DOSSIÊ CRIME ORGANIZADO
Organizações criminosas e Poder Judiciário
Flávio Oliveira Lucas
Introdução
O ENFRENTAMENTO da criminalidade organizada é tema que compõe a ordem do dia não somente no cenário jurídico (nacional e internacional), como, também, preenche boas páginas dos noticiários midiáticos em nosso país, de forma a evidenciar como o tema vem atraindo a opinião não apenas de especialistas, mas da população em geral.
De certa maneira, essa atenção que é dispensada ao tema acaba por fazer que ele seja alvo de cobiça por parte daqueles que, de uma forma ou de outra, almejam obter algum proveito político com a sua exploração. Assim, é comum observarmos o aparecimento instantâneo de pessoas que se intitulam "especialistas" em segurança pública, em especial no combate ao Crime Organizado; na maior parte dos casos, o "especialista" acaba propondo soluções milagrosas que mais parecem ter sido reveladas por mensageiro divino à sua pessoa.
Por detrás dessa exploração política de assunto tão sério está o sentimento de insegurança e medo que assalta a população, que se vê acuada por força de ações violentas praticadas por grupos criminosos, maciçamente noticiadas pela mídia. Ainda que tais ações sejam, de forma pontual, reprimidas pelos órgãos vinculados à repressão criminal, não se percebe um efeito concreto capaz de diminuir a sensação de insegurança antes apontada.
O presente ensaio visa identificar as espécies de organizações criminosas conhecidas, o setor em que operam e suas principais características, além dos problemas enfrentados pelas agências de prevenção e repressão, em especial o Poder Judiciário, quando do enfrentamento do Crime Organizado no Brasil.
Espécies de criminalidade organizada
Levando em consideração a finalidade que inspira suas atuações, seria possível vislumbrar duas espécies de organizações criminosas: as que exercem suas atividades ilegais com vistas a alcançar fins políticos e/ou ideológicos, e aquelas que, tal qual uma empresa, realizam ações ilícitas ao objetivo de obter lucro. Em denominação própria do autor, poderíamos chamar as primeiras de organizações criminosas "ideológicas", e as do segundo tipo, de organizações criminosas "empresariais". Tais espécies, contudo, não raras vezes, acabam se intercomunicando como decorrência de uma atitude cada vez mais "globalizada" do Crime Organizado, pois, mesmo quando visam tomar territórios, desmembrá-lo ou tomar o poder político de um país, as organizações criminosas precisam de verbas que financiem seus projetos.
As organizações criminosas ideológicas constituem espécie pouco estudada. Quando a mídia, o povo e até mesmo os estudiosos do fenômeno sob análise se referem ao "Crime Organizado", dificilmente estão querendo se referir a elas. Realmente, a expressão "Crime Organizado" por vezes substituída pela expressão "máfia" foi incorporada ao vocabulário cotidiano como forma de expressar um grupo que explora uma ramo de atividade ilícita, sempre com vistas à obtenção de lucro, ou seja, a referência é quase sempre voltada àquelas de tipo empresarial.
Essas, tal como uma empresa normal, atuam de modo a potencializar ao máximo o lucro. A diferença é que, enquanto as empresas o procuram por meio da exploração de uma atividade lícita, as organizações criminosas buscam o lucro mediante atividades ilícitas em si, tal como o tráfico de drogas e de pessoas.
Conceito
O primeiro problema que se apresenta para o combate ao Crime Organizado é definilo, o que, longe de ser uma questão meramente acadêmica, adquire importantes conseqüências práticas, a começar pelo fato de que a legislação brasileira prevê determinados métodos mais invasivos de atuação policial para as organizações criminosas, tais como a infiltração de agentes policiais, a escuta ambiental e a ação controlada artigo 2º da Lei n.9.034/95 , métodos esses não admitidos para a investigação de crimes não praticados pela criminalidade organizada.
Nesse sentido, dispõe o artigo 1º da Lei n. 9.034/95, com redação fornecida pela Lei n.10.217/01: "Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo".
A redação original da lei somente fazia referência aos crimes praticados por quadrilha ou bando, pelo que entendiam alguns (cf. Willian Douglas in Gomes et al., 2000, p.48-56) que a expressão "Crime Organizado" possuía o mesmo sentido penal do que "quadrilha ou bando", em que pese posição contrária que entendia que às associações criminosas rudimentares não seria aplicável a lei.
