliar comparativamente os tratamentos e buscar relações constantes entre umas e outros. Para isso, apoiavam-se nos procedimentos de comparação estatística dos resultados, baseada nos percentuais de cura dentro de uma amostragem. Eles eram, contudo, ainda criticados pelos que consideravam que o resultado estava sempre subordinado à individualidade do caso. Para esses últimos, era da arte de um homem de experiência, para o qual a tradição foi transmitida, que dependia o resultado, necessariamente imputado ao que se passa no colóquio ímpar que se dá entre médico e paciente.

Destaca-se, ainda, o caso de um personagem, Claude Bernard, que, segundo Desrosières (2010DESROSIÈRES, A. La politique des grands nombres: histoire de la raison statistique. Paris: La Découverte, 2010.), não se enquadraria em nenhum dos dois lados, introduzindo uma questão mais complexa. Ele fez progredir o método científico na medicina, mas refutava o procedimento numérico. Interessava-lhe, pelo método experimental, a busca das causas precisas de cada doença, da cadeia determinista de causas e efeitos. Desde esse ponto de vista, a estatística na ciência médica desviaria a atenção da questão da causa, em prol da probabilidade, da aproximação. Essa última posição - que, empenhada no estabelecimento de uma medicina científica, acusava o método numérico de falta de rigor -, somada às duas anteriores, seguiria existindo, como afirma Desrosières (2010DESROSIÈRES, A. La politique des grands nombres: histoire de la raison statistique. Paris: La Découverte, 2010.), até os dias de hoje. Todavia, o êxito da medicina baseada em evidência fez a balança pender, mais do que nunca, para o lado dos agrupamentos, da evidência estabelecida em termos estatísticos. O que teria determinado a extensão de um paradigma que surgiu associado à epidemiologia, à escala populacional, para o âmbito da clínica médica, dos casos individuais?

PSICANÁLISE, CIÊNCIA E IMPOSSÍVEL

Freud (1933[1932]/1976FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22, p. 13-220), p. 186) já relatava fazer-se contra a psicanálise “a queixa de que não podia ser tomada a sério, na qualidade de tratamento, de vez que não se atrevia a publicar estatísticas de seus êxitos”. Sua resposta desconcerta, na medida em que afirmava que “seus sucessos terapêuticos não constituem motivo nem de orgulho nem de vergonha”, dizendo lidar com material tão heterogêneo “que apenas números muito elevados mostrariam algo” (Freud, 1933[1932]/1976FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22, p. 13-220), p. 186), sendo mais acertado examinar cada uma das experiências. Referindo-se à psicanálise nos limites de sua dimensão terapêutica, Freud havia ponderado que “o analista também tem em seus escaninhos uma pilha de cartas de pacientes agradecidos que foram curados” (Freud, 1933[1932]/1976FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22, p. 13-220), p. 185). Essa evidência singela, ilegítima para os critérios do evidence based, também não suprime o fato de tantas outras cartas poderem portar queixas e difamações. Quanto a isso, cabe a ressalva de que, pelo ponto de vista de Freud, a aplicação de sua ciência à terapia, em particular das neuroses, constituiria apenas uma de suas possibilidades.

Buscando deslocar-se da questão de se a psicanálise seria ou não uma ciência, pano de fundo para a requisição de evidências standard, Lacan (1966/1998LACAN, J. A ciência e a verdade (1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 869-892., p. 878) asseverou antes que a práxis da psicanálise “não implica outro sujeito senão o da ciência”. Encontrando-se associado ao inconsciente, a partir da psicanálise, o sujeito em questão estaria em correlação com a ciência, segundo Lacan, por uma antinomia, na medida em que “a ciência mostra-se definida pela impossibilidade do esforço de suturá-lo” (Lacan, 1966/1998LACAN, J. A ciência e a verdade (1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 869-892., p. 875). Trata-se, então, de uma definição de ciência em que se conjugam o esforço de sutura e sua impossibilidade. Falar aí em sujeito é forçosamente concomitante à localização da impossibilidade a que conduziria a operação da ciência, o que define, por seu lado, a operação da psicanálise. Lacan (1966/1998LACAN, J. A ciência e a verdade (1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 869-892., p. 875, grifo nosso) recorreu ao teorema de Gödel para mostrar, sendo a lógica moderna, “de modo inconteste, a consequência estritamente determinada de uma tentativa de suturar o sujeito da ciência”, que “ela fracassa nisso”. É a leitura do fracasso como impossibilidade, não sem a psicanálise, que permite dizer, de modo aparentemente paradoxal, que “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” (Lacan, 1966/1998LACAN, J. A ciência e a verdade (1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 869-892., p. 873).

