Resumo
Este artigo investiga o sentido que estudantes de Vedanta e praticantes de yoga do Rio de Janeiro, que realizaram duas viagens de peregrinação à Índia, atribuem ao que entendem por devoção e conversão a um grupo “neo-hindu”. As questões principais são entender os significados que assumem essas viagens e o sentido de devoção por parte de alguns integrantes do grupo. Observo que a devoção foi frequentemente mobilizada ao se depararem com templos e símbolos da cultura hindu - uma vivência propícia para a manifestação e renegociação de suas crenças e do significado de “ser hindu” naquele contexto. Faço, a partir disso, uma reflexão crítica do individualismo inerente ao entendimento da espiritualidade como oposta à religião, mostrando como os interlocutores aderem à autoridade e à tradição e se adaptam às normas sociais no processo da construção de um olhar que é socialmente organizado e sistematizado.
Palavras-chave:
Neo-hinduísmo; Devoção; Peregrinação; Individualismo; Espiritualidade
Resumen
Este artículo indaga sobre el significado que los estudiantes de Vedanta y practicantes de yoga de Río de Janeiro, que hicieron dos viajes de peregrinaje a la India, atribuyen a lo que entienden por devoción y conversión a un grupo “neo-hindú”. Las cuestiones principales son comprender los significados que asumen estos viajes y el sentido de devoción por parte de algunos miembros del grupo. Observo que la devoción se desencadenaba a menudo cuando se encuentran frente a templos y símbolos de la cultura hindú -una experiencia propicia para la manifestación y renegociación de sus creencias y el significado de “ser hindú” en ese contexto. A partir de allí, realizo una reflexión crítica del individualismo inherente a la comprensión de la espiritualidad frente a la religión, mostrando cómo los interlocutores se adhieren a la autoridad y la tradición y se adaptan a las normas sociales en el marco de un proceso de construcción de una mirada socialmente organizada y sistematizada.
Palabras clave:
Neo-Hinduismo; devoción; peregrinación; individualismo; espiritualidad
Abstract
The present article analyzes the meanings attributed by Vedanta students and yoga practitioners from Rio de Janeiro who have made two pilgrimages to India to what they understand as devotion and conversion to a “Neo-Hindu” group. My main concerns are to understand the meanings these journeys represent and in which sense devotion is felt by certain members of the group. I observe that devotion was frequently triggered when coming across Hindu temples and symbols; therefore, despite seeing themselves as “Hindus” in Brazil, India itself has been revealed as a place conducive to the manifestation and renegotiation of the creeds and meanings of “being Hindu” in the Brazilian context. From this, I critically reflect upon the individualism inherent in these actors’ understandings of spirituality, as opposed to religion, showing how my interlocutors adhere to authority and tradition and how they adapt to social norms in the process of building a worldview that is socially organized and systematized.
Keywords:
Neo-Hinduism; devotion; pilgrimage; individualism; spirituality
Introdução
Este artigo é fruto de uma pesquisa antropológica sobre a busca espiritual de viajantes à Índia, que realizei durante o doutorado em ciências sociais (PPCIS/UERJ) e que continuo a realizar no pós-doutorado em antropologia social (MN/PPGAS/UFRJ). Tenho como objeto empírico duas viagens de peregrinação que um grupo de estudantes de Vedanta1 1 Os seguintes princípios do Vedanta (uma tradição altamente complexa com muitas linhas e diversas interpretações) foram resumidos por Goldberg (2010:10-11) da seguinte forma: a realidade última é tanto imanente quanto transcendente; “deus” (ou consciência) pode ser concebido tanto em termos pessoais quanto não pessoais; também pode ser concebido como o absoluto sem forma ou em diversas formas e manifestações. Atma é Brahman, consciência, porém nossa unidade com o divino, que é ofuscada pela ignorância, faz com que nos identifiquemos com o ego. Os indivíduos podem ser despertados para sua natureza divina através de inúmeros caminhos e práticas. Realizar completamente a verdadeira natureza do eu acarreta um fim ao sofrimento e início de um estado de liberação, chamado moksha. Esses princípios são ainda acompanhados pelos conceitos védicos de carma (toda ação tem uma reação) e de reencarnação. e praticantes de yoga do Rio de Janeiro realizou à Índia; as questões principais são entender os significados que assumem essas viagens e o sentido de devoção por parte de alguns integrantes do grupo. A proposta deste artigo é investigar o sentido que os entrevistados atribuem ao que entendem por devoção e conversão, considerando modos complexos por meio dos quais se entrelaçam construção de crenças, estilos de vida e práticas de espiritualidade.
A fim de entender melhor as ações e as representações dos peregrinos sobre o sentido atribuído à devoção, foi fundamental, através da observação participante, fazer parte desse grupo como estudante do curso da Bhagavad Gita,2 2 Texto religioso hindu, do épico Mahabharata, a Bhagavad Gita é considerada uma das principais escrituras sagradas da Índia. Esta obra relata o diálogo de Khrishna (uma das encarnações de Vishnu) com Arjuna (seu discípulo guerreiro) em pleno campo de batalha. Nesse texto, são colocados importantes pontos da filosofia indiana, principalmente o conhecimento da natureza do eu e sua relação eterna com toda a criação e aquilo que transcende a ela. entre outros cursos de Vedanta. Apesar de a professora de Vedanta do grupo considerá-lo uma “tradição de ensinamento” do “conhecimento sobre a natureza livre de limitação do eu”, foi baseada na aprendizagem a respeito do karma yoga, ensinado na Bhagavad Gita, que optei denominar o ensino e a prática do Vedanta como filosofia de vida, por considerar este conhecimento incorporado ao ethos do estudante. Ao tentar entender o significado da filosofia de vida do grupo, na qual práticas de meditação e yoga são recorrentes e paralelas ao estudo de textos sagrados hindus, procuro compreender a “incorporação” do Vedanta enquanto sistema filosófico-místico-espiritual, mas também racional, não apenas a seus estilos de vida mas, principalmente, às suas visões de mundo.
Para compreender o contexto dessa tradição de ensinamento, o Advaita Vedanta (filosofia não dualista), a perspectiva antropológica pareceu ser aquela com maiores recursos para interpretar a multiplicidade de construções do significado da devoção e ressaltar a diversidade de interesses, interpretações e sentidos que se entrecruzam nas experiências pessoais de cada um. Decidi, então, deixar algumas das interpretações do discurso de meus informantes para o leitor. Assim como nos trabalhos de Malinowski, tanto nos Argonautas como em Coral Gardens, também aqui se encontra uma multiplicidade de vozes presentes, o que se pode ler como um “texto aberto”, indica James Clifford (1983CLIFFORD, James. 1983. “On ethnographic authority”. Representations, 1 (2):118-146.), no qual há espaço para uma variedade de possíveis leituras e múltiplas interpretações. Isto foi feito com a preocupação em não “homogeneizar” os discursos, cuja multiplicidade de vozes presentes abre um espaço para a emergência de sua complexidade. Acredito, em consonância com diversos antropólogos, que não há mundos culturais “integrados”, ou seja, qualquer tentativa de construir uma unidade nesses discursos, muitas vezes discrepantes, deve ser rejeitada.
O sentido de devoção para o grupo
Importantes autores que buscaram pensar a religião e a espiritualidade nas últimas décadas afirmam que a civilização “ocidental” está passando por uma revolução cultural individualizante, tendo sido os anos 1960 o momento decisivo para uma generalização do individualismo “expressivo” (Taylor 2002TAYLOR, Charles. 2002. Varieties of religion today. Cambridge: Harvard University Press.:80), um tipo de orientação do self em que indivíduos interpretam suas experiências religiosas sem se preocupar em como elas se “encaixam” (Taylor 2002TAYLOR, Charles. 2002. Varieties of religion today. Cambridge: Harvard University Press.:111). A partir de uma análise das experiências religiosas de praticantes de yoga e meditação na Índia, problematizo a noção de que a espiritualidade seja pensada através da lente desta “revolução” individualizante, pois vejo que o fenômeno da espiritualidade pode se constituir de certa forma em uma resposta a essa configuração individualista de sociedade, principalmente em suas vertentes ou segmentos que buscam integrar dualidades como a do self e o outro.
Dentro dos estudos da religião - e das ciências sociais como um todo -, assume-se que as religiões organizadas são restritivas e coercitivas e que a espiritualidade, em contrapartida, é autêntica e livre, expressão “privada” da busca pelo sagrado, na qual é enfatizado o aspecto pessoal e íntimo da relação entre o divino e o humano. Autores como Bellah et al (1996BELLAH, Robert, MADSEN, Richard, SULLIVAN, William, SWIDLER, Ann & TIPTON, Steven. 1996. Habits of the heart: individualism and commitment in American life. Oakland: University of California Press.), Luckmann (1967LUCKMANN, Thomas. 1967. The invisible religion: the problem of religion in modern society. New York: Macmillan.) e Taylor (2002TAYLOR, Charles. 2002. Varieties of religion today. Cambridge: Harvard University Press.), por exemplo, defendem que a espiritualidade representa uma mudança em direção ao individualismo3 3 O individualismo é uma ideologia e não quer dizer que se manifeste na prática social de maneira plena. De certa forma, somos todos divíduos (Robbins 2004): nenhum de nós prescinde de relações e de complementaridade em relação ao outro. Em certo nível, precisamos de alguma “outra” dimensão, de ideais, de professores, santos, orixás - precisamos de complementação -, mesmo nos segmentos mais aproximados da ideologia do individualismo. Isso significa que apenas nos inspiramos nessa ideologia, mas vivemos como divíduos. e que, diferentemente da religiosidade tradicional, a espiritualidade não enfatizaria práticas comunitárias, já que diluiriam comprometimentos sociais (Oh & Saarkisian 2012OH, Seil & SAARKISIAN, Natalia. 2012. “Spiritual Individualism or Engaged Spirituality? Social Implications of Holistic Spirituality among Mind-Body-Spirit Practitioners”. Sociology of Religion, 73 (3):299-322.). Para Alter (2011ALTER, Joseph. 2011. “Sacrifice, the body, and yoga: Theoretical entailments of embodiment in hathayoga”. Journal of South Asian Studies, 35 (2):408-433.:21), práticas como a do yoga não seriam “sociais” e, para Campbell (2013CAMPBELL, Colin. 2013. “A New Age theodicy for a new age”. In: Martin -Heelas- & Woodhead- (orgs.),Peter Berger and the study of religion. New York: Routledge. pp. 73-84.), não se trata de uma teodiceia social, mas individualista, que tende a ignorar tanto a sociedade quanto a história, já que conecta o self diretamente ao cosmo.4 4 Segundo Campbell, “it would seem that this theodicy, unlike those described by Berger (or indeed Weber), would not appear to be based in either history or society. It is not, in the strict sense, a social theodicy, that is one that links individuals and generations in common rituals or through common institutions. This is an acutely individualistic theodicy, one that in linking the self directly with the cosmos, tends to bypass both society and history” (2013:83). Em contraposição, demonstro que os yogis participam de uma teodiceia baseada tanto em história quanto tradição e que liga indivíduos a instituições e rituais comuns, cujas práticas são altamente sociais (principalmente as aulas, mas também os retiros, as redes de sociabilidade, os encontros e as peregrinações).
