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Precarização do trabalho e nova informalidade no urbano: permanências e transformações

As transformações no padrão de acumulação mundial a partir das últimas décadas do século XX modificaram sobremaneira as condições de desenvolvimento dos países. A combinação dos processos de reestruturação produtiva (desindustrialização e reprimarização), adesão ativa à financeirização e consolidação do neoliberalismo moldaram tanto o mundo do trabalho como a organização espacial. As consequências disso podem ser vistas e analisadas em diversas dimensões e escalas: desde as alterações nos setores-chave da economia e na fragmentação da produção; passando pela reprodução da sociedade de classes, pela constituição de novas subjetividades e pela regulação e controle sobre o trabalho e a vida cotidiana; chegando à transformação das cidades, à penetração de novas lógicas de reprodução do capital através das infraestruturas urbanas, do imobiliário, etc.

Tal realidade é permeada por importantes mudanças tecnoprodutivas, que aprofundam as transformações nas relações intersetoriais e estão associadas ao avanço da economia do conhecimento e das novas tecnologias da informação e comunicação. Disso decorrem importantes consequências geográficas, as quais reforçam o desenvolvimento desigual e combinado, o reordenamento das cadeias globais de valor, da competição, etc., e levam, de maneira mais geral, ao aumento da participação do setor de serviços e à redução do setor agrícola e industrial no PIB. Nesse cenário, segundo Fitoussi e Rosanvallon (1997)FITOUSSI, J.; ROSANVALLON, P. (1997). A nova era das desigualdades. Oeiras, Celta., três crises colocam-se em curso: 1) crise das instituições de instauração dos laços sociais e da solidariedade (Estado de Bem-Estar Social); 2) crise do mundo do trabalho (relação entre economia e sociedade); e 3) crise do modo de constituição das identidades individuais e coletivas (crise do indivíduo). Nesse contexto, novas desigualdades vão se consolidando, entre elas: diferenciações no âmbito dos contratos de trabalho (novas formas de contratação, trabalhos temporários, terceirização e trabalho precário); desigualdades de gênero e de grupos étnicos quanto à inserção no mercado de trabalho; desigualdades geracionais, associadas à previdência ou à dificuldade de inserção do jovem no mercado de trabalho; desigualdades associadas à vida cotidiana e à reprodução da vida que, na cidade, relaciona-se às condições de habitação, circulação, acesso aos bens públicos, etc.

Especificamente no Brasil, esse cenário é de composição complexa. Pois, somando-se às transformações e às crises gerais anteriormente descritas, o final do século XX e as primeiras décadas do século XXI foram, majoritariamente, de enfrentamento de sucessivas crises econômicas. Em que pesem a redemocratização e a consolidação de uma série de direitos com a Constituição de 1988 (CF/1988), isso significou, não apenas a permanência dos problemas históricos ligados ao mercado de trabalho e à urbanização, como também o aprofundamento das heterogeneidades em diversos níveis. Como veremos, à exceção de um curto período, é patente a permanência da informalidade, do subemprego, dos baixos salários, da desigualdade de rendimentos e das desigualdades socioespaciais. Estes se traduzem na segregação, na ocupação de áreas de risco e preservação ambiental, na vulnerabilidade socioambiental e na violência que caracterizam o urbano nacional.