Lacan (1968-1969/2008LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. (O seminário, 16), p. 97) voltou ao teorema de Gödel no Seminário livro 16: de um Outro ao outro, precisamente apontando “que encontramos na experiência dessa lógica matemática senão, justamente, o resíduo em que se designa a presença do sujeito?”. O desenvolvimento do problema lógico proposto (Nagel; Newman, 1958NAGEL, E.; NEWMAN, J. R. Gödel’s proof. New York: NYU Press, 1958.), que não se conseguiria reproduzir aqui, chega à conclusão, em síntese, de que nenhuma teoria axiomática que expresse verdades básicas da aritmética pode ser, ao mesmo tempo, completa e consistente. A consistência é obtida ao preço da incompletude e vice-versa. Ou, segundo o termo técnico, produzem-se necessariamente indecidíveis, afirmações às quais não se pode atribuir valor de verdade ou de falsidade dentro do sistema. Tal como na referência à sutura em A ciência e a verdade (Lacan, 1966/1998LACAN, J. Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina (1958). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 734-745.), Lacan diz aqui que “o campo matemático, com efeito, consiste justamente em operar de forma desesperada para que o campo do Outro se sustente como tal”. E novamente complementa: “é a melhor maneira de demonstrar que ele não se sustenta, que não é consistente” (Lacan, 1966/1998LACAN, J. Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina (1958). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 734-745., p. 82). O impossível, já antes ressaltado, é formulado agora em referência à inconsistência do Outro.

Na sequência à retomada do teorema de Gödel no Seminário 16, encontramos afirmações como: “o discurso científico [...] só tem como referência a impossibilidade a que conduzem suas deduções” (Lacan, 1971/2009LACAN, J. ...ou pior (1971-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012. (O seminário, 19), p. 27). O apontamento de que a ciência tem por horizonte irremediável a impossibilidade é acompanhado, nesse período do ensino de Lacan (1968-1969/2008LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. (O seminário, 16), p. 319; 1971/2009LACAN, J. De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. (O seminário, 18), p. 27; 1971-1972/2012LACAN, J. ...ou pior (1971-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012. (O seminário, 19), p. 40), da declaração reiterada de que o impossível é o real. Esse é o ponto de apoio através do qual a hipótese adiantada em A ciência e a verdade (Lacan, 1966/1998LACAN, J. A ciência e a verdade (1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 869-892.) se traduz agora por: “o discurso analítico não é um discurso científico, mas um discurso cujo material a ciência nos fornece, o que é bem diferente” (Lacan, 1971-1972/2012LACAN, J. ...ou pior (1971-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012. (O seminário, 19), p. 136). Se, antes, o material fornecido pela ciência para a psicanálise evocava a noção de um sujeito antinômico, resíduo da operação, nesse momento, concerne ao real como impossível. Do sujeito ao real, do real ao sujeito, a impossibilidade é o eixo pelo qual, com Lacan, a ciência tange à psicanálise. Como dito, o discurso científico para Lacan tem por referência a impossibilidade.