Procuro questionar, a partir disso, a tendência em projetar o modelo de individualismo religioso que pressupõe um crente individual em relação à lógica da autonomia e da livre-escolha como análise do fenômeno da espiritualidade. Desta perspectiva, entendo que insistir no modelo de individualismo como ideologia prevalecente pode dissimular diferenças e nuances do fenômeno da espiritualidade, que mostra consolidar concepções mais emaranhadas de subjetivação que supõem diversas formas de mediação e presença sagrada e, portanto, regimes mais expandidos do eu (Viotti 2018VIOTTI, Nicolás. 2018. “De las mediaciones a los medios: la vida material de la espiritualidad contemporánea”.Ciencias Sociales y Religión, 20 (29):17-40.:35; Duarte & Aisengart 2017DUARTE, Luiz Fernando Dias & AISENGART, Rachel. 2017. “Transpersonal Ether: personhood, family and religion in modern societies”.Vibrant, 14 (1).). A partir disso, proponho que as manifestações de práticas religiosas ou espirituais de certos grupos ou movimentos neo-hindus sejam socialmente construídas, identificando-se com imperativos sociais, tais como ser aceito, cultivar comportamentos éticos e controlar as emoções. Verifico que diversas expressões e narrativas são elaboradas no processo de construção de um olhar que é socialmente organizado e sistematizado. Mostro, através dos relatos dos entrevistados, que eles concordam com um discurso coletivo encorajado e compartilhado com a professora ou guru do grupo. Isto significa que suas individualidades religiosas não implicam apenas um desenvolvimento isolado da consciência voltando-se para seu interior, mas um processo de socialização a partir de práticas e valores coletivos.
Em textos prévios, contextualizei a pesquisa junto aos vedantinos, apresentando referências sobre contexto, perfil do grupo e condições das viagens realizadas, através de uma reflexão metodológica sobre o processo pessoal de pesquisa (Bastos 2016aBASTOS, Cecilia. 2016a. Em busca de espiritualidade na Índia: os significados de uma moderna peregrinação. Curitiba: Editora Prismas., 2023aBASTOS, Cecilia. 2023a. “Espiritualidade, subjetividade e individualidade na vivência de praticantes de yoga e meditação”. In: Sandra CARNEIRO; Rodrigo TONIOL; Caroline BRITO, SERES. Seminário de Estudos de Religião e Espiritualidade. Rio de Janeiro: Mórula (no prelo).). Discuti conceitos de turismo religioso em diálogo com a produção dos estudos de religião e peregrinação (Bastos 2017aBASTOS, Cecilia. 2017a. “Perspectivas antropológicas sobre o turismo religioso: atravessando as fronteiras do turismo e da peregrinação”. Debates do NER, 18 (31):307-330., 2021BASTOS, Cecilia. 2021. “Em busca de autoconhecimento e amadurecimento: narrativas de peregrinações à Índia”. Ilha - Revista de Antropologia (no prelo).). Considerei distinções entre religião, religiosidade e espiritualidade, ao investir na reflexão sobre devoção e conversão, considerando as possibilidades de perceber as práticas no âmbito da religiosidade e da vivência idiossincrática dessa espiritualidade (Bastos 2019aBASTOS, Cecilia. 2019a. “Meditação e yoga nas camadas médias do Rio de Janeiro: análise do campo nos estudos da Bhagavad Gita”. Religare, 16 (2):659-691., 2019bBASTOS, Cecilia. 2019b. “Devoção e yoga nas camadas médias do Rio de Janeiro: análise do campo nos estudos da Bhagavad Gita”. Revista AntHropológicas, 30 (1):281-306.). Ainda em outros textos, abordei o encontro com a Índia a partir de uma reflexão sobre a sociedade ocidental e cristã, ponto de partida do estudo e dos entrevistados, utilizando-me de autores que questionaram, com grande repercussão no pensamento mundial, as visões ocidentais sobre o Oriente (Bastos 2016cBASTOS, Cecilia. 2016c. “A construção social de uma ideia de Índia”. Novos Olhares, 5 (2):98-111.). Também dialoguei com referências e estudos que apontam a complexidade do que atualmente se chama Nova Era (Bastos 2016bBASTOS, Cecilia. 2016b. “Uma espiritualidade ‘hindu’ no Ocidente: a influência do Vedanta no contexto Nova Era”. Ciências Sociais e Religião, 18 (24):33-53., 2022BASTOS, Cecilia. 2022. “Nueva Era, cuerpo y subjetividad: la performance de los practicantes de yoga y meditación”. Sociedad y Religión32 (60):1-19.), suas relações com diferentes universos de crenças e estilos de vida (Bastos 2017bBASTOS, Cecilia. 2017b. “A busca espiritual de viajantes à Índia: filosofia e prática de um estilo de vida”. Revista Brasileira de História das Religiões, 09 (27):229-255., 2023cBASTOS, Cecilia. 2023c. “Visão de mundo e projeto de busca espiritual: o ethos de praticantes do yoga e Vedanta”. USP. Revista de Antropologia, 66: e201334.), contextualizando as dimensões do corpo, das emoções e da saúde mental de praticantes de yoga e meditação (Bastos 2020BASTOS, Cecilia. 2020. “Corpo, emoção e saúde mental de praticantes de yoga e meditação”. 32ª Reunião Brasileira de Antropologia - UERJ. Disponível em:https://bit.ly/359cywY
https://bit.ly/359cywY...
, 2023bBASTOS, Cecilia. 2023b. “Yoga, Emotion and Behaviour: Becoming Conscious of Habitual Social Roles”. Journal of Contemporary Religion [no prelo].), bem como problematizando referências identitárias, tais como vedantino e “se ver como hindu” (Bastos 2018BASTOS, Cecilia. 2018. “Em busca do sentido da vida: as perspectivas de estudantes de Vedanta sobre uma ‘vida de yoga’”. Religião e Sociedade, 38 (3):218-238.; Bastos & Assis 2023BASTOS, Cecilia & ASSIS, Thaís. 2023. “Vida de yoga e neo-hinduísmo: identidades e pertencimentos”. Sociologia & Antropologia [no prelo].). Por isso, estas questões não são consideradas em profundidade aqui.
Neste artigo, reflito sobre os conceitos de espiritualidade, individualismo e religião com base na análise dos sentidos das viagens de peregrinação de um grupo de praticantes de yoga e alunos de Vedanta. Eles estavam na Índia para vivenciar a cultura de ashrams- escolas do tipo “monastério” em que se aprende sobre a filosofia do yoga5 5 A modalidade do yoga presente no grupo não deve ser definida apenas com um foco nos aspectos posturais, pois vejo que há uma escala de envolvimento dos praticantes de yoga, como define Newcombe (2013:71), que vai desde o “puramente físico” até o intensamente religioso. enquanto imerso na cultura indiana. Formavam, então, um grupo de cerca de vinte pessoas que estava ali guiado pela professora de Vedanta do grupo, Gloria Arieira. Tais viagens foram realizadas, nas palavras da professora, “com o objetivo muito específico de peregrinação mesmo”. Eles planejaram visitar os quatro locais principais de peregrinação ao norte da Índia, denominados de Char Dhams,6 6 De acordo com a tradição védica, a pessoa que realiza peregrinação a esses quatro lugares ganha mérito (punyam). que são: Badrinath, Kedarnath, Gangotri e Yamunotri, os quais ficam próximos às nascentes de rios sagrados, três dos quais desembocam no rio Ganges e um deles (Yamuná) corre em Delhi. As viagens foram organizadas pela própria professora junto com seus alunos com a proposta de aprofundar a vivência e a incorporação dos ensinamentos e, por isso, as principais atividades realizadas na Índia foram visitas a templos, caminhadas aos Char Dhams e vivência em ashrams constituída por aulas de yoga, Vedanta e meditação (o grupo permaneceu grande parte da viagem no ashram do Swami Dayananda,7 7 Swami Dayananda foi o mestre da professora Gloria Arieira. Ele foi professor de Vedanta por mais de cinco décadas e sua assimilação profunda desse conhecimento alcança estudantes do mundo inteiro. mestre da professora Gloria).
Esclareço que os sentidos das viagens são apreendidos por meio de relatos e memória dos viajantes; isto quer dizer que, em diferentes ocasiões, menciono que “observei” a devoção e a conversão ao hinduísmo por parte de alguns integrantes do grupo, remetendo ao convívio e à observação participante de mais de dez anos estudando Vedanta semanalmente com eles numa associação cultural chamada Vidya Mandir, no Rio de Janeiro.8 8 Continuei frequentando outros cursos de Vedanta após o término da Bhagavad Gita, como o Tattvabodha, o Upadesasaram, o Atmabodhah, a Katha Upanishad, Mundaka Upanishad e a Taittiriya Upanishad. Por isso, deixo claro que, quando “observo” a vivência dos mesmos na Índia, trata-se das pesquisas de doutorado e pós-doutorado em que realizei uma análise de seus relatos e construção de narrativas acerca de como o sentimento de devoção foi impulsionado, para eles, no contato com a cultura e a filosofia (de vida) indianas.