A Lei n.10.217/01 introduziu no artigo 1º a expressão "ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo", dando a atual redação à norma. A vinda da lei impôs à doutrina uma busca do significado jurídico do que seja o "Crime Organizado", não se podendo confundilo com o crime de quadrilha ou bando. Consoante ressaltado antes, há importância prática nessa busca, já que há instrumentos operacionais de investigação, bem como institutos que somente são cabíveis para as situações citadas na lei. Em que pese isso, a já citada lei não definiu o que entende por "organização criminosa".
Diante da omissão legal, poder-se-ia argumentar com a possibilidade de a doutrina definila, o que ofenderia o princípio da legalidade, já que "é impossível extrair de qualquer consideração doutrinária, por mais coerente e fundamentada que seja, requisitos de definição de condutas delituosas que não estejam previamente contidos no standard normativo, no tipo legal de crime" (ibidem).
Percebendo esse grave problema, a Comissão responsável pela elaboração do anteprojeto de reforma da parte especial do Código Penal, presidida pelo saudoso ministro Evandro Lins e Silva, propôs a definição de um verdadeiro crime de organização criminosa, nos moldes do que é feito pela legislação italiana, que define o crime de associação mafiosa, nos seguintes termos:
Art. 290. Constituírem duas ou mais pessoas grupo ou associação, com o fim de cometer crimes e, mediante grave ameaça a pessoa, violência, corrupção ou fraude, neutralizar a eficácia da atuação de funcionários públicos:
Pena reclusão, de quatro a oito anos.
Como se sabe, contudo, a aprovação do anteprojeto não evoluiu no Congresso Nacional.
A Convenção de Palermo,1 entretanto, devidamente integrada à legislação brasileira, definiu o que é organização criminosa, considerando ser essa o "grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o fim de cometer infrações graves, com a intenção de obter benefício econômico ou moral".
Dessa forma, queiramos ou não, critiquemos ou não o conceito legal, o fato é que os obstáculos que poderiam ser alegados para a aplicação da legislação de combate ao Crime Organizado, no Brasil, foram devidamente superados a partir do ano 2003.
Registre-se que o conceito da Convenção de Palermo acaba por incorporar a finalidade que norteia a atuação da organização criminosa, qual seja, a de obtenção de proveito econômico ou moral, sendo de confirmar, assim, a afirmação antes feita de que quando se usa a expressão "Crime Organizado", usualmente, se a relaciona a exploração de atividades ilegais com vistas à obtenção de lucro econômico.
Características
Segundo Gomes & Cervini (1997), para que se possa falar em Crime Organizado, seria necessário que a organização obedecesse aos mesmos pressupostos da quadrilha ou bando,2 e pelo menos mais três dos a seguir citados: a) previsão de acumulação de riqueza; b) hierarquia estrutural; c) planejamento "empresarial"; d) tecnologia sofisticada; e) divisão funcional de atividades; f) conexão estrutural com o Poder Público; g) oferta de prestações sociais; h) divisão territorial das atividades ilegais; i) alto poder de intimidação; j) capacidade de realizar fraudes difusas; l) conexão local ou internacional com outras organizações.
Consoante informa Oliveira (2004),
o Federal Bureau of Investigations (FBI) define crime organizado como qualquer grupo que tenha uma estrutura formalizada cujo objetivo seja a busca de lucros através de atividades ilegais. Esses grupos usam da violência e da corrupção de agentes públicos. Já a Academia Nacional de Polícia Federal do Brasil enumera 10 características do crime organizado: 1) planejamento empresarial; 2) antijuridicidade; 3) diversificação de área de atuação; 4) estabilidade dos seus integrantes; 5) cadeia de comando; 6) pluralidade de agentes; 7) compartimentação; 8) códigos de honra; 9) controle territorial; 10) fins lucrativos.
Winfried Hassemer afirma que dentre as características de atuação das organizações criminosas estão a corrupção do Judiciário e do aparelho político [Ziegler, 2003, p.63]. Tokatlian (2000: p. 58 a 65) constata que na Colômbia as organizações criminosas atuam de modo empresarial, procuram construir redes de influência, inclusive com as instituições do Estado, e, conseqüentemente, estão sempre em busca de poder econômico e político.