UMA VINHETA RELATIVA À OBJETIVAÇÃO NA PRÁTICA MÉDICA

Em A ciência e a verdade (1966/1998LACAN, J. Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina (1958). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 734-745., p. 870), Lacan indicou ser Koyré seu guia para a hipótese de que o estabelecimento de uma ciência matematizada no século XVII teria inaugurado “nossa posição de sujeito”. Encontramos em Daston e Galison (2007DASTON, L.; GALISON, P. Objectivity. New York: Zone Books, 2007.) a tese, que interessa nesse sentido, de que a objetividade como valor epistêmico não esteve entre os efeitos diretos do desenvolvimento pelo qual a ciência passou no século XVII. Objetividade e matematização não seriam coisas idênticas, suas histórias não necessariamente convergem, a hipótese lacaniana de sujeito tendo se situado na esteira da matematização da ciência. Assumindo seu valor atual apenas a partir do século XIX, a objetividade não deixou, contudo, desde então, de cruzar os caminhos da matematização. Quanto a isso, Daston e Galison (2007DASTON, L.; GALISON, P. Objectivity. New York: Zone Books, 2007.) ressaltam um domínio em especial no qual objetividade e matematização convergiram: a inferência estatística. A vinheta que segue propõe a discussão de o quanto tal domínio coloca questões à posição do psicanalista, em particular ao que sustenta sua relação com a ciência.

No ambulatório de endocrinologia pediátrica de um hospital universitário, lida-se com a problemática do que a medicina intitula Distúrbios da Diferenciação Sexual (DDS). São casos em que não é possível fazer a atribuição do sexo a partir da anatomia ou ainda de outros caracteres sexuais. A operação discursiva é menino / é menina não segue a rotina de seu agenciamento padrão através dos exames de imagem ou ao trazer o bebê à luz. Procede-se, então, a um diagnóstico: sexo genético, sexo gonadal, sexo hormonal, sexo genital interno, sexo genital externo, sexo social, sexo psicológico, sexo de criação. Na ausência dos primeiros marcadores, é colocado em questão o que é tido por natural: a precedência do médico na designação do sexo. O recurso a outros marcadores acaba dando lugar ao trabalho multidisciplinar, o que justificou nossa presença para além dos médicos.

Ao nos orientarmos pela psicanálise, impõe-se de saída uma diferença: a impossibilidade de definir o sexo a partir de marcadores da medicina situa para ela exceções à norma, ao passo que, para nós, se trata sempre e a cada vez de um caso particular. Ainda assim, a abertura necessária nesses casos a uma dimensão social e psicológica do sexo impõe aos médicos o apelo a outro saber. Vale destacar, no entanto, a ambição preditiva preservada nesse apelo, pelo receio de que aquela criança ou aquele bebê possa, quando adulto, vir cobrá-lo por tê-lo mutilado. Mesmo se tratando de médicos conservadores quanto a intervenções cirúrgicas ou outras a partir da designação sexual (no caso, aquela dada por um laudo médico), a preocupação com a adequação passa pelo temor de se verificar a posteriori uma incongruência entre a direção que o ato designatório precoce, o laudo obrigatório, estabeleceu para o desenvolvimento daquele indivíduo e o ato designatório proferido no futuro por cada um.

A abordagem multidisciplinar da questão, posta pela necessidade de designar o sexo, mantém, ainda assim, o caráter disciplinar da intervenção, buscando distinguir por exemplo o que seria sexo psicológico, sexo social e sexo de criação. Esse último, cuja duplicidade semântica (o sexo no qual se cria / o sexo que se cria) aponta para o que efetivamente se deveria incluir no problema, pretende nomear o sexo “manifestado pela opinião das pessoas acerca de um determinado indivíduo; por exemplo, um homem fenotipicamente normal, pode passar-se por uma mulher e ser aceito pela sociedade como tal” (Vieira, 1998VIEIRA, T. R. Mudança de sexo: aspectos médicos, psicológicos e jurídicos. Akrópolis - Revista de Ciências Humanas da UNIPAR, v. 6, n. 21, p. 3-8, 1998., p. 17). O tensionamento de uma base biológica para a diferença do sexo pela ideia de construção social não suprime por si só, alerta Butler (2001BUTLER, J. Doing justice to someone: sex reassignment and allegories of transsexuality. GLQ - A Journal of Lesbian and Gay Studies, v. 7, n. 4, p. 621-636, 2001.), a crueldade da norma. Segue-se averiguando a verdade do sexo através do discurso, desconsiderando o que possa restar fora das narrativas. Narrativas que passam por uma linguagem impregnada de normas, alerta a autora, o que alcança, no limite, a própria autodesignação.

