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O pacto da branquitude: saberemos nós brancos rompê-lo?

No seu mais recente livro, O pacto da branquitude (Companhia das Letras, 2022), Cida Bento denuncia e questiona a branquitude e suas consequências nocivas para as relações sociais no Brasil.

Tendo testemunhado inúmeras recusas de pessoas negras em processos seletivos laborais, Cida Bento identificou um padrão: por mais qualificadas que fossem, elas eram sempre preteridas para as vagas. Cida conferiu essa recusa acontecendo com ela mesma, também durante sua experiência profissional como psicóloga de empresas, trabalhando na seção de recursos humanos (RH), e com familiares próximos. Não obstante a capacitação das pessoas negras ser muitas vezes superior, a branquitude - por meio de seu pacto silencioso para perpetuar privilégios - exerce seu poder mantenedor do status quo.

Cida volta, 20 anos depois, a aprofundar uma temática que já abordava em sua tese de doutorado, Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público, defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 2002. Naquela pesquisa, a autora investigava esse modelo, e visava desmistificar a falácia do discurso meritocrático. Impossível não fazer uma associação político-temporal entre 2002 e 2022. Em 2002, o povo brasileiro escolhia o primeiro operário para presidir o Brasil, e em 2022 (20 anos depois!) talvez tenha ocorrido a eleição mais dramática da história contemporânea, colocando em xeque a própria ideia de uma democracia no Brasil.

O livro de Cida foi lançado antes da eleição, potente, poderoso e provocador. Um faro no esmorecer obscurantista do governo Bolsonaro. Será preciso denunciarmos, nos amparando em Cida Bento, que o “pacto narcísico da branquitude” esteve o tempo todo por trás da sustentação de um governo filofascista. Esse acordo não verbalizado de autopreservação, que atende a interesses de determinados grupos e perpetua o poder de pessoas brancas, precisa ser demolido com urgência.

Muitos de nós, brancos, supostamente bem-intencionados, temos grandes dificuldades ao discutir em nossas organizações a necessidade de medidas institucionais de justiça e reparação. Faz somente dez anos desde que a Lei nº 12.711/2012 garantiu que 50% do total de vagas nas universidades e institutos federais fosse reservado para alunos que vieram de escolas públicas e que, nesse recorte de 50%, as vagas fossem também oferecidas para pretos, pardos e indígenas. Apenas dez anos de uma política de reparação necessária há séculos! Cida nos oferece um capítulo inteiro dedicado ao racismo institucional.

Ela ressalta com propriedade como as heranças de uma história mal contada, que oculta a violência passada durante o período escravocrata, reencarna hoje - e é usufruída pelas novas gerações brancas como mérito de seu grupo “como se não tivesse nada a ver com os atos anti-humanitários cometidos no período da escravidão, que corresponde a 4/5 da história do país” (p. 24).

Cida sustenta essas reflexões de forma muito interessante a partir dos conceitos do psicanalista René Kaës11 Kaes R. Transmissão da vida psíquica entre gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2001., sobretudo sua conceituação do pacto denegatório. Para Kaës11 Kaes R. Transmissão da vida psíquica entre gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2001., o pacto denegatório inclui tudo aquilo que há de inominável na constituição e sustentação do vínculo. Assim, fazem parte desse pacto, por exemplo, todas as questões in-analisadas ou inanalisáveis das histórias familiares que comparecem e contribuem para sustentar um vínculo conjugal. Cida estica o conceito para fazê-lo operar em relação às heranças inscritas na subjetividade coletiva.

Lendo-a, como sanitarista e psicanalista que sou, e trabalhando atualmente com pessoas expostas à violência, me resulta impossível não pensar nas contribuições de outro psicanalista: Pierre Benghozi22 Benghozi P. Malhagem, filiação e afiliação: psicanálise dos vínculos casal, família, grupo, instituição e campo social. São Paulo: Editora Vetor; 2010., que trata com muita potência dos efeitos da violência quando atravessa gerações sem adequada elaboração. A esse tipo de transmissão, Benghozi22 Benghozi P. Malhagem, filiação e afiliação: psicanálise dos vínculos casal, família, grupo, instituição e campo social. São Paulo: Editora Vetor; 2010. chama de transmissão transgeracional, que estaria por trás do círculo de repetição da violência que assola famílias, mas também sociedades marcadas por violência anti-humanitária sem elaboração.

