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Ficções do despojo. Precariedade e memória na escrita de Nélida Piñon e Ana Teresa Torres

RESUMO

Neste trabalho, analiso as formas exploradas pelas escritoras Nélida Piñon e Ana Teresa Torres para textualizar a memória em seus livros A república dos sonhos (1984) e La escribana del viento (2013), respectivamente. Recorrerei aos ensaios de Piñon, porquanto ela insiste na astúcia da linguagem feminina para se posicionar e conseguir entronar-se como narradora. Tomarei como base o pensamento de Ana Teresa Torres ao enunciar que a escrita contemporânea se configura como “ficções do despojo”. Na relação entre a memória e o despojo, surgem algumas noções como a ideia de “resto” e a ideia de “lixo”. Para compreendê-las, preciso me valer do pensamento de Benjamin e de Aleida Assmann, além de outros pensadores - Levinas, Gagnebin - que matizam os limites entre memória e história. Esse percurso me permite afirmar que a ruína é uma ideia central nas “ficções do despojo”, porquanto essas ficções se posicionam no presente, mas fazendo palpáveis as ruínas do passado, ao tempo que deixam como herança a precariedade.

PALAVRAS-CHAVE:
Gestos; Memória; Narrativa contemporânea; Precariedade; Midialidade

ABSTRACT

In this work I analyze the ways explored by the writers Nélida Piñon and Ana T. Torres to textualize memory in their A república dos sonhos (1984) and La escribana del viento (2013), respectively. I will resort to Piñon ‘s essays, as she insists on the cunning of female language to position herself and manages to enthrone herself as a narrator. I will ground my analysis into the thought of Ana Teresa Torres, when she states that contemporary writing is configured as “fictions of dispossession”. In the relationship between memory and spoil, some notions arise such as the idea of “leftover” and the idea of “garbage”. To understand them, I need to make use of the thought of Benjamin and Aleida Assmann, as well as other intellectuals - Levinas, Gagnebin - who define the limits between memory and history. This path allows me to affirm that the ruin is a central idea in the “fictions of dispossession”, as these fictions are positioned in the present, but making the ruins of the past palpable, while leaving precariousness as a legacy.

KEYWORDS:
Gestures; Memory; Contemporary narrative; Precariousness; Mediality

O resto e o lixo, os narradores

Qual seria a marca textual e discursiva a partir da qual poderíamos ler A república dos sonhos, de Nélida Piñon, e La escribana del viento, de Ana Teresa Torres? Como pensar as formas de narrar de Torres e de Piñon? As alegações são parte fundamental de ambos os romances, e essas alegações, quando narradas, configuram o que podemos chamar “ficções do despojo”. As alegações, articuladas pelos distintos narradores-personagens presentes em ambos os romances, mostram a carência, evidenciando um interessar-se pelo residual. Os narradores desses romances tentam reivindicar sua história e sua memória, e se comportam como escavadores que visitam as ruínas do passado, para reconstruir sua memória.

A memória e a história dos vencidos ocupam as linhas tanto de A república dos sonhos quanto de La escribana del viento. A maneira como essas histórias estão elaboradas, artística e esteticamente, possibilita um contato do presente com o passado. As escritoras recorrem a imagens dialéticas, a gestos, e a epígrafes que funcionam como rastros. As narradoras olham para o passado, elaboram-no e o apresentam textualizando alegorias das formas de poder. Invertendo os olhares, elas mostram as perspectivas dos vencidos, exibem suas pequenas vitórias e seus “fracassos exemplares” (Gagnebin, 1993GAGNEBIN, J. M. Walter Benjamin: os cacos da história. Trad. Sônia Salzstein. São Paulo: Brasilense, 1993., p.8). Constroem uma memória que depende e se retroalimenta da experiência marcada pelo despojo e pelo rastro.

O conceito de rastro é foco de interesse em distintas áreas do saber, como na filosofia, na crítica literária e cultural e a história. Aliás, o rastro pode ser pensado como uma estratégia de interpretação. Falar do rastro ativa um campo semântico que evoca outras metáforas do passado, de seus modos de escrita, do sujeito que escreve; enfim, de tudo o que circunda o contato do passado com o presente.

O rastro se vincula à escrita, desde a Antiguidade, quando é definido como o traço que se deixa sobre uma superfície: tábula de argila, pergaminho, papel. O rastro se acopla ao caráter efêmero da memória, que pode ser muito forte, mas, também, pode desaparecer, apagar-se. O rastro remete a uma trajetória: é a pegada deixada pelo deslocamento. O rastro é “produto do acaso, da negligência e, às vezes, da violência” (Gagnebin, 2006_______. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006., p.111). O rastro é o produto do não intencional. Definitivamente, encerra o paradoxo de ser a “presença de uma ausência e a ausência de uma presença” (ibidem, p.27). Mas, sobretudo, o rastro se destaca por ser um signo que “significa fora de toda intenção de significar” (Levinas apud Gagnebin, 1993, p.114). É um signo não endereçado, que outorga uma abertura, um convite à interpretação como a refiguração explicada por Ricœur. O rastro é assim uma “testemunha muda”, que não fala, mas que se mostra - fala com gestos.

O rastro constitui-se numa das noções teóricas mais potentes na obra de Benjamin. Nas Passagens (Benjamin, 2006_______. Passagens de Walter Benjamin. Trad. Irene Aron e Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.), encontramos referências às grandes obras da modernidade, estruturadas a partir do vidro e do ferro, materiais que “não deixam rastro”. Esse “não deixar rastro” é explicado no ensaio o “Narrador” com a ideia da “morte do narrador tradicional” (Benjamin, 1987a, p.197-221), e simultaneamente, o nascimento de uma nova forma de narrar que se fundamenta, justamente, nos rastros/restos. “Apagar os rastros”, o conhecido poema de Bertolt Brecht, serve a Benjamin para mostrar, em “Experiência e pobreza” (Benjamin,1987a, p.114-19), que ser “pobre de experiência” é desligar-se da cultura: o rastro da vida dos homens é apagado, para, de algum modo, sobrepor-se à crise econômica e política. Nas Teses sobre a história está flutuando a ideia de rastro, evocando a exigência do historiador para proceder metodologicamente como um escavador que tenta resgatar do passado os vestígios que vão lhe permitir elaborar a história. “Escavando e recordando” é também uma entrada de Rua de mão única, uma história que se ocupará de reorganizar os rastros, porquanto o anjo da história (Benjamin,1987b, p.229) não vê uma concatenação de fatos, senão uma pilha de restos.