Para o movimento intersexo, a existência de indivíduos com atributos genitais mistos ou indeterminados deveria interrogar o dimorfismo como norma, ao passo que a abordagem disciplinar da questão, mesmo saindo da alçada médica, recorrendo a outros especialistas, institucionaliza o poder de implementação, de implementação da norma. É o que sustenta Butler (2001BUTLER, J. Doing justice to someone: sex reassignment and allegories of transsexuality. GLQ - A Journal of Lesbian and Gay Studies, v. 7, n. 4, p. 621-636, 2001.), ressaltando importar, de fato, aquilo que nos discursos, marcados pelas normas, não é totalmente reconhecível. Ela defende, por um lado, ser nesse ponto que a humanidade emerge; por outro lado, a necessidade de se criticar, na abordagem da questão, as normas que compõem a própria inteligibilidade. A admissão desse espaço entre a norma e o fracasso invocaria o que ainda não sabemos nomear, talvez o que imponha um limite ao designável.

Se, para nós, sem dúvida, a psicanálise põe em jogo a impossibilidade da norma no que concerne ao sexo, para os médicos restava a esperança de que pudesse não ser assim, o que ofereceria uma resposta à angústia que o real do sexo ali suscitou. A condução de estudos de longo prazo no interior das categorias nas quais se enquadram os Distúrbios da Diferenciação Sexual, configura-se, frente a esse anseio, o estado da arte da pesquisa nesse campo. Os estudos permitiriam verificar, com a contribuição da psicologia, a congruência ou incongruência entre a designação realizada a posteriori pelo indivíduo e o ato médico, feito para fins civis, do laudo relativo ao sexo. No lugar do impasse quanto ao sexo, chance de remissão ao real, a inferência estatística forneceria a objetividade não encontrada nos corpos.

Em nossa atuação na unidade de endocrinologia, pudemos verificar, portanto, que a questão para o psicanalista se colocava na medida em que, através da inferência estatística, se busca restituir o caso único - que por um instante remete ao impossível, tendo por índice a angústia na equipe - ao que se pode objetivar através de agrupamentos. A possibilidade de abertura à divisão do sujeito é, assim, obstruída pelo revestimento estatístico do problema que se punha ao médico. Na medida em que Lacan situa o ponto-chave do que concerne ao discurso científico na impossibilidade a que ele conduz, podemos dizer que, para a psicanálise, a evidência com que contamos seria, antes, justamente o impossível.

Sobre a participação da psicologia nos estudos de longo prazo (Inacio, 2011INACIO, M. Aspectos psicossociais e sexuais de pacientes com distúrbios do desenvolvimento sexual a longo prazo. Tese de Doutorado. Faculdade de Medicina. USP. São Paulo. 2011.), nos quais se pretende identificar, nos casos de DDS, os fatores prevalentes para a manutenção ou a mudança da identidade de gênero, vale recordar o apontamento de Lacan em Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina (1958/1998, p. 736), quando, ao destacar as novas aquisições da fisiologia, da genética, do estudo do cromossomo, da endocrinologia, ressaltou que o corte imposto pelo inconsciente, “se não tem que ser feito entre o somático e o psíquico, solidários, impõe-se entre o organismo e o sujeito”. A distinção entre somático e psíquico nada garante quanto ao campo do inconsciente, na medida em que tanto um quanto outro, mais ainda os dois em conjunto, se conformam à objetivação pretendida. O sujeito do inconsciente, o corte, se dá frente à objetivação representada pelo organismo como por seus equivalentes psicológicos.

Ao estabelecer, a partir da experiência analítica, Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia, Lacan (1950/2003LACAN, J. Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia (1950). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 127-131., p. 129) já apelara aos espíritos científicos para que não se sentissem tentados, nesse campo, “pelo sonho de um tratamento inteiramente objetivo do fenômeno criminal”. A verdade que a psicanálise busca é a “verdade de um sujeito” (Lacan, 1950/2003LACAN, J. Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia (1950). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 127-131., p. 131), com o que se descola da ação policial. Milner (2011MILNER, J. C. La politique des choses. Lagrasse: Éditions Verdier, 2011.) retoma tais apontamentos de Lacan justamente quando, ao interpelar os ditames da medicina baseada em evidência, demonstra que, sob sua regência, o ato médico não tem por referência a cura, o tratamento ou o cuidado, mas justamente a autópsia. É o horizonte do controle que Milner identifica ser traçado pela ênfase e pela modalidade de evidência em jogo. Ele denuncia a mentira em que consiste “a pretensão de que as coisas falem” (Milner, 2011MILNER, J. C. La politique des choses. Lagrasse: Éditions Verdier, 2011., p. 37), como poderíamos dizer, por exemplo, “as medidas de controle quantitativo, os gráficos, as escalas, os dados estatísticos” que vimos Lacan (1966/2001LACAN, J. O lugar da psicanálise na medicina (1966). Opção Lacaniana, n. 32, p. 8-14, 2001., p. 9) destacar; implicando que os pretensos porta-vozes das coisas não são senão porta-vozes de seus próprios interesses.

