Acessibilidade / Reportar erro

Movimento de Reorientação Didático-Pedagógica (MRDP) na formação contínua de professores de Matemática do Campo

The didactic-pedagogical reorientation movement: building meanings in the continuous training of rural mathematics teachers in the context of research and training

Resumo:

Neste estudo, nosso objetivo é compreender de que maneira os docentes constroem sentidos acerca de suas práticas, ao integrar a Matemática e a Educação do Campo durante um processo de formação contínua, em um contexto de pesquisa-formação. Adotamos a pesquisa-formação qualitativa, por meio da qual ensaiamos e analisamos um novo modelo teórico e epistemológico, o qual é denominando neste artigo Movimento de Reorientação Didático-Pedagógica (MRDP), que consiste em um processo contínuo de revisão e atualização de práticas pedagógicas pelos docentes. Os resultados mostram a presença de sentidos que o professor estabelece entre a cultura e o conhecimento matemático, destacando a interdisciplinaridade como outro significado que professores atribuem à Matemática. Finalmente, notamos a autonomia dos professores como um significado recém-estabelecido. Esta autonomia, aparentemente, é uma característica que os professores atribuem à sua própria prática, indicando uma tendência para se tornarem cada vez mais reflexivos em suas funções.

Palavras-chave:
Educação no campo; Educação matemática; Formação continuada do professor

Abstract:

Our goal is to gain a better understanding of how teachers construct meanings from their practices while incorporating Mathematics and Rural Education during continuous training. We use qualitative research to foster an environment in which educators can actively participate in their development. We test and analyze a new theoretical and epistemological model, the Didactic-Pedagogical Reorientation Movement, which consists of teachers continuously reviewing and updating their pedagogical practices. The findings indicate that teachers establish meanings between culture and mathematical knowledge, with interdisciplinarity highlighted as an additional meaning attributed to mathematics. Finally, we identify autonomy as a newly established meaning and a characteristic that teachers attribute to their practice, indicating a trend toward becoming more reflective in their roles.

Keywords:
Rural education; Mathematics education; Continuous teacher training

Introdução

Neste estudo, apresentamos um novo modelo teórico e epistemológico para pensar a formação contínua de professores do campo, o qual denominamos de Movimento de Reorientação Didático-Pedagógica (MRDP), que consiste em um processo continuum de reorientação de práticas pedagógicas implementadas pelos docentes. Este processo pode incluir novas estratégias de ensino, a implementação de tecnologias educacionais, a revisão dos currículos escolares e a aplicação de abordagens pedagógicas intrinsecamente ligadas à realidade sociocultural local.

O MRDP pode ser desenvolvido em diversas instituições de ensino do campo, estando disponível para reconstrução por educadores comprometidos com a melhoria da educação, podendo abranger a participação integral da comunidade escolar. Esse Movimento de Reorientação Didático-Pedagógica (MRDP) visa a promover transformações significativas nas práticas educacionais, bem como na qualidade do processo educacional como um todo.

O MRDP encontra respaldo teórico no diálogo entre o pensamento de Freire (2019)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 67. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019. e as ideias de Josso (2004)JOSSO, M. C. Experiências de vida e formação. Lisboa: Educa, 2004., em relação ao processo de aprendizagem e à construção do conhecimento. Freire (2019)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 67. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019. defende uma educação crítica, dialógica e transformadora, enquanto Josso (2004)JOSSO, M. C. Experiências de vida e formação. Lisboa: Educa, 2004. propõe um olhar sobre a aprendizagem como um processo de construção identitária e subjetiva, tendo como elemento as experiências de vida dos sujeitos.

Sob esta óptica, o MRDP é configurado como uma proposta de formação alicerçada na experiência, por meio de um enfoque educacional que enfatiza a importância da vivência na construção do conhecimento. O MRDP permite que a aprendizagem adquira maior significado na medida em que o sujeito é instigado a problematizar cenários autênticos, que lhe oferecem a possibilidade de experimentar e vivenciar a teoria emaranhada na prática.

Todavia, para que tal aprendizado alcance seu completo significado, torna-se premente que este esteja complementado por uma formulação ou simbolização, tal como delineado por Josso (2004)JOSSO, M. C. Experiências de vida e formação. Lisboa: Educa, 2004.. Esta simbolização envolve a capacidade de transmutar a vivência em formato simbólico, tais como palavras, imagens, gráficos ou diagramas. Esta habilidade faculta ao educador estruturar os conhecimentos edificados ao longo da experiência formativa, cristalizando o que foi construído na forma de atividades, que simplificam a compreensão, comunicação e compartilhamento dos saberes institucionalizados.

Contudo, impõe-se a necessidade imperativa de que os professores exerçam um escrutínio meticuloso no equilíbrio de suas abordagens. É de suma importância que, ao alinhar o ensino de Matemática com a realidade do estudante, a integridade e a profundidade do conteúdo matemático sejam preservadas intransigentemente.

Esta prerrogativa se mostra essencial nos mais variados contextos e capacidades cognitivas. Uma vez que a adoção de práticas pedagógicas que resultem em uma diluição ou empobrecimento do conteúdo matemático poderá culminar em um déficit significativo na aprendizagem do estudante. Tal lacuna não apenas obsta o êxito acadêmico dos educandos, mas também amortece o desenvolvimento de habilidades importantes, como o raciocínio crítico e a solução de problemas, habilidades estas imprescindíveis ao exercício pleno da cidadania e à inserção qualificada no mercado de trabalho.

Em face disto, ao se percorrer a trilha da contextualização no ensino da Matemática, faz-se imperativa a manutenção de um rigor acadêmico elevado, assegurando que os estudantes sejam imersos em um processo educativo que não apenas os desafie, mas também promova um engajamento substancial e profundo. A educação matemática, portanto, deve ser desenvolvida de forma a respeitar a integridade do conteúdo matemático, ao passo que se articula às realidades e necessidades contemporâneas dos alunos.

Entender esse processo nos conduz a questionar: em que termos os educadores constroem sentidos acerca de sua prática pedagógica ao articular Educação Matemática e Educação do Campo durante a formação contínua, no contexto de pesquisa-formação? Diante da intricada problemática, emerge o seguinte objetivo geral: compreender de que maneira os docentes constroem sentidos acerca de suas práticas ao integrar a Matemática e a Educação do Campo durante um processo de formação contínua em um contexto de pesquisa-formação.

Referencial teórico

O presente estudo fomenta discussões acerca das possíveis conexões entre a Educação do Campo e a Educação Matemática. Um exame detalhado desta problemática, conforme constatado em Sachs (2018)SACHS, L. Currículo de matemática na educação do campo: panorama e zoons. Zetetiké, Campinas, v. 26, n. 2, p. 404-422, 2018. DOI: https://doi.org/10.20396/zet.v26i2.8647567
https://doi.org/10.20396/zet.v26i2.86475...
, explicita fissuras na relação dessas áreas, oscilando entre a insuficiente qualidade do ensino oferecido nas escolas do campo e a deficiência na formação inicial ou contínua que chega a esses locais.

Sachs (2018)SACHS, L. Currículo de matemática na educação do campo: panorama e zoons. Zetetiké, Campinas, v. 26, n. 2, p. 404-422, 2018. DOI: https://doi.org/10.20396/zet.v26i2.8647567
https://doi.org/10.20396/zet.v26i2.86475...
efetuou um levantamento de publicações nos Anais das 12 edições do Encontro Nacional de Educação Matemática (ENEM), principal evento brasileiro de Educação Matemática. A pesquisa demonstra que, no período de 1987 a 2016, menos de 1% dos textos publicados discutem o ensino de Matemática em escolas do campo.