Benjamin “constata igualmente o fim da narração tradicional, mas também esboça como que a ideia de uma outra narração, uma narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas” (Gagnebin, 2006_______. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006., p.53). O narrador é a figura do trapeiro “do Lúmpensammler ou do chiffonnier, do catador de sucata e de lixo, esta personagem das grandes cidades modernas que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movida pela pobreza, certamente” (ibidem).

Essas narradoras, coletoras de restos e de rastros, são as escrivãs, são Breta, e também Eulália, em A república dos sonhos, e Catalina e Ana Ventura, em La escribana del viento, enquanto escavam, procuram e selecionam fragmentos esquecidos de histórias pessoais, para reelaborar a história a partir dos rastros.

As ficções do despojo ou o sorriso de Eulália

Ambos os romances compartem a convicção de que a memória reivindica nosso presente e a consciência de que tanto a história quanto a ficção são modalidades de invenção, são “simulacros”: “Mediante aos seus prodígios, de igual impulso narrativo, a ficção e a história mergulhavam na verdade e na mentira, no sagrado e no profano, rastreavam mitos, simulacros da gênese social” (Piñon, 2008_______. Aprendiz de Homero. Rio de Janeiro: Record, 2008., p.26, grifo meu). É por isso que o discurso feminino, ao apropriar-se das narrativas, assume um compromisso com seu presente: “não acredito na concepção da literatura como ‘reino do intemporal’, no qual o escritor aparece dotado de uma condição divina que o situa acima de suas circunstâncias, penso que de algum modo todo escritor é escrito por seu tempo”1 1 “No participo de la concepción de la literatura como ‘reino intemporal’, en el cual el escritor aparece dotado de una condición divina que lo sitúa por encima de sus circunstancias, y pienso que de alguna manera todo escritor es escrito por su tiempo”. (Torres, 1993TORRES, A. El escritor ante la realidad política venezolana. In: INTI, Venezuela: literatura de fin de siglo. No. 37/38, pp. 37-45 1993, p.37). Embora essa afirmação seja palpável nas narrativas das duas escritoras, ambas viajam a passados míticos e tecem uma genealogia que conecta o presente com o passado. A frase “A memória de Deus está na Bíblia” (Piñon, 2008, p.59) reformula a perspectiva da história de Sara, personagem bíblica, para explicar as peripécias da memória feminina. Piñon recorre a essa memória ancestral para explicar como a mulher esteve silenciada e excluída do diálogo originário entre Deus e Abraão.

Essa história fundacional serve a Piñon para explicar, partindo do mítico, como, embora a mulher não seja partícipe do diálogo, ela é depositária da memória. Apesar dos constantes apelos que ela faz para intervir no diálogo, Deus − o poder − sempre a ignora, até que ela decide tomar parte na história. Sara começa a ganhar um certo “poder secreto”, ao assegurar a descendência de Abraão por meio de sua escrava, e sua esterilidade torna-se matéria narrativa: “Pela primeira vez experimenta o direito radical de narrar para Abraão, que escuta o eco de sua voz, a ambiguidade de suas palavras” (Piñon, 2008, p.69). Mas, ainda assim, ela não consegue a interlocução com Deus.

Contudo, a sua astúcia sobrepassa esse apagamento: ela se disfarça, usa máscaras, pelas quais tem sido posicionada pela exegese bíblica como uma personagem “branda e flexível” (Piñon, 2008_______. Aprendiz de Homero. Rio de Janeiro: Record, 2008., p.72). Já na velhice, chega a notícia de que ela terá um filho. Ante essa revelação, Sara sorri. Para muitos, foi um sorriso de felicidade; mas, para Nélida, foi um sorriso desafiador: “Deus, porém, não crê na mulher, teima que ela riu. Sara, por sua vez, quer-Lhe advertir que, diante Dele, ela é o Outro. Também ela, graças às suas respectivas alteridades, personifica o espetáculo narrativo” (ibidem, p.77, grifo meu). Quer dizer, ao ser partícipe da história, a mulher guarda uma memória, embora não tenha a oportunidade de textualizá-la, de lhe dar um caráter narrativo. A mulher, por uma relação de oposição, exerce um carácter configurador:

Conquanto despojada da fala, sua memória persiste intacta. Aspira simplesmente a abastecer a humanidade com o seu precioso testemunho. E, enquanto aguarda a passagem dos séculos, seu riso ecoa como magnífica senha. E esse riso nem Deus pode evitar. (ibidem, p.7, grifos meus)

A memória da mulher, segundo Piñon, nasce do “despojo”. À mulher é negada a palavra: ela é despojada do verbo. Sua memória se fundará na precariedade imposta da palavra. Mas, a necessidade expressiva se manifesta em outro território, escapa pelo gesto. Assim, o gesto − do sorriso, nesse caso, mas que pode ser qualquer um − se nos oferece como um meio perspicaz, através do qual a mulher, despojada da palavra, pode externar sua memória.

Ante essa impossibilidade originária de narrar sua memória, toda vez que ela emerge é assumida como uma raridade, ou uma deidade, o que provocou uma percepção, um conceito generalizado de que a memória da mulher se verbalizava sempre com uma linguagem com “abusiva presença de alusões, insinuações, sugestões, semitons, meias palavras” (ibidem, p.129), que a perfilava ao ser “insincero, socialmente inclinado a tergiversar, a engendrar, a compor um perfil que os gregos clássicos associaram à astúcia” (ibidem). Caracteriza-se, assim, a linguagem da mulher como carente, inconfiável e de escassos recursos, mas sempre repleta de ardis, de astúcias, de criatividade.