Para analisar a categoria “devoção”, baseio-me nas atividades do grupo de pesquisa da Antropologia da Devoção (PPGAS/MN), cujas publicações supervisionadas pela professora Renata de Castro Menezes foram referências consideradas por priorizarem experiências de análise das devoções como enredo; neste artigo investigo como as devoções podem ser narradas e performadas de acordo com as vivências e os relatos dos peregrinos remodelando-se em formas expressivas diversificadas e polifônicas (Menezes & Bártolo 2019MENEZES, Renata & BÁRTOLO, Lucas. 2019. “Quando devoção e carnaval se encontram”. PROA Revista de Antropologia e Arte, 1 (9):96-121.:117). Embora se trate de um contexto de reativação de memórias, articulação discursiva e performance narrativa em face de certos estímulos, incluindo a própria pesquisa, considero a habilidade narrativa dentro desse caminho espiritual um dado para a análise, já que os interlocutores observados parecem ser dotados dessa habilidade. É importante deixar claro que existem dois interlocutores privilegiados: Felipe e Luiz, ambos professores do campo do yoga. Se os “praticantes” do yoga têm perfis muito diferentes, Felipe e Luiz não falam como “meros” praticantes, mas como intelectuais do campo, pois se colocaram na posição de me ensinar. Sendo assim, a visão deles se diferencia da dos outros interlocutores da pesquisa e também delimita o foco analítico aqui priorizado: como estes professores/intelectuais do yoga formulam suas compreensões sobre a “devoção” e como tratar do gradiente individualismo-coletivismo segundo o yoga por eles postulado.
Durante as viagens que aqui descrevo, realizadas à Índia em 2007 e 2010 - as duas últimas vezes em que o grupo peregrinou ao país -, entendo que o sentimento de devoção de alguns interlocutores tenha sido mobilizado, na maior parte das vezes, quando se depararam com templos e símbolos da cultura hindu. Demonstro que, apesar de muitos se verem como hindus no Brasil, a Índia se mostrou um local propício à negociação do significado de “ser hindu” e proporcionou um momento em que suas crenças puderam ser manifestadas e renegociadas.
Verônica, uma vedantina entrevistada para esta pesquisa, explicita bem esse contato ao relatar que, na primeira vez em que visitou a Índia e se deparou com o rio Ganges, teve a experiência mais significativa de sua vida; foi ali, às margens desse rio, que entendeu o significado de “deus”:
Naquele momento, eu disse: “ah, sim, então deus é isso”. Aquela diversidade de coisas acontecendo no mesmo lugar, com aquela manifestação de fé, você vê a cremação, criança brincando, cabra comendo, cachorro latindo, sadhu9 9 Um homem santo que se retira da vida em sociedade e que se torna um tipo de profeta. Muitos indianos até hoje fazem o que faziam há séculos: deixam suas famílias e o conforto de suas casas para se tornarem renunciantes: são os sadhus, yogis ou rishis. rezando, vaca atropelando, pessoas lavando roupa, tomando banho, escovando os dentes, tudo ao mesmo tempo. E eu disse, “só pode ser isso, essa junção de todas essas coisas, é o que é”.
Ela reflete sobre a importância desse rio que, além de ter o significado de uma deidade, “Ganga”, é o local escolhido pelos hindus para morrer, pois existe a crença de que, quando a pessoa morre ali, ela está “livre” do samsara.10 10 Segundo Peter Berger (1985:77), “na engenhosa combinação dos conceitos do carma (a inexorável lei de causa e efeito que governa todas as ações, humanas ou não, no universo) e samsara (a roda dos renascimentos), toda anomia concebível é integrada numa interpretação inteiramente racional e de limitada abrangência do universo. Nada fica, por assim dizer, de fora”. Ele enfatiza que toda ação humana tem suas consequências necessárias e toda situação humana é a consequência necessária de ações humanas passadas. Assim, a vida do indivíduo seria apenas um “elo efêmero numa concatenação de causas que se estende ao infinito para o passado e para o futuro. Segue-se que o indivíduo não tem a quem culpar pelos seus próprios infortúnios senão a si próprio - e, reciprocamente, pode atribuir sua boa sorte unicamente aos seus próprios méritos” (Berger 1985:77). Apesar de ser um local descrito como “caótico” (ou até “nojento”), foi onde Verônica passou por uma experiência “mística” ou “espiritual”, em que o sentimento do choque cultural e do caótico ofereceu, naquele caso, uma nova perspectiva da qual se olhar o mundo (Dann 1999DANN, Graham. 1999. “Writing out the tourists in space and time”. Annals of Tourism Research, 26 (1):159-187.; Graburn 1989GRABURN, Nelson. 1989. “Tourism: the sacred journey”. In: V. Smith (org.), Hosts and guests: the anthropology of tourism. 2. ed. Filadélfia: University of Pennsylvania Press.; Hutnyk 1996HUTNYK, John. 1996. The rumour of Calcutta. Tourism, charity and the poverty of representation. Londres/Nova Jersey: Zed Boobs Ltd.).
Hugo, outro entrevistado, explica que tem “muita apreciação” pela cultura indiana: “Eu me sinto em casa na Índia, eu me sinto bem, me sinto parte dessa cultura, realmente me vejo como um hindu”. Uma das razões dessa identificação se relaciona ao fato de o hinduísmo ser pensado como um fenômeno “fundamentalmente cultural”, no qual uma pessoa não precisa ser religiosa para ser aceita como hindu por hindus, ou se descrever como hindu; segundo o professor da Universidade de Cambridge, “ela pode ser politeísta ou monoteísta, monista ou panteísta, até mesmo agnóstica, humanista ou ateia e ainda ser considerada ‘hindu’” (Lipner 1994LIPNER, Julius. 1994. Hindus: their religious beliefs and practices. London: Routledge.:8). Em vista disto, segundo Hugo, a cultura indiana não “exclui” ninguém, pois existiria uma total “abertura” e “acolhimento” de pessoas e visões “de fora”. Assim como Hugo, outros também afirmam se ver como hindus.
Em seu relato sobre a experiência que teve em um templo, cujas paredes pareciam “amorosas”, é interessante perceber a maneira bastante sensorial com que a entrevistada Luana manifesta a devoção:11 11 Sobre o tema da “devoção” como categoria analítica, fica visível na fala dos interlocutores como eles se posicionam sobre o tema, mas esclareço que não fiz perguntas diretas a eles sobre devoção a não ser que eles tenham trazido o tema para a entrevista e, nessas ocasiões, limito-me a indagar sempre: “em que sentido”. “Devoção”, portanto, é uma categoria que surge da fala espontânea dos interlocutores.
E você está no lugar e todas as pessoas que estavam ali tinham a mesma intenção, que era manifestar sua devoção, então o lugar era um lugar amoroso, as paredes são amorosas. A gente foi a um templo no extremo sul, em Kanyakumari. Eu entrei naquele templo e falei, “nossa, que lugar lindo, que maravilha!”. E as mulheres fazendo aquelas guirlandas de jasmim e eu botei jasmim no cabelo, sabe? Eu adorei aquilo. Foi muito íntimo, eu me senti super à vontade, super relaxada. E esse templo foi o mais lindo em que eu já entrei na minha vida inteira, eu nunca vi nada tão bonito, o lugar todo tinha cheiro de gui [manteiga, em hindi], você salivava. E ele tinha um Shiva com uma cabeça dourada assim e fica no final de um corredor. Muito lindo!
Para ela, estar naquele templo parece ter dotado sua vida de sentido (Steil 2003STEIL, Carlos. 2003. “Romeiros e turistas no santuário de Bom Jesus da Lapa”.Horizontes antropológicos, 9 (20):249-261.; Carneiro 2007CARNEIRO, Sandra. 2007. A pé e com fé: brasileiros no Caminho de Santiago. São Paulo: CNPq/Pronex/ Attar.), o que remete, segundo o campo teórico das peregrinações, à noção de centro eletivo - um centro de referência cultural fora de sua cultura de origem, escolhido pelo viajante como o local (ou cultura) que dá significado à sua vida, como proposto por Cohen (1979COHEN, Erik. 1979. “A phenomenology of tourist experiences”. Sociology, 13 (2):179-201.).12 12 Ver também Cohen (1985, 1988) e Eliade (1992). Sua vivência naquele templo tem um significado bastante internalizado, assim como sua relação com a deidade.
Dumont explica que, no hinduísmo, o divino não é mais entendido no sentido de uma “multidão de deuses” como na religião “ordinária”, mas como um “Deus único e pessoal, o Senhor Içvara, [ou Ishvara] com quem o fiel pode se identificar, do qual ele pode participar”. Desta perspectiva, o termo “participação” tem o significado do sentido fundamental da palavra devoção, bhakti, e envolve a identificação do devoto com “aquele cuja plenitude se abre à participação” (1992DUMONT, Louis. 1992. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.:332).13 13 Vejo aqui uma analogia entre o significado do termo participação e do entendimento da ordem cósmica vedantina. A participação pode ser representada, nesse contexto, quando pessoas, grupos, animais, lugares e fenômenos naturais estão em uma relação de contiguidade, e traduzem essa relação em uma de instantaneidade existencial e de contato e afinidades compartilhadas. Tambiah (1990:107-8) usa o conceito indiano de darshan (ter a visão da deidade) como um exemplo de participação - a conexão entre pessoas, o sentimento de fazer parte de um grupo de relações que se constituem como pontes para a realidade da participação; e é nesse sentido de participação que tento entender a relação do devoto com a ordem, ou Ishvara. O autor, ao fazer uma analogia do estilo de vida do renunciante na Índia com o indivíduo ocidental, afirma que a devoção total, ou o amor, é suficiente para a liberação. De acordo com Dumont, a devoção, denominada por ele como “a religião do amor”, foi uma invenção do renunciante, já que ela “supõe dois termos perfeitamente individualizados e, para conceber o Senhor pessoal, foi preciso um fiel que se vê a si também como um indivíduo” (1992DUMONT, Louis. 1992. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.:332). Sublinho que se, no passado, os renunciantes indianos se isolavam no alto das montanhas ou dentro das cavernas a fim de buscar a liberação, Dumont (1970DUMONT, Louis. 1970. Religion, politics and history in India: collected papers in Indian sociology. Paris: Mouton.) explica que, mais recentemente, o renunciante reconfigurou o sentido de renúncia, que passa então a ser “transcendida” por ser “internalizada”.14 14 Renúncia aqui não tem o sentido de aniquilamento físico de si, mas da vontade do sujeito. Quer dizer, para estar livre do samsara (da ignorância do eu), o desapego passa a ser suficiente, já que o indivíduo pode “deixar o mundo” internamente. Desta forma, a devoção tornou-se o caminho para a liberação: “ao transferir suas conquistas do plano do conhecimento para o da afetividade, o renunciante deu um presente para todos; pela submissão do amor e pela identificação de todos com o senhor, todos podem se tornar indivíduos livres” (Dumont 1970DUMONT, Louis. 1970. Religion, politics and history in India: collected papers in Indian sociology. Paris: Mouton.:56).
