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Sala de aula virtual e Aceleração Social moderna no contexto Covid-19

Virtual classroom and modern Social Acceleration in the Covid-19 context

Clase virtual y Aceleración Social moderna en el contexto Covid-19

Resumo

A investigação busca responder: pelas percepções de professores e estudantes brasileiros de uma rede educacional privada, a sala de aula virtual e suas implicações estimularam o adensamento de experiências e episódios de ação, de modo a impactar a organização pessoal do tempo? A partir da teoria da Aceleração Social e por meio de um Survey inédito, com registros de validade e confiabilidade, objetiva indicar, em 25 estados brasileiros e no Distrito Federal, as percepções de 32.326 estudantes e 6.423 professores do 5.º ano do Ensino Fundamental ao 3.º ano do Ensino Médio acerca da organização pessoal do tempo no contexto da sala de aula virtual durante a pandemia da Covid-19. Categorizada como uma pesquisa emoldurada pela experimentação educacional, indicou que os participantes não adensaram episódios de ação ‒ portanto, não tiveram dificuldades quanto a organizar o tempo no contexto escolar pandêmico ‒ e mostrou algumas evidências de que o tempo da escola é diferente do tempo fora dela.

Aceleração Social; Survey; Experimentação Covid-19; Tempo Escolar

Abstract

This investigation seeks to answer the following question: did the virtual classroom and its implications stimulate thickening of experiences and episodes of action, to impact on the personal organization of time, from the perceptions of Brazilian teachers and students from a private educational network? Based on the Social Acceleration theory and through an unpublished Survey, with validity and reliability records, the research aims to indicate the perceptions of 32,326 students and 6,423 teachers from 5th grade of Elementary School to 3rd grade of High School in 25 Brazilian states and in the Federal District about the personal organization of time in the context of the virtual classroom during the Covid-19 pandemic. Categorized as a research framed by educational experimentation, it indicated that participants did not densify action episodes – therefore, they had no difficulties about organizing time in the pandemic school context – and showed some evidence that school time is different from time out of school.

Social Acceleration; Survey; Covid-19 Experimental Study; School Time

Resumen

La investigación busca responder: ¿Las percepciones de los profesores y estudiantes brasileños de una red educativa privada, el aula virtual y sus implicaciones estimularon la profundización de experiencias y episodios de acción, de modo a impactar la organización personal del tiempo? A partir de la teoría de la Aceleración Social y por medio de un Survey inédito, con registros de validez y confiabilidad, objetiva indicar, en 25 estados brasileños y en el Distrito Federal, las percepciones de 32.326 estudiantes y 6.423 profesores del 5º año de la Enseñanza Primaria al tercer año de la Enseñanza Media acerca de la organización personal del tiempo en el contexto de la clase virtual durante la pandemia de Covid-19. Categorizada como una investigación enmarcada por la experimentación educativa, indicó que los participantes no adentraron episodios de acción por lo tanto, no tuvieron dificultades en organizar el tiempo en el contexto escolar pandémico y mostró algunas evidencias de que el tiempo de la escuela es diferente del tiempo fuera de ella.

Acceleración Social; Survey; Experimentación; Tiempo Escolar

1 Introdução

Com base na teoria da Aceleração Social de Rosa (2019)ROSA, H. Aceleração: a transformação das estruturas temporais da modernidade. São Paulo: Unesp, 2019., foi elaborada uma pesquisa empírica a fim de buscar compreender se a Educação escolar também se encontra conectada com o aumento da velocidade presente na atual dinâmica das relações sociais. Desse modo, a partir da percepção de professores e estudantes de uma rede educacional privada, este artigo relaciona a capacidade de organização do tempo em um dos momentos mais desafiadores da instituição escola dos últimos anos ‒ o contexto pandêmico da Covid-19 ‒ e a teoria da Aceleração Social, a partir da sala de aula virtual, circunstancialmente autorizada em função da emergência sanitária.

Para compor essa relação, associam-se as premissas da teoria mencionada com uma pesquisa empírica aplicada por meio de um Survey , inédito, a 32.326 estudantes do 5.º ano do Ensino Fundamental ao 3.º ano do Ensino Médio e 6.423 professores que lecionam no mesmo intervalo de séries para, assim, responder à pergunta: pelas percepções de professores e estudantes brasileiros de uma rede educacional privada, a sala de aula virtual ‒ modelo utilizado devido à emergência da Covid-19 ‒ e suas implicações estimularam o adensamento de experiências e episódios de ação, de modo a impactar na organização pessoal do tempo?

A hipótese a ser julgada, e confirmada ou refutada, foi: as salas de aula virtuais distanciaram os alunos e os professores da mecânica espaço-temporal da escola fisicamente constituída, o que afetou a forma de organização pessoal do tempo, permitiu que alunos e professores fossem reféns desse tempo, limitou sua organização pessoal e, assim, endossou a presença na escola das bases conceituais da teoria da Aceleração Social de Rosa (2019)ROSA, H. Aceleração: a transformação das estruturas temporais da modernidade. São Paulo: Unesp, 2019..

As etapas deste artigo sistematizam a pesquisa empírica realizada, tipo Survey , apoiada na experimentação educacional, que será elucidada neste ordenamento: 1. A Aceleração Social em Hartmut Rosa; 2. Trajeto metodológico a partir da experimentação educacional; 3. Elaboração e validação de um Survey sobre Aceleração Social; 4. A organização do tempo pela percepção de professores e estudantes; e 5. Conclusão: a dessincronização do tempo escolar.