Tal movimento não decorre apenas da inércia dos problemas de um país subdesenvolvido como o nosso, mas da adoção ativa de políticas de liberalização da economia, do mercado de trabalho e da agenda do planejamento urbano aderente ao neoliberalismo. Especificamente do campo dos discursos sobre o mercado de trabalho, por exemplo, as reformas da legislação trabalhista implementadas nos anos 1990 diagnosticavam o problema do desemprego e da informalidade no Brasil como um produto da regulação excessiva da relação empregador e empregado e sua rigidez em contextos de mudanças na conjuntura econômica e especificidades das diferentes regiões, setores e empresas (Souza et al., 2021SOUZA, D. M.; TROVÃO, C. J. B. M.; SILVA, M. R.; MELO, J. W. F. (2021). Caracterização histórica do mercado de trabalho no Brasil: da consolidação à reforma trabalhista. Revista de Desenvolvimento Econômico, ano XXIII, v. 2, n. 49, pp. 102-134.). Esse diagnóstico levou a um sistemático enfraquecimento da legislação trabalhista por ações do governo e do setor privado, promovendo a flexibilização do mercado de trabalho. Mesmo diante de um cenário no qual o custo do trabalho no Brasil nos anos 1990 se mostrava bastante reduzido, em comparação com países desenvolvidos e mesmo subdesenvolvidos (Santos e Stampa, 2017SANTOS, F. B. P.; STAMPA, I. (2017). Medidas recessivas sobre os direitos dos trabalhadores no Brasil: breve esboço histórico sobre ofensivas e resistências. Revista Libertas. Juiz de Fora, v. 17, n. 1, pp. 45-64.), e com evidências que demonstravam que a desregulação do trabalho tendia a provocar precarização, instabilidade e vulnerabilidade e não geração de novos empregos, o País adota sistematicamente uma postura liberal (Cacciamali, 1999CACCIAMALI, M. C. (1999). “Desgaste na legislação laboral e ajustamento do mercado de trabalho brasileiro nos anos 90”. In: POSTHUMA, A. C. (org.). Abertura e ajuste do mercado de trabalho no Brasil: políticas para conciliar os desafios de emprego e competitividade. Brasília, OIT e MTE; São Paulo, Ed. 34.).

O período que contrapôs essa realidade se situa entre 2004 e 2014, quando, em contexto de retomada do crescimento econômico, houve tensionamento do processo de desestruturação do mercado de trabalho, com redução da desigualdade de renda e da pobreza, além da expansão do emprego com carteira de trabalho assinada e da diminuição do desemprego, da subocupação e da informalidade. Esse modelo de crescimento com inclusão social permitiu uma redução da vulnerabilidade da classe trabalhadora, mesmo que ainda tenham sido registrados alguns movimentos contraditórios no sentido da ampliação da desregulamentação dos direitos trabalhistas, aprofundando a flexibilização dos contratos no mercado de trabalho (Krein, Santos e Nunes, 2011). As contradições do modelo de desenvolvimento são ainda maiores se considerarmos problemas urbanos estruturais. Como mostrou Maricato (2017)MARICATO, E. (2017). O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis/RJ, Vozes., as chamadas Jornadas de Junho de 2013 expressam a incapacidade para lidarmos com as questões fundiárias, de habitação, mobilidade, participação, etc. mesmo em governos progressistas.

A partir de 2015/2016, inaugura-se um novo período no País que combina crise econômica, política e, posteriormente, sanitária. Nesse contexto, retoma com força renovada a agenda que articulou, nos últimos anos, neoliberalismo, austeridade e conservadorismo (Clementino, Mioto e Araújo, 2021). Seus desdobramentos mais evidentes em termos de mercado de trabalho foram a rápida elevação da desocupação e a da subutilização da força de trabalho, esta última em razão do aumento expressivo da subocupação por insuficiência de horas trabalhadas e pelo desalento. Cresce, também, a informalidade, puxada pelo emprego sem carteira e pela ocupação por conta própria. O que se viu foi um constrangimento em relação à possibilidade de mobilidade social observada no início do século XXI. Contribuíram para isso: a queda da taxa de salários provocada pela recessão econômica; a volta da inflação; e o aumento da informalidade enquanto alternativa ao desemprego (Araújo et al., 2022ARAÚJO, J. B.; MIOTO, B. T.; TROVÃO, C. J. B. M.; VENTURA NETO, R. S. (2022). “As transformações no mercado de trabalho e a reforma urbana”. In: RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Reforma urbana e direito à cidade: questões, desafios e caminhos. Rio de Janeiro, Letra Capital, v. 1, pp. 81-106.). Além disso, houve a reversão do processo de redução da desigualdade de renda (Cacciamali e Tatei, 2016CACCIAMALI, M. C.; TATEI, F. (2016). Mercado de trabalho: da euforia do ciclo expansivo e da inclusão social à frustração da recessão econômica. Estudos Avançados, v. 30, n. 87.) que, em cenário de crise, retorna com mais força à agenda de demandas da sociedade, acirrando os conflitos sociais e urbanos/territoriais.

