Acessibilidade / Reportar erro

SEGREGAÇÃO URBANA EM SÃO PAULO: 25 anos depois de “enclaves fortificados”, de Teresa Caldeira1 1 Uma versão preliminar do argumento deste artigo foi apresentada em inglês no workshop Urban Injustices: Normative Ideas and Practices, realizado pelo Centro de Estudos da Metrópole nos dias 13 a 15 de fevereiro de 2023. Agradeço a Katarina Pitasse Fragoso e Pedro Lippmann pela organização do seminário e pelo convite para a apresentação. Também agradeço os comentários e as perguntas que me ajudaram a lapidar e consolidar algumas das ideias desenvolvidas neste texto. A apresentação no seminário foi preciosa por abrir caminho para um diálogo muito generoso com a própria Teresa Caldeira. Foi uma honra comentar algumas das ideias deste artigo com a própria autora. Agradeço a Eduardo Marques pela ponte. Outra versão do argumento foi discutida no colóquio da research area [Hi]Stories do Mecila — Maria Sibylla Merian Centre, em 21 de agosto de 2023. Agradeço a Tilmann Heil pelo convite.

Seu elemento arquitetônico mais visível é justamente uma estrutura planejada para impedir a visibilidade: um muro. Com diferentes tamanhos e espessuras, lisos ou adornados com colunas ou recortes que simulam tijolos, ou mesmo com cercas vivas na tentativa de camuflar a concretude das paredes, muros têm a função de demarcar, com clareza, uma fronteira, um dentro e um fora delimitado. No espaço urbano, muros erguem barreiras para quem está posicionado do lado de fora. Impedem acesso, exigem que trajetos sejam redesenhados, bloqueiam a visão do que está além. Já para quem está posicionado do lado de dentro, não só protegem, como também escondem, conferindo privacidade. Garantem a segurança do cercamento e só permitem que cruzem a divisa aqueles que são selecionados. Demarcam, no espaço da cidade, a exclusividade e as hierarquias de status social.

Os muros são marcas distintivas dos condomínios residenciais fechados que começaram a despontar na cidade de São Paulo em meados da década de 1970, ganhando maior força nas duas décadas seguintes. Cercar e murar não são atividades propriamente originais. No entanto, esses empreendimentos imobiliários comportavam o signo do novo. Os conjuntos de casas ou prédios residenciais não são apenas cercados, mas também monitorados e vigiados. As entradas com câmeras exigem identificação por guardas particulares, portões eletrônicos são acionados a partir da autorização mediada entre moradores e seguranças, os acessos principais são comumente pensados para automóveis e não para pedestres caminhando pela calçada. Acessar seu interior é um ritual de admissão com verificações de diferentes credenciais, no qual impera a lógica da suspeita. Muros e vigilância não guardam apenas casas, mas a tentativa de estabelecer uma nova ordem privada que se apresenta como um mundo à parte do restante da cidade. Esses espaços foram chamados por Teresa Caldeira de “enclaves fortificados”.

Seu primeiro artigo em português sobre o tema foi publicado na edição de março de 1997 da Novos Estudos (Caldeira, 1997Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997.). Traduzido do original em inglês (Caldeira, 1996bCaldeira, Teresa Pires do Rio. “Fortified Enclaves: The New Urban Segregation”. Public Culture, v. 8, n. 2, 1996b.),2 2 O artigo da Public Culture não foi o primeiro que antecipou os argumentos do livro. Ver: Caldeira, (1996a) e Caldeira (1996c). “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana” (Caldeira, 1997Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997.) apresentava uma das partes principais do argumento do que viria a constituir o livro City of Walls (Caldeira, 2000bCaldeira, Teresa Pires do Rio. City of Walls: Crime, Segregation, and Citizenship in São Paulo. Berkeley: University of California Press, 2000b.), publicado no ano 2000, concomitantemente com sua tradução para o português, Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo (Caldeira, 2000aCaldeira, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp/Editora 34, 2000a.). Não há qualquer exagero na afirmação de que Cidade de muros é uma referência incontornável para os estudos urbanos. Ainda que parta da antropologia tanto para conformar o léxico conceitual de sua análise quanto para sustentar o olhar etnográfico minucioso, direcionado a objetos tão distintos que abrangem desde relatos de experiências de violência até anúncios imobiliários de novos condomínios fechados, Teresa Caldeira não está presa a um recorte disciplinar específico. A influência do livro extrapola até mesmo esse campo ampliado dos estudos urbanos. Costura, de maneira intrincada e altamente sofisticada, as discussões sobre segurança pública e criminalidade, transformações territoriais, concepções cambiantes de espaço público e privado, faz um acerto de contas com os valores modernos e o grau de efetivação de suas promessas. Não há dúvidas de que Cidade de muros é um livro sobre segregação urbana e violência, mas é também um livro fundamental sobre democracia.