2 A Aceleração Social em Hartmut Rosa

Para responder o que é uma boa vida, Rosa (2022)ROSA, H. Alienação e aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Petrópolis: Vozes, 2022. indica que é justamente pelas reflexões acerca do tempo que é possível chegar próximo a uma resposta. É nesse núcleo que vários autores já se debruçaram para construir suas teorias e discuti-las no contexto social, por exemplo:

[...] “tudo que é sólido se desmancha no ar”; quando Simmel identifica a intensificação de estímulos nervosos e a rapidez das experiências sociais de transformação como características central da vida metropolitana (e, portanto, da Modernidade); quando Durkheim define anomia como provável consequência de mudanças sociais que ocorrem rápido demais para que novas formas de solidariedade e moralidade se desenvolvam; ou, por fim, quando Weber – seguindo Benjamim Franklin – define a ética protestante como uma ética de disciplina temporal rigorosa, que considera a perda de tempo como “o mais mortal de todos os pecados” (Rosa, 2022, p. 16-17).

Essas teorias, além de indicarem o fator tempo como basilar nas suas compreensões, colocam-no como matéria-prima da Modernidade, que, sob as lentes de Rosa (2019ROSA, H. Aceleração: a transformação das estruturas temporais da modernidade. São Paulo: Unesp, 2019., p. 58), nasceu da “[...] emancipação do tempo em relação ao espaço, fato que está no princípio do processo de aceleração”. Para ele, “modernidade diz respeito a acelerar o tempo” (p. 598). Então, para esse autor, o tempo assume um lugar protagonista quando se discute uma boa vida, enquanto o espaço, em função de um tempo acelerado, passa a ser coadjuvante e transitório.

Assim, discutir tempo em um contexto moderno, no sentido de Modernidade, resulta na compreensão e na aplicação da teoria da Aceleração Social, que, por sua vez, emprega uma estabilidade dinâmica para se constituir, pois “[...] uma sociedade é moderna quando apenas consegue se estabilizar dinamicamente; quando é sistematicamente disposta ao crescimento, [...] à aceleração, como meio de manter e reproduzir sua estrutura” (p. 11). Logo, acelerar (se) não indica o meio para alcançar mais coisas, mas, antes, um meio de manter o que já se conquistou. E, para manterem hoje as conquistas de ontem, aqueles que vivem na Modernidade são reféns “[...] de um tempo que é fugaz e gerador de pressão. [...] Nisso jaz a compulsão aceleratória estrutural da Modernidade. Ela tem como consequência o fato de os sujeitos terem de viver mais rápido” (p. 269), por isso, as características da Modernidade são “[...] a cidade mais rápida em contraposição ao campo lento; a prevalência do entendimento móvel sobre uma vida sentimental estática; predominância do individualismo dinâmico” (p. 107-108). Ao que tudo indica, “[...] na Modernidade, tudo parece ficar mais rápido” (Rosa, 2022ROSA, H. Alienação e aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Petrópolis: Vozes, 2022., p. 18).

Essa Aceleração Social é conceituada por Rosa (2019ROSA, H. Aceleração: a transformação das estruturas temporais da modernidade. São Paulo: Unesp, 2019., p. 129) como “[...] aumento de quantidade de tempo. Por quantidade podemos tomar um caminho percorrido, o número de signos comunicados, de bens produzidos [...]”. Ela pode ser categorizada em três formatos: aceleração técnica, aceleração da mudança social e aceleração do ritmo de vida.

Inicialmente, a aceleração técnica exemplifica-se nos efeitos das máquinas e das tecnologias na sociedade moderna, que prometem acelerar processos e otimizar o tempo, ou encurtá-lo. Para Rosa (2019ROSA, H. Aceleração: a transformação das estruturas temporais da modernidade. São Paulo: Unesp, 2019., p. 303), “a função social e o efeito imediato da aceleração técnica consistem em economizar tempo, ou seja, reduzir a demanda temporal de um processo, criando, com isso, recursos temporais livres”. Logo, ao disponibilizar recursos temporais, a aceleração técnica “[...] modifica as medidas de tempo que embasam nossas ações e planos” (p. 253), por justamente se relacionar ao aumento da velocidade “[...] de transporte, comunicação e produção orientados por metas” (Rosa, 2022ROSA, H. Alienação e aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Petrópolis: Vozes, 2022., p. 20). Esses efeitos são visíveis na realidade social, pois “[...] transformam o regime ‘espaço-tempo’ da sociedade, ou seja, a percepção e organização do espaço e do tempo na vida social” (p. 21).

Pode-se afirmar que a aceleração técnica e todos os seus avanços oportunizaram um ser e um estar diferentes no mundo, e que pela participação das máquinas e das tecnologias construíram-se novos regramentos sociais, sobretudo aqueles interseccionados pela economia do tempo e do ganho financeiro atrelado a ela.

A segunda aceleração categorizada por Rosa (2019ROSA, H. Aceleração: a transformação das estruturas temporais da modernidade. São Paulo: Unesp, 2019., p. 152) é denominada de aceleração da mudança social, “[...] um aumento das taxas de expiração de experiências e expectativas orientadoras da ação, e como encurtamento dos intervalos de tempo que [...] podem ser determinados como presente” ou, ainda, contração do presente, que, como consequência, diminui a “[...] duração temporal na qual prevalece uma segurança de expectativa com relação à estabilidade de condições de ação” (p. 221).

Enquanto “[...] os fenômenos da primeira categoria [aceleração técnica ou tecnológica] podem ser descritos como processos de aceleração dentro da sociedade, os dessa segunda categoria poderiam ser classificados como fenômenos da aceleração da própria sociedade” (Rosa, 2022ROSA, H. Alienação e aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Petrópolis: Vozes, 2022., p. 22). Por isso ela está presente no mundo da moda, com a rápida modificação de padrões sugestivos quanto ao que vestir; na modificação de ocupações profissionais intergeracionais de uma família; e nas linguagens sociais adquiridas.