Mingardin (1996: p. 69) aponta quinze características do crime organizado. São elas: 1) práticas de atividades ilícitas; 2) atividade clandestina; 3) hierarquia organizacional; 4) previsão de lucros; 5) divisão do trabalho; 6) uso da violência; 7) simbiose com o Estado; 8) mercadorias ilícitas; 9) planejamento empresarial; 10) uso da intimidação; 11) venda de serviços ilícitos; 12) relações clientelistas; 13) presença da lei do silêncio; 14) monopólio da violência; 15) controle territorial...
Do conjunto das características aqui listadas, é de observar, não sem alguma curiosidade, que, de todas as fontes, a única que não listou a conexão com o Poder Público como forte característica da criminalidade organizada foi a Polícia Federal brasileira.
Seja como for, o fato é que de todas as características listadas, é de destacar, sem dúvida, a conexão com o Poder Público como aquela que mais evidencia os traços da criminalidade verdadeiramente organizada. Além dela, a capacidade de realização de fraudes difusas, o alto grau de operacionalidade e a constante mutação são características que ressaltam nas organizações criminosas, as quais procuraremos esmiuçar logo a seguir.
Conexão com o Poder Público
Durante muito tempo se concebeu o Crime Organizado como uma tentativa de o grupo criminoso cunhar um "Estado Paralelo".
Sob inspiração dos filmes de Hollywood, imagina-se que o Crime Organizado dispõe de regras próprias, execuções rápidas e violentas e julgamentos internos, tudo de forma a substituir os três poderes estatais, de criar as leis, executá-las e julgá-las.
Hoje em dia, os grupos criminosos que assim atuam, pode-se dizer, constituem exceções,3 porquanto é por meio da infiltração de agentes nas estruturas estatais e pela cooptação de agentes públicos que o Crime Organizado busca neutralizar as ações repressivas do Estado, não sendo demais afirmar que tais técnicas, em boa medida, substituíram a violência e a intimidação como método primário de atuação dos grupos criminosos organizados.4
Essa característica não passou despercebida pela argúcia de Hassemer (1993, p.85 ss), segundo o qual
a criminalidade organizada não é apenas uma organização bem feita, não é somente uma organização internacional, mas é, em última análise, a corrupção da legislatura, da Magistratura, do Ministério Público, da Polícia, ou seja, a paralisação estatal no combate à criminalidade... é uma criminalidade difusa que se caracteriza pela ausência de vítimas individuais, pela pouca visibilidade dos danos causados bem como por um novo modus operandi (profissionalidade, divisão de tarefas, participação de "gente insuspeita", métodos sofisticados etc.). Ainda mais preocupante, para muitos, é fruto de uma escolha individual e integra certas culturas...
No mesmo sentir, e ainda mais enfático, bem anota Gomes et al. (2000, p.8) que a
força e a violência são meios que não interessam, a princípio, pois acabam por atrair indesejável atração da imprensa, de parte das autoridades e da própria população, que sempre exerce influência nas iniciativas dos políticos. Se ambas, de alguma forma, possuem inegável aptidão para intimidar, por outro lado, podem gerar repulsa, revolta imponderável e conseqüente ação inesperada e contrária. Assim, é muito mais adequado que as organizações criminosas adotem medidas menos drásticas, optando por interferências mais sutis e discretas, em prol da manutenção de sua operacionalidade. Agredir e matar, até mesmo sob o prisma jurídico-penal, acaba resultando em materialidade, um corpo de delito, a existência de um cadáver ou de uma pessoa lesada, ao passo que a infiltração, a troca de favores, o oferecimento de vantagens e outras técnicas mais amenas findam por ter o mesmo efeito prático, sem deixar pistas tão aparentes.
Logo, a conexão direta ou indireta com o Estado é, sem dúvida, a principal característica do Crime Organizado, e, pode-se dizer sem exagero, é o principal modo de operacionalizar a sua atuação, já que somente infiltrando-se nos governos, nos parlamentos, nas administrações policiais e nos palácios de justiça, de modo a paralisar o braço que teoricamente deveria golpeá-lo, é que o Crime Organizado adquirirá real impunidade.5
Criminalidade difusa
Outra forte característica do Crime Organizado é a constatação de que a maioria de suas ações ilícitas cotidianas não apontem, de modo direto, para a existência de uma vítima individual. Deveras, quando se realizam o tráfico de drogas, a lavagem de dinheiro, o contrabando de cigarros, o tráfico de armas, a corrupção etc. não se identifica imediatamente uma pessoa que tenha sido lesada no exato momento da realização de tais ações.