A república dos sonhos é um romance que se destaca no panorama literário brasileiro por narrar a história do século XX do Brasil, desde a perspectiva de uma família de imigrantes galegos. Madruga e Eulalia, personagens do romance, chegam ao Brasil a inícios do século e por meio de sua experiência de vida conhecemos os acontecimentos históricos e a vida social, política, econômica e cultural do Brasil. As vozes narrativas se superpõem, mostrando a vida das três gerações da família. Breta, a neta mais nova, é quem organiza o relato, porém temos a presença de outras narradoras mulheres, especificamente de Eulalia, que deixa em evidência a astúcia e os ardis da voz feminina descrita por Piñon nos ensaios. O despojo da palavra é aceito por Eulália: “Chegou a minha hora, Odete. Deus sempre me falou por meio de murmúrios. Para só eu ouvir, disse, com tênue sorriso” (Piñon, 1984, p.16, grifo meu). Assim como Sara, Eulália sorri porque sabe que também pode narrar, no sentido de oferecer ao outro uma história. Ela é dona de sua história e, também, da história de sua família. Ela narra com os objetos e garante a transmissão das narrativas quando lega, a cada um de seus filhos, uma caixa com seus tesouros, objetos que acumulou em uma caixa durante toda sua vida, com o intuito de resguardar a história de cada um.

Seu vínculo com Madruga também é um condicionamento da sua memória. O romance se desenvolve durante os dias em que Eulalia está no leito de morte e toda sua família está em casa esperando esse desfecho. Enquanto esperam, todos rememoram a vida da família. Com sua morte, ela também tensiona sua relação com seu esposo, põe em desequilíbrio a narrativa de Madruga, que sempre acreditou que tanto Eulália quanto seu amigo Venâncio eram depositários de grande parte de sua memória. Essa crença sempre fez que Madruga os liderasse: ele impunha comportamentos, compromissos dos quais eles, às vezes, fugiam sutilmente, mas Madruga sempre quis se impor, até mesmo no momento da morte: “−Não quero que morra, Eulália. Ouviu, não quero, descontrolou-se, a voz embargada” (Piñon, 1984PIÑON, N. A república dos sonhos. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.17). Ante esse desejo que, pelo caráter de Madruga, se pode traduzir numa exigência, Eulália se comunica de novo com sua língua original:

Eulália devolveu-lhe o sorriso com que o premiava há mais de cinquenta anos. O sorriso que ele viu esmaecer com os anos e as rugas. Não tinha a formosura de outrora. Exibia agora uma dentadura brilhante e nociva, inimiga da memória que conservava dela, desde Sobreira. (ibidem, grifo meu)

O que lhe quer dizer com o sorriso? O sorriso da Eulália é anacrônico, é o mesmo de 50 anos atrás, é um sorriso que encerra a história de vida dos dois, mas, ao mesmo tempo, é um sorriso desgastado, que precisou de uma restauração, uma renovação, uma atualização. Só agora, na velhice, esse sorriso é compreendido por Madruga que, por isso, não o reconhece, por isso acha que a dentadura com que o sorriso foi renovado é “brilhante e nociva”, porque sabe que esse sorriso encerra as memórias de ambos. O desespero de Madruga se dá por que ele é consciente de que não tem o controle desse gesto: “Então, além da morte, preciso enfrentar seus dentes mentirosos, o sorriso certamente roubado de algum morto? E para onde foi seu sorriso? Confesse, Eulália, para eu ir lá buscar” (Piñon, 1984PIÑON, N. A república dos sonhos. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.17). No meio da crise por perder o controle da vida, da memória e da narrativa, Madruga continua suas exigências e a sua insistência em retomá-lo, por solicitar de Eulália atos e compromissos que ela não está disposta a assumir: “−Não nos deixe Eulália. Não se esqueça de nosso trato. De você me enterrar. Ser minha viúva, chorar por mim e não eu por você, sem perceber o delicado sorriso de Eulália, descrente de um trato jamais firmado” (ibidem, p.18, grifo meu). Esse sorriso roubado é um gesto herdado de seus ancestrais.

A morte de Eulália é o que desestabiliza a existência de Madruga, mas, além da morte, o que perturba e desespera o senhor Madruga, o depositário e executor do poder, é o sorriso de Eulália. Esse sorriso lhe revela que ele não possui o controle sobre suas memórias, e lhe demonstra, também, que as memórias podem ser sintetizadas em um gesto. E, nisso, Eulália é especialista, pois, ao ser sempre despojada da palavra, tornou-se uma grande “gestualizadora”.

Assim, o inenarrável não tem mais opção senão emergir, como memória, em uma formação corporal, gestual. Um meio não verbal, mas imagético, perceptível, teatralizado. Acontece também isso - mas conjugado com a verbalização − com as outras narradoras, com Breta, de A república..., que escuta as histórias de seus antepassados e as escreve, tentando organizá-las num livro, e com Catalina, de La escribana del viento, que escreve o que Ana Ventura lhe dita. Elas, ao reconhecerem-se e assumirem-se como “filhas da palavra”, iniciam o litígio da e pela narração; mas, ao herdar a gestualidade como possibilidade narrativa, alternam entre palavra e gesto, entre palavra e pose, entre palavra e sorriso. Nélida explica que a mulher: “Na condição de cartógrafa, timoneira, dona-de-casa, eventualmente chefe de estado, abandonou a servidão e vislumbra o porvir. E avança, embora tenha muito a caminhar. Sua voz, que reverbera, fala agora com Deus e os homens, com o próprio destino” (Piñon, 2008_______. Aprendiz de Homero. Rio de Janeiro: Record, 2008., p.282). Essa fala empoderada da mulher contemporânea se constrói ainda como “ficções do despojo”. São narrativas que nascem da precariedade, que instauram um litígio, uma alegação, para reclamar e impor sua própria história, a partir de uma linguagem ardilosa, sagaz e que não é, necessariamente, verbal, ou que parte do verbal para criar imagens, gestos, cenas, visualidades, montagens.