A aceleração da mudança social relaciona-se com a aceleração técnica ‒ pois “[...] a difusão mais rápida de notícias possibilita uma reação mais rápida às mudanças (como deixou claro o desenvolvimento das bolsas e dos mercados financeiros)” (Rosa, 2019ROSA, H. Aceleração: a transformação das estruturas temporais da modernidade. São Paulo: Unesp, 2019., p. 231) ‒, que age “[...] como poderosa mola propulsora para o aumento do ritmo de vida” (p. 612), que, por sua vez, é a próxima aceleração que se categoriza.

A terceira aceleração é a do ritmo de vida, definida pelo

[...] aumento do número de episódios de ação por unidade de tempo, o que é possível observar, em primeiro lugar, pela aceleração imediata desses episódios – simbolizada pelo fast food, speed dating ou funerais drive-through ; em segundo, pela redução de pausas ou períodos de inatividade entre eles; e, em terceiro, por seu adensamento na forma do multitasking , ou seja, da execução simultânea de diversas atividades. Ela leva também a uma fragmentação progressiva das cadeias de ação, tão intensa que os espaços de tempo nos quais atores se concentram em apenas uma atividade se tornam cada vez menores (Rosa, 2019ROSA, H. Aceleração: a transformação das estruturas temporais da modernidade. São Paulo: Unesp, 2019., p. 609).

Assim, a aceleração do ritmo de vida resume-se pelo adensamento de experiências e episódios de ação, de modo que as pessoas perdem de vista o iniciar e o finalizar das atividades ‒ pois elas se misturam, seus limites não são observados com facilidade. Esse resultado pela motivação ou “[...] desejo de fazer mais coisas em menos tempo” (Rosa, 2022ROSA, H. Alienação e aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Petrópolis: Vozes, 2022., p. 27), segundo Rosa (2019ROSA, H. Aceleração: a transformação das estruturas temporais da modernidade. São Paulo: Unesp, 2019., p. 303), “[...] pode ser alcançado ou por meio de emprego de técnicas aceleratórias ou através da redução de pausas e da sobreposição de atividades”.

Aumentar o número de episódios de ação por unidade de tempo se dá basicamente por três estratégias: em primeiro lugar, “[...] o próprio agir pode ser acelerado; em segundo, [...] as pausas podem ser reduzidas ou eliminadas [...] e, em terceiro, diversas ações podem ser feitas ao mesmo tempo” (p. 241). Essas afirmações combinam com o contexto da pandemia da Covid-19, quando professores e estudantes, que conviviam em uma sala de aula para estabelecerem uma relação de ensino e aprendizagem, passaram a se encontrar apenas virtualmente, e simultaneamente realizavam atividades ou assumiam papéis de diferentes responsabilidades.

Portanto, o problema elaborado para ser respondido neste artigo concentra-se na terceira aceleração categorizada e é assim estipulado: pelas percepções de professores e estudantes brasileiros de uma rede educacional privada, a sala de aula virtual ‒ modelo utilizado devido à emergência da Covid-19 ‒ e suas implicações estimularam o adensamento de experiências e episódios de ação, de modo a impactar a organização pessoal do tempo?

Implicaria dizer que, especialmente pela moldura circunstancial da sala de aula virtual na pandemia, provavelmente pelo acúmulo de tarefas ‒ e sobreposição entre elas ‒ e papéis, professores e estudantes estariam desorganizados quanto ao tempo. Então, definiu-se um método, um percurso de pesquisa para responder ao problema elaborado, o que confirmaria ou refutaria sua hipótese. A próxima seção mostra esse percurso metodológico.

3 Trajeto metodológico a partir da experimentação educacional

O que sustenta o método desta pesquisa é a experimentação educacional, termo protagonizado por Azanha (1974AZANHA, J. M. P. Experimentação educacional: uma contribuição para sua análise. São Paulo: Edart, 1974., p. 50), que, em suma, defende: “[...] o que realmente importa é saber quais os resultados que validariam a experiência”. Para validar uma experiência ‒ o que não significa utilizá-la como padrão ou tratá-la como regra absoluta ou homogênea a qualquer participante ou grupo de participantes ‒ é preciso: distanciar-se do senso comum; evitar o abstracionismo pedagógico, que “[...] é um estilo de investigação que desconsidera as determinações específicas da concretude do objeto estudado [...]” (Azanha, 2011AZANHA, J. M. P. Uma ideia de pesquisa educacional. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011., p. 42); apropriar-se de uma teoria e utilizá-la para a construção dos instrumentos de pesquisa; e problematizar, no sentido de definir uma interrogação e buscar a sua resposta, proporcionalmente à mesma atenção dada à confirmação ou não da hipótese.

Para responder a esse quadro conceitual anterior, optou-se por organizar a pesquisa como de: 1. Natureza empírica, a partir de um Survey , caracterizado por Mineiro (2020MINEIRO, M. Pesquisa de Survey e amostragem: aportes teóricos elementares. Revista de Estudos em Educação e Diversidade, Itapetinga, v. 1, n. 2, p. 284-306, out./dez., 2020. https://doi.org/10.22481/reed.v1i2.7677
https://doi.org/10.22481/reed.v1i2.7677...
, p. 286) como “[...] um conjunto de operações para determinar as características de um fenômeno de massa”, o que não significa homogeneizá-lo; 2. Método misto, que oportuniza uma combinação de métodos “[...] predeterminados das pesquisas quantitativas com métodos emergentes das qualitativas [...]” (Dal-Farra; Lopes, 2013DAL-FARRA, R. A.; LOPES, P. T. C. Métodos mistos de pesquisa em educação: pressupostos teóricos. Nuances: Estudos sobre Educação, Presidente Prudente, v. 24, n. 23, p. 67-80, 2013. https://doi.org/10.14572/nuances.v24i3.2698
https://doi.org/10.14572/nuances.v24i3.2...
, p. 70) com o objetivo de garantir “[...] um melhor entendimento do problema pesquisado” (p. 70); e 3. Fenomenologia da percepção, pois “[...] entre mim, que analiso a percepção, e o eu que percebe, há sempre uma distância” (Merleau-Ponty, 2018MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018., p. 73), o que novamente responsabiliza o pesquisador por não tratar as percepções como aplicáveis para todos os públicos, mesmo em ocasião de replicação do Survey em novas pesquisas.