Evidentemente que, se levarmos em consideração um espaço de tempo maior, chegaremos à inevitável conclusão de que tais ações criminosas são muito mais lesivas para a sociedade e para o Estado do que as que imediatamente prejudicam alguém que foi vítima de um furto, um roubo, um estelionato etc., posto que interferem na arrecadação de tributos pelo Estado, na manutenção da paz e da ordem pública, na economia, na livre concorrência etc.
É fato, entretanto, que essa característica aliada à cultura, particularmente observada no Brasil, de se tratar as coisas públicas como alheias ou indiferentes à situação social que vivemos acaba contribuindo para que, de certa, forma, essas condutas sejam pouco recriminadas pela população em geral, o que acaba por facilitar tanto a prática criminosa quanto a circulação do macrodelinqüente nos meios sociais. A criminalidade difusa é, assim, transindividual, e, como tal, indivisível, em que as vítimas são pessoas indeterminadas. Trata-se de aspecto importante em razão de que, em não havendo vítimas diretas, os prejuízos não são visíveis imediatamente, nem sequer em médio prazo. Assim, quando se descobre a ocorrência criminosa, o dano é imenso e quase sempre irreparável.
Eis que, até o presente momento, a recuperação pelo Poder Público de produtos auferidos pelas organizações criminosas com a realização das práticas ilícitas é medida incipiente, máxime quando aqueles se encontram no exterior. Certo é, contudo, que a criminalidade organizada vem procurando atuar em áreas em que o controle estatal é precário, como no sistema de previdência social, no qual já foram detectadas várias fraudes, sempre com a colaboração ou a realização de grupos criminosos infiltrados no aparato estatal, com relevantes prejuízos à coletividade (vítimas difusas) e com índice mínimo de recuperação.
Nesse ponto, parece desnecessário frisar que o dano causado por tais organizações criminosas é elevadíssimo, salientando-se, por pertinente, que, não obstante, permanecem eles, por muito tempo e por vezes para sempre,6 descobertos. E tal se dá em razão das próprias características da criminalidade organizada, porquanto o grupo criminoso, consoante frisado antes, atua com o apoio das pessoas que o deveriam estar combatendo, isto é, dos funcionários públicos devidamente corrompidos, cooptados ou infiltrados. A inexistência de vítimas diretas, que sentiriam e acusariam o prejuízo, dificulta também a apuração e identificação da prática do delito, porquanto o poder de intimidação da criminalidade organizada, aliado à inexistência de interesse específico de vítimas que tenham suportado danos são causas importantes desse processo de não-identificação imediata da prática delitiva.
Mutação
Considerando que a organização criminosa possui tentáculos no interior dos órgãos estatais voltados justamente à apuração dos crimes por ela praticados, e, além disso, que esses não possuem vítima individuais e são realizados de forma a não deixar vestígios que permitam ligá-los aos seus verdadeiros autores, é natural que se compreenda uma dificuldade enorme que se tem, máxime nos órgãos policiais, de enfrentar as organizações criminosas. Realmente, a apuração dos delitos passa por um trabalho desgastante, com risco pessoal aos envolvidos na investigação, com alta probabilidade de "vazamento" de informações. Com todas essas dificuldades, são necessários longos períodos de investigação para que se consiga "mapear" e levantar as ações desses grupos criminosos, sendo certo que, para tanto, fundamental seria que o Estado dispusesse de verba suficiente para bem aparelhar sua polícia, o que, como sabemos, não ocorre. Como se não bastasse, percebe-se que os métodos de atuação dos grupos criminosos organizados, constantemente, são alterados de forma propositalmente voltada a não permitir que haja uma familiarização com seus métodos e formas de atuar. Para tanto, utilizam-se variadas empresas de fachada, sempre alterando-as com o passar do tempo; vários "laranjas"; várias contas bancárias diferentes etc.
Não passa muito tempo quando o Estado já poderia começar a se familiarizar com tais iniciativas , trocam-se as contas, as empresas e até as pessoas que exerciam funções determinadas e que são "transferidas" para outras, gerando, assim, uma outra característica desses grupos, nos quais há uma fungibilidade das pessoas que ocupam posições não-estratégicas, subalternas, dentro do grupo. Quando tal ocorre, uma investigação que já estava em avançado estágio com o natural desgaste do Estado e dos agentes públicos que até então já haviam atuado torna-se prejudicada em face da alteração do modus operandi da organização, fato que muito contribui para dificultar o fiel levantamento da estrutura criminosa.