O individualismo no Ocidente compartilha, junto ao renunciante indiano, uma apreciação pela autonomia e pela subjetividade, fundindo-se com noções de realização pessoal e aprimoramento do self - processo no qual indivíduos se dissociam de regulações externas e descobrem sua própria verdade pessoal. Mas existe aqui o mito moderno em que a retórica da transformação assume valor ideológico, quer dizer, há uma presunção de que o indivíduo não alcançou sua máxima realização e ainda precisa se “descobrir” e se libertar de restrições sociais. Essa tensão entre a reivindicação por liberdade pessoal e uma realidade que permite apenas uma pequena margem de manobra para tal liberdade privilegia o tempo livre e a esfera privada como lócus da realização pessoal. No entanto, veremos a seguir que, apesar de as viagens se constituírem um símbolo de escolha pessoal, representando então o momento ideal dessa realização, problematizo a ideia de que as mesmas demandam poucas obrigações e restrições sociais, além de questionar a noção de espiritualidade como aliada ao individualismo e contraposta à noção de religião.
Peregrinação e devoção
Felipe é um peregrino que se considera devoto e sua trajetória, inicialmente acadêmica, merece ser observada aqui. Ele encontrou o Vedanta através de uma disciplina eletiva que cursou, junto com sua esposa, no IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais), da UFRJ, denominada “História do Pensamento Oriental I”, ministrada pela professora Raquel Movschowitz. Segundo ele, a matéria que ela estava ensinando era “justamente o capítulo dois da [Bhagavad] Gita, e foi incrível, porque a gente estava cheio de dúvidas, enfim, várias perguntas que não tinham respostas, e a Gita foi não só respondendo às perguntas, como colocando novas coisas que a gente nunca tinha pensado”. Assim, ele relata ter continuado a estudar com essa professora na disciplina “História do Pensamento Oriental II”, na qual os capítulos três e quatro da Gita foram ensinados. Após cursar estas duas disciplinas, eles quiseram saber onde poderiam continuar estudando mais sobre este assunto. Foi quando Raquel Movschowitz contou que era aluna de Gloria Arieira (a professora de Vedanta do grupo) e indicou que buscassem o Vidya Mandir.15 15 Vidya Mandir, cujo significado é “templo do conhecimento”, é uma associação cultural sem fins lucrativos, localizada no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro.
Eles, então, foram estudar no Vidya Mandir e, após ficarem um tempo estudando sânscrito e Vedanta, Felipe começou a trabalhar ali. Esta foi uma ótima oportunidade, em sua opinião, por ter ficado “bem próximo do conhecimento”, assistindo, portanto, todas as aulas que aconteciam no espaço. Felipe diz ter começado a sentir uma “ânsia muito grande de dar aula”; ele desejava se dedicar a ensinar Vedanta em tempo integral, porque este conhecimento “era tão bom que eu queria passar para alguém”. No final de 2006, incentivado por Gloria Arieira, ele começou a ensinar simbolismo e, com o tempo, o número dessas aulas aumentou. Ele explica que suas aulas de simbolismo obviamente mostravam o conhecimento do Vedanta e, sendo assim, ele passou a ensinar sânscrito, cantos e, depois de um tempo, Vedanta em si, o que foi “algo natural” para ele.
De acordo com Felipe, o objetivo maior da peregrinação é entrar em contato com “o divino” Ishvara,16 16 Ishvara é entendido como “aquele que governa”, a própria ordem cósmica, ou a projeção de atributos humanos no Absoluto (Brahman). Ishvara é o que poderíamos chamar de “Deus” como entendido no cristianismo, já que Brahman teria um significado mais amplo: seria eterno, sem forma e infinito; tudo que existe emanaria dele e iria ultimamente retornar a ele, pois simboliza a essência de toda a existência. ou com “a ordem”, com a finalidade de enfatizar a identidade do indivíduo com o todo. Se o objetivo último da peregrinação foi estar em harmonia com a ordem cósmica ou consciência, outro objetivo de suas viagens, diz Felipe, foi alcançar a suspensão do ego. Numa peregrinação à Índia - continua - a pessoa visita um lugar que tem uma imagem de uma deidade que a deixará “extasiada” por ser um lugar que tem um significado simbólico e, quando ela chega ao lugar, esse significado como que “rouba ou suspende seu ego”, ou seja, quando a pessoa chega ali e “tem esse contato simbólico” com a deidade, ela suspenderia seu ego ao entender que faz parte de “algo maior”.
Como venho mostrando ao longo do texto, narrativas de interlocutores sobre suspensão do ego e conexão com o outro e o cosmo problematizam o que a maior parte dos cientistas sociais compreende como constituinte dos novos movimentos religiosos, que seria o entendimento da espiritualidade, ou religiões do self, como formas individualizadas de religiosidade e de que em suas práticas predominaria o conceito de um indivíduo livre de vínculos (Bellah et al. 1996BELLAH, Robert, MADSEN, Richard, SULLIVAN, William, SWIDLER, Ann & TIPTON, Steven. 1996. Habits of the heart: individualism and commitment in American life. Oakland: University of California Press.; Giordan 2009GIORDAN, Giuseppe. 2009. “The body between religion and spirituality”. Social Compass, 56 (2):226-236.; Heelas 2008HEELAS, Paul. 2008. Spiritualities of life: New age romanticism and consumptive capitalism. Oxford: Blackwell Publishing.; Luckmann 1967LUCKMANN, Thomas. 1967. The invisible religion: the problem of religion in modern society. New York: Macmillan.; Maluf 2007MALUF, Sonia. 2007. “Peregrinos da Nova Era: itinerários espirituais e terapêuticos no Brasil dos anos 90”. Antropologia em primeira mão, 100:05-29.; Newcombe 2005NEWCOMBE, Suzanne. 2005. “Spirituality and ‘Mystical Religion’ in Contemporary Society: A Case Study of British Practitioners of the Iyengar Method of Yoga”. Journal of Contemporary Religion, 20 (3):305-322.; Wuthnow 2003WUTHNOW, Robert. 2003. “Spirituality and spiritual practice”. In: R. Fenn (org.), The Blackwell companion to sociology of religion. Hoboken, Nova Jersey: Blackwell Publishing Ltd. pp. 306-320.).
Sobre a ênfase da noção de individualismo nas pesquisas sobre espiritualidade, Toniol sublinha a contradição inerente ao paradoxo do holismo, já que este se constitui em um princípio que conecta e que faz com que “a interiorização do ser também seja uma abertura para aquilo que o transcende” (Toniol 2017TONIOL, Rodrigo. 2017. “Nova Era e saúde: balanço e perspectivas teóricas”. BIB, 80:27-41.:31-2). Considero então a proposta metodológica dumontiana que preconiza o predomínio da totalidade sobre as partes, não consistindo na prevalência de uma totalidade pré-dada e evidente (Duarte 2017DUARTE, Luiz Fernando Dias. 2017. “O valor dos valores: Louis Dumont na antropologia contemporânea”.Sociologia & Antropologia, 7 (3):735-772.:744). Desse modo, entendo que a devoção dos vedantinos seja permeada pela tentativa de engajamento com o outro, bem como de superação da matriz dualista (bem versus mal, espírito versus matéria). Em consonância com Carvalho e Steil (2008CARVALHO, Isabel & STEIL, Carlos. 2008. “A sacralização da natureza e a ‘naturalização’ do sagrado: aportes teóricos para a compreensão dos entrecruzamentos entre saúde, ecologia e espiritualidade”. Ambiente e Sociedade, 11 (2):289-305.), penso a vivência dos novos movimentos religiosos ou da busca por espiritualidade envolvendo o colapso das “dicotomias mente-corpo, mente-meio ambiente, dentro-fora, sujeito-objeto sem se negar a alteridade”, relacionada por Bateson com a noção de deus (2008CARVALHO, Isabel & STEIL, Carlos. 2008. “A sacralização da natureza e a ‘naturalização’ do sagrado: aportes teóricos para a compreensão dos entrecruzamentos entre saúde, ecologia e espiritualidade”. Ambiente e Sociedade, 11 (2):289-305.:301-2). Com isso, na vivência dessa espiritualidade, procuro discutir mais a fundo o contexto do contato com a alteridade que, apesar de se compor de sujeitos aparentemente individualizados, embasa-se numa interiorização envolvida pela transformação ética em relação ao outro - aqui, esse “outro” incorpora desde o colega peregrino ao indiano, as deidades e a ordem cósmica.
Felipe relata que, na Índia, “tudo é visto como uma deidade, porque, afinal de contas, tudo é a própria ordem e, então, você pode entender cada coisa sendo uma representação dessa ordem na forma específica do que você está vendo”. A peregrinação se torna um instrumento de devoção, explica Felipe, porque, durante aquele momento, suspender o ego é algo inevitável, especialmente naquela situação em que se encontravam - de seu ponto de vista, “na dependência total de Ishvara”.
Robert Bellah explica que, para ser maximamente eficaz, a devoção deve prover não apenas uma reordenação simbólica da experiência, mas também um elemento de consumação e realização: a experiência da devoção deve produzir um influxo de vida e poder, um sentimento de completude; diz ele que, se isto acontece, pode ocorrer uma mudança na definição da fronteira do eu, uma identificação com tudo o que vive, mas, acima de tudo, uma transformação da motivação, compromisso e valor que pode engajar não apenas indivíduos, mas igualmente a coletividade dos devotos. É nesse sentido que Bellah enxerga a devoção envolvendo uma regressão parcial do funcionamento defensivo normal do ego até que haja uma abertura maior à realidade interna e externa (1976BELLAH, Robert. 1976. Beyond belief: essays on religion in a post-traditional world. New York: Harper & Row.:210-11).