Nesse contexto, a flexibilização e a desregulamentação da legislação trabalhista apresentaram-se novamente como “solução” para a recuperação do crescimento econômico e da geração de empregos. Novamente, defendeu-se que os vilões da crise do mercado de trabalho eram os elevados encargos sociais e a rigidez excessiva da legislação trabalhista. A materialização desse discurso se deu com a Reforma Trabalhista imposta pela lei n. 13.467/2017, que alterou significativamente as condições sob as quais se estruturam as relações entre empregadores e empregados, buscando enfraquecer a proteção ao trabalho no Brasil (Trovão e Araújo, 2020TROVÃO, C. J. B. M.; ARAÚJO, J. B. (2020). Reforma trabalhista, flexibilização e novas formas de contratação: impactos sobre o mercado de trabalho no Brasil até 2019. RBEST: Revista brasileira de economia social e do trabalho, v. 2, pp. 1-38.). Em paralelo a essas mudanças, não se pode deixar de mencionar a existência de um processo de aprofundamento da desindustrialização no Brasil. Seus impactos têm se mostrado relevantes no que tange à renda nacional, à arrecadação dos entes públicos subnacionais, ao mercado de trabalho e às possibilidades de diversificação do terciário (Trovão, Sugimoto e Mioto, 2020). Em termos setoriais e ocupacionais, essas mudanças se refletem na redução da participação dos ocupados na indústria e no aumento no setor terciário, com destaque para os serviços intensivos em conhecimento, associados também “ao avanço da terceirização, dos serviços pessoais e de atendimento às famílias e ao crescimento da participação de ocupações de baixos salários” (Krein, Manzano e Teixeira, 2022, pp. 300-301). Reafirma-se, assim, “a precariedade estrutural do mercado de trabalho e suas discriminações históricas, especialmente em relação às mulheres e às pessoas negras” (ibid., p. 301). Nas cidades, isso significou a piora das condições de reprodução, redução dos investimentos públicos, depreciação das infraestruturas existentes e reforço de uma agenda de política urbana que prioriza a facilitação dos mercados.

Nesse cenário e concomitantemente à consolidação do novo paradigma tecnológico e informacional e das plataformas digitais, o País avançou sobre relações trabalhistas mais fluidas e vulneráveis (Abílio, 2020ABÍLIO, L. C. (2020). Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, v. 34, n. 98, pp. 111-126.). Tais processos ratificam novas formas de informalidade e precarização, intensificadas pela economia de plataformas, que assumem formas como uberização, autoemprego (frequentemente via figura jurídica do microempreendedor individual e da pejotização), terceirização, subcontratação, etc. (Krein e Proni, 2010KREIN, J. D.; PRONI, M. W. (2010). Economia informal: aspectos conceituais e teóricos. Série Trabalho Decente no Brasil: Documento de trabalho n. 4. Escritório da OIT no Brasil. Brasília, OIT.). Na mesma direção, reforça-se o ideário do empreendedorismo. Nessa trajetória, o pano de fundo é um processo de flexibilização e fragilização que introduz, no âmbito dos contratos formais de trabalho, características típicas da informalidade, quais sejam, inconstância da ocupação e da renda (trabalho intermitente), alta rotatividade (trabalho por tempo parcial e por demanda – uberização de distintas ocupações) e baixo padrão de remuneração, inclusive por insuficiência de horas trabalhadas (Araújo et al., 2022ARAÚJO, J. B.; MIOTO, B. T.; TROVÃO, C. J. B. M.; VENTURA NETO, R. S. (2022). “As transformações no mercado de trabalho e a reforma urbana”. In: RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Reforma urbana e direito à cidade: questões, desafios e caminhos. Rio de Janeiro, Letra Capital, v. 1, pp. 81-106.). Em termos qualitativos, a nova rodada de flexibilização da legislação trabalhista não contribuiu para reduzir o desemprego nem a informalidade (Filgueiras, 2019FILGUEIRAS, V. A. (2019). “As promessas da Reforma Trabalhista: combate ao desemprego e redução da informalidade”. In: KREIN, J. D.; OLIVEIRA, R. V.; FILGUEIRAS, V. A. (orgs.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas/SP, Curt Nimuendajú.; Trovão e Araújo, 2020TROVÃO, C. J. B. M.; ARAÚJO, J. B. (2020). Reforma trabalhista, flexibilização e novas formas de contratação: impactos sobre o mercado de trabalho no Brasil até 2019. RBEST: Revista brasileira de economia social e do trabalho, v. 2, pp. 1-38.). Esse movimento se reproduz, de um lado, no aprofundamento da desestruturação dos direitos e da proteção social, com ampliação da precarização do trabalho; e, de outro lado, de forma efetiva, na queda dos rendimentos médios de todos os trabalhos e de todas as fontes (Araújo et al., 2022ARAÚJO, J. B.; MIOTO, B. T.; TROVÃO, C. J. B. M.; VENTURA NETO, R. S. (2022). “As transformações no mercado de trabalho e a reforma urbana”. In: RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Reforma urbana e direito à cidade: questões, desafios e caminhos. Rio de Janeiro, Letra Capital, v. 1, pp. 81-106.).