No nível do ato médico baseado na evidência, pretende-se fazer funcionar o saber em lugar de garantia, um saber que antecede o encontro entre médico e paciente, e que seu ato viria referendar. Para nosso entendimento do que seja um ato, há o disparate, contudo, de se supor, primeiro, que a produção da evidência, a seu tempo, foi sem ato. Em um segundo tempo, a ideia de que o ato presente, decorrendo da evidência, calça-se na pura objetivação da experiência é, ao ver do psicanalista, igualmente infundada, sem propósito, já que pretenderia a um ato sem ato.

CIÊNCIA E UNIVERSALIZAÇÃO

Ao tratarmos da objetivação visada pela medicina baseada em evidência, somos levados a examinar o que Lacan designou, na Proposição de 9 de outubro de1967LACAN, J. Petit discours aux psychyatres. [inédito]. 1967.sobre o psicanalista da escola (1967a/2003LACAN, J. Alocução sobre as psicoses da criança (1967). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003b, p. 359-368., p. 263), como “universalização”, aquela que teria sido introduzida pelo discurso da ciência. No ano seguinte à conferência aos médicos, ele seguiu atento, portanto, aos efeitos da aceleração da presença da ciência no mundo. O modo como tal universalização encontra-se situada em seus textos remete novamente ao que encontramos associado à MBE. Trata-se, para ele, “do remanejamento dos grupos sociais pela ciência” (Lacan, 1967a/2003LACAN, J. Alocução sobre as psicoses da criança (1967). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003b, p. 359-368., p. 263), aspecto amplo que se particulariza em seu comentário na conferência de 1966 sobre a perda de privilégio do médico, assimilado à condição de especialista. Com isso, vê estabelecida a equivalência entre os diferentes agentes científicos, passando a autorização a se assentar de modo incondicional na autoridade outorgada pela ciência.

Na medida em que progride o recurso às equivalências, o horizonte de universalização da ciência explicita sua interpenetração ao designado “futuro de mercados comuns” (Lacan, 1967LACAN, J. Petit discours aux psychyatres. [inédito]. 1967.a/2003, p. 263). Poucos dias após a Proposição, em outro pronunciamento, Alocução sobre as psicoses da criança, Lacan (1967b/2003LACAN, J. Alocução sobre as psicoses da criança (1967). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003b, p. 359-368., p. 360) voltou a tratar do problema da universalização, fazendo referência à época planetária em que nos enveredamos pela “destruição de uma antiga ordem social”. Por um lado, ele seguirá dando ênfase em seu ensino à observação de “que a realidade capitalista não tem relações muito ruins com a ciência, não se dá nada mal com ela, e tudo indica que isso pode continuar a funcionar assim, pelo menos por algum tempo” (Lacan, 1968-1969/2008LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. (O seminário, 16), p. 38), indicando inclusive que os saberes viriam a se reduzir a um único mercado. Por outro lado, vaticina que o equilíbrio de um mercado comum se fará por uma “ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação” (Lacan, 1967a/2003LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola (1967). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003a, p. 248-264., p. 263).