É da perspectiva dessa “abertura à realidade” em decorrência da devoção que entendo quando Felipe diz que, quando chegou à Índia, logo se sentiu “em casa” por ter se identificado tanto com a cultura - por ter visto que aquela tradição, que ele estava estudando no Brasil e com a qual se identificava, estava viva na Índia. As visitas aos templos foram os momentos mais significativos, pois foi onde ele pôde expressar sua devoção: “todo dia a gente acordava e dez minutos andando estava no templo de Shiva. Este foi o primeiro templo hindu em que eu entrei realmente; e você sente que o templo está vivo, de alguma maneira, você sente que tudo está vivo. Realmente é um lugar único”. Felipe enfatiza sua vivência devocional na Índia:
Você vê as pessoas andando e fazendo as mesmas coisas que você está fazendo; dependendo do mantra que você está cantando, você escuta a pessoa ao lado cantando o mesmo mantra, ou pelo menos fazendo o mesmo gesto, e isso é um tipo de vida que é incrível, e todas as pessoas com o mesmo objetivo, fazendo as mesmas reverências, da mesma maneira que você aprendeu, e está todo mundo fazendo junto. Por outro lado, toda a estrutura do templo parece viva, porque são vários altares em volta, e o templo principal está dentro, e quando você entra, você já sente que tem uma atmosfera diferente, aquelas pedras que estão ali formando as paredes e o chão são testemunhas de muita coisa que já aconteceu, então parece que está vivo. [...] E começar o dia assim é incrível. O objetivo de todas as disciplinas que são devocionais é trazer para você esse entendimento do devoto, para ficar o dia inteiro com essa visão de Ishvara. Quando você vai ao templo, isso fica muito claro, porque se você vai todo dia de manhã ao templo, realmente essa visão vem, e é muito forte.
Este peregrino revela que a sensação que teve foi como se, na Índia, a devoção “pulasse” em todas as direções porque, para qualquer lugar para o qual a pessoa olhasse, não teria como não se lembrar de Ishvara. A disciplina devocional tem esta função, que é lembrar ao devoto que existe uma ordem que tudo governa; e é com este pensamento que o devoto faz o ritual de manhã e as orações ao longo do dia, ou seja, ele pratica essas ações a fim de se lembrar de Ishvara. Aqui no Brasil, ele explica que essas disciplinas são aplicadas em determinados momentos de seu dia, por outro lado, “quando você é ‘jogado’ na Índia, você não tem nem escolha, porque você olha para qualquer lado tem um templo, tem uma cor e tem uns hindus com a marca na testa, e passa um sadhuandando e te abençoa, é incrível realmente, a tradição viva lá é indescritível”. O fato de estar na Índia, então, faria com que a pessoa se lembrasse de Ishvara a todo momento.
Outro ponto que ressaltou foi a respeito dos sentidos se tornarem mais “aguçados”, devido ao fato de se experienciarem novas informações em termos “de cor, de som e de cheiros”. Felipe indica que a pessoa volta cansada “mentalmente” de tanta informação que adquire; são informações que fazem parte da cultura e da tradição védica e que fazem com que ela, aos poucos, comece a assimilar “essa visão de Ishvara”. É nesse sentido que, depois de um tempo vivenciando a cultura hindu, o fator “identificação” se tornaria imediato. Ele complementa: “chega uma hora em que é automático, já estava no templo e sabia o que fazer, não precisava ficar pensando. No primeiro dia, eu fiquei olhando para ver como faziam, a partir do segundo dia, já comecei a fazer sozinho e depois do terceiro dia acabou-se, até o final do mês, a gente entrava e já fazia o que tinha que fazer, já fazia parte da rotina”. Nesse depoimento transparece a categoria nativa de incorporação do conhecimento tanto valorizada pelo devoto. Em um primeiro momento, é ensinado que a mente é necessária para o entendimento da filosofia do Vedanta, ou seja, é através da racionalidade que este conhecimento é assimilado mas, depois de um tempo, a mente se torna dispensável (e até “atrapalha” o entendimento), que é quando o conhecimento passa a ser algo “natural”.
Nos depoimentos dos entrevistados, observo que, através da peregrinação, eles são ensinados a reinterpretar os eventos e experiências e, com isso, são socializados nas normas coletivas da tradição, de forma a aprender de que maneira as práticas devem ser realizadas, bem como na eficácia de certas atitudes e na necessidade de aprimorar o self. Desse modo, entendo que cada um desses elementos apresenta uma fronteira fluida, como diz Capelini (2017CAPELINI, Taís. 2017. Yoga na Laje: Ganga deságua na Rocinha. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.), que não impede o movimento contínuo de incorporação e recriação de uma tradição pulsante - que é reinterpretada a cada prática, de acordo com o estilo de cada professor(a), mas também pelos usos e sentidos dados pelos praticantes nessa relação.
Vejamos a seguinte interpretação de Felipe que, ao diferenciar o que é cultura hindu e conhecimento de Vedanta, percebe que tal conhecimento, na Índia em geral, é muito restrito, o que significa que, se a pessoa estiver buscando esse conhecimento na Índia, ela poderá não encontrá-lo, a não ser que vá “ao lugar certo”: a um determinado ashram, por exemplo. No entanto, ele demonstra que, embora o Vedanta seja muito restrito, a cultura que “reflete” essa tradição está “muito viva”:
Só de você ir [ao templo] por devoção já é incrível, mas à medida que você vai estudando e conhecendo mais, você vai vendo o fundamento de cada coisa, e aí se torna muito mais especial. [...] Então, para mim, foi muito especial, porque em qualquer lugar que eu olhava, estava lá. De uma maneira, a tradição viva estava lá, brilhando ali, então dava para aproveitar muito dela.
Ao relacionar o conhecimento de Vedanta a cada objeto com que se deparava, Felipe indica que era a “expressão” de Vedanta, já que, na verdade, toda a cultura hindu refletiria a expressão do conhecimento. É nesse sentido que seria fácil, para a pessoa que estuda e conhece Vedanta, fazer a relação de cultura hindu com tradição védica, pois, ao conhecê-lo, ela conseguiria olhar para o lugar certo e “enxergar” a tradição. Observar a devoção nos templos e entendê-la como fundamento da tradição védica, durante a viagem, foi o que fez a diferença para alguns, ou seja, enxergar a filosofia védica incorporada na Índia de uma “maneira cultural e social” foi o diferencial de suas peregrinações.
Tradição, valores e sentidos
Assim como Felipe, Luiz é um entrevistado que desejou se aprofundar nesse conhecimento e também se tornou professor de Vedanta. Ele relata ter encontrado o yoga através de um professor de Vedanta (indiano, que estava morando no Brasil). Aos poucos foi entendendo as diferenças entre yoga, hinduísmo e Vedanta e se sentiu atraído por essa tradição e seu componente “ritualístico”. Ao estar cada vez mais envolvido, naturalmente começou a ensinar e foi assim que acabou indo estudar no ashram do Swami Dayananda, na Índia, no curso intensivo de Vedanta de três anos.
Luiz explica que, por trás de todos os rituais védicos, há algo que remete à noção de que não existe separação entre o indivíduo e Ishvara, o que significa que a busca na qual a pessoa se encontra, a fim de se tornar completa, seria uma inconsistência a ser descoberta. Este importante fator, que é o fundamento do Vedanta, faz com que a pessoa, mesmo inconscientemente, quando segue um protocolo ritualístico, possa compreender que a religião não é entendida como um fim, mas como um meio temporário cuja finalidade é o entendimento do “significado da espiritualidade”. Ele se pergunta o que muda na vida da pessoa quando ela sabe que é “a verdade do universo” e não tem necessidade de mais nada para se sentir plena e completa. Do ponto de vista intelectual, segundo ele, esse entendimento ocorre na mente de um personagem de um sonho e, mesmo depois de esse personagem ter adquirido o entendimento e continuar a se relacionar com as pessoas e as situações, o que se transforma é a expressão desse conhecimento do ponto de vista da devoção, quer dizer, quando a pessoa entende que ela é “a verdade do todo”, ela se torna devota. Se ela entende que todo o universo é “uma realidade só” e não existe divisão entre as pessoas, as relações que estabelece são precedidas pela visão do todo. Para a pessoa que tem a visão “eu sou a verdade do universo”, ela percebe “o todo” do universo antes de perceber qualquer outro fator:
Na hora em que alguma coisa acontece na minha vida, antes de falar, “por que eu?”, eu tenho uma percepção de que existe uma ordem no universo e isso está acontecendo para mim. É toda uma atitude que muda, então essa é a verdadeira devoção; o coração da devoção é a relação com o todo no meu dia a dia. Mas nem sempre essa relação é possível no início, porque é uma coisa muito contrária ao que a gente está acostumado, então a gente usa coisas como templo ou algumas imagens, que é como se eu praticasse essa visão em um determinado momento especial da minha vida (de manhã quando eu acordo e faço, durante cinco minutos, uma oração); mas o objetivo é que esse momento se expanda durante o dia inteiro, não com uma imagem de um deus específico, mas com a visão do todo. É muito importante a religiosidade do ponto de vista de Vedanta, porque senão esse “salto” não é possível; a mente está muito acostumada a ter uma forma.
Ishvara é conhecimento, revela Luiz, que o entende como “o que faz as coisas acontecerem do jeito que são” e também como “a causa de tudo o que está aqui”. Para o entrevistado Carlos, devoção é conhecimento, ou seja, a devoção viria como uma resposta a uma mente que tem o conhecimento. Carlos relata estar sempre buscando reconhecer Ishvara em todas as situações e circunstâncias. É de acordo com o sentido descrito acima do entendimento de Ishvara como conhecimento que observo a afirmação de Dumont (1992DUMONT, Louis. 1992. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.:333): “A bhakti [devoção] da Gita é especulativa, intelectual como o clima em que nasceu, a efusão nela é comedida, o delírio dela está ausente”. Apesar de parecer contraditório pela compatibilidade entre emoção e razão, o devoto indiano - assim como o ocidental, complemento - parece ser alguém que passou por um processo bastante “racional”, ou “especulativo” e “intelectual”, segundo Dumont, e sua devoção - como vista, sem deixar de expressar os sentimentos - também parece ser “racionalizada” ou “comedida”, sem “delírios”.