O Survey foi o instrumento escolhido para ser aplicado a um grupo de participantes ‒ professores e estudantes de uma rede educacional privada presente em 25 estados brasileiros e no Distrito Federal. Por se tratar de uma pesquisa com seres humanos, foi aprovada pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de Campinas no Parecer n o 4.749.462, do dia 1 o de junho de 2021.

Após preparação teórica, elaboraram-se dois questionários ( Survey ), um destinado a professores e o outro para estudantes, ambos os grupos relacionados ao segmento de 5. o ano do Ensino Fundamental ao 3. o ano do Ensino Médio. Com o objetivo de verificar o nível de confiança desses instrumentos, antes da sua aplicação oficial eles foram submetidos a 3 etapas de busca de validação: avaliação por juízes; avaliação pelo público-alvo ou semântica; e avaliação da estrutura interna por meio de tratamento estatístico. A próxima seção deste artigo apresenta as evidências de validade dos dois instrumentos de pesquisa, o modo como foram aplicados e a quantidade de participantes.

De posse do instrumento validado, ou confiável, aconteceu durante o mês de agosto de 2021 ‒ com a participação de uma agência de pesquisa parceira, que aqui não é nomeada em função das prerrogativas éticas aprovadas pelo Comitê ‒ a aplicação oficial do Survey , para estudantes e professores da rede educacional participante da investigação. A participação ocorreu por meio do Survey Monkey, site que viabiliza a aplicação de instrumentos de pesquisa em larga escala. As participações foram voluntárias e sem ônus quando o participante optava em não participar.

4 Elaboração e validação de um Survey sobre Aceleração Social

Pasquali (2012)PASQUALI, L. Análise fatorial para pesquisadores. Brasília, DF: LabPAM, 2012. assegura que, antes de aplicar um instrumento, é necessário avaliar seu conteúdo, sua semântica e sua estrutura interna, por meio de tratamento estatístico. Destarte, apresentam-se nos parágrafos a seguir as etapas de manuseio do instrumento, a considerar: elaboração dos itens; avaliação dos itens por especialistas; avaliação semântica dos comandos e dos itens do questionário pelo público-alvo; e busca de evidências de validade via tratamento estatístico.

As primeiras versões dos questionários foram compostas por nove itens destinados aos professores e oito, aos estudantes. Para ambos os instrumentos se propôs uma escala, ou seja, as opções de resposta. Para os dois a escala foi: Concordo Totalmente; Concordo; Discordo; Discordo Totalmente.

Essas versões foram ainda compartilhadas com três professores doutores, especialistas de áreas concernentes à proposta conceitual do questionário: o primeiro, na área de tecnologia; o segundo, na de sociologia; e o terceiro, na área de avaliação com especialidade em validação e normatização de testes. O papel de cada avaliador foi ler e se posicionar a respeito de cada item do questionário, com a escolha de uma entre as quatro opções sugeridas por Damásio e Borsa (2017)DAMÁSIO, B. F.; BORSA, J. C. Manual de desenvolvimento de instrumentos psicológicos. São Paulo: Vetor, 2017.: 1. Item não relevante ou não representativo; 2. Item necessita de grande revisão para ser representativo; 3. Item necessita de pequena revisão para ser representativo; e 4. Item relevante ou representativo.

Assim como para cada item, o avaliador também pôde posicionar-se quanto à escala e aos comandos do questionário. Para categorizar as respostas dos três avaliadores convidados, optou-se pelo Índice Kappa (k), que se conceitua como “[...] a razão da proporção de vezes que os especialistas concordam com a proporção máxima de vezes que deveriam concordar” (p. 23). A partir dele, no questionário do professor, oito itens foram mantidos em suas redações e um foi revisado. Quanto ao questionário do estudante, dois itens foram revisados, enquanto os demais foram mantidos.

A segunda etapa avaliativa, sugerida por Damásio e Borsa (2017)DAMÁSIO, B. F.; BORSA, J. C. Manual de desenvolvimento de instrumentos psicológicos. São Paulo: Vetor, 2017., foi constituída pela verificação da compreensão que professores e estudantes, o público-alvo, tinham acerca dos comandos e dos itens do questionário. Inicialmente os participantes precisavam assinalar “Não compreensível” ou “Compreensível” para a instrução do questionário e destacar a sua compreensão, ou não, da escala proposta.

Em seguida indicavam, item a item, as suas percepções quanto à generalização e à clareza. A generalização considera se o item apresenta termos compreensíveis na região em que o participante vive. Já a percepção quanto à clareza do item é a oportunidade de ele apontar se o item está bem proposto semanticamente. Participaram dessa etapa 31 professores: 1 de Santa Catarina, 3 de Goiás, 5 de Pernambuco, 6 de São Paulo e 16 do Pará. Quanto aos estudantes participantes dessa etapa avaliativa, 1 preferiu não identificar o estado em que residia; 1 morava no Ceará; 2, em Pernambuco; e 25 residiam no Pará. Pelo menos 1 item foi eliminado nessa etapa, a partir das considerações do público-alvo, e os demais, em sua maioria, foram mantidos, com algumas revisões pontuais nas suas redações.