Ainda no mesmo ano de 1967, em uma terceira intervenção, a psiquiatras, Lacan (1967LACAN, J. Petit discours aux psychyatres. [inédito]. 1967., inédito) retomou a associação entre a universalização promovida pelo discurso científico, o apagamento das hierarquias sociais até então vigentes e o confrontamento a novas formas de segregação. Nesse discurso a psiquiatras, ele dispensa o termo universalização, trazendo em seu lugar a ideia de que a ciência promove o isolamento de um sujeito puro, o qual só existiria como sujeito do saber científico. Indica tratar-se, sobretudo, em detrimento da divisão em que se detém o sujeito da psicanálise, do velamento de uma das partes, justamente da parte tocante à relação com o objeto. Essa última indicação nos orienta quanto ao que estaria em jogo na segregação apontada como efeito de processos a que seguiríamos assistindo.

Voltando à Alocução, por duas vezes Lacan (1967LACAN, J. Petit discours aux psychyatres. [inédito]. 1967.b/2003, p. 361) ressaltou ali o lugar da psicanálise nesse contexto, considerando estarmos diante de um impasse ao qual precisaríamos saber “como responderemos, nós, os psicanalistas à segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes” (Lacan, 1968b/2003LACAN, J. Alocução sobre as psicoses da criança (1967). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003b, p. 359-368., p. 361). Na sequência, propôs ter sido “a entrada de um mundo inteiro no caminho da segregação” o que condicionou Freud a “reintroduzir nossa medida na ética através do gozo” (Lacan, 1968b/2003LACAN, J. Alocução sobre as psicoses da criança (1967). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003b, p. 359-368., p. 367). Lacan entende ter Freud reposto o gozo em seu lugar, lugar central, com o que se faria possível ao psicanalista situar e responder de modo consequente ao processo através do qual a universalização promovida pela ciência, com o capitalismo, implicou o incremento dos modos de segregação.

Propomos aproximar a objetivação, a valoração epistêmica da objetividade, da ideia de universalização aqui veiculada por Lacan. Se no evidence based tal valoração é clara, o ato médico por ele condicionado implicaria uma segregação que no caso podemos ler, nos termos da intervenção lacaniana, como a tentativa de promoção de um sujeito puro, alijado para tal de sua relação ao objeto, objeto a. A extensão ilimitada dos procedimentos de equivalência e comparação, próprios ao paradigma do evidence based, teriam no objeto da psicanálise um impasse, justamente na medida em que, com ele, como dissemos acima, repomos o gozo em seu lugar; isto é, insistimos em seu caráter êxtimo, não calculável, não passível de se fazer equivaler ou comparar.

MEDICINA EVIDENCE BASED?

Voltando uma última vez à conferência em La Salpêtrière, cabe ressaltar que Lacan (1966/2001LACAN, J. O lugar da psicanálise na medicina (1966). Opção Lacaniana, n. 32, p. 8-14, 2001., p. 12) toma ali o que chamou de falha epistemo-somática como demonstração de “que a dimensão ética é aquela que se estende em direção ao gozo”. Dita falha assinala o “que é excluído da relação epistemo-somática” (Lacan, 1966/2001LACAN, J. O lugar da psicanálise na medicina (1966). Opção Lacaniana, n. 32, p. 8-14, 2001., p. 12), ou seja, do que o progresso da ciência acarretou para a relação da medicina com o corpo. A dimensão do gozo fica excluída de tal relação, implicando, nos termos do que Lacan propusera, que a resposta do psicanalista a isso não reitere a via epistêmica, mas que seja de ordem ética. O lugar da psicanálise na medicina é, nesse sentido, “extra-territorial” (Lacan, 1966/2001LACAN, J. O lugar da psicanálise na medicina (1966). Opção Lacaniana, n. 32, p. 8-14, 2001., p. 8), como dito na abertura da conferência. Se aqui enfocamos o evidence based, é entendendo ele acentuar com a promoção, por seus instrumentos, de equivalências irrestritas a extraterritorialidade da psicanálise, na medida em que o velamento da dimensão do gozo, ele não universalizável, seria consequentemente exacerbado.