De forma análoga, Sachs (2018)SACHS, L. Currículo de matemática na educação do campo: panorama e zoons. Zetetiké, Campinas, v. 26, n. 2, p. 404-422, 2018. DOI: https://doi.org/10.20396/zet.v26i2.8647567
https://doi.org/10.20396/zet.v26i2.86475...
executou uma análise no Boletim de Educação Matemática (Bolema), um dos mais antigos periódicos do país. A autora examinou os artigos publicados entre 1985 e 2016, correspondentes a 60 edições da revista. Nesse intervalo de 30 anos, 1,4% dos artigos abordam temas referentes à Educação do Campo. Esses dados suscitam questionamentos sobre as causas que levam ao abandono ou negligência das escolas do campo.

Alicerçados nesta problemática, adentramos nos limites da Educação Matemática e da Educação do Campo. Embora a primeira se tenha solidificado como um amplo domínio de pesquisa, conforme postula Vasco (1997)VASCO, C. E. La educación matemática: una disciplina em formación. Revista Paideia Surcolombiana, Neiva, Huila, n. 5, p. 10-23, 1997., a segunda ainda pleiteia reconhecimento, possivelmente mais como área de investigação do que como modalidade de ensino. Nas confluências desses territórios emergentes, encontram-se os educadores de Matemática atuantes em escolas do campo. Este estudo dedica-se a esses sujeitos, cuja formação inicial frequentemente não abrange a complexidade da dinâmica de sala de aula, sobretudo considerando a realidade das escolas do campo (Barreira, 2020BARREIRA, J. S. Pesquisa da própria prática ao ensinar matemática: uma análise de estratégias de resolução de problemas com estudantes do 5º ano de uma escola do campo. 2020. 136 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Docência em Educação em Ciências e Matemáticas) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2020.).

O presente artigo alinha-se à vertente da Educação Popular Crítica, abordagem pedagógica que almeja emancipação e transformação social, não se limitando à disseminação de informações e habilidades técnicas. Tal perspectiva tem suas raízes nos escritos de Paulo Freire (Freire, 2014FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014., 2019FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 67. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019., 2020FREIRE, P. Extensão ou comunicação. 22 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020.), que advoga pela educação como meio de conscientização e empoderamento para sujeitos e comunidades oprimidas.

A educação formal, enquanto manifestação de humanidade e coragem, deve se constituir como um ambiente propício ao diálogo e à reflexão crítica sobre a realidade, conforme preceitua Freire (2019)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 67. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.. Enfatizamos a necessidade de participação em debates produtivos que valorizem o processo educativo, evitando a transformação do ensino em uma representação vazia de substância. Nesta corrente de pensamento, a Educação Popular Crítica ressalta a importância do diálogo, da problematização e da reflexão crítica no ambiente educacional, visando ao desenvolvimento da capacidade dos sujeitos de compreender e alterar a realidade socioeconômica e política na qual se inserem.

Adicionalmente, neste estudo, adotamos a perspectiva da Educação Matemática Crítica, tal como esboçada por Skovsmose (2014)SKOVSMOSE, O. Um convite à educação matemática crítica. Campinas: Papirus, 2014.. Este enfoque pedagógico aspira a ampliar o entendimento da Matemática para além de sua esfera puramente técnica, incluindo elementos socioculturais e políticos. Sob essa ótica, almejamos uma visão mais abrangente e reflexiva acerca da formação contínua dos educadores de Matemática, de modo a habilitá-los a reorientar suas práticas, consolidando uma consciência crítica e reflexiva sobre seu papel social.

Defendemos que a Matemática não pode se limitar a um aglomerado de regras e fórmulas; ela deve ser uma construção cultural e social, cujo exercício pode ter implicações significativas na vida dos indivíduos e na estruturação da sociedade. Baseamo-nos no postulado de Skovsmose (2014)SKOVSMOSE, O. Um convite à educação matemática crítica. Campinas: Papirus, 2014., o qual propõe que a Educação Matemática Crítica deve incentivar os sujeitos a questionar e investigar a influência da Matemática na sociedade e a refletir sobre como ela pode ser utilizada tanto como instrumento de poder e controle quanto como agente de emancipação e transformação.

Assim, neste trabalho, a Educação Matemática é concebida como um domínio para explorar questões relacionadas à justiça social, democracia, cidadania e ética, por meio do qual os educadores têm a oportunidade de desenvolver pensamento crítico e reflexivo. Nesta perspectiva, as práticas pedagógicas com Matemática são contextualizadas em cenários reais e relevantes para a experiência dos estudantes em seus respectivos ambientes, estimulando a aplicação de conhecimentos matemáticos em situações práticas e na resolução de problemas sociais.

Skovsmose (2014)SKOVSMOSE, O. Um convite à educação matemática crítica. Campinas: Papirus, 2014., à semelhança de Freire (2019)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 67. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019., destaca a importância do diálogo e da colaboração no processo educativo, favorecendo a construção coletiva do conhecimento e a reflexão crítica sobre a própria prática pedagógica. A Educação Matemática Crítica visa a instaurar um ambiente de aprendizagem inclusivo e democrático, no qual a diversidade de vozes e experiências seja valorizada e respeitada.

Neste contexto, a Educação do Campo é interpretada neste estudo como uma abordagem pedagógica e política destinada a atender às demandas educacionais específicas das populações rurais, bem como valorizar suas tradições culturais, sociais e econômicas, tal como enfatizado por Arroyo, Caldart e Molina (2004)ARROYO, M. G.; CALDART, R. S.; MOLINA, M. C. Por uma educação do campo. Petrópolis: Vozes, 2004.. Tal enfoque almeja promover equidade, inclusão e sustentabilidade no ambiente rural, por meio de um processo educacional contextualizado, crítico e transformador.

Observa-se que a Educação do Campo se embasa na corrente filosófica da Educação Popular Crítica, conforme estabelecido por Freire (2019)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 67. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.. Desta forma, esta perspectiva pedagógica compartilha da ênfase na conscientização, no diálogo e na ação coletiva como instrumentos para propiciar a emancipação e a transformação social.

A Educação do Campo igualmente se fundamenta em princípios e políticas de desenvolvimento rural sustentável, que objetivam assegurar a conservação dos recursos naturais e culturais, bem como a qualidade de vida e a justiça social no meio rural (Molina; Jesus, 2014MOLINA, M. C.; JESUS, S. M. S. A. Educação do campo e desenvolvimento: contribuições para o debate. In: JESUS, S. M. S. A.; MOLINA, M. C. (org.). Educação do campo e desenvolvimento: múltiplos olhares. São Carlos: EdUFSCar, 2014. p. 13-49.).

Na Educação do Campo, tanto o currículo quanto a metodologia de ensino são adaptados ao contexto das comunidades, abordando temas como agricultura, agroecologia, meio ambiente e desenvolvimento rural, em uma valorização da cultura e dos saberes tradicionais campesinos (Arroyo; Caldart; Molina, 2004ARROYO, M. G.; CALDART, R. S.; MOLINA, M. C. Por uma educação do campo. Petrópolis: Vozes, 2004.). Ademais, a Educação do Campo busca incentivar a participação ativa dos estudantes, a integração com a comunidade e a conexão entre os diferentes níveis e modalidades de ensino, abrangendo a educação básica, profissional e superior.

Portanto, a Educação do Campo atua como fundamento para a formação contínua de professores, por meio da valorização desses profissionais, possibilitando o desenvolvimento profissional e a construção de uma identidade docente comprometida com a realidade e os desafios do campo, tal como preconizado por Molina e Jesus (2014)MOLINA, M. C.; JESUS, S. M. S. A. Educação do campo e desenvolvimento: contribuições para o debate. In: JESUS, S. M. S. A.; MOLINA, M. C. (org.). Educação do campo e desenvolvimento: múltiplos olhares. São Carlos: EdUFSCar, 2014. p. 13-49.. Nessa perspectiva, procuramos compreender o potencial significativo de empregar a cultura das famílias campesinas como base comum para a formação contínua de educadores e das educadoras da disciplina de Matemática.