Realidade brasileira
Malgrado não seja posição unânime, parece-nos que, no Brasil, nenhum grupo criminoso atingiu a complexidade de grupos criminosos organizados identificados alhures, o que não impede o reconhecimento de que o Crime Organizado já possui atuação em todo o território nacional brasileiro. Está presente e com força assustadora. É possível notar, muito claramente, a infiltração que o Crime Organizado fez operar, mais evidente em alguns Estados da federação do que em outros. De certa maneira, o Estado brasileiro assiste a tudo de forma passiva, não sendo demais lembrar que já houve casos, fartamente noticiados pela mídia, que bem se enquadrariam na hipótese de intervenção federal, o que, contudo, não se deu.
Seja como for, o fato é que a realidade brasileira é bem propícia para o crescimento, entre nós, de grupos criminosos tão ou mais complexos dos que os existentes na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia.
A começar, porque há uma enorme facilidade em se constituir empresas, muitas das quais nunca operaram realmente sem que seja perturbadas por isso. Soma-se a isso o fato de que os instrumentos e os órgãos de combate à lavagem de dinheiro são absolutamente insuficientes e estatisticamente inoperantes, sendo de justiça observar, contudo, um crescente esforço para alterar esse quadro. Outrossim, a atividade de câmbio clandestina no Brasil é muito pouco reprimida. Eis que em plena luz do dia, sem maiores problemas e aos olhos dos agentes policiais, é possível efetuar troca de moeda, facilitando, com isso, a atuação dos grupos.
Outra realidade brasileira a ser considerada é o fato de ser o Brasil um grande produtor de matérias químicas utilizadas pelos laboratórios na produção das drogas, sendo certo que tais produtos químicos tomam o rumo dos países vizinhos produtores de entorpecente, máxime a Bolívia e a Colômbia. Não por acaso, vem se tornando uma realidade inegável que o Brasil, hoje em dia, é refúgio seguro para alguns capos do narcotráfico colombiano e europeu, até mesmo porque está situado num ponto estratégico de ligação do continente americano ao europeu.
Medidas de combate ao Crime Organizado
Primeiramente, é mister observar que nenhuma das medidas sugeridas poderá ser implementada sem que haja uma verdadeira vontade política de alterar o quadro atualmente existente. Qualquer medida passa, necessariamente, por possibilitar um distanciamento entre os órgãos estatais e seus funcionários, dos grupos criminosos organizados. Ou seja, a promiscuidade entre o Crime Organizado e o Estado deve ser combatida como inimiga principal nesse particular. Feita a observação, passamos a analisar os instrumentos legais para tanto.
Inicialmente, a própria Lei n.9.034/95 previu alguns meios investigatórios especificamente voltados à repressão das organizações criminosas e que não são admitidos para os crimes em geral. Tais medidas, que poderíamos dizer excepcionais, estão previstas no artigo 2º da lei, e a do inciso III ("acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais") não importa na desnecessidade da prévia autorização judicial, conforme vem decidindo o STF. Contudo, em relação ao sigilo bancário, observar que a LC 105/01, em seu artigo 2º, § 1º, prevê a possibilidade do afastamento de sigilo pelas autoridades administrativas do Banco Central (Bacen), enquanto o artigo 6º autorizou o Fisco a afastar os sigilos bancários e fiscais de pessoa sobre a qual recai suspeita de integrar alguma organização criminosa.
De qualquer maneira, entende-se que o Ministério Público não pode afastar sigilo diretamente , o que, sem dúvida, constitui um entrave ao enfrentamento do Crime Organizado que prima pela celeridade de suas ações, incluindo aí aquelas voltadas a permitir que o capital obtido com a prática do crime venha a adquirir ares de legalidade, impondo, pois, que os órgãos oficiais de repressão também adquiram rapidez em suas ações de enfrentamento. O paradoxo é maior ainda quando se admite que as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) possam afastar qualquer sigilo, à exceção da interceptação telefônica, diante da cláusula de reserva constitucional nesse ponto (ver artigo 58, § 3º e no inciso XII, do artigo 5º, ambos da CF/88).