Ressalta-se, por um lado, o avanço no sentido de novas e diversas formas de controle e gerenciamento do trabalho, que ocorrem de diferentes maneiras, seja no controle dos trabalhadores e seus espaços de lazer, seja no controle da gestão do trabalho, controle do próprio trabalhador sobre si mesmo, entre outras. Mecanismos como gestão algorítmica, gamificação, dataficação e vigilância têm sido utilizados como forma de intensificação do trabalho e controle da classe trabalhadora (Grohmann, 2021GROHMANN, R. (org.) (2021). Os laboratórios do trabalho digital: entrevistas. São Paulo, Boitempo.). Por outro lado, o crescimento no emprego de novas tecnologias e de novas formas de gestão do trabalho também (re)coloca novos desafios para a capacidade de organização coletiva, de luta dos trabalhadores e do movimento sindical, e para as instituições públicas responsáveis por garantir a efetividade dos direitos no Brasil (Oliveira, 2021OLIVEIRA, R. V. (2021). “Sindicalismo brasileiro: que caminhos seguir?”. In: FES. Sindicato no Brasil: o que precisa mudar? Volume 2: Problemas atuais e desafios para a renovação sindical.). Nesse contexto, novas iniciativas de organização dos trabalhadores, entre eles os de plataformas digitais, além de “reapropriações de tecnologias digitais em benefício próprio, pressão por condições decentes de trabalho e construção de plataformas alternativas, cooperativas e autogestionadas”, vêm sendo discutidas (Grohmann, 2021GROHMANN, R. (org.) (2021). Os laboratórios do trabalho digital: entrevistas. São Paulo, Boitempo., p. 13), assim como o próprio debate legislativo sobre a regulamentação do trabalho realizado por meio de plataformas digitais.

Por fim, é importante ressaltar que a deterioração do mercado de trabalho é elemento central no tensionamento da questão urbana, seja pela piora das condições de vida, seja pela disputa em torno do espaço construído como base da oferta de bens e serviços de consumo coletivo ou como fundo de acumulação. Assim, as questões que relacionam reestruturação do mercado de trabalho, novas formas de trabalho e mudanças na produção da cidade compõem os resultados do dossiê “Precarização do trabalho, nova informalidade e território”, como apresentado a seguir.

No artigo Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras: mudanças e permanências em 40 anos, Marcelo Gomes Ribeiro analisa a estrutura sócio-ocupacional das principais metrópoles do Brasil, entre os anos de 1982 e 2021, focando em sua composição e no comportamento das desigualdades de renda. O autor utiliza dados da Pnad, de 1982, e da PnadC, de 2021, e constata uma redução na desigualdade de renda, mas, também, a manutenção de uma estrutura social representada pelo modelo piramidal, apesar de mudanças importantes ocorridas ao longo desses 40 anos.