No presente artigo, fundamentamo-nos nas teorias propostas por Dewey (2023)DEWEY, J. Experiência e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023. para advogar a favor da adoção do conceito de formação contínua. Tal postura baseia-se no princípio da continuidade da experiência, ou continuum experiencial, preceito que ocupa posição central na pedagogia de Dewey (2023)DEWEY, J. Experiência e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.. Este princípio reconhece a interconexão intrínseca entre todas as experiências vivenciadas, asseverando que cada experiência individual é prelúdio para experiências futuras. Sob esta ótica, é imperioso reconhecer que todo processo de ensino e aprendizagem experimentado por um educador – seja este formal ou informal, intencional ou espontâneo – constitui um elemento integrante de sua formação contínua. A existência humana é um contínuo de experiências, em que cada evento ou interação é construído sobre o alicerce do passado e, simultaneamente, influencia o futuro.

Embora os termos formação contínua e formação continuada sejam comumente empregados de maneira intercambiável na literatura acadêmica concernente à educação e ao desenvolvimento profissional, cabe destacar que estes podem assumir conotações ligeiramente distintas, a depender do contexto. O termo formação contínua pode ser interpretado como um processo perene de aprendizado e desenvolvimento que perdura ao longo da trajetória profissional do indivíduo. Por outro lado, o termo formação continuada pode ser concebido como um conjunto específico de atividades de aprendizagem e desenvolvimento nas quais um educador se engaja propositadamente com vistas ao aprimoramento de suas práticas pedagógicas. Estas atividades podem englobar cursos de atualização profissional, oficinas, seminários, estudos autônomos ou a participação em comunidades profissionais de prática.

Nessa direção, consoante as premissas de Dewey (2023)DEWEY, J. Experiência e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023., o valor intrínseco de uma experiência pedagógica não deve ser avaliado meramente por seu impacto imediato, mas também pela maneira como esta experiência orienta as futuras vivências do educando. Tal princípio impõe aos educadores, especialmente aos que atuam no ensino da Matemática no campo, a responsabilidade de projetar experiências de aprendizagem que não somente sejam significativas no momento presente, mas que também atuem como catalisadoras para um processo de aprendizagem futuro, contínuo e repleto de significados.

A pesquisa-formação como metodologia para transformar as experiências formativas em elementos de formação

Elegemos a investigação qualitativa sob a perspectiva de Oliveira (2016)OLIVEIRA, M. M. Como fazer pesquisa qualitativa. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2016. na modalidade de pesquisa-formação, conforme exposto por Josso (2004)JOSSO, M. C. Experiências de vida e formação. Lisboa: Educa, 2004., como um terreno adequado para fomentar um cenário em que os educadores possam ser agentes de sua própria formação. Neste sentido, compreendemos que a pesquisa-formação nos permite uma investigação focada no aprendizado docente, percebendo as nuances do protagonismo docente frente aos desafios enfrentados em cenários de formação contínua de professores de Matemática do campo.

Compreendemos que a pesquisa-formação nos provê um ambiente no qual a trajetória individual de um sujeito se entrelaça com as dos demais, o aspecto singular se vincula ao coletivo e a investigação se configura como “[...] uma experiência a elaborar para que, quem nela estiver empenhado, possa participar numa reflexão teórica sobre a formação e os processos por meio dos quais se dá a conhecer” (Josso, 2004, p. 85JOSSO, M. C. Experiências de vida e formação. Lisboa: Educa, 2004.).

Discernimos na pesquisa-formação as oportunidades para os educadores desenvolverem aprendizado na prática, não como agentes passivos, mas como autores em cada fase da investigação. Nesta perspectiva, o papel do pesquisador consiste em provocar os educadores, formulando questionamentos pelos quais cada participante interroga o próprio saber. Isso transforma o ambiente formativo em um solo fértil para brotar reflexões, no qual o eu e o s estão em constante confronto em cada estágio da pesquisa-formação.

Assim sendo, a presente pesquisa-formação engajou aproximadamente 200 docentes de diversos componentes curriculares da Educação Básica. Para o propósito desta pesquisa, optou-se por um recorte das reflexões e estratégias geradas pelas professoras e professores de Matemática, totalizando 47 colaboradores. Esses sujeitos estão distribuídos em 92 instituições de ensino público municipais da cidade de Marabá, localizada no interior do Estado do Pará, onde cada escola atende às comunidades de seu entorno.

Um Movimento de Reorientação Didático-Pedagógica (MRDP)

O Movimento de Reorientação Didático-Pedagógica (MRDP) é composto por quatro fases ou estações interligadas: Percepção do Mundo Vivido; Problematização; Aprofundamento Teórico; Ação Reorientada. Considerando o objetivo do presente artigo, as análises foram elaboradas levando em conta as duas primeiras fases do MRDP. Durante cada estação, os professores foram incumbidos de cumprir as tarefas propostas antes de progredir para a estação subsequente. Cada estação foi delineada para ser concluída num intervalo de oito horas.

Estação 1: Percepção do Mundo Vivido – Constitui-se como uma coletânea coletiva de Falas Significativas das educadoras e dos educadores, evidenciando elementos idiossincráticos à realidade de cada escola ou comunidade. Foi necessária a configuração de Grupos de Trabalho (GT), nos quais cada docente debateu com seus pares os pontos que consideram essenciais e problemáticos em suas comunidades respectivas. Os docentes elegeram Falas Significativas, que compõem uma Matriz Temática (quadro 1) que ilustra a característica abrangente da realidade das comunidades do campo em que vivem.

Quadro 1
Modelo da Matriz Temática (caracterização dos professores do campo de Marabá)

A Matriz Temática representa uma composição coletiva das professoras e dos professores do campo de Marabá, demonstrando uma visão singular dos aspectos socioculturais do campo, dado que, conforme ressaltam diversos autores (Barreira; Manfredo; Bicho, 2019BARREIRA, J. S.; MANFREDO, E. C. G.; BICHO, J. S. Contribuições de pesquisas sobre ensino de matemática nos anos iniciais com enfoque no professor pesquisador da própria prática (2013-2017). VIDYA, Santa Maria, RS, v. 39, n. 1, p. 215-232, 2019. Disponível em: https://tinyurl.com/357t6wpb Acesso em: 21 jul. 2023.
https://tinyurl.com/357t6wpb...
; Contreras, 2002CONTRERAS, J. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002.; Freire, 2019FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 67. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.; Schön, 1992SCHÖN, D. A. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÓVOA, A. (coord.). Os professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992. p. 77-94.) no ambiente da sala de aula, durante o exercício da prática docente, o educador se depara com diversas problemáticas oriundas do dia-a-dia dos estudantes, problemáticas estas que dificilmente seriam percebidas por indivíduos externos ao contexto campesino, corroborando a ideia de Freire (2020)FREIRE, P. Extensão ou comunicação. 22 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020. de que uma pesquisa extensiva pode demonstrar, porém jamais revelar completamente a realidade.

A Matriz Temática apresenta a região campesina de Marabá como um domínio de contradições e complexidades. A infraestrutura e os benefícios coletivos são essenciais para a qualidade de vida e o desenvolvimento comunitário; a presença de serviços fundamentais, tais como acesso à internet, eletricidade, instituições de ensino e centros de saúde, indica um certo desenvolvimento na infraestrutura das comunidades; a qualidade da educação e dos serviços de saúde disponíveis, a confiabilidade do fornecimento de energia elétrica da internet podem apresentar consideráveis diferenças, exercendo um impacto significativo na qualidade de vida dos sujeitos do campo.

