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Traçando o futuro do tratamento renal no Brasil: percepções e evolução por meio do Censo Brasileiro de Diálise

A importância de dados de mundo real não pode ser superestimada na abordagem dos desafios cada vez mais complexos do tratamento renal. Estudos observacionais informam políticas de saúde, orientam decisões clínicas e, principalmente, moldam o futuro do atendimento aos pacientes com doença renal crônica. O Censo Brasileiro de Diálise (CBD), com mais de duas décadas de existência é uma prova do compromisso da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) em compreender e melhorar o cenário da saúde renal. Ao refletirmos sobre as contribuições desta iniciativa é fundamental celebrar o progresso que ela possibilitou e, ao mesmo tempo, reconhecer as áreas que necessitam de avanços.

O Legado do CBD

Desde 1999, o CBD tem atuado como um alicerce para a prática da nefrologia no Brasil. Ao capturar e analisar sistematicamente os dados de clínicas de nefrologia do país, o censo forneceu informações valiosas sobre tendências, padrões de prática e disparidades no tratamento renal. Ao longo dos anos, esses dados têm informado a comunidade de nefrologia (e o setor de saúde em geral), assim como políticas de saúde pública e suplementar, sobre o cenário da diálise. É provável que o CBD tenha exercido uma influência crescente nas decisões clínicas e políticas destinadas a melhorar o atendimento ao paciente. O compromisso das clínicas participantes em realizar voluntariamente este censo, liderado pela SBN, ressalta a dedicação coletiva para o desenvolvimento do cuidado renal no Brasil. O relatório mais recente, baseado no censo de 2022, está incluído nesta edição do Jornal Brasileiro de Nefrologia(11. Nerbass FB, Lima HN, Moura-Neto JA, Lugon JR, Sesso R. Brazilian Dialysis Survey 2022. Braz J Nephrol. 2024;46(1):1–8. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2023-0062pt.
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).

O Poder dos Dados Coletivos

Os dados coletados ao longo dos anos pelo CBD oferecem uma visão panorâmica da evolução do atendimento de diálise, incluindo dados demográficos dos pacientes e distribuição das modalidades de tratamento. Essa perspectiva longitudinal foi fundamental para identificar mudanças na prevalência da doença, alterações na eficácia do tratamento e desafios emergentes no manejo do paciente. Essas percepções são essenciais para moldar intervenções direcionadas, alocar recursos de forma eficaz e prever necessidades futuras dentro da comunidade de nefrologia. O CBD de 2022 continua a demonstrar a tendência histórica no aumento tanto do número quanto da taxa de prevalência de pacientes em diálise crônica, com um crescimento impressionante da hemodiafiltração (HDF) como modalidade, atualmente se igualando aos números da diálise peritoneal (4,6% em HDF e 4,7% em diálise peritoneal). É lamentável, entretanto, que a utilização da HDF seja limitada a pacientes usuários de planos de saúde suplementar. Ademais, apenas uma porcentagem muito pequena (1,3%) dos pacientes em diálise não foi vacinada contra a COVID-19, um sinal positivo da estratégia nacional implementada pelo sistema público de saúde brasileiro. A taxa de mortalidade anual bruta geral foi de 17,1%, indicando uma redução em relação aos anos anteriores, possivelmente devido ao fim da pandemia de COVID-19.

Uma voz Crítica: o Chamado à Evolução

Apesar de suas contribuições substanciais, o CBD não deixa de ter suas limitações. Um aspecto crítico que merece atenção é a metodologia da coleta de dados. O modelo utilizado historicamente e na edição de 2022 do CBD capta principalmente dados em nível clínico e negligencia a granularidade e a riqueza de informações individuais em nível de paciente. Isso limita a profundidade de análise possível, potencialmente obscurecendo tendências e padrões diferenciados que podem levar a estratégias de cuidado mais personalizadas e eficazes.

Além disso, a natureza voluntária da participação no censo introduz um viés significativo, uma vez que os dados são coletados de um subconjunto de clínicas que pode não representar todo o espectro do atendimento nefrológico no Brasil. Essa participação seletiva limita a generalização dos achados e pode resultar em uma imagem incompleta do cenário da nefrologia, afetando a precisão das avaliações e a formulação de políticas nacionais de saúde.

Aceitando a Mudança: Percepções e Oportunidades do Censo de 2023

O censo mais recente de 2023, já disponível pelo site da SBN(22. Sociedade Brasileira de Nefrologia. Censo da SBN 2023 [Internet]. São Paulo: SBN; 2023 [cited 2024 Mar 30]. Available from: censo-sbn.org.br.), marca um momento crucial na evolução do CBD. O censo da edição de 2023 demonstra um avanço significativo, refletindo a maior participação de clínicas nos últimos anos: 886 (38%) clínicas que atendem mais de 60 mil pacientes em diálise. Esse aumento nas contribuições é uma prova dos esforços dedicados da SBN para melhor conectar com clínicas pelo Brasil. Ao aproveitar ligas acadêmicas de nefrologia, fomentar a colaboração com organizações multinacionais de diálise e facilitar o envolvimento direto entre representantes regionais e a SBN, foi criado um panorama de dados mais amplo e inclusivo. Outra inovação importante introduzida no CBD de 2023 é o uso de uma amostra aleatória de respondentes como fonte para cálculos de prevalência e incidência. O fato de que essa abordagem gerou resultados semelhantes em comparação com números históricos reafirma a precisão dos dados capturados ao longo dos anos.