As ficções do despojo e as memórias. Ou as epígrafes da escrivã

A matéria da memória contemporânea, diz Ana Teresa Torres, está condicionada pelo midiático e o tecnológico. Em outras palavras, pela “simultaneidade do tempo e a instantaneidade dos acontecimentos [que gera uma] outra forma de situarmos, de pensar e de sentir” (Torres, 2000, p.84). 2 2 “simultaneidad del tempo e instantaneidad de los acontecimientos, otra forma de situarnos, de pensar y de sentir.” Isso representa um grande desafio para o romancista contemporâneo. O problema do tempo é fundamental no romance. Torres se pergunta: “Qual é o efeito dessa maneira de transcorrer do tempo? Em outras palavras, qual é o efeito que me interessa como escritora? É um efeito do despojo” (ibidem, p.85).3 3 ¿Cuál es el efecto de esa manera de transcurrir el tempo? En otras palabras ¿Cuál es el efecto que me interesa como escritora? Es un efecto de despojo.

A república dos sonhos e La escribana del viento são romances questionadores, revisitam o passado à procura de elementos que, outrora, permitiram delinear a unidade identitária nacional, para criticá-la e nos revelar uma outra face do passado. Esses elementos estão presentes como vestígios, como restos, como ruínas do nacional, mas ainda existentes no presente. Conscientes de que identificar o que nos unifica é um objetivo fracassado, as autoras insistem em mostrar que, na pluralidade do presente, o passado também se multiplica.

Os romances usam diversas estratégias memorialísticas para contar histórias de filiação que atravessam várias gerações. As narrativas dessas escritoras se oferecem como um universo de recortes e de fragmentos enunciados por diversas vozes, mas registrados na escrita, por meio do trabalho de uma “escrivã”: Breta, no caso de A república..., e Ana Ventura, no caso de La escribana del viento. Os interesses das escrivãs vão da apropriação e textualização de experiências até uma reelaboração e organização das memórias dos outros, recorrendo a diversas modalidades textuais, cartas, diários, retratos, testemunhos, documentos históricos. Remetem às ruínas do passado e possibilitam a instauração, através da escrita, de “espaços de recordação” (Assmann, 2006ASSMANN, A. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Trad. Paulo Soethe. São Paulo: Editora Unicamp, 2006.). Essas narrativas dialogam com os dramas políticos da contemporaneidade, nos oferecem a possibilidade de ler o presente a partir de uma visão retrospectiva, para evidenciar um vínculo memorial, uma herança, um vestígio, um rastro.

As ficções do despojo têm uma marca discursiva que mostra o empoderamento recente, com o qual os textos se politizam ao empreender um litígio dentro da ficção, que reivindica aquilo que foi despojado dos sujeitos enunciadores. Não com nostalgia, mas como uma “constatação da carência como sujeito simbólico, na qual se reconhece a precariedade dos outros” (Torres, 2000TORRES, A. T. A benefício de inventario. Caracas: Memórias de Altagracia, 2000., p.88). É também um efeito que dialoga com os mecanismos de representação do tempo dos meios visuais contemporâneos, cinema e televisão, segundo as ideias de Torres, nos anos 1990, mas que se expande para as novas tecnologias da informação, atravessadas pela imagem. Elas, em algumas de suas produções, como os informativos e os telejornais, “têm sido substitutos do discurso histórico” (Torres, 2000, p.91). A velocidade dos acontecimentos apresentados e a simultaneidade de narrativas dessemelhantes, trágicas e cômicas, deixam o espectador com a sensação de não ter certeza do que está acontecendo, deixam-no “despojado” de informação, despojado de um sentir, mas não ignorante. Assim, o trabalho do romancista, segundo Torres, é justamente esse: posicionar-se ante essa memória furada, erodida, para pensar a história, entendida como um “tecido social que atravessa a reprodução e a criação cotidiana da vida que acontece todos os dias” (ibidem, p.87).4 4 La Historia es ese tejido social que atraviesa la reproducción y creación cotidiana de la vida que ocurre todos los días. Ante essa memória em construção, submetida à incessante reverberação da informação, fundada em imagens, o romancista termina “situando-se como testemunha angustiada de um desmoronamento sistemático, como se temesse a perda não do ocorrido, pois isso pertence ao passado, mas do mesmo presente despojado” (ibidem, p.91).5 5 “El novelista se sitúa como el testigo angustiado de un desmoronamiento semántico, como si temiera la pérdida, no de lo ocurrido que pertenece al pasado, sino, precisamente, del mismo presente despojado.”

Como se apresenta, concretamente, essa ficção do despojo nos romances ora em análise? A memória é chave nessas ficções do despojo, mas é uma memória que se preocupa com o presente. Então, como lida Torres com essa incessante produção e reprodução do presente?

Falar de uma narrativa do despojo, ou de uma escrita do despojo, traz uma reflexão sobre o que é próprio e o que é alheio. O romance de Torres é a história de uma família que sofre os abusos de poder da Igreja católica no século XVII em Caracas. O relato se configura a partir de diversos documentos que mostram múltiplas perspectivas da história, fazendo que os acontecimentos sejam reiterados ao longo do texto. La escribana del viento, ao iniciar com um conjunto de epígrafes, com o título “considerações sobre a pertença”, encaminha sua leitura para esse efeito que Torres quer gerar, um efeito do despojo, um efeito que nos interroga, e, nesse caso, nos questiona sobre o que nos pertence. Torres, ao inaugurar seu romance com essas reflexões, dá conta de uma estratégia para desacelerar a velocidade que gera a superprodução de sentido, que acontece na história atual venezuelana. Embora Torres construa uma narrativa localizada e documentada no século XVII, ela evoca os modos como o poder é exercido na Venezuela contemporânea. Essa evocação, entre outras estratégias, é desenvolvida a partir das epígrafes com os quais inaugura os capítulos do romance intitulados “La pasión de Catalina de Campos”. Cada epígrafe interrompe a narrativa e segmenta a pergunta inicial − o que me pertence? − escondida no título “Considerações sobre a pertença”.