Seguindo a lógica vedantina, Luiz propõe que a ordem do universo está sempre presente, por mais que a pessoa a desconsidere, e que a diferença entre o devoto e o não devoto está na visão que ambos possuem da ordem que permeia todas as ações, quer dizer, o que causa a satisfação ou o sofrimento está relacionado com a visão das situações que acontecem na vida da pessoa e não as situações em si. Por mais desconfortável que a situação seja, se o devoto entende que o que está acontecendo com ele é resultado de uma ação que fez no passado (carma), segundo Luiz, não existe um sentimento de injustiça e de sofrimento, nem “de se sentir pequeno e ameaçado por todo esse universo gigante”.
No depoimento de Luiz, observo certa nuance que complexifica a noção de individualismo a partir da tomada de consciência impregnada na metafísica de que o sujeito seja o próprio universo, como lembra Mauss (2003MAUSS, Marcel. 2003. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “eu”. Rio de Janeiro: Cosac Naify.:384) sobre a noção de pessoa na Índia, ou na subjetividade como microcosmo do universo, como apresentada por Geertz, sobre a visão de mundo hindu-javanesa na qual, nas profundezas do fluido mundo interior do pensamento-e-emoção, eles veem refletida a própria realidade última (2000GEERTZ, Clifford. 2000 [1973]. The interpretation of cultures. New York: Basic Books.:134).
Se as práticas dos vedantinos às quais me refiro constituem uma variedade individual, privada e introspectiva, nos mesmos moldes do individualismo qualitativo (Simmel 2005SIMMEL, Georg. 2005. “As grandes cidades e a vida do espírito”. Mana, 11 (2):577-591.; Elias 1994ELIAS, Norbert. 1994. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar.), foi buscando compreender as contradições envolvidas em suas percepções de self que observo uma noção de “comunhão cósmica” inerente a essa constituição. Vejo em suas experiências de devoção uma tentativa de escapar do individualismo radical, herdada em sua maior parte do movimento romântico, que assume que “lá no fundo” de cada pessoa haveria uma harmonia espiritual fundamental que a conecta não apenas com outras pessoas, mas também com o cosmo como um todo; é nesse sentido que considero o processo de construção do self dos peregrinos, levando em conta sua tentativa de “tornar-se um” com o universo (Bastos 2023aBASTOS, Cecilia. 2023a. “Espiritualidade, subjetividade e individualidade na vivência de praticantes de yoga e meditação”. In: Sandra CARNEIRO; Rodrigo TONIOL; Caroline BRITO, SERES. Seminário de Estudos de Religião e Espiritualidade. Rio de Janeiro: Mórula (no prelo).).
A visão do devoto, segundo Luiz, envolve o entendimento de que o eu é não só parte do todo, mas o todo na forma de consciência. Ele considera que o sentimento de opressão exista devido a uma “alienação” em relação à ordem do universo; quando o devoto introduz no seu dia a dia a visão do eu que é consciência, por mais desconforto que haja, não existe alienação (no sentido de se sentir “pequeno” ou “limitado”). Luiz elucida que a “visão” dessa ordem não é conquistada somente através do entendimento de Vedanta como algo apenas “racional”; a mente teria que entender o que está sendo dito como verdadeiro, o que significa que, apesar de a pessoa entender isto do ponto de vista intelectual, ao mesmo tempo esta visão não parece algo “real” em sua mente. Isto aconteceria, de acordo com ele, porque o intelecto está sempre “na frente da mente”, ou seja, o intelecto “entende várias coisas, mas, para a mente ver como verdadeiro, para ela tomar como seu, leva um tempo”. É com esta finalidade que existem várias disciplinas e práticas rituais: para a mente poder “acompanhar” o intelecto.
Joe Dispenza, em seu livro Evolve your brainDISPENZA, Joe. 2008. Evolve your brain: The science of changing your mind. Deerfield Beach, FL: Health Communications, Inc., explica que para transformar a saúde mental, padrões de atitudes de como se pensa precisam ser mudados, pois criam um estado de ser diretamente conectado ao corpo. Ao mudar essas atitudes, indivíduos começam a prestar atenção a seus pensamentos, esforçando-se conscientemente para observar processos de pensamentos em geral negativos. Dispenza infere que a maior parte dos pensamentos são ideias que nós inventamos e começamos a acreditar, e esse acreditar acaba se tornando um hábito. Todos os seus entrevistados, pessoas que superaram a deficiência física (como paralisia) resultante de algum acidente, tiveram que lutar contra a noção de que seus pensamentos eram incontroláveis e, ao invés, escolheram ter mais controle sobre eles. Eles foram capazes de comandar seus pensamentos e afastar modos de pensar que não os beneficiassem, o que fez com que Dispenza chegasse à conclusão de que pensamentos conscientes, repetidos com frequência, tornam-se pensamentos inconscientes.
Assim como pensamentos desencadeiam reações químicas que conduzem o comportamento, é dito que nossos pensamentos repetitivos e inconscientes produzem padrões de comportamento automático que são quase involuntários. Esses padrões seriam hábitos que se tornam neurologicamente conectados no cérebro, então seria preciso consciência e esforço para quebrar o ciclo de um processo de pensamento que se tornou inconsciente, necessitando sair da rotina e olhar para a vida. Assim, através da contemplação e da autorreflexividade, seria possível se tornar consciente de papéis inconscientes. Sobre essa tomada de consciência, Dispenza (2008DISPENZA, Joe. 2008. Evolve your brain: The science of changing your mind. Deerfield Beach, FL: Health Communications, Inc.:46) afirma que devemos observar esses pensamentos sem responder-lhes de forma que não iniciem as respostas químicas e automáticas que produzem o comportamento habitual, para que, dessa forma, possamos aprender a ter domínio sobre eles.
Essa noção do hábito envolve pensar quais seriam as consequências quando não apenas nosso comportamento, mas também crença, valor, atitude e humor entram no mesmo padrão completamente previsível e inconsciente. É dito que devemos parar o nosso modo mais natural de pensar e sentir para reprogramar nosso cérebro, o que exige esforço mental e determinação, pois nesse estado de mente “protegido” estaríamos preparados para reagir com certo conjunto de respostas programadas para proteger o “self” (que identificamos com o corpo). Desta perspectiva, não mais pensamos ou ponderamos, apenas reagimos - um estado em que o desconhecido sempre ameaça o “equilíbrio” (no sentido de nossas ações se tornarem automáticas, rotineiras e inconscientes), e no qual estaríamos condicionados a desejar conforto, familiaridade e previsibilidade.
Dispenza afirma que nossas atitudes emocionais, que acreditamos serem causadas por agentes externos a nós, são resultado de como percebemos a realidade baseados em nossos vícios de como queremos nos sentir. Enquanto adultos, se não aprendermos nada novo ou tivermos novas experiências que mudarão o cérebro e a mente, usaremos o mesmo maquinário neurológico ativado pelas mesmas condições genéticas físicas e mentais. Para mudar essa condição, o autor ressalta que é preciso mudar nossas atitudes para que um novo sinal possa chegar às células, e seria nesse sentido que nossas atitudes e a forma como gerenciamos pensamentos estão diretamente relacionados à ação de aprimorar nossas habilidades para usar a mente a fim de escolher de maneira selecionada onde colocarmos nossa atenção.
A partir dessa noção da escolha de agir conscientemente e se comportar de maneira não “reativa”, valorizada pelos interlocutores da pesquisa e respaldada por Dispenza, chamo a atenção para o caráter racional do ethos vedantino. Essa racionalidade, segundo Weber (1958WEBER, Max. 1958 [1916]. The religion of India: the sociology of Hinduism and Buddhism. Glencoe, Illinois: Free Press.:170), seria apenas um instrumento para alcançar o objetivo da meditação ou contemplação; esta não necessariamente se torna um abandono passivo aos sonhos ou a simples auto-hipnose (embora possa chegar a tais estados na prática); ao contrário, o caminho específico para a contemplação seria uma concentração bastante energética em certas verdades, que chegam a assumir uma posição central internamente e a exercer uma influência integradora sobre a visão total do mundo. Por outro lado, o yogi, chamado por Weber de “místico contemplativo”, não percebe o significado essencial do mundo e daí o compreende de forma racional, pela mesma razão que ele já concebeu o significado essencial do mundo como uma unidade além de toda realidade empírica. É dessa maneira que a contemplação nem sempre resultou em um abandono do mundo social no sentido de evitar qualquer contato com este mas, ao contrário, esse indivíduo pode requerer de si a manutenção de seu estado pleno contra cada pressão da ordem mundana, como um índice do caráter permanente deste estado (Weber 1958WEBER, Max. 1958 [1916]. The religion of India: the sociology of Hinduism and Buddhism. Glencoe, Illinois: Free Press.).
Weber (1958WEBER, Max. 1958 [1916]. The religion of India: the sociology of Hinduism and Buddhism. Glencoe, Illinois: Free Press.:184) considera o adepto do yoga um observador de suas próprias ações e de todos os processos psíquicos em sua própria consciência e, desse modo, ele se torna “emancipado do mundo”, ou seja, o yogi é aquele que, ao fazer a ação, torna-se livre da ação e também livre do samsara. O que Weber (1958WEBER, Max. 1958 [1916]. The religion of India: the sociology of Hinduism and Buddhism. Glencoe, Illinois: Free Press.:185) quer mostrar é que alguém que uma vez “tirou o véu da ignorância” e sabe que é “um com Brahman”17 17 Brahman é entendido como o absoluto e imutável - a consciência. pode continuar a viver no mundo de ação ilusória sem colocar em risco sua liberação. Essa liberação seria alcançada através de uma síntese completa da mente com a matéria na pessoa integral do yogi - quando se alcança uma dissolução completa do self na realidade última da consciência (Alter 1992ALTER, Joseph. 1992. “The sannyasi and the Indian wrestler: the anatomy of a relationship.”American Ethnologist19 (2):317-336.:324).