Percebemos que a Matriz Temática alude a uma variedade de atividades esportivas e recreativas; há menções a eventos culturais e sociais, à presença de dialetos locais e regionais, festas de padroeiros, cavalgadas, torneios de futebol e outras tradições culturais, o que sugere uma região com opções para lazer, bem como as várias igrejas e grupos religiosos sinalizam que as comunidades do campo de Marabá possuem variadas práticas de fé.

A atividade agrícola e pecuária parece exercer um papel de grande valia na economia local. A agricultura familiar, por exemplo, é uma atividade fundamental nessas comunidades. Nesse caso, a Educação Matemática pode ser vista como um elemento para desenvolver práticas agrícolas mais sustentáveis e produtivas. Isso não só valoriza o conhecimento local, mas também contribui para a segurança alimentar e a soberania da identidade do camponês.

Os aspectos ambientais das comunidades, como a fauna e flora, florestas, preservação de mata ciliar, reflorestamento com sementes nativas, mostram a conexão íntima entre os sujeitos do campo e o meio ambiente. Porém, a poluição dos rios, a presença de atividades como a mineração e o uso de agrotóxicos indicam desafios significativos para a sustentabilidade. A escola pode contribuir criando programas educacionais que incorporem esses aspectos ambientais, ensinando os estudantes a valorizar e cuidar de seu ambiente local, enquanto também reconhecem os desafios associados ao desenvolvimento econômico.

Neste contexto complexo e multifacetado do campo de Marabá, a Educação Matemática Crítica, conforme proposta por Skovsmose (2014)SKOVSMOSE, O. Um convite à educação matemática crítica. Campinas: Papirus, 2014., pode ser entendida como um instrumento para compreender e questionar as estruturas sociais, políticas e econômicas do município. Por meio deste prisma, a Matemática é encarada como um meio de emancipação e uma via para desafiar a injustiça e promover a equidade.

A dinâmica do campo de Marabá apresenta oportunidades para um ensino de Matemática contextualizado e crítico. Por exemplo, nos campos da agricultura e pecuária, os discentes podem construir conceitos matemáticos como proporções, unidades de medida, estatísticas e cálculos de rendimento por meio de tópicos pertinentes às suas experiências cotidianas, como a gestão sustentável de uma propriedade rural ou a melhoria na produção alimentícia. Nesse sentido, “[...] o conteúdo da Matemática nos revela um celeiro de aplicações práticas, com suas variadas aplicações em atividades básicas do campo, pecuária, florestas e no desenvolvimento de pesquisas” (Pereira; Santos Junior; Oliveira, 2021, p. 71PEREIRA, L. B. C.; SANTOS JUNIOR, G.; OLIVEIRA, L. S. A matemática na área ciências agrárias: contextos e conteúdos. Revista Espacios, Caracas, v. 42, n. 17, p. 71-85, 2021. DOI: https://doi.org/10.48082/espacios-a21v42n17p06
https://doi.org/10.48082/espacios-a21v42...
).

É necessário ter prudência ao selecionar os contextos adotados para essa modalidade de ensino. Em primeiro lugar, o contexto precisa ser significativo para os estudantes. Isso implica que deve ser algo com o qual eles possuam familiaridade ou que desperte seu interesse. Caso um docente empregue um contexto que seja desconhecido ou não relevante para os discentes, a atividade pode perder sua intencionalidade e falhar em conferir significado à aprendizagem (Pereira; Santos Junior; Oliveira, 2021PEREIRA, L. B. C.; SANTOS JUNIOR, G.; OLIVEIRA, L. S. A matemática na área ciências agrárias: contextos e conteúdos. Revista Espacios, Caracas, v. 42, n. 17, p. 71-85, 2021. DOI: https://doi.org/10.48082/espacios-a21v42n17p06
https://doi.org/10.48082/espacios-a21v42...
).

A Matriz Temática elucida a infraestrutura e os serviços comunitários, fornecendo, assim, oportunidades para empregar a Matemática na análise e questionamento da distribuição e acesso aos recursos nas comunidades. Isto pode envolver o estudo de padrões de consumo de energia, acessibilidade à internet e distribuição de recursos educacionais.

Questões sociais, como drogas ilícitas e exploração sexual, podem ser examinadas sob uma perspectiva estatística, permitindo aos discentes compreender a amplitude desses problemas em sua comunidade e em um contexto mais amplo. Similarmente, programas sociais e de financiamento podem ser explorados por meio da Matemática Financeira, auxiliando os discentes a entender as implicações econômicas de tais programas e a tomar decisões informadas sobre a sua utilização.

Aliamo-nos ao entendimento de Pernambuco (1994)PERNAMBUCO, M. M. C. A. Educação e escola como movimento: do ensino de ciências à transformação da escola pública. 1994. 156 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994. acerca do papel da educação na transformação social. Embora a educação por si só não seja o único fator determinante para a mudança social, ela é vista como um instrumento crucial para facilitar tais transformações. A educação concede às pessoas o conhecimento e as competências necessárias para compreender e interagir com o mundo ao seu redor. Este conhecimento, contudo, não é apenas acerca de adquirir informações factuais ou habilidades técnicas, mas também sobre desenvolver uma compreensão crítica do mundo e de como se pode contribuir para a mudança.

Para que a Educação Matemática opere como um elemento de transformação, ela necessita ser relevante para a vida do educando, de modo que ele construa um entendimento de seu ambiente imediato e da sociedade em que vive. A Educação Matemática pode auxiliar os discentes a estabelecerem conexões entre o que estão aprendendo e suas próprias experiências e contextos.

Ao mesmo tempo, a educação deve também preparar os estudantes para a realidade de viver em uma sociedade complexa e em constante mutação. Isso significa desenvolver habilidades como pensamento crítico, resolução de problemas e adaptabilidade. Os estudantes precisam ser preparados para enfrentar os desafios do futuro e para compreender as mudanças que ainda não podemos prever (Pernambuco, 1994PERNAMBUCO, M. M. C. A. Educação e escola como movimento: do ensino de ciências à transformação da escola pública. 1994. 156 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994.).

Nesse contexto, a Educação Matemática Crítica, conforme preconizado por Skovsmose (2014)SKOVSMOSE, O. Um convite à educação matemática crítica. Campinas: Papirus, 2014., pode proporcionar aos educandos uma compreensão mais aprofundada e contextualizada da Matemática e de sua importância para a construção da sociedade. Em Marabá, cidade que, como foi dito anteriormente, possui uma rica e complexa dinâmica social campesina, a Matemática pode ser empregada como um instrumento importante para investigar e abordar questões críticas nas comunidades do campo.

Skovsmose (2014, p. 114)SKOVSMOSE, O. Um convite à educação matemática crítica. Campinas: Papirus, 2014. argumenta que “[...] uma educação para a responsabilidade social com respeito às práticas de construção precisa reconhecer a concepção crítica da matemática. Isso significa que aspectos distintos da matemática em ação precisam ser alvo de reflexão”. O autor defende uma perspectiva da Matemática que a transcende enquanto conjunto de normativas e procedimentos abstratos, postulando-a como um instrumento capaz de proporcionar entendimento e exercer influência sobre o ambiente ao nosso redor.

Sob tal ótica, a Matemática detém o potencial de modelar a sociedade e, por conseguinte, é imperativo que seja ministrada aos educandos um ensino que permita a compreensão e o questionamento acerca de como a Matemática é usada, quem a usa e para quê (Skovsmose, 2014SKOVSMOSE, O. Um convite à educação matemática crítica. Campinas: Papirus, 2014.). Tal premissa se evidencia com particular relevância nas práticas socioculturais campesinas de Marabá, nas quais a Matemática pode ser empregada na tomada de decisões com impacto nas comunidades e no meio ambiente.