No artigo Trabalho precariado e plataformização: comércio no circuito inferior da economia, Alexsandra Maria Vieira Muniz, Maria Clélia Lustosa da Costa e Emanuelton Antony Norberto de Queiroz analisam a precarização das relações de trabalho na dinâmica do circuito inferior da economia dos territórios do comércio popular de confecções do município de Maracanaú (Região Metropolitana de Fortaleza). Verificam que esse comércio extrapola o território da metrópole, ao mesmo tempo que mantém estreitas ligações com ela, e se reinventa em meio a embates com o poder público. Concluem que o direito ao trabalho na reforma urbana é um desafio diante do exército de excluídos, aos quais é negado o direito à cidade transformada em mercadoria e/ou cidade do negócio.

O artigo intitulado Plataformas digitais e fluxos urbanos: dispersão e controle do trabalho precário, de autoria de Lívia Maschio Fioravanti, Felipe Rangel Martins e Cibele Saliba Rizek, trata dos fluxos urbanos dos entregadores de aplicativos na metrópole de São Paulo, para explorar empiricamente as condições em que esse trabalho é realizado na cidade. Argumenta que a dispersão de milhares de trabalhadores, ancorada por uma gestão algorítmica, somente é possível através de um controle incisivo do tempo, do território e do próprio trabalho. Discute a vulnerabilidade dos trabalhadores, as dinâmicas de (re)produção das desigualdades centro-periferia em uma modalidade de trabalho que se especializa sob gestão centralizada das empresas de plataforma.

Seguindo o tema da uberização, o artigo Costurando a cidade: crise do capital, urbanização logística e entregadores de aplicativo, escrito por Bruno Siqueira Fernandes, Alessandro Peregalli e Thiago Canettieri, também aprecia as recentes transformações no mundo do trabalho nas metrópoles brasileiras, pela ótica do trabalho precário e baseado primariamente na circulação de mercadorias. O texto apresenta uma interpretação transescalar para esse fenômeno, utilizando a noção lefebvriana de níveis (G, M, P). Nesse sentido, os autores exploram a relação existente entre a crise do capital, a urbanização logística e a dimensão cotidiana do trabalho de entregadores de aplicativo. Defendem o argumento de que a viabilização da exploração de um trabalho hiperprecário só é possível a partir da produção de infraestruturas logísticas (físicas e digitais) que atuam como resposta ao aprofundamento da crise da “valorização do valor”.

Seguindo nesse sentido, a contribuição de Pedro Mendonça Castelo Branco e Sidney Jard da Silva, com o artigo Precários, mas organizados: a estratégia de resistência dos uberizados, passa por situar a uberização a partir das transformações do mundo do trabalho e de como ocorre o embate entre essas mudanças e a classe trabalhadora. Para os autores, a uberização do trabalho é mais uma etapa no processo de desconfiguração dos pactos sociais conformados no período fordista. Segundo eles, a estratégia de construção de “parceiros” possibilita a externalização de custos de capital fixo para uma multidão de trabalhadores precários e, também, a fuga das empresas da responsabilidade de garantir os direitos trabalhistas e as seguridades ocupacionais. Diante desse novo terreno de exploração do trabalho, que é impulsionado por grandes empresas transnacionais que operam para além dos limites nacionais e acumulam em escala global, são apresentadas, no artigo, várias iniciativas de organização dos uberizados, a partir de experiências internacionais e nacionais, à luz do conceito do sindicalismo de movimento social.

A dinâmica da sociedade de classes e seus enfrentamentos no contexto da precarização também podem ser vistos em outras dimensões. O trabalho de Ronaldo Gomes-Souza e Marcelo Claudio Tramontano, intitulado Subjetivação e riscos psicossociais da uberização do trabalho nas dinâmicas territoriais, reflete criticamente sobre os processos de novas subjetivações e riscos psicossociais da uberização do trabalho nas dinâmicas territoriais, destacando as empresas-aplicativo que oferecem serviços de táxi e entrega. Fazendo um panorama que se desloca do cenário internacional para o nacional, os autores observam que os trabalhadores uberizados enfrentam situações singulares de violências, no que diz respeito tanto à violência urbana em si, quanto a formas de violências das empresas-aplicativo que agravam os riscos psicossociais, a dignidade, a saúde e a qualidade de vida. Concluem que as práticas, a gestão e as contradições das empresas por aplicativo denotam a privação do direito à cidade e a captura da subjetividade dos trabalhadores.