A terceira etapa que buscava evidenciar a confiabilidade do instrumento proposto verificou três variáveis importantes, que foram processadas via Statistical Package for the Social Science (SPSS): 1. Kaiser-Meyer-Olkin (KMO): “[...] é um teste estatístico que sugere a proporção de variância dos itens que pode estar sendo explicada por uma variável latente” (Damásio, 2012, p. 215) ‒ neste caso pode ser categorizado a partir de 0,50, como inaceitável, até 0,90, como maravilhoso (Pasquali, 2012PASQUALI, L. Análise fatorial para pesquisadores. Brasília, DF: LabPAM, 2012.) ‒; 2. Correlações, ou seja, o quanto os itens se relacionam entre si, ou ainda, “[...] o relacionamento único entre duas variáveis” (Field, 2020FIELD, A. Descobrindo a estatística usando o SPSS. Porto Alegre: Penso, 2020., p. 355); e 3. Índice de Confiabilidade Cronbach , que “[...] avalia o grau em que os itens de uma matriz de dados estão correlacionados entre si” (Damásio, 2012, p. 223).

Participaram dessa etapa 593 professores, dos estados de Minas Gerais, Goiás, Santa Catarina, Rondônia, São Paulo, Bahia, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul; e 350 estudantes residentes em Mato Grosso do Sul, no Rio Grande do Norte, no Rio Grande do Sul e em Rondônia. Sobre o questionário do estudante, o KMO resultou em 0,657 e o Alfa de Cronbach teve como resultado 0,555. Para aumentar ambos os índices e corrigir 3 itens que não se correlacionaram, optou-se por eliminar 3 itens e substituí-los por novos, revisar 2 e manter 2 com a mesma redação anterior.

Quanto ao questionário do professor, o KMO foi 0,607 e o Alfa de Cronbach resultou em 0,468. Assim como no questionário do estudante, 3 itens não se correlacionaram, e, com o objetivo de tornar o instrumento mais confiável, 2 itens foram eliminados e substituídos por 2 itens novos, 2 foram mantidos a partir da versão anterior e 3 foram revisados.

As modificações exemplificadas anteriormente transformaram consideravelmente os questionários, se comparados com as suas primeiras versões, e eles foram, assim, aplicados a 31.946 estudantes do 5.º ano do Ensino Fundamental ao 3.º ano do Ensino Médio e a 5.839 professores de uma rede privada de Ensino no Brasil, que representaram 25 estados brasileiros e o Distrito Federal.

No que diz respeito ao perfil dos professores participantes, a maioria leciona de 16 a 25 aulas semanais; 70,73% lecionam apenas em uma unidade escolar; 68,48% utilizaram internet via Wi-Fi própria para lecionar; 65,44% utilizaram computador próprio para lecionar; e 54,25% dos professores participantes são dos estados de São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Quanto aos estudantes participantes, 90,86% utilizaram internet via Wi-Fi própria para acompanhar as aulas virtuais na pandemia; 50,77% utilizaram computador próprio para acompanhar as aulas virtuais; e 60,14% dos participantes são dos estados de São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

O fato de a maior parcela de professores e estudantes participantes da pesquisa residirem nos quatro estados mencionados deve-se à decisão de ‒ a partir dos conceitos de Aceleração Social e Modernidade, que podem ser observados no contraste entre cidades grandes e menores, e para análise de resultados e cotejo com a teoria proposta ‒ aproximar-se das 4 capitais e de 1 cidade correspondente em cada estado, que cumprisse pelo menos 2 critérios: ser menor que a capital e ter a presença de pelo menos 1 escola participante da investigação. As cidades escolhidas foram: São Paulo, SP, Registro, SP, Rio de Janeiro, RJ, Itaboraí, RJ, Curitiba, PR, Telêmaco Borba, PR, Porto Alegre, RS, e Osório, RS.

Após a aplicação oficial dos instrumentos, foi possível reconsultar a repercussão estatística, considerando que a versão para aplicação continha revisões e itens novos. É singular destacar que, com as modificações feitas no questionário e com a aplicação oficial dos questionários, o KMO do questionário do professor passou para 0,821 e 61% de variância explicada, o que significa que o conjunto de itens proposto explica pelo menos 61% do tema pesquisado. Já o questionário final do estudante passou para um KMO de 0,844 com uma variância explicada de 48%.

As etapas de busca de evidências de validade dos instrumentos colaboraram para a afirmação e o estabelecimento de estruturas técnicas e semânticas que oportunizaram, por sua vez, mais confiabilidade ao processo científico. De fato, da primeira até a última versão dos questionários houve mudanças substanciais e, por fim, chegou-se a estes itens, discutidos à luz da teoria da Aceleração Social com foco na organização do tempo, inicialmente, dos professores: 1. Estabeleço uma rotina para cumprir o meu dia como professor; 2. Organizo os meus horários para cumprir com as atividades escolares; 3. Sou pontual nos horários de trabalho; 4. Divido o meu dia entre horas para as atividades virtuais e horas para momentos livres; 5. Prefiro finalizar as tarefas do trabalho o mais breve possível, sem deixá-las para o dia seguinte; e 6. Utilizo agenda ou outra ferramenta para registrar atividades escolares que preciso realizar no dia a dia.

Os itens do questionário do estudante, em sua versão final, foram: 1. Nas aulas virtuais o tempo passa mais rápido, o que me exige ser organizado; 2. Estabeleço uma rotina para cumprir o meu dia como estudante; 3. Nos dias em que tenho aulas virtuais, consigo fazer mais atividades escolares; 4. Sou pontual nos horários de aula; 5. Organizo os meus horários para cumprir com as atividades escolares; 6. Prefiro finalizar as tarefas da escola o mais breve possível, sem deixá-las para depois; e 7. Utilizo agenda ou outra ferramenta para registrar atividades escolares que preciso realizar no dia a dia.