Sentidos construídos na formação contínua de professores de matemática do campo

A Estação 2: Problematização – é a segunda etapa do MRDP e consiste em uma análise das produções da primeira estação, explorando questões ou situações do mundo vivido que possam ser abordadas por meio do conteúdo matemático. Esta etapa envolve a formulação de atividades matemáticas baseadas nas Falas Significativas. Por meio da problematização, os educadores podem elaborar questões ou desafios que estimulem os estudantes a aplicar seus conhecimentos matemáticos na resolução dos problemas identificados.

Freire (2019)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 67. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019. sustenta que a educação problematizadora inicia com uma investigação temática, ao invés de partir de conceitos científicos ou acadêmicos pré-definidos. Nessa mesma direção, para Delizoicov (1991)DELIZOICOV, D. Conhecimento, tensões e transições. 1991. 219f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991., os “temas geradores” podem ser entendidos como ideias ou questões que emergem da experiência vivencial dos sujeitos e de seu contexto sociocultural. Sob essa ótica, o autor argumenta que:

Os temas identificados através da investigação temática, constituem problemas a serem mais bem entendidos pelos alunos e por meio dos quais o professor planeja o processo de ensino-aprendizagem, com o objetivo de possibilitar aos alunos ganhos cognitivos mediados pela compreensão dos temas (Delizoicov, 1991, p. 20DELIZOICOV, D. Conhecimento, tensões e transições. 1991. 219f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.).

Nesse panorama, o pensamento que se sobressai é o de que a educação deve fincar raízes nas realidades vivenciadas pelos sujeitos, para que possam associar o que estão aprendendo com suas próprias experiências. Tal prática não só faz o aprendizado tornar-se mais relevante e cativante para os educandos, mas também lhes permite desenvolver uma compreensão crítica de sua própria realidade e dos problemas mais abrangentes da sociedade.

Freire (2019)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 67. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019., defende que essa abordagem pode auxiliar os educandos a se tornarem mais conscientes politicamente e a se engajarem ativamente na transformação de suas próprias vidas e comunidades. Seguindo esse pensamento, conforme Delizoicov (1991)DELIZOICOV, D. Conhecimento, tensões e transições. 1991. 219f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991. argumenta, o início do processo educativo com os temas geradores ressalta a importância de um aprendizado que seja relevante para a experiência de vida dos educandos e que os habilite a interagir criticamente com o mundo que os cerca.

Com isto em mente, para a elaboração das estratégias didático-pedagógicas pelas professoras e professores de Matemática, disponibilizamos todo o material didático-pedagógico que tínhamos, como o currículo proposto pela Secretaria Municipal de Educação (em formato digital e impresso), livros didáticos, artigos acadêmicos, recursos materiais (folhas de papel, lápis, canetas, borrachas etc.). Além disso, foi entregue a Matriz Temática impressa. Munidos com este material, os GTs se reuniram e construíram estratégias, as quais passamos a analisar algumas a seguir.

A figura 1 é composta por uma atividade didático-pedagógica de Matemática elaborada pelo professor Carlos. Inicialmente, é perceptível a presença de vestígios de sentidos que o professor estabelece entre a cultura e o conhecimento matemático, tendo em vista que a cultura local foi integrada de múltiplas formas nesta atividade. Isto ocorre na medida em que o professor Carlos reconhece a relevância do aplicativo de mensagens WhatsApp como principal veículo de comunicação na comunidade do Assentamento Tibiriçá.1 1 Comunidade campesina constituída por famílias de agricultoras e agricultores assentados pela Reforma Agrária na região de Marabá.

Figura 1
Atividade didático-pedagógica de matemática do professor Carlos

A atividade proposta desafia os estudantes a mergulharem em introspecções acerca da função e do impacto dessa ferramenta comunicativa no seio de sua comunidade local. Além disso, os temas abordados nas redações – bullying, desmatamento e redes sociais – emergem como questões pertinentes na vivência dos estudantes, já que são estimulados a ponderar sobre tais temas à luz de seu próprio contexto local.

Esta relação entre a Matemática e a cultura nos permite entender que o conhecimento matemático se manifesta de diferentes formas nas mais diversas culturas, sendo uma fonte rica de saberes que merecem respeito. Conforme ressalta Vergani (2007)VERGANI, T. Educação etnomatemática: o que é? Natal: Flecha do Tempo, 2007., a Matemática, no exercício educativo é, simultaneamente, produto e formadora da cultura na qual se insere. Nas palavras da autora:

O conhecimento matemático adquire validade à medida que se integra, localmente, em um grupo humano. A “universalidade” é relativizada pelo crédito – pragmático e científico – que a comunidade lhe atribui [...] A matemática precisa re-situar o pensamento da ciência in lócus, sobre o solo fecundo da experiência humana, onde a inteligência sensível se ergue para trabalhar o mundo (Vergani, 2007, p. 34-35VERGANI, T. Educação etnomatemática: o que é? Natal: Flecha do Tempo, 2007., grifo nosso).

A autora enfatiza a importância do espaço e do contexto na validação do conhecimento matemático, desafiando a noção de que a Matemática seja uma disciplina universalmente homogênea. Apreender a Matemática não deve ser encarado como aquisição de um corpo uniforme de princípios, mas como um conjunto de práticas que adquirem significado à luz do contexto cultural e social.

No contexto da atividade proposta pelo professor Carlos, percebe-se um elo formado entre a Matemática e a cultura, uma vez que facilita aos estudantes a conexão do aprendizado com suas próprias vivências e contextos. A atividade não somente conduz o estudante a produzir conhecimentos da Matemática, como também incita a reflexão sobre questões de relevância para a comunidade e experiência dos próprios estudantes.

Com essa abordagem, a Matemática transcende a concepção de uma ciência de exatidão, de certezas infalíveis, objetiva e metódica, enclausurada em si mesma e distante de diálogos com outros ramos do conhecimento humano. Ao contrário, a Matemática incorpora uma proposta transdisciplinar e transcultural, propiciando rupturas com a visão de uma disciplina tradicional metódica, permitindo um entendimento da Matemática enquanto ciência humana, pelo seu potencial de se manifestar enquanto tal (Barreira, 2020BARREIRA, J. S. Pesquisa da própria prática ao ensinar matemática: uma análise de estratégias de resolução de problemas com estudantes do 5º ano de uma escola do campo. 2020. 136 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Docência em Educação em Ciências e Matemáticas) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2020.).

Em um olhar mais aprofundado, percebemos a interdisciplinaridade como um outro sentido atribuído à Matemática pelo professor Carlos, na construção dessa atividade. Ao iniciar com uma atividade de redação em português, na qual os estudantes foram incentivados a analisar os três temas propostos (bullying, desmatamento e redes sociais), exige-se a compreensão e a aplicação de conceitos linguísticos como gramática, estruturação de parágrafos, argumentação e vocabulário.

Autores como Ocampo, Santos e Folmer (2016, p. 1016)OCAMPO, D. M.; SANTOS, M. E. T.; FOLMER, V. A interdisciplinaridade no ensino é possível? Prós e contras na perspectiva de professores de matemática. Bolema, Rio Claro, v. 30, n. 56, p. 1014-1030, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/1980-4415v30n56a09
https://doi.org/10.1590/1980-4415v30n56a...
afirmam que “[...] as implicações e contribuições da interdisciplinaridade, no campo do ensino, constitui especial condição para a melhoria da qualidade, uma vez que orienta a formação global do homem”. Dessa forma, entendemos que compreender a importância e as contribuições da interdisciplinaridade no campo do ensino de Matemática é fundamental para melhorar a qualidade da educação ofertada nas escolas do campo.