Ainda enfrentando o tema da urberização, Eduardo Abramowicz Santos, no artigo Moradia, trabalho e migração: uma ocupação sob ameaça de remoção, analisa a relação entre deslocamento, moradia e trabalho numa ocupação localizada na região do Brás (São Paulo), organizada por migrantes latino-americanos e brasileiros. O autor ressalta que o entrelaçamento dessas dimensões constitui forma de produção do espaço e de organização territorial específicas e que há relação direta entre a informalidade do trabalho e da moradia.

Ainda no campo das alterações da dinâmica do trabalho e da subjetividade, o artigo Espaços de “lazer” em ambientes de trabalho na “Sociedade de desempenho”, de Simone Jubert e Lúcia Leitão, observa como a adoção e proliferação dos espaços de lazer relacionam-se com a apropriação, por parte do empregador, do tempo de não trabalho de seus empregados, mesmo quando esses espaços são percebidos como elementos inspiradores e benéficos. Partindo do conceito de “Sociedade disciplinar” de Foucault, mostram uma divisão orquestrada das representações de poder, de forma que a vigilância e o controle sobre os indivíduos sejam relevantes para criar corpos dóceis. Adotam o conceito de “Sociedade de desempenho” de Han, noção que, segundo as autoras, contribui para compreensão do fenômeno investigado, capaz de explicar como a exploração pode andar lado a lado com o sentimento de liberdade.

Fechando o dossiê, o artigo Precarização do trabalho docente: plataformas de ensino no contexto da fábrica difusa, escrito por André Luiz Moscaleski Cavazzani, Rodrigo Otávio dos Santos e Luís Fernando Lopes, discute questões relativas às iniciativas de plataformização do trabalho docente no contexto atual. Consiste num esforço empírico de localização de plataformas digitais de ensino com a qual os autores mostram como é possível, por esse meio, aprofundar o uso de espaços domésticos, restringir o tempo de descanso e lazer e intensificar a precarização do trabalho docente.

Na sequência, o leitor encontrará um conjunto de textos sobre assuntos diversos da atualidade e que complementam ou mesmo ilustram o cenário sobre o qual a precarização do trabalho e a nova informalidade se instalam no território.

O artigo Outra face da interação: coletivos de comunicação das periferias e o Estado, de autoria de Mariana Fonseca e Debora Rezende de Almeida, traz à visibilidade formas de ação coletiva nas periferias urbanas do Brasil, chamando a atenção ao fato de elas serem pouco presentes nos estudos sobre participação no País. Ao mesmo tempo, o texto sugere uma interpretação histórico-processual para a compreensão de quem são esses atores e por que são reticentes à interação com o Estado. A partir da análise dos enquadramentos dos coletivos de comunicação das periferias durante um período crítico (a pandemia de covid-19), apresenta as visões deles, os atores, sobre si próprios e sobre o Estado. Tem por base a análise de conteúdo de 14.315 postagens nas páginas do Twitter e Facebook de 8 coletivos, de 4 regiões do País, e destaca como chaves analíticas o discurso “nóis por nóis” e a percepção da interação violenta com o Estado.

No artigo A atuação estatal na produção da cidade informal: análise espacial em Florianópolis, Pedro Jablinski Castelhano, Maíra Mesquita Maciorowski e Elisa de Oliveira Beck testam, através do estudo de caso de Florianópolis, a tese de que o estado brasileiro tolera e fomenta as ocupações urbanas irregulares como resposta à sua própria incapacidade de prover habitação popular e de garantir empregos que permitam a aquisição de habitação no mercado imobiliário. Os autores observaram irregularidades no município e dois indicativos de atuação municipal na sua consolidação: implementação de equipamentos comunitários e emissão de alvarás de construção. Verificaram que os alvarás de construção em ocupações irregulares são limitados somente por restrições registrais, mas não pela existência ou não de propriedade da terra.