5 A organização do tempo pela percepção de professores e estudantes

Ao responderem o questionário, estudantes e professores podiam posicionar a sua percepção acerca de cada item, assinalando uma entre quatro opções disponíveis: 1. Discordo Totalmente; 2. Discordo; 3. Concordo; 4. Concordo Totalmente. Destarte, para cada item foi possível obter uma média que podia oscilar de 1 a 4. Por se tratar de médias e de dois grupos diferentes, verificou-se o tamanho do efeito ao comparar professores e estudantes participantes em uma mesma cidade e, assim, constatar se houve uma diferença estatística relevante entre as percepções de professores e estudantes participantes da pesquisa. Um tamanho de efeito é “uma medida objetiva e (geralmente) padronizada da magnitude do efeito observado” (Field, 2020FIELD, A. Descobrindo a estatística usando o SPSS. Porto Alegre: Penso, 2020., p. 113). A Tabela aponta o tamanho do efeito sugerido. MP significa Média Professores; MA, Média Alunos; DIF_M, Diferença entre as médias; NA, Número de alunos; NP, Número de professores; P, variâncias assumidas e não assumidas; D, tamanho do efeito.

Tabela
Tamanho do efeito entre professores e estudantes nas cidades participantes

O tamanho do efeito pode ser categorizado como insignificante, quando a sua proporção é de 0,19; pequeno, quando é de 0,20 a 0,49; mediano, de 0,50 a 0,79; grande, de 0,80 a 1,29; e muito grande, quando a proporção é acima de 1,30. Especialmente na cidade de Telêmaco Borba, PR, o efeito foi mediano, enquanto nas demais cidades foi grande e até muito grande.

Não obstante, é possível inferir, a partir da diferença entre as médias dos professores e dos estudantes, que, na cidade de Telêmaco Borba, PR, os professores e estudantes participantes da pesquisa indicam organizar o tempo de forma mais sincronizada, pois, provavelmente, reúnem habilidades comuns. Em seguida, a mesma reflexão se dá para a cidade de São Paulo, que, entre as oito mencionadas, é a segunda na menor diferença entre suas médias gerais.

Essa afirmação, à luz da teoria da Aceleração Social, demonstra que, mesmo em uma cidade amplamente moderna, a escola pode ter servido como um centro regulador do tempo para os dois grupos, simultaneamente, de modo que o resultado da organização do tempo influenciasse no encontro, ou ainda, na própria relação pedagógica que se firmava. Diante desse cenário maior e de outros apontamentos, é possível realizar algumas comparações com validade estatística e o direcionamento do foco para algumas situações específicas de respostas.

A primeira situação que se destaca é que em todas as cidades pormenorizadas na pesquisa a percepção de organização do tempo do professor é maior que a dos estudantes ‒ especialmente na cidade de Osório, RS, o que pode indicar que os professores sincronizaram com mais facilidade os seus horários na circunstância da sala de aula virtual e do seu entorno.

Mesmo com a diferença não é possível afirmar, a partir das médias gerais, que estudantes e professores tenham adensado episódios de ação, pois a sua principal marca significaria dificuldade ou indisponibilidade quanto à organização do tempo, o que não se verifica, dado o grau de concordância com os itens do questionário ‒ que, na escala proposta, posicionaram-se mais à direita que à esquerda.

Aspectos como utilização de agenda ou outras ferramentas para registrar atividades escolares não foram prioridade para os estudantes de Osório, RS (2,39), se comparados com os professores (3,41), o que desenha uma significativa diferença. Já quanto à pontualidade no trabalho, no caso dos professores, e aos horários de aulas, no caso dos alunos, ambos apontaram suas maiores médias em relação aos demais itens do questionário, 3,68 e 3,33, respectivamente. Um dos efeitos do adensamento de episódios de ação advindos da aceleração seria o atraso decorrente da desorganização, fato que não se observou aqui.

Já entre as capitais, Porto Alegre foi a que apresentou o maior tamanho de efeito, 1,38. Mesmo sendo uma cidade mais industrializada e relacionada ao conceito de Modernidade, já exposto neste artigo, a maior média (3,63) foi a respeito do item “Organizo os meus horários para cumprir com as atividades escolares” ‒ o que passa a ser uma evidência importante de que os professores não sobrepuseram atividades.

Horizonte semelhante observa-se a respeito da cidade de São Paulo, que apresenta médias gerais parecidas quanto à percepção de professores e estudantes ‒ isso indica que provavelmente professores e estudantes organizaram o tempo de forma semelhante, o que se confirma quando se trata da preferência por finalizar as tarefas do dia sem deixá-las para o dia seguinte, com média geral 3,30 para professores e 3,00 para estudantes.

Pelos princípios já elaborados acerca da Modernidade e a pesquisa realizada, é possível observar, especialmente em três capitais (São Paulo, SP; Curitiba, PR; e Porto Alegre, RS), que, no que diz respeito aos estudantes participantes, essas capitais apresentaram médias gerais menores quando comparadas às cidades correspondentes em cada estado. Essa afirmação implica na confirmação da teoria da Aceleração Social quando detalha que os centros mais industrializados (ou modernos, no sentido de Modernidade) têm um ritmo de vida mais acelerado, o que poderia interferir na capacidade de organização do tempo.

Já para os professores participantes, o sugerido pela teoria aconteceu em duas capitais, São Paulo, SP, e Porto Alegre, RS. Percebe-se, então, que as médias não dão testemunho de apenas uma lógica de interpretação ou relação causal entre Modernidade e Aceleração Social, especialmente quando Itaboraí, RJ ‒ que é menor que a cidade do Rio de Janeiro ‒, tem médias menores que a capital do estado, o que, somado a outros fatores em exposição neste artigo a respeito da cidade de Itaboraí, RJ, pode revelar que há outros elementos, além da Modernidade, que podem colaborar na explicação da teoria da Aceleração Social, o que não se destina a ser exposto e discutido aqui.