A Interdisciplinaridade envolve a integração e a síntese de ideias de várias disciplinas para oferecer uma visão mais completa e abrangente de um determinado tópico ou problema. Isto permite que os estudantes desenvolvam habilidades de pensamento crítico, resolução de problemas e inovação, já que são desfiados a conectar conceitos de diferentes áreas de conhecimento para resolver questões complexas (Ocampo; Santos; Folmer, 2016OCAMPO, D. M.; SANTOS, M. E. T.; FOLMER, V. A interdisciplinaridade no ensino é possível? Prós e contras na perspectiva de professores de matemática. Bolema, Rio Claro, v. 30, n. 56, p. 1014-1030, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/1980-4415v30n56a09
https://doi.org/10.1590/1980-4415v30n56a...
).

Nessa mesma direção, a estratégia seguinte consiste em uma atividade produzida, em ambiente de formação, por professoras e professores da Escola Castro Alves. A atividade destaca-se por sua característica interdisciplinar. Nela, algumas disciplinas do currículo escolar são articuladas, o que ajuda os estudantes a desenvolverem uma visão mais integrada da realidade.

Figura 2
Atividade produzida por professores do Polo Rio Preto

A atividade apresenta como tema central, A Copa do Mundo, o que permite várias abordagens que permeiam a Matemática, História, Língua Inglesa e Ciências Naturais, de maneira contextualizada. Na atividade de Matemática, a professora Izabel propõe problemas e situações que envolvem desde a identificação de números naturais e pares na observação do relógio, até a realização de operações aritméticas envolvendo a quantidade de gols marcados em partidas de futebol, o cálculo do período entre Copas do Mundo e a determinação da idade futura de uma pessoa. Além disso, a atividade também envolve conceitos de Geometria, ao solicitar que os estudantes calculem o perímetro e a área de um campo de futebol.

A proposta de atividade é um exemplo de prática didático-pedagógica interdisciplinar que associa diferentes áreas do conhecimento a um tema de interesse dos estudantes. Essa estratégia tem o potencial de promover um aprendizado integrado, despertando a curiosidade, a investigação e o pensamento crítico dos estudantes. Por meio dela, é possível estimular o raciocínio lógico, o desenvolvimento linguístico, a compreensão histórico-cultural e o entendimento de fenômenos naturais, todos em um contexto local do campo.

Essa análise nos permite entender que, ao adotar uma abordagem centrada na Educação do Campo, de forma contextualizada, não estamos restringindo o estudante à vida no campo, nem limitando sua capacidade de explorar outros conhecimentos e culturas diversas. Essa estratégia demonstra que é perfeitamente possível ensinar Matemática escolar utilizando elementos da comunidade local, por meio de uma abordagem interdisciplinar, respeitando os princípios da pluralidade cultural e diversidade de métodos de ensino. Para isso, “[...] não basta apenas capacitar ou oferecer cursos de formação continuada, é necessário que o professor perceba a necessidade de mudar de fato e não apenas no discurso” (Ocampo; Santos; Folmer, 2016, p. 1016OCAMPO, D. M.; SANTOS, M. E. T.; FOLMER, V. A interdisciplinaridade no ensino é possível? Prós e contras na perspectiva de professores de matemática. Bolema, Rio Claro, v. 30, n. 56, p. 1014-1030, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/1980-4415v30n56a09
https://doi.org/10.1590/1980-4415v30n56a...
).

Os desafios matemáticos apresentados pela professora Izabel não são desconexos, mas se relacionam diretamente a um componente da cultura local, capturado pela Fala Significativa, que associa o futebol, uma prática local, ao foco central da atividade, a Copa do Mundo de Futebol. Na primeira questão de Matemática, o problema relativo ao relógio estabelece uma conexão direta com o estudo dos números naturais e pares. Os estudantes empregam os conceitos matemáticos simultaneamente à observação de um objeto do dia a dia. Esse tipo de prática viabiliza um elo mais efetivo entre os conceitos matemáticos e a realidade local.

As questões associadas à quantidade de gols anotados pela seleção brasileira e o intervalo entre as Copas do Mundo são ilustrações de como a Matemática foi aplicada de modo a se conectar com a temática da Copa do Mundo. Os estudantes são incentivados a efetuar operações de adição e multiplicação para solucionar esses questionamentos, mas é o contexto em que essas operações são propostas que realmente confere a essa atividade um caráter interdisciplinar, além de estar vinculada à cultura local.

A pergunta que solicita o cálculo da idade que um estudante terá na próxima Copa também interliga a Matemática ao estudo do tempo, além de incorporá-la a um contexto real dos estudantes. Ademais, a questão que envolve o cômputo do perímetro e da área de um campo de futebol associa a Matemática ao esporte, engajando os estudantes em uma aplicação prática e relevante dos conceitos geométricos.

Para Ocampo, Santos e Folmer (2016, p. 1023)OCAMPO, D. M.; SANTOS, M. E. T.; FOLMER, V. A interdisciplinaridade no ensino é possível? Prós e contras na perspectiva de professores de matemática. Bolema, Rio Claro, v. 30, n. 56, p. 1014-1030, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/1980-4415v30n56a09
https://doi.org/10.1590/1980-4415v30n56a...
, “[...] a prática interdisciplinar tem potencial para aliar metodologias de ensino das áreas envolvidas em um esforço para potencializar o processo de ensino e aprendizagem”. Isto significa que, ao desenvolver a interdisciplinaridade, a professora Izabel não está apenas conectando a Matemática com outras disciplinas simultaneamente, mas também está incorporando as melhores práticas pedagógicas de cada uma dessas disciplinas.

Prosseguindo nessa mesma linha, apresentamos a seguir a estratégia 3, uma atividade didático-pedagógica elaborada por um outro GT, composto por professores da Escola Caminho da Liberdade, polo Rio Preto. A estratégia explora a interdisciplinaridade entre os componentes curriculares Matemática, a cargo da professora Cláudia, Língua Portuguesa e Geografia. Essa atividade foi proposta para os alunos do 6º ano.

Figura 3
Atividade didático-pedagógica de professores da Escola Caminho da Liberdade

Observamos que nesta atividade a interdisciplinaridade se manifestou na conjunção entre a Matemática, Língua Portuguesa e Geografia, centrada em elementos da cultura dos estudantes do campo de Marabá, sendo problematizada por meio das Falas Significativas: agricultura e pecuária. Na atividade de Matemática, a professora Cláudia formula uma questão que instiga os estudantes a construir gráficos de barras representando o número de famílias que praticam distintos tipos de agricultura familiar e a diversidade na produção de alimentos.

Esta questão demanda que os estudantes utilizem habilidades matemáticas para condensar e apresentar informações de maneira visual, proporcionando-lhes uma compreensão gráfica clara das práticas agrícolas familiares. Uma vez que os gráficos estejam prontos, poderão ser empregados para auxiliar a responder perguntas em outras disciplinas. Por exemplo, em uma atividade de Língua Portuguesa, os estudantes podem ser convocados a redigir um texto sobre a produção agrícola familiar em suas comunidades, e os dados representados em seus gráficos podem fornecer informações úteis para essa tarefa.

Similarmente, em uma atividade de Geografia, os estudantes podem ser encorajados a estudar o clima, o solo, o relevo e o calendário agrícola para as diferentes culturas praticadas pelas famílias agrícolas, e os gráficos podem auxiliar a ilustrar onde e quando essas diferentes práticas agrícolas ocorrem. Neste contexto, a Matemática não é apenas empregada como uma disciplina isolada, mas como um instrumento que pode fortalecer a aprendizagem em outras áreas. Este é um exemplo de como a prática pedagógica interdisciplinar pode estabelecer conexões relevantes entre diferentes campos do saber e aprimorar o processo de ensino e aprendizagem.