O primeiro questionamento surge em torno ao lugar da escrita: “O mundo escrito gira sempre ao redor da mão que escreve, do lugar no qual escreve: onde você está, está o centro do universo” (Torres, 2013_______. La escribana del viento. Caracas: Alfa, Biblioteca Ana Teresa Torres, 2013. n.9., p.10). De quem é a mão de quem escreve? E o que é o escrito? A primeira epígrafe estabelece uma relação multidirecional. Por um lado, condiciona a primeira parte do romance, que é o momento e o contexto em que Catalina, personagem central, decide escrever uma carta e começa a ditar a Ana Ventura, que vai ser sua escrivã. O lugar onde escreve é a precária cidade de Coro, do século XVII, sob a sombra de um Cují (ibidem, p.11).

A epígrafe inaugura não só essa primeira parte, mas todo o romance. Nesse sentido, essa mão de quem escreve também pode ser a mão de Ana Teresa Torres, a escritora do século XXI, fazendo desse tempo e desse espaço o centro do universo ficcional. Essa é uma engenhosa forma de advertir que a história que vamos ler é uma história simultânea, uma história que é a de Ana Ventura, mas que também pode ser a de Ana Teresa Torres. Uma história que se repete, se reflete e se reitera, como o nome mesmo - Ana, da escrivã, e o nome Ana, da autora -, que no final do romance oferecerá seu próprio testemunho de reconstrução da história. Assim, o “mundo escrito” por Ana Ventura, no século XVII, descrevendo o abuso de poder do bispo Mauro del Toro, se conecta com o abuso de poder do governo totalitário de inícios do século XXI venezuelano, que é o “centro do universo” de Ana Teresa Torres. Em ambos os casos, como expliquei, o abuso de poder é central para a experiência tanto da autora quanto da personagem. Embora Torres explique que ela, como pessoa, não tenha sido atacada pelo regime, o fato de viver na Venezuela a expõe a uma situação de vulnerabilidade. Essa é a situação na qual se encontram também centenas de migrantes venezuelanos afetados pela crise socioeconômica da Venezuela e que nos leva às duas epígrafes a seguir.

“Não se deveria arrancar as pessoas de sua terra ou país, não à força. As pessoas ficam doloridas, a terra fica dolorida” (Gelman apud Torres, 2013_______. La escribana del viento. Caracas: Alfa, Biblioteca Ana Teresa Torres, 2013. n.9., p.10).6 6 “No debiera arrancarse a la gente de su tierra o país, no a la fuerza. / La gente queda dolorida, la tierra queda dolorida”. Juan Gelman Se a primeira epígrafe remete, tangencialmente, à figura do escritor, e constrói uma entrada para repensar o romance a partir das escritas de si, essa segunda epígrafe leva o romance para o território das narrativas de deslocamento, o exílio, a migração, a fuga. A história de Catalina é a história de uma fugitiva. Ela é acusada de cometer incesto com um de seus irmãos e, também, de aborto. Essas acusações parecem ser desculpas do bispo para vingar-se da família que não lhe permitiu apropriar-se ilegitimamente de seus bens, pretensões que exercia encobrindo-se em seus títulos eclesiásticos. Diante dessas acusações e após estar aprisionada, de forma desumana, esperando uma sentença que nunca chegaria, Catalina decide fugir. Essa fuga é uma forma de tomar a justiça em suas mãos, o que se traduz, como quase todos os deslocamentos, na procura de melhores condições de vida. Mas, ao partir, Caracas fica destruída, tanto por causa do terremoto acontecido em 1643, e descrito com perícia no romance, quanto pelas ações inescrupulosas do bispo Del Toro. Ana vai passar sua vida em Coro, entre a pobreza, a indigência e a precariedade: como diz a epígrafe, a terra fica dolorida, as pessoas ficam doloridas.

Assim como a primeira epígrafe, a segunda também é multitemporal: a terra dolorida não só é a Caracas do século XVII, mas também a Venezuela, produto da “revolução bolivariana”, e as pessoas não são apenas Catalina, a personagem, são os migrantes que têm saído do país, nos últimos dez anos. Pessoas e personagens que são errantes: “Meu Deus, tem piedade do errante, pois no errante está a dor”7 7 “Dios mío, ten piedad del errante, / pues en lo errante está el dolor”. Heberto Padilla. − terceira das epígrafes. Muitos deles, embora tenham a sorte de melhores condições de vida, vivem na dor de ter deixado um lar, um universo afetivo. Outros experimentam o estrangeirismo em suas piores versões.

Em ambos os casos, “O exilado rejeita as pátrias. Se afasta das cisões. Se encaminha para o instante”8 8 “El exiliado deplora las patrias. Rehúye escisiones. Se encamina hacia el instante”. Rafael Cadenas. − a quarta das epígrafes. Em ambos os casos, gera-se uma consciência de que a pátria é uma utopia inalcançável que, se em algum momento se teve a certeza de possuí-la, a sua condição de exilado já não lhe permite assumi-la como própria e, por isso a rejeita, afastando-se também daquilo que o pode dividir. “Se afasta das cisões” indica que se reconhece como despojado e se situa no instante, no presente. Essa epígrafe é um verso de Rafael Cadenas cujo sentido sintetiza, em grande parte, essas ficções do despojo, por negar rotundamente uma possibilidade de nostalgia e por insistir na ausência. Verbaliza o pensamento da personagem Catalina quando decide − primeira decisão de sua vida − não voltar a Caracas e ficar em Coro, carregada de ausências: sem bens, sem dinheiro, sem família.

Uma ausência ou uma carência é diferente quando se é mulher. Assim, não podia faltar uma epígrafe que fizesse referência ao contraste entre a experiência feminina e a masculina: “A viagem do menino é voltar à terra natal, a nostalgia que faz do homem um ser que tende a voltar ao ponto de partida e morrer ali. A viagem da menina é mais longe, ao desconhecido, ao inventar” (Torres, 2013_______. La escribana del viento. Caracas: Alfa, Biblioteca Ana Teresa Torres, 2013. n.9., p.10).9 9 “El viaje del niño es volver a la tierra natal, la nostalgia que hace al hombre un ser que tiende a volver al punto de partida para apropiarlo y morir allí. El viaje de la niña es más lejos, a lo desconocido, a inventar”. Hélène Cixous. A viagem do menino é a viagem de volta a casa, como a de Ulisses: é um caminhar sobre as pegadas já deixadas, alguma forma de as repetir. A viagem da menina, a viagem de Catalina e de Ana Ventura − ou Torres? − é para inventar. Uma viagem com o objetivo de construir uma ficção que lhes permita continuar. “A menina”, por ter estado sempre submetida ao silêncio, precisa criar uma narrativa, porque não pode confiar nas narrativas construídas por aqueles que a silenciaram. Esse inventar, como sabemos, não exclui as lembranças.