Com a finalidade de alcançar a liberdade (do samsara), percebo que a devoção surge, para os entrevistados, a partir de um primeiro momento totalmente “racional”, no qual eles buscam o conhecimento enquanto uma filosofia (de vida) baseada na autorreflexividade e, quando esse conhecimento de alguma maneira se torna “incorporado” - na medida em que eles buscam dar atenção consciente de forma a mudar hábitos e padrões de comportamento -, eles passam a entender o “eu interior” em sua dimensão de “sacralidade”. É nesse sentido que entendo o que Weber (1958WEBER, Max. 1958 [1916]. The religion of India: the sociology of Hinduism and Buddhism. Glencoe, Illinois: Free Press.:187) quis dizer a respeito da devoção no hinduísmo, a qual envolve a “orientação de toda a vida da pessoa” e uma “confiança” e “obediência” incondicionais a um “redentor”.
No passado, muitos entrevistados disseram ter tido alguma experiência de desilusão e um certo desencantamento em relação aos valores de suas sociedades de origem. Algo perceptível em suas trajetórias foi o oferecimento de um novo sentido proporcionado pelo Vedanta, culminando com a peregrinação. Se de fato o Vedanta e a peregrinação ofereceram um novo sentido às suas vidas, este pode ser entendido da perspectiva de como Simmel descreve a pessoa que sente a religiosidade “dentro” dela e que tem necessidade de “completar a existência fragmentária; de reconciliar os conflitos dentro do indivíduo e entre os homens; de encontrar um ponto fixo em meio à instabilidade ao redor, uma justiça nas crueldades da vida e por detrás delas”, buscando, assim, uma unidade dentro e acima da multiplicidade desconcertante da vida (Simmel 2010SIMMEL, Georg. 2010 [1918]. Religião. Ensaios, volume 1/2. São Paulo: Olho D’Água.:26).
A partir dessa busca por uma “unidade”, considero que as atitudes e as práticas analisadas aqui podem ser vistas como se dissolvessem a individualidade do devoto através da conformidade com um modelo externo, como o da tradição ou da relação com o mestre, bem como na performance de intenções disciplinares que interiorizam e naturalizam certos tipos de comportamento e emoção; essas atitudes e práticas também parecem eficazes justamente pelo tipo de subjetividade que pode ser cultivada na apropriação que o devoto faz dessa tradição, assim como na intensificação de significados éticos e estéticos incorporados (Valantasis 2002VALANTASIS, Richard. 2002. “A Theory of the Social Function of Asceticism”. In: W. Vincent & R. Valantasis (orgs.), Asceticism. Oxford: Oxford University Press. pp. 544-552.). Contrapondo-se à maior parte dos estudos que diferenciam espiritualidade de religião, verifico que os vedantinos, ao mesmo tempo em que passam por um processo individual de busca espiritual, tendem a submeter-se a dogmas religiosos e a uma autoridade externa, na forma do tão respeitado guru e, além disso, a desenvolver essa busca em grupos, através de práticas sociais. Além de aceitar os dogmas da tradição védica, observo que os entrevistados se adaptam a esses princípios, ao mesmo tempo em que colocam em xeque sua individualidade ao se tornarem parte dessa tradição, tanto como transmissores quanto receptores, que assim expressam seus mais significativos valores e sentidos.
Considerações finais
Neste artigo, procurei compreender os significados atribuídos às experiências de pessoas que, em suas buscas espirituais, acabam produzindo novas identidades pessoais. Ao se basearem em referenciais que estão em consonância com o Vedanta, os entrevistados passam a adotar práticas e valores que orientam suas condutas e que os insere nesse novo ambiente social. Essas criativas construções identitárias são o produto de novas maneiras de se compreender o mundo e inspiram uma forma singular de religiosidade, que implica a identificação com imperativos sociais, tais como ser aceito, controlar as emoções e cultivar - e ser adaptável a - certas “disposições morais” (Altglas 2018ALTGLAS, Véronique. 2018. “Spirituality and Discipline: Not a Contradiction in Terms”. In: V. Altglas & M. Wood (orgs.), Bringing back the social into the sociology of religion: critical approaches. Leiden; Boston: Brill. pp. 79-107.). Desta perspectiva, demonstro que a análise das narrativas de meus interlocutores não aponta apenas para a noção de individualismo como valor, mas também para uma noção mais complexa e sutil de envolvimento e pertencimento, já que suas práticas espirituais são transmitidas através de um processo de socialização integrado em seu ambiente social.18 18 Concordo com Woodhead e Heelas quando indicam que, para cada adepto que busca descobrir sua divindade interna ou entrar em contato com seu verdadeiro self, há outro que está tanto ou mais preocupado com relações, com a vida dos seres humanos, animais e do planeta como um todo (2001:60).
Acredito que a identificação com as tradições orientais venha, para os adeptos “ocidentais”, primeiramente a partir da valorização e do aprimoramento do self - fruto do individualismo romântico centrado na defesa da interioridade e do caminho pessoal. Ao contrário do individualismo quantitativo característico do pensamento iluminista, o individualismo qualitativo centra-se no cultivo de si, na ideia de bildung e na existência de um eu interior. Duarte argumenta que esse individualismo romântico encarna, nos termos do modelo de Dumont, “a dimensão hierárquica, holista, do pensamento humano, oposta à ideologia do individualismo” (2004DUARTE, Luiz Fernando Dias. 2004. “A pulsão romântica e as ciências humanas no Ocidente”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 19 (55):5-18.:08). Ressalto, porém, que no hinduísmo não existe a noção de movimento, de cultivo e construção, mas de que o eu seja imutável. A partir disso, entendo que a busca pela singularidade e a interioridade ocidentais teve certa influência de religiosidades orientais, no sentido de abertura de diálogo com essas cosmovisões (Barroso 1999BARROSO, Maria. 1999. A construção da pessoa “oriental” no Ocidente: um estudo de caso sobre o Siddha Yoga. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social,Universidade Federal do Rio de Janeiro.), devido à existência, em ambas, de um eu essencial. “Semelhante associação fez Dumont (1992DUMONT, Louis. 1992. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.) ao comparar o renunciante indiano ao indivíduo moderno. Ambos se preocupam consigo mesmos na sua busca por realização” (Nunes 2008NUNES, Tales. 2008. Yoga: do corpo, a consciência; do corpo à consciência. O significado da experiência corporal em praticantes de yoga. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.:20).
A partir dessa busca, sugiro que, aliada à crítica ao modo de vida moderno, surge uma identificação com o Oriente entendido enquanto valor, ligado à noção de holismo e preservação das tradições, valores e uma ética de convivência com os outros e o cosmo. Se tomarmos o valor individual apresentado por Dumont como ponto de partida das trajetórias dos vedantinos, o individualismo fora do mundo presente desde o estoicismo romano constitui uma pista para compreender a cosmovisão à qual os entrevistados aderem - cuja noção de indivíduo estaria subordinada à ideologia holista e à hierarquia. Apesar de Dumont dividir sua análise em dois polos - holismo e individualismo -, Duarte (2017DUARTE, Luiz Fernando Dias & AISENGART, Rachel. 2017. “Transpersonal Ether: personhood, family and religion in modern societies”.Vibrant, 14 (1).) entende que tanto a sociedade ocidental como a indiana não sejam definidas em termos lineares como holistas e individualistas. A análise empírica dos vedantinos mostra com qual intensidade a ideologia predominante se apresenta. Se Gilberto Velho (2004VELHO, Gilberto. 2004.Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar .) já dizia que um problema central na obra de Dumont era o “alto nível de generalidade e abstração”, entendo que Dumont reconhecia que, mesmo nas culturas totalizantes como a indiana, existe uma abertura à possibilidade de escolha, de individualização, o que traz uma pista à compreensão não da tensão, mas da associação entre identidade individualizada e totalizante. A partir disso, entendo que, se os vedantinos partiram de uma busca do cultivo de si e de interioridade, suas trajetórias mostram que eles procuram, através das práticas de yoga e meditação - e também através da viagem de peregrinação -, aderir à visão de mundo hindu, que preconiza a noção de pessoa coletiva e o pertencimento a um grupo social. Com isso, tento pensar os interlocutores a partir dessa dialética entre holismo e individualismo que representa uma configuração de ideias-valores, não consistindo de uma realidade vivencial concreta, imediata e uniforme - holismo aqui se refere a um valor relacional que engloba os demais em termos de nível, uma percepção da “bidimensionalidade” da relação hierárquica que manifesta o princípio do “englobamento do contrário” (Duarte 2017DUARTE, Luiz Fernando Dias & AISENGART, Rachel. 2017. “Transpersonal Ether: personhood, family and religion in modern societies”.Vibrant, 14 (1).:744). Se, por um lado, o esquema dumontiano aponta para a ideia de que um valor, como o do individualismo, nunca é totalmente dominante mas encontra-se em combinação com outros valores, a perspectiva neorromântica, por outro lado, aproxima-se da interpretação de atuais movimentos contrários à tradição racionalista, iluminista e hegemônica - a favor de uma disposição reativa de recomposição de valores holistas e em nome da singularidade, da intensidade e da experiência.
Observo, no caso dos peregrinos analisados, que há um campo existencial compartilhado que envolve a intensificação da subjetividade que simultaneamente transcende a individualidade. O eu vedantino, que busca ser dissolvido, cria uma interioridade que conecta o self e o cosmo, a experiência interna e o mundo. Entendo, com isso, que essa noção de que o eu seria individual e separado consiste em uma ilusão para os peregrinos, de modo que percebem que o apego a esse eu leva à dor e ao mesmo sofrimento que a adesão a qualquer outra categoria fixa de pensamento. O estilo de vida de yoga compreende estar atento às suas atitudes, agindo de forma consciente e aceitando o que a consciência ou a ordem cósmica traz.