Segundo Pombo (2006)POMBO, O. Interdisciplinaridade e integração dos saberes. Liinc em Revista, Brasília, DF, v. 1, n. 1, 2006. DOI: https://doi.org/10.18617/liinc.v1i1.186
https://doi.org/10.18617/liinc.v1i1.186...
, no ambiente interdisciplinar, as disciplinas não são apenas dispostas lado a lado. Em contrapartida, elas são colocadas em uma situação de ‘inter-relação’, em que há ação recíproca entre elas. Isso implica que as disciplinas envolvidas não apenas coexistem, mas influenciam-se mutuamente e são integradas de forma a promover uma compreensão mais abrangente e coesa do tema em questão.

É fundamental ultrapassar a simples justaposição das disciplinas e buscar maneiras de promover a interação e a integração entre elas, a fim de proporcionar uma compreensão mais abrangente e coesa dos temas de aprendizagem (Pombo, 2006POMBO, O. Interdisciplinaridade e integração dos saberes. Liinc em Revista, Brasília, DF, v. 1, n. 1, 2006. DOI: https://doi.org/10.18617/liinc.v1i1.186
https://doi.org/10.18617/liinc.v1i1.186...
). Nessa perspectiva, observamos que na estratégia 3 os estudantes serão instigados a:

  • i. Construir gráficos de barras em Matemática para representar dados sobre agricultura familiar (um tema de teor econômico);

  • ii. Redigir textos em Língua Portuguesa evidenciando a produção familiar em sua comunidade local;

  • iii. Estudar em Geografia aspectos como clima, solo, relevo e calendário agrícolas, todos fundamentais para a prática da agricultura.

Nesta atividade, o tema agricultura familiar e pecuária constitui o vínculo que interliga todas essas disciplinas. Isto implica que a metodologia adotada transcende a simples justaposição de disciplinas, fenômeno que Pombo (2006)POMBO, O. Interdisciplinaridade e integração dos saberes. Liinc em Revista, Brasília, DF, v. 1, n. 1, 2006. DOI: https://doi.org/10.18617/liinc.v1i1.186
https://doi.org/10.18617/liinc.v1i1.186...
caracteriza como uma fase em que as disciplinas estão presentes, lado a lado, tangenciando-se, mas sem efetiva interação. Em contrapartida, a atividade proposta exige dos estudantes uma conexão mais aprofundada entre as disciplinas, ao passo que eles empregam seus conhecimentos em Matemática, Língua Portuguesa e Geografia para investigar e compreender um tema unificador.

É neste cenário que a Educação do Campo atua, como um processo mais abrangente de humanização e de influenciar os sujeitos do campo a se tornarem protagonistas de seu próprio destino e de sua própria história. Assim, Caldart (2017)CALDART, R. S. A escola do campo em movimento. In: ARROYO, M. G.; CALDART, R. S.; MOLINA, M. C. (org.). Por uma educação do campo. 5. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. p. 87-131. enfatiza a importância de valorizar as distintas experiências e elementos contextuais presentes na educação das populações do campo para promover um ensino que seja relevante, significativo e emancipador.

É preciso transformar essas experiências em um movimento consciente de construção das escolas do campo. Isso consiste na necessidade de criar uma abordagem educacional que seja conscientemente planejada e desenvolvida para atender às necessidades específicas das comunidades do campo, ao invés de simplesmente replicar modelos educacionais urbanos (Caldart, 2017CALDART, R. S. A escola do campo em movimento. In: ARROYO, M. G.; CALDART, R. S.; MOLINA, M. C. (org.). Por uma educação do campo. 5. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. p. 87-131.).

A educação deve ser um movimento que “[...] ajude neste processo mais amplo de humanização e de reafirmação dos povos do campo como sujeitos de seu próprio destino, de sua própria história” (Caldart, 2017, p. 90CALDART, R. S. A escola do campo em movimento. In: ARROYO, M. G.; CALDART, R. S.; MOLINA, M. C. (org.). Por uma educação do campo. 5. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. p. 87-131.). Isto sugere que a educação deve ser uma ferramenta de empoderamento, permitindo que os sujeitos do campo se tornem os protagonistas de suas próprias vidas e histórias, ao invés de serem meros espectadores.

Notas sobre o Movimento de Reorientação Didático-Pedagógica (MRDP)

Conforme já dito anteriormente, o MRDP é composto por quatro etapas: Percepção do Mundo Vivido; Problematização; Aprofundamento Teórico e Ação Reorientada. Neste artigo, analisamos as duas primeiras fases do MRDP. Entretanto, é válido tecer algumas considerações sobre as estações seguintes:

Estação 3: Aprofundamento Teórico: Esta estação consiste em um instante de reflexão acerca do que foi produzido nas estações anteriores. Trata-se de revisitar o que foi apreendido, mas que ainda necessita ser intensificado. Essa estação é um marco importante para consolidar e ampliar o conhecimento construído pelos professores. Ela é crucial para: (i) Identificação de Lacunas; (ii) Desenvolvimento do Pensamento Crítico e Reflexivo; (iii) Conexões entre Conceitos; (iv) Preparação para a Ação Reorientada.

Estação 4: Ação Reorientada: Representa a última etapa do MRDP, englobando a verificação dos conhecimentos construídos ao longo das etapas precedentes. Configura-se como o momento de confrontação entre os saberes do senso comum oriundos do acervo epistemológico do educador com os conhecimentos gerados em ambiente de formação contínua. Portanto, essa estação deve se desdobrar em três momentos distintos: (a) Implementação de atividades em sala de aula; (b) Acompanhamento Pedagógico; (c) Socialização.

Assim sendo, esta estação tem um papel preponderante na reorientação da prática didático-pedagógica dos professores de Matemática do campo, propicia a articulação do saber científico e a cultura campesina, funcionando como um instrumento para a ruptura de práticas habituais de transmissão mecânica do conteúdo matemático. A Ação Reorientada viabiliza uma interação mais introspectiva do docente com a realidade imediata do aluno, ressaltando que o professor também é parte integrante desta realidade.

Considerações finais

Neste estudo, nosso objetivo geral foi compreender de que maneira os docentes constroem sentidos acerca de suas práticas, ao integrar a Matemática e a Educação do campo durante um processo de formação contínua em um contexto de pesquisa-formação. Além disso, foi apresentado e analisado um novo modelo teórico e epistemológico conceituado neste artigo de Movimento de Reorientação Didático-Pedagógica (MRDP), que consiste em um designer de formação contínua de professores organizado em quatro estações: Percepção do Mundo Vivido; Problematização; Aprofundamento Teórico; Ação Reorientada.

A aplicação do MRDP na formação contínua de professores de Matemática do campo permitiu a identificação de sentidos que o professor constrói entre a cultura e o conhecimento matemático, considerando que a cultura local foi incorporada de várias maneiras nas atividades apresentadas, bem como na Matriz Temática. Além disso, observamos a interdisciplinaridade como um outro sentido que as professoras e os professores conferem à Matemática.

O MRDP permitiu que identificássemos, ainda, um novo sentido que os professores estabeleceram: uma crescente autonomia no processo de reorientação do currículo praticado nas escolas do campo. Essa autonomia, ao que parece, é uma qualidade que os professores atribuem à sua própria prática, indicando uma tendência para se tornarem cada vez mais reflexivos em seu papel. Este é um indicativo do reconhecimento de sua capacidade em moldar o aprendizado de acordo com as necessidades específicas de suas comunidades.