O artigo Violências do Estado na produção de territórios, informalidade e redes de proteção, de autoria de Renato Abramowicz Santos, trata da produção do espaço urbano e do conflito a partir, sobretudo, da violência produzida pelo Estado. Tem como base empírica pesquisa etnográfica realizada no centro de São Paulo e toma as remoções como prisma descritivo e analítico. A força do Estado revela-se na realização de remoções, deslocamentos, destruição de territórios e de tecidos sociais longamente constituídos, assim como na produção de informalidade e mercados informais; está relacionada também com a articulação de redes e arranjos (habitacionais, inclusive) de defesa como respostas a essas violências. Observa, ainda, a mobilização e instrumentalização tática e situacional das tramas institucionais (políticas, jurídicas, urbanas), vendo como nessa movimentação conflitiva outros e novos repertórios e práticas são criados.

O artigo escrito por Luiz César de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz, intitulado O urbano como antinação: para entender a crise das metrópoles brasileiras, propõe uma reflexão sobre as relações entre a retomada do projeto de desenvolvimento nacional e a efetivação de um programa de reforma urbana na atual fase da dependência do capitalismo brasileiro. Os autores entendem ser necessária uma compreensão mais abrangente da crise urbana brasileira, que ultrapasse a descrição de suas manifestações fenomenológicas. Nesse sentido, realizam uma análise do desenvolvimento e das contradições da ordem urbana a partir de escalas e horizontes mais amplos de investigação, considerando a forma de inserção internacional do País no sistema mundial capitalista, assim como as configurações atuais das relações de dependência. A conclusão dos autores ressalta que “o caráter antinacional do urbano no Brasil é radicalizado”.

Por sua vez, o artigo Dois tempos do neoliberalismo brasileiro como governo das cidades, escrito por André Dal’Bó da Costa, discute duas diferentes fases de aclimatação do neoliberalismo no Brasil como prática de governo das cidades. A primeira, como progressismo neoliberal de centro-esquerda e, a segunda, como recente gestão autoritária, austera e militarizada do colapso social. O texto dialoga com os trabalhos de Christian Laval e Pierre Dardot, para situar o debate da transição entre duas expressões do neoliberalismo, primeiro como razão mundo, biopolítica ou racionalidade política e, segundo, como estratégia de guerra. Essas formas de governo foram observadas, através de recentes transformações nas práticas de governo das cidades, sobretudo por meio de exemplos dos últimos programas habitacionais vigentes no País, que implicam novo espraiamento segregatício das cidades e, conjuntamente, a reconfiguração dos conflitos e lutas sociais decorrentes de resistência pela permanência no espaço urbano, ambas as mudanças inseridas no presente contexto de alteração normativa estatal, mediada pela recente tendência de desregulamentação da legislação urbana, ambiental e territorial.

O artigo de Carlos Eduardo Martins, Caos e nova temporalidade do sistema-mundo contemporâneo, apresenta cinco grandes teses para entender a nova conjuntura mundial em que ingressam o capitalismo e a humanidade a partir de 2015-2020. Segundo o autor, esse período se caracteriza: 1) pela crise do modo de produção e da civilização capitalista; 2) pela crise terminal e pelo desmonte da hegemonia dos Estados Unidos e pela bifurcação geopolítica da economia mundial em um bloco imperialista liderado pelos Estados Unidos e outro emergente centrado na China, na Rússia e sua ampliação para o Sul Global; 3) pela crise ideológica do liberalismo global e pela ascensão do fascismo e do socialismo como alternativas; 4) pela crise do padrão de acumulação neoliberal e pelo esgotamento da fase expansiva do Kondratieff iniciada em 1994; e, por fim, 5) indica, brevemente, os efeitos dessas tendências sobre a América Latina.

Finalizando este volume de Cadernos Metrópole, Elias Jabbour, Vítor Boa Nova e Javier Vadell, no artigo “O caminho chinês”: desenvolvimento desigual, projetamento e socialismo, apresentam as categorias de “desenvolvimento desigual”, “projetamento” e “socialismo” como suportes fundamentais em uma análise de fundo sobre as reais razões explicativas do sucesso chinês. Reconhecem ser inúmeros os indicadores que demonstram a robustez e a resiliência do processo de desenvolvimento chinês ao longo das últimas décadas.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024
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