Nos termos em que aborda a medicina baseada em evidências, também vemos Milner (2011MILNER, J. C. La politique des choses. Lagrasse: Éditions Verdier, 2011.) sublinhar o que ela deixa de fora para operar. Valendo-se mais uma vez das premissas de Lacan (1950/2003LACAN, J. Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia (1950). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 127-131., p. 131) para o desenvolvimento da criminologia, ele destaca, contra o tratamento objetivo do fenômeno criminal, o “respeito pelo sofrimento do homem” na base da experiência que constitui a psicanálise. Com o que a aproxima da medicina, dizendo ser aquela a mesma base que define o “caráter sagrado” (Lacan, 1950/2003LACAN, J. Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia (1950). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 127-131., p. 131) da ação do médico. Milner (2011MILNER, J. C. La politique des choses. Lagrasse: Éditions Verdier, 2011., p. 52, tradução nossa) entende Lacan ilustrar, com esse apontamento, a face de seu ensino segundo a qual, “cuidando de manter psicanálise e medicina à distância uma da outra, ele cuidou ainda mais de manter uma e outra à distância da injunção que termina sempre endereçando-lhes, em nome da repressão e da prevenção do crime, os mestres do momento”. É esse o tênue traçado que daria sentido ao dito lacaniano (1966/2001, p. 14) de ter se colocado perpetuamente como “missionário do médico”, o qual se complementa com seu entendimento de que teríamos, na prática introduzida por Freud, “a última flor da medicina” (Lacan, 1975LACAN, J. Entretien avec des étudiants - Yale University, 24 Novembre 1975. Scilicet. Vol. 6/7. Paris: Seuil, 1975., p. 29).

Tal lugar da psicanálise para a medicina se deve, na consideração de Lacan, justamente ao fato de a última pretender ter se tornado científica. Se a pretensa cientificização da medicina encontra seu modelo ideal hoje no evidence based, a interpelação lacaniana se atualizaria na pergunta se o objeto da prática médica poderia ser de fato tomado nesses termos. Ou quais as consequências para a prática médica da assunção de tal paradigma. A questão que levantamos em conclusão, portanto, é o quanto o objeto dessa prática presta-se efetivamente e em toda sua extensão aos parâmetros estatísticos. Lembrando ter Butler (2001BUTLER, J. Doing justice to someone: sex reassignment and allegories of transsexuality. GLQ - A Journal of Lesbian and Gay Studies, v. 7, n. 4, p. 621-636, 2001.) associado a humanidade ao que não é reconhecível pela narrativa, mesmo aquela que se pretende factual. Se, como mostrou Desrosières (2010DESROSIÈRES, A. La politique des grands nombres: histoire de la raison statistique. Paris: La Découverte, 2010.), o método numérico adentrou a medicina pela epidemiologia e encontrou resistência dos clínicos, perguntamos no decorrer do artigo de que modo o que se fez válido na escala populacional pôde vir a se estabelecer também individualmente na experiência com o paciente.

Buscamos indicar que tal processo, que associamos ao termo universalização em Lacan, não é alheio à ordem capitalista. O regime de equivalências, o mercado, refuta o objeto não equalizável da psicanálise, o qual, por sua vez, Lacan sustentou não se poder subtrair de todo da prática do médico. Na ciência, objetos necessitam de métodos de raciocínio para que se possa dizer a verdade sobre eles (Hacking, 2006HACKING, I. Méthodes de raisonnement. Aula dada no Collège de France em 14/02/2006. 2006. Disponível em: https://www.college-de-france.fr/site/ian-hacking/course-2006-02-14.htm. Acesso em: 03 fev. 2022.
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), com o que, portanto, se imporia limites à aplicação de um único método de raciocínio a todo objeto. Se é simples, em vista disso, refutar a possibilidade de uma psicanálise evidence based, a questão menos óbvia em que aqui tocamos é a da possibilidade e das implicações de tomar a prática médica por evidence based. Para Lacan, cabe ao psicanalista tal interrogação: se também no caso do médico tomaríamos por impostura vincular seu ato à ordem do necessário, elidindo de sua base o que se flexiona do impossível ao contingente.

Referências

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  • DESROSIÈRES, A. La politique des grands nombres: histoire de la raison statistique. Paris: La Découverte, 2010.
  • HACKING, I. Méthodes de raisonnement Aula dada no Collège de France em 14/02/2006. 2006. Disponível em: https://www.college-de-france.fr/site/ian-hacking/course-2006-02-14.htm Acesso em: 03 fev. 2022.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2022
  • Aceito
    05 Mar 2024
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