Faço uma comparação etnográfica para acentuar o que é particular a esse universo de estudo, já que há conexões entre o que se apresenta no texto e a noção de eu abordada por Geertz (2000GEERTZ, Clifford. 2000 [1973]. The interpretation of cultures. New York: Basic Books.). O autor argumenta que as pessoas em Bali são direta e profundamente conectadas à vida dos outros, pois sentem que seu mundo foi moldado pelas ações dos que vieram antes e também orientam suas ações de forma a moldar o mundo dos que virão depois. No entanto, este não é o aspecto simbolicamente enfatizado, esclarece Geertz, mas sua colocação social, sua localização particular dentro de uma ordem metafísica persistente, na verdade eterna, fazendo com que as formulações de personalidade sejam, em nossos termos, “despersonalizantes” (Geertz 2000GEERTZ, Clifford. 2000 [1973]. The interpretation of cultures. New York: Basic Books.:390). A partir disso, explorei o discurso dos peregrinos de forma a apreender a maneira pela qual ele pode encorajar certos tipos de atitudes e práticas, ponderando o que a disciplina de constante observação, avaliação de emoções, comportamentos e pensamentos e a regulação do eu descrita por eles incluem. Ao mesmo tempo, entendi que os vedantinos aprendem a manter o foco da atenção em como a ordem cósmica se revela a eles, no sentido de olhar para o mundo e o outro com base em uma visão mais abrangente - na qual o que a pessoa quer perde a importância em relação ao que a ordem cósmica traz.
Ao criticar o entendimento da espiritualidade por parte de cientistas sociais que a enxergam como oposta à religião e apoiada no conceito de individualismo como valor, mostrei, a partir do hinduísmo praticado por brasileiros que fazem peregrinações à Índia, como os mesmos aderem a uma autoridade e se submetem às normas sociais e, além disso, como vivenciam sua devoção através de práticas que dissolvem a individualidade por meio da conformidade com a tradição ou da relação com o mestre. Mostrei ainda como a performance de tais práticas naturaliza certos tipos de comportamento e emoção, mas também como a performance é eficaz na apropriação dessa tradição. Com isso, considero que a pessoa do devoto se liberta de certa noção identitária fragmentada e individualizante ao tornar-se parte da expressão de significativos valores e sentidos dessa tradição, no criativo processo da construção de um olhar que é socialmente organizado e sistematizado.
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1
Os seguintes princípios do Vedanta (uma tradição altamente complexa com muitas linhas e diversas interpretações) foram resumidos por Goldberg (2010GOLDBERG, Philip. 2010. American Veda: from Emerson and the Beatles to yoga and meditation how Indian spirituality changed the West. New York: Harmony Books.:10-11) da seguinte forma: a realidade última é tanto imanente quanto transcendente; “deus” (ou consciência) pode ser concebido tanto em termos pessoais quanto não pessoais; também pode ser concebido como o absoluto sem forma ou em diversas formas e manifestações. Atma é Brahman, consciência, porém nossa unidade com o divino, que é ofuscada pela ignorância, faz com que nos identifiquemos com o ego. Os indivíduos podem ser despertados para sua natureza divina através de inúmeros caminhos e práticas. Realizar completamente a verdadeira natureza do eu acarreta um fim ao sofrimento e início de um estado de liberação, chamado moksha. Esses princípios são ainda acompanhados pelos conceitos védicos de carma (toda ação tem uma reação) e de reencarnação.
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2
Texto religioso hindu, do épico Mahabharata, a Bhagavad Gita é considerada uma das principais escrituras sagradas da Índia. Esta obra relata o diálogo de Khrishna (uma das encarnações de Vishnu) com Arjuna (seu discípulo guerreiro) em pleno campo de batalha. Nesse texto, são colocados importantes pontos da filosofia indiana, principalmente o conhecimento da natureza do eu e sua relação eterna com toda a criação e aquilo que transcende a ela.
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3
O individualismo é uma ideologia e não quer dizer que se manifeste na prática social de maneira plena. De certa forma, somos todos divíduos (Robbins 2004ROBBINS, Joel. 2004. Becoming Sinners. Christianity and Moral Torment in a Papua New Guinea Society. Berkeley: University of California Press.): nenhum de nós prescinde de relações e de complementaridade em relação ao outro. Em certo nível, precisamos de alguma “outra” dimensão, de ideais, de professores, santos, orixás - precisamos de complementação -, mesmo nos segmentos mais aproximados da ideologia do individualismo. Isso significa que apenas nos inspiramos nessa ideologia, mas vivemos como divíduos.
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4
Segundo Campbell, “it would seem that this theodicy, unlike those described by Berger (or indeed Weber), would not appear to be based in either history or society. It is not, in the strict sense, a social theodicy, that is one that links individuals and generations in common rituals or through common institutions. This is an acutely individualistic theodicy, one that in linking the self directly with the cosmos, tends to bypass both society and history” (2013CAMPBELL, Colin. 2013. “A New Age theodicy for a new age”. In: Martin -Heelas- & Woodhead- (orgs.),Peter Berger and the study of religion. New York: Routledge. pp. 73-84.:83). Em contraposição, demonstro que os yogis participam de uma teodiceia baseada tanto em história quanto tradição e que liga indivíduos a instituições e rituais comuns, cujas práticas são altamente sociais (principalmente as aulas, mas também os retiros, as redes de sociabilidade, os encontros e as peregrinações).
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5
A modalidade do yoga presente no grupo não deve ser definida apenas com um foco nos aspectos posturais, pois vejo que há uma escala de envolvimento dos praticantes de yoga, como define Newcombe (2013NEWCOMBE, Suzanne. 2013. “Magic and Yoga: The Role of Subcultures in Transcultural Exchange”. In: B. Hauser (org.), Yoga Traveling. Bodily Practice in Transcultural Perspective. New York: Springer. pp. 57-79.:71), que vai desde o “puramente físico” até o intensamente religioso.
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6
De acordo com a tradição védica, a pessoa que realiza peregrinação a esses quatro lugares ganha mérito (punyam).
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7
Swami Dayananda foi o mestre da professora Gloria Arieira. Ele foi professor de Vedanta por mais de cinco décadas e sua assimilação profunda desse conhecimento alcança estudantes do mundo inteiro.
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8
Continuei frequentando outros cursos de Vedanta após o término da Bhagavad Gita, como o Tattvabodha, o Upadesasaram, o Atmabodhah, a Katha Upanishad, Mundaka Upanishad e a Taittiriya Upanishad.
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9
Um homem santo que se retira da vida em sociedade e que se torna um tipo de profeta. Muitos indianos até hoje fazem o que faziam há séculos: deixam suas famílias e o conforto de suas casas para se tornarem renunciantes: são os sadhus, yogis ou rishis.
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10
Segundo Peter Berger (1985BERGER, Peter. 1985 [1967]. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. 2. ed. São Paulo: Paulus.:77), “na engenhosa combinação dos conceitos do carma (a inexorável lei de causa e efeito que governa todas as ações, humanas ou não, no universo) e samsara (a roda dos renascimentos), toda anomia concebível é integrada numa interpretação inteiramente racional e de limitada abrangência do universo. Nada fica, por assim dizer, de fora”. Ele enfatiza que toda ação humana tem suas consequências necessárias e toda situação humana é a consequência necessária de ações humanas passadas. Assim, a vida do indivíduo seria apenas um “elo efêmero numa concatenação de causas que se estende ao infinito para o passado e para o futuro. Segue-se que o indivíduo não tem a quem culpar pelos seus próprios infortúnios senão a si próprio - e, reciprocamente, pode atribuir sua boa sorte unicamente aos seus próprios méritos” (Berger 1985BERGER, Peter. 1985 [1967]. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. 2. ed. São Paulo: Paulus.:77).
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11
Sobre o tema da “devoção” como categoria analítica, fica visível na fala dos interlocutores como eles se posicionam sobre o tema, mas esclareço que não fiz perguntas diretas a eles sobre devoção a não ser que eles tenham trazido o tema para a entrevista e, nessas ocasiões, limito-me a indagar sempre: “em que sentido”. “Devoção”, portanto, é uma categoria que surge da fala espontânea dos interlocutores.
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12
Ver também Cohen (1985COHEN, Erik. 1985. “Pilgrimage and tourism: convergence and divergence”. In: V Turner (org.),On the edge of the bush: anthropology as experience. Tucson: The University of Arizona Press. pp. 47-61., 1988COHEN, Erik. 1988. “Traditions in the qualitative sociology of tourism”.Annals of Tourism Research, 15:29-46.) e Eliade (1992ELIADE, Mircea. 1992. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes.).
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13
Vejo aqui uma analogia entre o significado do termo participação e do entendimento da ordem cósmica vedantina. A participação pode ser representada, nesse contexto, quando pessoas, grupos, animais, lugares e fenômenos naturais estão em uma relação de contiguidade, e traduzem essa relação em uma de instantaneidade existencial e de contato e afinidades compartilhadas. Tambiah (1990TAMBIAH, Stanley. 1990. Magic, science and religion and the scope of rationality. Cambridge: Cambridge University Press.:107-8) usa o conceito indiano de darshan (ter a visão da deidade) como um exemplo de participação - a conexão entre pessoas, o sentimento de fazer parte de um grupo de relações que se constituem como pontes para a realidade da participação; e é nesse sentido de participação que tento entender a relação do devoto com a ordem, ou Ishvara.
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14
Renúncia aqui não tem o sentido de aniquilamento físico de si, mas da vontade do sujeito.
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15
Vidya Mandir, cujo significado é “templo do conhecimento”, é uma associação cultural sem fins lucrativos, localizada no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro.
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16
Ishvara é entendido como “aquele que governa”, a própria ordem cósmica, ou a projeção de atributos humanos no Absoluto (Brahman). Ishvara é o que poderíamos chamar de “Deus” como entendido no cristianismo, já que Brahman teria um significado mais amplo: seria eterno, sem forma e infinito; tudo que existe emanaria dele e iria ultimamente retornar a ele, pois simboliza a essência de toda a existência.
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17
Brahman é entendido como o absoluto e imutável - a consciência.
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18
Concordo com Woodhead e Heelas quando indicam que, para cada adepto que busca descobrir sua divindade interna ou entrar em contato com seu verdadeiro self, há outro que está tanto ou mais preocupado com relações, com a vida dos seres humanos, animais e do planeta como um todo (2001WOODHEAD, Linda & HEELAS, Paul. 2001. “Homeless minds today?”. In: P. Heelas et al. (orgs.), Peter Berger and the study of religion. London: Routledge . pp. 43-72.:60).
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Financiamento
Agradeço aos pareceristas anônimos pelos comentários e sugestões, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa concedida durante o doutorado e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa concedida durante o pós-doutorado.
Editado por
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Editor Associado:
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
17 Dez 2020 -
Aceito
04 Jan 2023