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Percepção de sintomas na asma

EDITORIAL

Percepção de sintomas na asma

Alberto Cukier

Professor Livre-Docente em Pneumologia Divisão de Pneumologia, Instituto do Coração, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil

Uma paciente de 32 anos é atendida em um pronto-socorro devido a uma dor intensa na altura das omoplatas, que se irradiava para a região esternal. Informa antecedente de asma, que se tornou intermitente nos últimos anos. Há três meses, devido a condições ambientais adversas no trabalho, tem utilizado β2-agonistas de curta duração para alívio sintomático, três vezes por semana. Sua radiografia de tórax é normal. A paciente é medicada com analgésicos e anti-inflamatórios. Diante da persistência do quadro, retorna ao hospital após 48 h, e o processo se repete. No sexto dia após o início da dor torácica, a paciente é novamente atendida; informando ao médico que a mãe, moradora em outra cidade, havia relatado que, durante sua infância e adolescência, quando as crises de asma eram frequentes, as dores torácicas eram um sinal de que a asma estava exacerbada. Ao exame físico, apresenta-se eupneica, sem presença de ruídos adventícios pulmonares. A espirometria detecta um distúrbio ventilatório obstrutivo, com VEF1 de 37% do predito, com reversibilidade de 70% após o uso de broncodilatador. Este caso, incomum e real, reflete bem a complexidade que envolve o que os asmáticos sentem, como se expressam a respeito da doença e como os profissionais de saúde os interpretam.

Sabemos de longa data que a relação entre sintomatologia e medidas objetivas de função pulmonar é pobre. Há 40 anos, em um estudo clássico, McFadden et al. correlacionaram a mecânica pulmonar aos sintomas e aos achados no exame físico de 22 pacientes, na crise de broncoespasmo e, seriadamente, durante o tratamento.(1)Os autores observaram que o grau de dispneia e sibilância não foi capaz de determinar aqueles que tinham a limitação funcional mais grave e, independentemente do grau de broncoespasmo inicial, quando os pacientes tornaram-se assintomáticos, os parâmetros de mecânica pulmonar mantinham-se em torno de 40-50% do valor predito.(1) Outro exemplo da dissociação entre dados clínicos e funcionais é a estratégia atual que adotamos para o manejo da asma, utilizando um escore composto que define quando a doença está controlada.(2) As diretrizes adotaram esse conceito baseando-se na observação de que desfechos, como sintomas, uso de medicação de alívio ou parâmetros espirométricos, quando avaliados isoladamente, refletem de maneira imprecisa a resposta dos asmáticos à terapêutica.(3)

A discrepância entre os sintomas e as medidas objetivas de função pulmonar tem sido estudada por diferentes métodos, que tendem a classificar os pacientes em dois subgrupos - os "hipopercebedores" e os "hiperpercebedores". A ampla variabilidade das estimativas da magnitude da disparidade, com prevalências reportadas de 15% a 60% de hipopercebedores, demonstra o quanto se desconhece o assunto.

A literatura tem dado ênfase principalmente à parcela dos pacientes considerados hipopercebedores, aqueles que não avaliariam adequadamente a gravidade da sua situação; portanto, com maior risco de hospitalização e morbidade, visto que postergam o tratamento adequado. Neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Reck et al. analisaram essa faceta em um estudo que incluiu 53 pacientes com asma leve.(4) Desses, 21 (39%) não foram capazes de identificar a broncoconstrição induzida por metacolina. Em outro estudo em nosso meio, um grupo de autores, comparando sintomas (avaliados por uma escala visual analógica) com dados de espirometria, concluíram que 51% dos pacientes não perceberam adequadamente o grau de obstrução das vias aéreas.(5) Em contrapartida, uma parcela dos asmáticos tenderia a ser muito sensível a pequenas mudanças de calibre das vias aéreas, o que os induziria à supermedicação, com o uso excessivo de broncodilatadores para alívio.(6)

Assim posto, fica-se com a impressão de que estamos diante de uma situação estanque; os asmáticos se dividem em "normopercebedores", hiperpercebedores ou hipopercebedores. Os hipopercebedores estariam sujeitos a um aumento da morbidade e mortalidade, enquanto os hiperpercebedores tenderiam a um exagero na utilização de medicamentos. Ambos seriam candidatos à baixa aderência, seja por tratamento aquém do indicado, seja por seu excesso. Essa divisão faz, de fato, pleno sentido?

As ciências da psicologia trazem, a meu ver, uma contribuição importante, que faz senso com o que observamos na prática clínica. Segundo um grupo de autores, somente uma pequena parcela dos asmáticos tem uma condição única e estável no decorrer do tempo, ou seja, eles reportam seus sintomas em desacordo com a gravidade da real situação clínica.(7) Esses indivíduos teriam um comprometimento permanente de processamento central dos sinais provenientes das vias neurobiológicas.

A maioria dos asmáticos, à parte desse pequeno grupo, não é consistente na capacidade de percepção, intensamente influenciada por expectativas e fatores emocionais, que interagem com a personalidade e o contexto das situações de momento.(7) Estudos sugerindo que diferentes desencadeantes (como exercício ou broncoprovocação inespecífica) gerariam sensações diversas,(8) bem como o alto nível de ansiedade e depressão a que esses pacientes estão sujeitos dão suporte a esta teoria.(9)

Em conclusão, como exemplificado pelo caso clínico descrito, a linguagem dos sintomas na asma é complexa e pouco explicada. Esse contexto enfatiza a importância, particularmente nos pacientes mais instáveis e mais graves, de estimularmos a avaliação objetiva da função pulmonar e do redobrado cuidado em ouvir esses pacientes, entender suas expectativas, identificar como expressam seu desconforto e orientá-los adequadamente.

  • 1. McFadden ER Jr, Kiser R, DeGroot WJ. Acute bronchial asthma. Relations between clinical and physiologic manifestations. N Engl J Med. 1973;288(5):221-5.
  • 2. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. IV Diretrizes Brasileiras para o Manejo da Asma. J Bras Pneumol. 2006;32(Suppl 7):S447-S474.
  • 3. Bateman ED, Bousquet J, Braunstein GL. Is overall asthma control being achieved? A hypothesis-generating study. Eur Respir J. 2001;17(4):589-95.
  • 4. Reck CL, Fiterman-Molinari D, Barreto SS, Fiterman J. Poor perception of dyspnea following methacholine challenge test in patients with asthma. J Bras Pneumol. 2010;36(5):539-44.
  • 5. Souza-Machado A, Cavalcanti MN, Cruz AA. Má percepção da limitação aos fluxos aéreos em pacientes com asma moderada a grave. J Pneumol. 2001;27(4):185-92.
  • 6. Mawhinney H, Spector SL, Heitjan D, Kinsman RA, Dirks JF, Pines I. As-needed medication use in asthma usage patterns and patient characteristics. J Asthma. 1993;30(1):61-71.
  • 7. Janssens T, Verleden G, De Peuter S, Van Diest I, Van den Bergh O. Inaccurate perception of asthma symptoms: a cognitive-affective framework and implications for asthma treatment. Clin Psychol Rev. 2009;29(4):317-27.
  • 8. Scano G, Stendardi L. Dyspnea and asthma. Curr Opin Pulm Med. 2006;12(1):18-22.
  • 9. Carvalho NS, Ribeiro PR, Ribeiro M, Nunes Mdo P, Cukier A, Stelmach R. Comparing asthma and chronic obstructive pulmonary disease in terms of symptoms of anxiety and depression. J Bras Pneumol. 2007;33(1):1-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2010
  • Data do Fascículo
    Out 2010
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