Surge assim, como entrave ao combate do Crime Organizado, a questão dos sigilos. Interessante, nesse ponto, é a afirmação feita por Hans Jurgen Fatkinhauer (apud Ziegler, 2003, p.255) de que "os senhores do crime organizado são hoje em dia os únicos autênticos cosmopolitas. São os cidadãos do mundo". Realmente, as fronteiras detêm a ação dos juízes, mas não a dos criminosos. Observa-se, assim, que o Estado enfrenta como barreira primeira sua própria limitação territorial, e, por conseguinte, a limitação de sua soberania, enquanto ao crime organizado, que tem na transnacionalidade uma característica forte, as fronteiras não existem.
É possível sustentar, com Gomes et al. (2000, p.15-20), quando se afirma que, malgrado a legislação preveja medidas para o combate ao Crime Organizado, nenhuma delas chegará próximo da eficácia, caso se ignore a relevante característica da conexão do Crime Organizado com o Poder Público. Tanto que a luta contra a criminalidade organizada não seria tão difícil, caso não houvesse a simbiose entre esse e o Poder Público.7 Assim, o primeiro passo parece ser estabelecer uma medida educativa, de forma que o Estado ocupe os vazios existentes ao longo de décadas de descaso com educação e política econômica voltadas a atingir os ideais constitucionais. Nesse sentido, não se pode, seriamente, pensar em erradicar o Crime Organizado, se em determinados espaços de seu território os agentes públicos não possuem livre-trânsito, como nas favelas, abrindo-se espaço para que o Crime Organizado passe a exercer a força que o Estado, por omissão, não exerce. A formação de uma consciência cidadã, fundada no respeito à dignidade da pessoa humana, é medida, pois, imperiosa.
Outra medida urgente seriam a prevenção e a repressão a respeito da simbiose entre o Estado e o Crime Organizado. A prevenção passa, inicialmente, por uma maior atenção por parte do Estado no recrutamento de agentes, em especial aqueles de quem se espera uma atuação firme no combate ao Crime Organizado, de forma a evitar as infiltrações. Após, deve o Estado ser rigoroso no acompanhamento de tais agentes públicos, seja durante o período de "estágio probatório" seja durante toda a vida funcional desses. Sinais exteriores de riqueza, ainda que não declarados ao fisco, por exemplo, devem ser dura e rapidamente combatidos, investigados, e, se for o caso, punidos. Solução importante para tanto seria viabilizar a criação de um tipo penal, como ocorre em outros países, como a Espanha, de "enriquecimento ilícito de funcionário público", no qual não seria necessário comprovar nada mais do que a inviabilidade de o funcionário possuir o patrimônio com os vencimentos decorrentes de seu cargo. Outra medida importante seria a criação (e observância) de um código de ética de todo o funcionalismo público, de forma a impedir que terceiros oferecessem ou custeassem agrados, presentes, viagens etc. Fundamental, e fatos recentes demonstram isso, seria controlar com maior rigor as doações para campanhas políticas, largo canal para a corrupção de agentes públicos e de lavagem de dinheiro.
Já no plano repressivo, faz-se mister a criação de um setor no aparelho estatal de contra-inteligência, voltada a impedir as infiltrações. Além disso, a mudança de mentalidade dos órgãos repressivos é fundamental para impedir que esses sejam acometidos de espírito corporativista no caso de identificação de agentes públicos que tenham, ainda que de forma eventual, se aliado àqueles que deveriam ser combatidos por eles.
Notas
Referências bibliográficas
GOMES, A. et al. Crime Organizado e suas conexões com o Poder Público. Niterói: Impetus, 2000.
GOMES, L. F.; CERVINI, R. Crime Organizado. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
HASSEMER, W. Três temas de Direito Penal. Porto Alegre: Fundação Escola Superior do Ministério Público, 1993.
MINGARDI, G. Mesa-redonda sobre Crime Organizado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, n.8, outubro-dezembro de 1994.
OLIVEIRA, A. Revista Espaço Acadêmico, n.34, março 2004.
ZIEGLER, J. Os senhores do crime. Rio de Janeiro: Record, 2003.
Recebido em 10.9.2007 e aceito em 14.9.2007.
Flávio Oliveira Lucas é juiz federal da 4ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. @ flavio.oliveiralucas@terra.com.br
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Jun 2008 -
Data do Fascículo
Dez 2007