Além disso, o envolvimento de uma geração mais jovem de epidemiologistas renais como participantes na liderança do censo e registros, bem como a expansão de oportunidades de pesquisa refletida em um número crescente de publicações auxiliares usando o CBD como fonte de dados, infundiu ao projeto novas perspectivas e abordagens inovadoras. Essa diversificação anuncia uma nova era de pesquisa e análise na nefrologia brasileira, prometendo percepções mais ricas e uma compreensão mais dinâmica da saúde renal em todo o país.

Um Caminho à Frente: Recomendações Futuras

Como expatriado brasileiro profundamente interessado na epidemiologia da DRC e no cuidado renal, sinto-me tentado a listar alguns insights para aumentar ainda mais a riqueza e a utilidade do CBD:

  1. Estabelecer parcerias com o sistema público de saúde brasileiro com o objetivo de diversificar as fontes de dados: Uma iniciativa fundamental é alinhar e colaborar com o sistema público de saúde do Brasil para obter acesso a bancos de dados públicos e integrá-los às ricas informações epidemiológicas do CBD e dos registros de doenças. Seguindo modelos como o United States Renal Data System (USRDS), que integra dados dos Centers for Medicare and Medicaid Services (CMS), do sistema Veteran Affairs e de prontuários eletrônicos comerciais, tais parcerias podem enriquecer significativamente as informações fornecidas pelo CBD. O aproveitamento de outros bancos de dados de cuidados renais permitiria uma coleta mais abrangente de dados em nível de paciente em todo o espectro da assistência médica, facilitando insights mais profundos sobre tendências no tratamento incluindo a DRC em sua fase pré-dialítica, desfechos e disparidades na assistência médica. Um bom exemplo desse enriquecimento é o Relatório Anual de Dados do USRDS de 2023(33. National Institutes of Health. USRDS Releases 2023 Interactive Annual Data Report [Internet]. USA: NIH; 2023 [cited 2024 Mar 30]. Available from: nih.gov.).

  2. Aceitar a tecnologia e a inovação: Plataformas digitais, inteligência artificial e ferramentas de análise de dados oferecem oportunidades para mudar a maneira como os dados são coletados, analisados e compartilhados na comunidade de nefrologia. A adoção de técnicas avançadas de análise de dados e de machine learning pode revolucionar a análise de dados nefrológicos, revelando padrões e percepções que não são facilmente aparentes por meio de métodos tradicionais. Essa abordagem pode aumentar o poder preditivo do censo e de outras fontes de dados, oferecendo previsões mais precisas das tendências de doenças e do impacto das intervenções.

  3. Aprimorar o compartilhamento e a transparência de dados: O estabelecimento de uma estrutura para aumentar o compartilhamento e a transparência de dados pode promover a colaboração dentro da comunidade nefrológica e além dela. Ao disponibilizar dados anonimizados e agregados para pesquisadores, médicos, formuladores de políticas, indústria e usuários, o censo pode estimular uma gama mais ampla de iniciativas destinadas à melhoria do cuidado renal. Essa mudança requer uma consideração cuidadosa das diretrizes éticas e de privacidade, mas promete um conjunto de dados mais rico para aprimorar o atendimento ao paciente.

  4. Expandir o alcance e a inclusão: A expansão do alcance para todas as regiões brasileiras e a inclusão de minorias e comunidades carentes ampliarão o alcance do CBD, e os esforços de inclusão irão garantir uma representação e diversidade ainda maiores nos dados coletados.

Conclusão

O CBD é um marco de progresso na jornada do país rumo à excelência no tratamento renal. Ao celebrarmos o legado de várias décadas do CBD, a comunidade deve aproveitar a oportunidade de crescer e evoluir. Ao aprimorar a metodologia, expandir a cobertura e aproveitar a tecnologia, o censo pode continuar a desempenhar um papel fundamental na definição do futuro da nefrologia no Brasil, garantindo que a jornada de cada paciente seja baseada nos dados mais abrangentes e perspicazes.

References

  • 1.
    Nerbass FB, Lima HN, Moura-Neto JA, Lugon JR, Sesso R. Brazilian Dialysis Survey 2022. Braz J Nephrol. 2024;46(1):1–8. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2023-0062pt.
    » https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2023-0062pt
  • 2.
    Sociedade Brasileira de Nefrologia. Censo da SBN 2023 [Internet]. São Paulo: SBN; 2023 [cited 2024 Mar 30]. Available from: censo-sbn.org.br.
  • 3.
    National Institutes of Health. USRDS Releases 2023 Interactive Annual Data Report [Internet]. USA: NIH; 2023 [cited 2024 Mar 30]. Available from: nih.gov.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2024
  • Aceito
    01 Abr 2024
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