Isso me leva à última das epígrafes “Para relembrar/teve que partir” (Torres, 2013_______. La escribana del viento. Caracas: Alfa, Biblioteca Ana Teresa Torres, 2013. n.9., p.10):10 10 “Para recordar / tuve que partir”. Cristina Peri Rossi. uma amálgama entre memória e deslocamento, que vai encerrar esse percurso epigramático, sugestivo e intemporal, que mostra simultaneamente o compromisso social do escritor contemporâneo que visita lugares míticos e místicos que resultam reveladores pela sua anacronicidade, por serem “espaços de recordação”.

Cada uma dessas epígrafes se comporta como o sorriso de Eulália. Cada verso é um gesto breve que encerra a imagem de uma memória que se atualiza. Um gesto/texto, ao qual se reporta Torres, para deixar em evidência que a história contemporânea, por ser impessoal e desabitada, não pode dar conta da experiência contemporânea, por causa da vertigem e da rapidez com que acontece. Epígrafes e gestos trazem para o texto características de outros meios, porque exploram a instantaneidade da imagem, a captura de uma fotografia, por exemplo, para expressar o espetáculo das vivências dos sujeitos que não participam da História. Epígrafes e gestos dão conta do despojo da palavra, e, ao mesmo tempo, nos deixam privados e com uma sensação de vazio, mas conscientes de que estamos herdando esse vazio. Epígrafes e gestos nos questionam sobre o que nos pertence. Epígrafes e gestos, ao percorrer a brevidade, conduzem a uma condenação do macro e a uma matéria expressiva micro: levam a ficção e o relato para o resto, para o residual, para o lixo, isto é, para as ficções do despojo.

Depois do resto e o lixo vêm as ruínas

As narradoras perseguem rastros para contar suas histórias, entabulando um diálogo que se manifesta no contato do presente com o passado. Como é o diálogo entre a inquietação pela identidade e a afeição pelo residual? Para onde nos encaminha esse interesse pelos vestígios? O passo do resto ao lixo esclarecerá, em parte, ambas as perguntas.

A noção de lixo permite compreender a incorporação das midialidades descartadas do “arquivo”. Diz Derrida (2001DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p.24), em seu conhecido texto Mal de arquivo: “Não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade. Não há arquivo sem exterior”. Inclino-me a pensar, portanto, que a narrativa dessas autoras desafia os limites entre o arquivo e seu exterior, por meio de suas estratégias de consignação − colocar um signo ao lado do outro, como colecionadoras. O arquivo sempre está disponível à interpretação. Assim, “ele também existe enquanto texto, de qualquer espécie, incluído o chamado literário” (Cámara et al., 2018CÁMARA, M. et al. (Org.) Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p.38). A estratégia de repetição, que chamaria de reiteração, própria dos textos literários, para enquadrar-se dentro de um gênero ou tipo, entra em crise quando as diferentes formas de arte se tocam entre si.

Nesse sentido, no arquivo entram objetos que têm um valor excepcional para a memória, por constituir um material significativo do passado. O que não entra no arquivo pode ser considerado lixo. Nesse sentido, a produção de lixo é também o resultado da produção do arquivo. Assmann faz uma conexão metafórica entre a ideia de biodegradável e o residual, que surge do excesso de produtos materiais, no sentido daquilo que ficou e que é remanescente na cultura, porque não entrou no arquivo; quer dizer, é aquilo cuja presença persiste porque serve de base para formações culturais novas, é material cultural “reciclado” − diria Assmann. Por isso, o material tóxico, assim como a arte, pretende também a eternidade: “a pretensão de eternidade da arte tem sua realização máxima no lixo tóxico. Material tóxico e material cultural estão, assim, em paradoxal homologia estrutural” (Assmann, 2006, p.373). O lixo é conformado por aqueles objetos que já não são usados, objetos que ao perder seu valor de uso, perdem até o significado. Dessa forma, o que sobra deles é a sua “materialidade” e o aspecto que é potencializado quando voltam a ser usados: eles têm ainda o poder de carregar o passado. E os traços de sua antiga utilidade pululam em sua nova função.

Assim, podemos observar como as noções de lixo e de residual não se sobrepõem, nem se contradizem: elas são complementares. O lixo é o descartado: mas, inevitavelmente, está presente (o lixo tóxico, diz Assmann); o residual é aquilo que, tendo sua origem no passado, permanece no presente, constituindo- se em aspectos importantes de nossa experiência. Não é o arcaico, mas também não é o descartado: é aquilo que permanece e que resiste, de algum modo, à passagem do tempo e que se diferencia também do dominante, do hegemônico. Ou, pode-se dizer, do que entra no arquivo. É diferente também das formações novas, do emergente. E é justamente isso o que têm em comum o lixo e o residual: sua impossibilidade de entrar legitimamente no arquivo. E falo legitimamente, porque eles − lixo e resíduo − são arquiváveis como exceção.

Quando uma manifestação artística incorpora o lixo à sua produção, altera-a estruturalmente, e o conceito de arte é ressignificado. Desse modo, a concepção de arte e suas construções teóricas, assim como suas ferramentas de análises, exigem novas incorporações. Portanto, a ideia de “instalação” e de “performance” aparece na cena artística para denominar essas práticas expressivas e estéticas que ampliam suas fronteiras e que recorrem a diversos meios, materiais, suportes e conceitos.