Ficou evidente que os professores foram os verdadeiros autores de suas próprias produções intelectuais. Essa autoria, um marco de empoderamento e propriedade, foi notavelmente evidente em todas as atividades que os professores produziram. Isso ressalta a ideia de que os professores não são meros executores de políticas e práticas educacionais, mas sim agentes críticos e criativos no processo de ensino e aprendizagem.

O MRDP desempenhou um papel fundamental nesse processo de empoderamento dos professores. Desse modo, é importante destacar que não houve imposições sobre o que os professores deveriam fazer, quais Falas Significativas deveriam ser extraídas da Matriz temática ou qual Eixo de aprendizagem deveriam escolher. Ao invés disso, o MRDP proporcionou um ambiente de aprendizado colaborativo e reflexivo, onde os professores puderam tomar suas próprias decisões e fazer suas próprias escolhas.

Outro aspecto importante a destacar é o modo como os professores utilizaram a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o currículo proposto pela Secretaria Municipal de Educação. Ao invés de encarar esses documentos como regras universais rígidas, os professores exerceram sua autonomia e usaram-nos como recursos didático-pedagógicos flexíveis, adaptando-os e moldando-os para se alinharem com o contexto local e as necessidades específicas dos estudantes.

Isto significa que os professores tiveram a liberdade de selecionar as habilidades da BNCC que eram mais relevantes e úteis para explicar os fenômenos sociais presentes no contexto local das comunidades campesinas. Isso demonstra um nível notável de autonomia e criatividade docente, pois os professores foram capazes de reinterpretar e adaptar esses documentos para se alinharem com a realidade vivida pelos estudantes.

Por meio dessa prática, os professores não apenas transformaram o currículo em uma ferramenta mais relevante e contextualizada para os estudantes, mas também desafiaram a noção de que a BNCC e o currículo da Secretaria de Educação são imutáveis e universais. Isto reforça a ideia de que os professores, ao exercerem sua autonomia e reflexividade, podem desempenhar um papel ativo na configuração do currículo e na promoção de um ensino mais relevante e significativo.

Em resumo, identificamos que os educadores constroem sentidos em relação à sua prática pedagógica ao integrar Educação Matemática e Educação do Campo durante a formação contínua, no contexto de pesquisa-formação, empregando vários mecanismos. Primeiramente, eles reconhecem a interdisciplinaridade como uma dimensão adicional atribuída à Matemática, sublinhando como este campo pode se entrelaçar com outras disciplinas para criar um processo de ensino mais abrangente e integrado. Além disso, a autonomia docente emerge como um sentido crucial na construção de sua prática pedagógica. A capacidade de adaptar e moldar o currículo e o método de ensino de acordo com as necessidades específicas dos estudantes e o contexto local é valorizada, contribuindo para uma abordagem pedagógica mais personalizada e significativa.

Identificamos que os educadores inserem a cultura local de diversas maneiras em suas práticas de ensino. Essa integração não apenas enriquece a experiência educacional, mas também estabelece uma conexão mais profunda entre os estudantes e o conhecimento matemático, contextualizando-o em um cenário cultural conhecido.

Assim, os sentidos construídos pelos educadores são multifacetados e dinâmicos, abrangendo aspectos como a interdisciplinaridade, autonomia docente, relevância cultural e formação contínua. Todos esses elementos são fundamentais para a elaboração de uma prática pedagógica problematizadora e significativa.

  • 1
    Comunidade campesina constituída por famílias de agricultoras e agricultores assentados pela Reforma Agrária na região de Marabá.

Referências

  • ARROYO, M. G.; CALDART, R. S.; MOLINA, M. C. Por uma educação do campo Petrópolis: Vozes, 2004.
  • BARREIRA, J. S. Pesquisa da própria prática ao ensinar matemática: uma análise de estratégias de resolução de problemas com estudantes do 5º ano de uma escola do campo. 2020. 136 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Docência em Educação em Ciências e Matemáticas) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2020.
  • BARREIRA, J. S.; MANFREDO, E. C. G.; BICHO, J. S. Contribuições de pesquisas sobre ensino de matemática nos anos iniciais com enfoque no professor pesquisador da própria prática (2013-2017). VIDYA, Santa Maria, RS, v. 39, n. 1, p. 215-232, 2019. Disponível em: https://tinyurl.com/357t6wpb Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://tinyurl.com/357t6wpb
  • CALDART, R. S. A escola do campo em movimento. In: ARROYO, M. G.; CALDART, R. S.; MOLINA, M. C. (org.). Por uma educação do campo 5. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. p. 87-131.
  • CONTRERAS, J. A autonomia de professores São Paulo: Cortez, 2002.
  • DELIZOICOV, D. Conhecimento, tensões e transições 1991. 219f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.
  • DEWEY, J. Experiência e educação Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
  • FREIRE, P. Extensão ou comunicação 22 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020.
  • FREIRE, P. Pedagogia da autonomia 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
  • FREIRE, P. Pedagogia do oprimido 67. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.
  • JOSSO, M. C. Experiências de vida e formação Lisboa: Educa, 2004.
  • MOLINA, M. C.; JESUS, S. M. S. A. Educação do campo e desenvolvimento: contribuições para o debate. In: JESUS, S. M. S. A.; MOLINA, M. C. (org.). Educação do campo e desenvolvimento: múltiplos olhares. São Carlos: EdUFSCar, 2014. p. 13-49.
  • OCAMPO, D. M.; SANTOS, M. E. T.; FOLMER, V. A interdisciplinaridade no ensino é possível? Prós e contras na perspectiva de professores de matemática. Bolema, Rio Claro, v. 30, n. 56, p. 1014-1030, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/1980-4415v30n56a09
    » https://doi.org/10.1590/1980-4415v30n56a09
  • OLIVEIRA, M. M. Como fazer pesquisa qualitativa 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2016.
  • PEREIRA, L. B. C.; SANTOS JUNIOR, G.; OLIVEIRA, L. S. A matemática na área ciências agrárias: contextos e conteúdos. Revista Espacios, Caracas, v. 42, n. 17, p. 71-85, 2021. DOI: https://doi.org/10.48082/espacios-a21v42n17p06
    » https://doi.org/10.48082/espacios-a21v42n17p06
  • PERNAMBUCO, M. M. C. A. Educação e escola como movimento: do ensino de ciências à transformação da escola pública. 1994. 156 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994.
  • POMBO, O. Interdisciplinaridade e integração dos saberes. Liinc em Revista, Brasília, DF, v. 1, n. 1, 2006. DOI: https://doi.org/10.18617/liinc.v1i1.186
    » https://doi.org/10.18617/liinc.v1i1.186
  • SACHS, L. Currículo de matemática na educação do campo: panorama e zoons. Zetetiké, Campinas, v. 26, n. 2, p. 404-422, 2018. DOI: https://doi.org/10.20396/zet.v26i2.8647567
    » https://doi.org/10.20396/zet.v26i2.8647567
  • SCHÖN, D. A. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÓVOA, A. (coord.). Os professores e sua formação Lisboa: Dom Quixote, 1992. p. 77-94.
  • SKOVSMOSE, O. Um convite à educação matemática crítica Campinas: Papirus, 2014.
  • VASCO, C. E. La educación matemática: una disciplina em formación. Revista Paideia Surcolombiana, Neiva, Huila, n. 5, p. 10-23, 1997.
  • VERGANI, T. Educação etnomatemática: o que é? Natal: Flecha do Tempo, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2023
  • Aceito
    21 Jan 2024
Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências, campus de Bauru. Av. Engenheiro Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01, Campus Universitário - Vargem Limpa CEP 17033-360 Bauru - SP/ Brasil , Tel./Fax: (55 14) 3103 6177 - Bauru - SP - Brazil
E-mail: revista@fc.unesp.br