O cenário de organização do tempo dos professores participantes da pesquisa em São Paulo cristaliza-se quando aqueles que lecionam de 41 a 50 aulas apresentam a maior média geral de organização do tempo (4,00), o que, pela hipótese construída, poderia sugerir o contrário, mesmo com a fragilidade em dividir o tempo entre as atividades virtuais e os momentos livres (2,88) ‒ talvez pelo fato de não terem um tempo livre sistematizado assim como o trabalho.

Quanto ao volume de aulas que os professores participantes lecionaram na pandemia, ele indica que não houve concentração de estudantes de modo a reorganizar as turmas em salas de aulas virtuais pelo princípio da mais-valia. Os professores que lecionavam 40 aulas por semana no formato presencial continuaram lecionando o mesmo número de horas nas aulas virtuais, com as mesmas composições de turmas.

Tanto para São Paulo como para as demais cidades observadas na pesquisa, dividir o tempo entre o momento do trabalho e o momento livre foi o que apresentou menor média, ainda que mais à direita que à esquerda da escala de concordância ‒ a menor foi 2,88 para São Paulo; e a maior, 3,00 para Rio de Janeiro, RJ, Itaboraí, RJ, e Telêmaco Borba, PR.

Perder a sensibilidade do tempo livre também pode estar associado ao volume de tarefas do professor, que, por sua vez, foi sistematizado, de modo que em todas as cidades as médias gerais foram superiores a 3 quando se tratava da preferência por finalizar as tarefas do trabalho o mais breve possível, sem deixá-las para o dia seguinte ‒ por exemplo, 3,26 para Curitiba, PR, e até 3,38, no caso de Osório, RS.

A mesma proposição se repete para os estudantes, mas de modo ainda mais acentuado, e acena como o segundo item de maior concordância entre os 7: em São Paulo, SP, 3,00; Rio de Janeiro, RJ, 2,96; Itaboraí, RJ, 2,80; Curitiba, PR, 2,94; Porto Alegre, RS, 2,86; e Osório, RS, 2,91. Um dos efeitos do adensamento de episódios de ação seria professores e estudantes postergarem suas atividades de trabalho e de escola pelo fato de não haver tempo para concluí-las, inclusive devido às suas execuções simultâneas, mas as médias indicaram que o grupo pesquisado não optava por levar para o dia seguinte as suas obrigações ‒ então, não se confirmou a hipótese.

Inclusive, os estudantes participantes, sobretudo da cidade de São Paulo, SP, afirmaram que as salas de aula virtuais não impactaram tanto a possibilidade de realizarem mais atividades escolares durante o dia (2,45) nem mesmo foram proeminentes para que sentissem o tempo passando mais rápido (2,48). Pela hipótese, esperava-se uma média maior, o que indica que, se as atividades não estavam sobrepostas, então não foram necessários mecanismos para organizar o tempo, e isso explica a pouca adesão, nas 8 cidades, a ferramentas de organização do tempo.

A se julgarem os recursos temporais disponíveis, não é possível, pelos achados, afirmar que eles estavam ausentes ou que não foram percebidos pelos estudantes: o grupo participante indica que tinha consciência do tempo disponível para a realização de suas atividades. Isso implica dizer que, ainda que o cenário domiciliar desafiasse o estudante a ser filho e estudante ao mesmo tempo, buscando cumprir exigências das duas identidades, que podiam se imbricar, não se apresentaram, na organização do tempo pessoal, evidências ou efeitos do multitasking .

Esses dados, associados ao interesse dos estudantes em não levar atividades previstas no dia para o outro dia, fortalecem a afirmação de que eles organizaram o tempo, evitaram a realização de muitas atividades ao mesmo tempo e executaram as atividades escolares dentro de um tempo disponível, percebido e organizado ‒ ações inversas a um ambiente e pessoas aceleradas.

A partir das considerações anteriores, é razoável afirmar que a sala de aula virtual, circunstancial em ocasião da pandemia da Covid-19, pode ter servido como um anteparo para o professor e para o estudante diante da sociedade acelerada, pois, seja no tempo percebido ou no tempo sistematizado, o modo com que se deram as relações entre ensino e aprendizagem não foi estopim para marcar uma desorganização do tempo. A próxima seção conclui o artigo ‒ responde ao problema elaborado, analisa a hipótese e, diante de um resultado singular, prospecta um novo estudo.

6 Conclusão: a dessincronização do tempo escolar

Pelas percepções de professores e estudantes brasileiros de uma rede educacional privada, a sala de aula virtual ‒ modelo utilizado devido à emergência da Covid-19 ‒ e suas implicações estimularam o adensamento de experiências e episódios de ação, de modo a impactar a organização pessoal do tempo? A partir do teste empírico realizado, não é possível afirmar que estudantes e professores, participantes da pesquisa, tenham adensado episódios de ação, especialmente em razão dos seguintes aspectos: eles não necessariamente realizaram mais atividades por terem seus encontros logisticamente facilitados em função da sala de aula virtual; afirmaram ser pontuais nos horários de trabalho e estudo; o tempo não passou mais rápido nas aulas virtuais; a cidade de São Paulo, SP, a maior entre as participantes da pesquisa, não difere em suas médias gerais (que, pelos fatores da modernidade e da aceleração deveriam indicar diferença) se comparada com Registro, SP; professores com alto volume de aulas não indicaram desorganização do tempo ‒ apesar de o tempo livre se misturar com o tempo do trabalho, não foi um item que, se julgado à luz da Aceleração Social, tenha trazido substancial relação com o adensamento de episódios de ação.