A narrativa dessas escritoras pode ser qualificada de “narrativa performática” (Ravetti, 2002RAVETTI, G. Narrativas performáticas. In: Performance, exílio, fronteira, errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Post-lit UFMG, 2002. pp.48-67.), porque se baseia em modalidades narrativas tradicionais e as reformula a partir da incorporação de aspectos que gerações anteriores descartavam: “O que parece lixo espalhado e sem relação com nada, em primeira análise, torna-se um cosmo de conhecimento secreto quando é completado por narrativas e cerimônias” (Assmann, 2006ASSMANN, A. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Trad. Paulo Soethe. São Paulo: Editora Unicamp, 2006., p.414).

Quando Assmann (2011, p.21) diz que “o passado é uma construção livre baseada em nosso respectivo presente”, tendo a pensar, como alegorias, os romances que estou estudando. O passado, em La escribana..., se configura como alegoria do presente. Em A república dos sonhos, acontecimentos que poderiam ser testemunhas do passado recente − a ditadura, o exílio e a tortura, que aparecem no romance − são mistificados e estetizados, porém retornam como alegorias reiteradas, em histórias reiteradas, cujas estratégias midiáticas se constroem a partir de “práticas inespecíficas” (Cámara et al., 2018CÁMARA, M. et al. (Org.) Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p.205). São modalidades artísticas que amalgamam, em uma só manifestação, uma multiplicidade de gêneros, formas e tipos de arte, as quais permitem, por meio da escrita, elaborar a afetação sobre o corpo, sobre o sentido e sobre o sentir.

A presença do passado no presente é um rastro, é um resto − lixo, como já expliquei. Com a metáfora da escavação, o rastro, a ruína e o vestígio aparecem na conceptualização da memória para insistir na materialidade do passado que se faz presente. Objetos, imagens, ações ressignificam-se como inscrições afetivas, testemunhas cuja significância está latente. Nos textos, a ideia de lixo dialoga com a de rastro e de resto: ambas se sustentam sob o fragmentário. No caso de La escribana del viento, a narração se “monta” com a alternância do capítulo “La pasión de Catalina de Campos” e uma série de documentos testemunhais, datados de 1638 até 1654. Eles são cartas, registros escritos do conflito jurídico, decretos, muitos deles escritos em primeira pessoa. Aqui quero chamar a atenção novamente para as epígrafes que inauguram as quatro partes intituladas “Paixão de Catalina”. No romance, como já expliquei, inaugurar essas quatro seções com essas considerações sobre o que é próprio e o que foi arrebatado, o que não se possui e o que falta, condiciona a leitura e a abre para a possibilidade de conexão entre o presente, os acontecimentos de nossa contemporaneidade, e o passado, que será narrado em cada parte.

Assim, o precário, a falta do que foi arrebatado, desponta como uma via de leitura que revela o interesse pelo “resto”, nos romances. As epígrafes são considerações sobre a pertença e, também, sobre a precariedade e a falta. Essas epígrafes indicam temas como: o lugar da escrita que é sempre um lugar “entre”; a invenção (criação artística); o exílio, que se traduz na ausência da pátria; a dor da partida, a fuga, o refúgio; a lembrança dos lugares “seguros”. Todos eles iluminam a história da fuga e da perseguição de Catalina de Campos. Mas, ao lê-los, é inevitável reconhecer neles uma profunda atualidade. Cada frase sintetiza, em uma imagem, a experiência individual e subjetiva das personagens, de tal maneira que é possível reconhecer nelas também acontecimentos da história recente. As epígrafes giram ao redor da contemporaneidade da Venezuela do século XXI, uma contemporaneidade submergida em uma crise social, política, econômica e humanitária, que fez que cinco milhões de venezuelanos fossem obrigados a ser “caminhantes”,11 11 Assim o registram os dados oferecidos pela OEA disponíveis em seu informe de 2019. Disponível em: <http://www.oas.org/documents/spa/press/OEA-informe-migrantes-venezolanos-espanol.pdf>. Acesso em: 25 maio 2020. a fugirem, deslocando-se como Catalina, a personagem. Em síntese, as epígrafes conectam o passado com o presente, a história da fuga de Catalina com a história da emigração venezuelana chamada “diáspora bolivariana”.

A recorrência do fragmentário, da citação, do recorte nos textos de Benjamin − aspecto que também está nos romances − nos revela uma dinâmica de interpretação orientada à multiplicidade e à abertura do sentido. A poética do fragmentário, do segmentado e do onírico mostra como seu pensamento tende a configurar uma forma de fazer história, que tem essas mesmas características. Insisto com Benjamin: a história se faz a partir da ruína e também olhando para trás, à procura de rastros, como o fazem as escrivãs dos romances.

A ideia de escrever no vento, presente no título do romance de Torres, é potencializada, no romance, com a imagem da escultura do anjo que aparece na capa. Vou ressaltar alguns aspectos pontuais dessa imagem que revelam estratégias de leitura para adentrarmos no romance. A fotografia pertence a uma escultura situada em um cemitério: é uma escultura-tumba, uma escultura-túmulo.

Trata-se de uma figura de mármore, branca, realista, localizada num cemitério, como explica Torres. Pode ser vista como um vigia da morte, um vigia dos restos, do túmulo, da tumba, uma lembrança tangível do passar do tempo. A mão esquerda do anjo se eleva como tentando palpar o ar, o vento. Tem também a cabeça inclinada e os olhos fechados: todo esse gesto expressa o esforço de interpretar o vento que a mão está apalpando. Apalpa o vento e, simultanea- mente, aponta ao mundo das ideias. Das costas do anjo sai uma asa, pequena, cada uma das penas delicadamente talhada. São fortes, rígidas, potentes, à espera do momento adequado para decolar, à espera de que a mão descubra o momento ideal para partir, o momento em que o vento esteja a seu favor.