Um breve exercício de pensamento nos permitirá nos apoiar nessa vertente da teoria psicanalítica para compreender por que o circuito da violência continua tão operante no Brasil. Somente nas primeiras semanas de 2023, poderíamos citar o quebra-quebra dos prédios dos três Poderes em Brasília, a pavorosa constatação das condições de extermínio ao qual foram submetidos os yanomamis durante o governo de extrema direita recém terminado e a tolerância extremadamente gentil do poder militar frente aos acampados brancos do lado de fora dos quartéis.

Creio não exagerar dizendo que o livro de Cida Bento nos oferece explicações contundentes para entender também esse Brasil de hoje que tanto nos assusta. Não são assombrações, senão transmissões transgeracionais que devem, urgentemente, ser interrompidas. E como?

Ensina-nos Cida: “é urgente fazer falar o silêncio, refletir e debater essa herança marcada por expropriação, violência e brutalidade para não condenarmos a sociedade a repetir indefinidamente atos anti-humanitários similares” (p. 24)

Esse “fazer falar o silêncio” implica também a inclusão das lutas e das resistências negras e indígenas na historiografia oficial. A memória coletiva não pode ser inscrita sobre um fundo de amnésia coletiva. Cida lembra então da contribuição de Charles Mills33 Mills C. Ignorância branca. Griot Rev Filosofia 2018; 17(1):413-438. com o conceito de “ignorância branca”, lembrando-nos que as sociedades escolhem o que lembrar e o que esquecer.

A memória é - para Cida Bento - um território de construção simbólica. Território vivo, portanto, que revela os valores com que são lidas as experiências passadas e que influencia o tipo de valores que vigoram em dada sociedade.

Quais seriam esses valores na sociedade brasileira de hoje? Com quais estratégias e ações seríamos os brancos capazes de contribuir para a demolição desse pacto de branquitude? Cida nos convida a deslocar nosso olhar para aqueles que, a fim de se manter no centro, impelem todos os outros à margem.

Neste ponto, penso que outro autor pode nos acudir. Homi Bhabha, em seu O lugar da cultura, nos diz: como criaturas literárias e animais políticos, devemos nos preocupar com a compreensão da ação humana e do mundo social como um momento em que algo está fora de controle, mas não fora da capacidade de organização” (2013, p. 36, grifos do autor)

Para Bhabha, a ideia da contiguidade permitiria uma saída das armadilhas do binarismo modernista sem cair na abdicação da teorização dita pós-moderna.

Privado e público, passado e presente, o psíquico e o social desenvolvem uma intimidade intersticial. É uma intimidade que questiona as divisões binárias através das quais as esferas da experiência social são frequentemente opostas espacialmente. Essas esferas da vida são ligadas através de uma temporalidade intervalar que toma a medida de habitar em casa, ao mesmo tempo em que produz uma imagem do mundo da história (p. 38)

Como pensarmos em estraçalhar o pacto da branquitude se continuarmos a habitar uma sociedade segregada, sem espaços de convívio social e cultural que permitam a hibridização, a experimentação da diferença cultural (e não a versão pasteurizada da assim chamada “diversidade cultural”, nos ensina Bhabha).

Para podermos romper esse pacto maléfico da branquitude, cabe a nós brancos nos deslocarmos, no tempo e no espaço. Estarmos próximos, na radicalidade que esse termo impõe. Os mesmos bairros, as mesmas escolas, as mesmas praças. Propiciando ações inéditas (“fora de controle”), mas passíveis de organização: grupos, coletivos, movimentos. Que o silêncio grite: basta!

Que estejamos à altura do desafio. Que tentemos com todas as nossas forças romper o pacto da branquitude. Ler o livro da Cida Bento já é um bom começo.

Referências

  • 1
    Kaes R. Transmissão da vida psíquica entre gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2001.
  • 2
    Benghozi P. Malhagem, filiação e afiliação: psicanálise dos vínculos casal, família, grupo, instituição e campo social. São Paulo: Editora Vetor; 2010.
  • 3
    Mills C. Ignorância branca. Griot Rev Filosofia 2018; 17(1):413-438.
  • 4
    Bhabha H. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Mar 2024
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