Por fim, talvez a informação que melhor explique que professores e estudantes não adensaram episódios de ação: ambos os grupos preferiram finalizar suas atividades no próprio dia, sem levá-las para o dia seguinte, ou seja, o tráfego de compromissos, ainda que intenso, não foi uma prerrogativa para o congestionamento de afazeres de modo a vazá-los de um dia para o outro. O que parece é que eles foram controlados, ainda que nem sempre sistematizados.

É certo, ainda, abrir margem para uma interpretação complementar: a sala de aula virtual ‒ resposta ativa e igualmente sensível e emocionada ao contexto avassalador da Covid-19 ‒ tratou o prazo de forma diferente da sala de aula presencial, a corriqueira, a já conhecida, em que alguns hábitos de exigência já foram cristalizados. O que se deseja afirmar é que o poder do prazo pode ter sido minimizado na sala de aula virtual em comparação à sala de aula presencial, e isso afetou a entrega de atividades, que podem, inclusive, ter sido menos exigidas. Assim, ordenar um volume de tarefas circunstancialmente menor, no contexto desafiador em que a relação pedagógica se dava, pode ter contribuído para a organização do tempo.

Diante dessa organização do tempo, a partir dos pressupostos advindos do teste empírico, ainda que não abordada nos questionários e na discussão proposta, infere-se que a pressão aceleratória ‒ mesmo com traços de amortecimento de seus efeitos a partir da organização do tempo ‒ pode ser o princípio para o desenvolvimento de síndromes, como a de Burnout , no caso dos professores; e do déficit de atenção, no caso dos estudantes. Especialmente no caso dos professores que lecionam mais de 40 aulas por semana e daqueles que trabalham em mais de um emprego remunerado, a organização do tempo não significa a impossibilidade do adoecimento ‒ pode, inclusive, ser o caminho para tal manifestação.

À medida que se respondeu à interrogação, igualmente se refutou a hipótese construída, que era: as salas de aula virtuais distanciaram os alunos e os professores da mecânica espaço-temporal da escola fisicamente constituída, o que afetou a forma de organização pessoal do tempo ‒ e permitiu que alunos e professores fossem reféns desse tempo ‒, limitou sua organização pessoal e, assim, endossou a presença na escola das bases conceituais da teoria da Aceleração Social, de Hartmut Rosa.

Refuta-se pelo fato de que os professores e os estudantes, ainda que distantes de um encontro físico promovido pela escola, não se viram com dificuldades para organizar o tempo. Cada um, a seu modo, fez a sua parte para cumprir com as suas atividades e, assim, distanciou-se da mecânica espaço-velocidade da própria sociedade.

Essa distância entre professores e estudantes em uma sala de aula virtual, que era a escola na pandemia da Covid-19, aponta que o tempo da escola é um tempo diferente do tempo da sociedade, especialmente a categorizada na teoria da Aceleração Social. Pensar que a escola não se modernizou como a sociedade implica dizer que a escola não é acelerada como a sociedade.

A temporalidade da escola é diferente da temporalidade acelerada da sociedade, e esse fator tende a isolar a escola e os seus participantes, porque essa não sincronização implica positividades, como a oportunidade do pensar-realizar; e negatividades, como o fato de a escola não se modernizar no mesmo diapasão que a sociedade, de modo a se tornar um centro de inovação, por exemplo.

Um caso singular, que, enquanto colabora na conclusão, igualmente inaugura novos questionamentos, é o da cidade de Itaboraí, RJ. Tanto no contexto dos professores como no dos estudantes, a cidade protagonizou as menores médias acerca da organização do tempo na comparação com as demais cidades aqui citadas. Um novo estudo poderia relacionar os aspectos da organização do tempo a partir dos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH). Itaboraí, RJ, entre as 8 cidades apresentadas na pesquisa, tem os menores índices, considerando o ano de 2019: 2,3 de média de salários-mínimos; R$ 20.484,24 de Produto Interno Bruto (PIB) per capita ; 14,5% da população ocupada; e 0,693 de IDH, considerado o ano de 2010 (IBGE, 2022INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. IBGE Cidades. Brasília, DF, 2022.). Será que há uma relação mais íntima entre a organização do tempo e os índices de desenvolvimento humano da cidade de Itaboraí, RJ? Ainda que essa pergunta implique em uma limitação desta pesquisa, ela inaugura uma nova oportunidade de investigação.

Em tempo: a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty (2018)MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018. foi mobilizada a fim de flagrar um contato ingênuo com o mundo escolar, cuja replicação é possível, e deve ser testada cientificamente.

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  • ROSA, H. Alienação e aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Petrópolis: Vozes, 2022.
  • Dados: O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo não está disponível publicamente, devido ao alto volume de participantes, que a medida em que responderam à pesquisa disponibilizaram informações de ordem pessoal, como, idade, contato de e-mail, cidade em que reside e outros dados. A aprovação da pesquisa em Comitê de Ética compreendeu o uso e disponibilização de dados com cautela e gerenciamento dos autores. A solicitação de acesso aos dados pode ser feita diretamente a um dos autores, por e-mail, josneyprado@hotmail.com.
  • Financiamento: O autor 1 recebeu bolsa de mestrado da Capes durante o processo de elaboração do artigo.

Disponibilidade de dados

Dados: O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo não está disponível publicamente, devido ao alto volume de participantes, que a medida em que responderam à pesquisa disponibilizaram informações de ordem pessoal, como, idade, contato de e-mail, cidade em que reside e outros dados. A aprovação da pesquisa em Comitê de Ética compreendeu o uso e disponibilização de dados com cautela e gerenciamento dos autores. A solicitação de acesso aos dados pode ser feita diretamente a um dos autores, por e-mail, josneyprado@hotmail.com.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jan 2024

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2023
  • Aceito
    26 Jan 2024
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