O jogo ficcional de declarar o fracasso da sobrevivência do texto e, em consequência, da memória, transparece com a frase acima citada: “Eu sei que quando os séculos passarem nada importará e eu me tornarei a escrivã do vento” (Torres, 2013_______. La escribana del viento. Caracas: Alfa, Biblioteca Ana Teresa Torres, 2013. n.9., p.397).12 12 “Sé que cuando pasen los siglos nada tendrá importancia y me convertiré en la escribana del viento.” No caso de La escribana..., dialoga como o convencimento de Breta, em A república... de que a imagem do Brasil é insondável, como a do livro que ainda não está escrito, explicitada no final do romance quando Breta declara que vai começar a escrever um livro, com as histórias que acabou de escutar. Em ambos os casos, esse posicionamento demonstra que os mesmos textos funcionam como um rastro, no sentido de que são um signo, um discurso não intencionado − como já expliquei, um signo não endereçado a ninguém. Essa lógica potencializa a abertura do sentido: o leitor é o intérprete, o recuperador dos rastros, o que toma a decisão de endereçar o texto, de destiná-lo a alguém e para algo. Os textos nascem também sendo uma ruína, nascem sendo o rastro de algo que tem que ser compreendido, reelaborado em contextos posteriores. Reconfigurando o sentido − como falei citando Paul Ricœur (2007RICŒUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François Campinas: Editora da Unicamp, 2007., p.74) − “sobre a base dos rastros deixados”.

Em outras palavras, essa intenção de perdurar no tempo, existente também em A república dos sonhos, é exposta pela insistência na escrita do livro, mas também se revela como uma empreitada que “fracassa”. A aparência, no início, é de que estamos lendo um livro já acabado, mas, no final do romance, Breta nos revela que só lemos uma espécie de rascunho ou uma “coleção” de materiais que servirão para a escrita do verdadeiro livro - que ainda não foi escrito -, que será “escrito amanhã”. Isso somente aparece na cena final do romance, quando Breta diz: “sento-me com eles [com Venâncio e com Madruga] não sei por quanto tempo. Apenas sei que amanhã começarei a escrever a história de Madruga” (Piñon, 1984PIÑON, N. A república dos sonhos. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.761). Esse jogo ficcional, além de interrogar o leitor sobre o que acabou de ler, também está em harmonia com a impossibilidade de configurar uma imagem do Brasil, presente ao longo de todo o romance.

Assim, uma ficção do despojo aposta por uma aventura fracassada ou por uma aventura impossível, e inconclusa. Estamos em presença de uma outra forma de contar a história − para falar com Benjamin −, a partir de uma outra perspectiva, a perspectiva dos vencidos, dos que têm que mentir para sobreviver, ou os que tem que narrar sem palavras. Isso que é elaborado nos romances, a partir da falta e também da presença em ausência − do rasto/resto/lixo − deixa ainda mais claro como esses romances de Ana Teresa Torres e de Nélida Piñon se configuram como uma ficção do despojo, são narrações atravessadas por uma estética da carência.

Referências

  • ASSMANN, A. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Trad. Paulo Soethe. São Paulo: Editora Unicamp, 2006.
  • BENJAMIN, W. Magia e técnica arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasilense, 1987a. Obras escolhidas, v.1.
  • _______. Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasilense, 1987b. Obras escolhidas, v.2.
  • _______. Passagens de Walter Benjamin. Trad. Irene Aron e Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
  • CÁMARA, M. et al. (Org.) Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
  • DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
  • GAGNEBIN, J. M. Walter Benjamin: os cacos da história. Trad. Sônia Salzstein. São Paulo: Brasilense, 1993.
  • _______. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.
  • PIÑON, N. A república dos sonhos. Rio de Janeiro: Record, 1984
  • _______. Aprendiz de Homero. Rio de Janeiro: Record, 2008.
  • RAVETTI, G. Narrativas performáticas. In: Performance, exílio, fronteira, errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Post-lit UFMG, 2002. pp.48-67.
  • RICŒUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
  • TORRES, A. El escritor ante la realidad política venezolana. In: INTI, Venezuela: literatura de fin de siglo. No. 37/38, pp. 37-45 1993
  • TORRES, A. T. A benefício de inventario. Caracas: Memórias de Altagracia, 2000.
  • _______. La escribana del viento. Caracas: Alfa, Biblioteca Ana Teresa Torres, 2013. n.9.

Notas

  • 1
    “No participo de la concepción de la literatura como ‘reino intemporal’, en el cual el escritor aparece dotado de una condición divina que lo sitúa por encima de sus circunstancias, y pienso que de alguna manera todo escritor es escrito por su tiempo”.
  • 2
    “simultaneidad del tempo e instantaneidad de los acontecimientos, otra forma de situarnos, de pensar y de sentir.”
  • 3
    ¿Cuál es el efecto de esa manera de transcurrir el tempo? En otras palabras ¿Cuál es el efecto que me interesa como escritora? Es un efecto de despojo.
  • 4
    La Historia es ese tejido social que atraviesa la reproducción y creación cotidiana de la vida que ocurre todos los días.
  • 5
    “El novelista se sitúa como el testigo angustiado de un desmoronamiento semántico, como si temiera la pérdida, no de lo ocurrido que pertenece al pasado, sino, precisamente, del mismo presente despojado.”
  • 6
    “No debiera arrancarse a la gente de su tierra o país, no a la fuerza. / La gente queda dolorida, la tierra queda dolorida”. Juan Gelman
  • 7
    “Dios mío, ten piedad del errante, / pues en lo errante está el dolor”. Heberto Padilla.
  • 8
    “El exiliado deplora las patrias. Rehúye escisiones. Se encamina hacia el instante”. Rafael Cadenas.
  • 9
    “El viaje del niño es volver a la tierra natal, la nostalgia que hace al hombre un ser que tiende a volver al punto de partida para apropiarlo y morir allí. El viaje de la niña es más lejos, a lo desconocido, a inventar”. Hélène Cixous.
  • 10
    “Para recordar / tuve que partir”. Cristina Peri Rossi.
  • 11
    Assim o registram os dados oferecidos pela OEA disponíveis em seu informe de 2019. Disponível em: <http://www.oas.org/documents/spa/press/OEA-informe-migrantes-venezolanos-espanol.pdf>. Acesso em: 25 maio 2020.
  • 12
    “Sé que cuando pasen los siglos nada tendrá importancia y me convertiré en la escribana del viento.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2022
  • Aceito
    21 Mar 2023
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