O artigo publicado em 1997 apresenta, pela primeira vez em português, a tese de que os condomínios fechados são mais do que uma nova tipologia residencial que passa a ser oferecida pelo mercado imobiliário. Os condomínios instauram uma nova forma de segregação urbana na cidade de São Paulo, o que significa que abrem caminho para novas clivagens da desigualdade social no território. Não é apenas a disseminação de uma forma distinta de morar que se pretende apartada do restante da cidade. Para Caldeira, trata-se de uma escalada da segregação urbana que muda não apenas o jogo de referências das divisões territoriais já estabelecidas, mas também nossas noções de espaço público e planejamento urbano. Se o livro é referência estabelecida, o artigo se tornou, comparativamente, menos conhecido. Revisitá-lo é, por si só, uma oportunidade de voltar a um clássico a partir de novas questões. Clássicos nos permitem ultrapassar os problemas mais imediatos do tempo em que foram escritos ao oferecerem pontos de apoio para a projeção de perguntas de outras conjunturas históricas.

Mas entendo que, além disso, retornar especificamente ao artigo nos permite abrir dois percursos ainda pouco trilhados. Em primeiro lugar, discutir os principais conceitos e pressupostos mobilizados na análise dos enclaves fortificados. Se isso pode parecer uma obviedade, minha impressão é de que os argumentos em torno de Cidade de muros foram recepcionados por diversas análises teóricas e empíricas, mas não foram sistematicamente discutidos por uma literatura de comentário.3 3 Algo semelhante aconteceu com o seminal Morte e vida de grandes cidades, de Jane Jacobs. Para essa discussão, ver Tavolari (2019). Em segundo lugar, há algumas diferenças importantes entre a formulação do artigo de 1997 e o argumento consolidado em Cidade de muros alguns anos depois. Uma dessas diferenças diz respeito ao estatuto que os enclaves fortificados adquiriram em São Paulo. Essa me parece ser uma distinção tão central - e tão pouco comentada - que grande parte da minha leitura está baseada em tirar consequências desse deslocamento.

Assim, este artigo está estruturado em duas partes principais. Na primeira, discuto os pressupostos e conceitos implicados no diagnóstico de que a disseminação dos condomínios fechados passou a constituir um novo padrão de segregação urbana em São Paulo, a partir de “Enclaves fortificados” e com complementações de Cidade de muros. Pretendo mostrar como os conceitos mobilizados por Caldeira oferecem uma tipologia para compreender modelos de segregação urbana na história da cidade de São Paulo, combinando com uma dimensão normativa entre padrões de desigualdade. O diagnóstico da autora aponta para o então novo fenômeno de disseminação dos enclaves fortificados, mas também para o problema de continuar a analisar a cidade a partir de categorias assentadas no padrão de segregação dual entre centro e periferia. Também mostro como o modelo dos enclaves é construído por Caldeira como um ataque à vida pública moderna e à democracia, a partir da negação de parte dos valores da modernidade, ainda que preserve alguns de seus elementos centrais.

Na segunda parte, analiso o artigo de 1997 em contraposição com o livro para mostrar uma diferença importante de formulação: defendo que, em “Enclaves fortificados”, o novo padrão de segregação urbana em São Paulo é apresentado como um tipo ideal de inspiração weberiana, mas com dimensão concreta. Esse ponto me leva a ler a análise de Teresa Caldeira a partir de uma postura de descolonização avant la lettre para os estudos urbanos brasileiros da época, o que também ajuda a iluminar como raça e gênero são centrais para compreender os enclaves fortificados.

Por fim, levanto algumas perguntas e caminhos possíveis a partir da leitura revisitada.

UMA NOVA FORMA DE SEGREGAÇÃO URBANA

O artigo de 1997 anuncia seu principal argumento de saída, sem qualquer tipo de preâmbulo:

Nas últimas décadas, a proliferação de enclaves fortificados vem criando um novo modelo de segregação espacial e transformando a qualidade da vida pública em muitas cidades ao redor do mundo. Enclaves fortificados são espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer ou trabalho. (Caldeira, 1997Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997., p. 155)

Há ao menos quatro pressupostos aqui que merecem nossa atenção. Em primeiro lugar, o anúncio do novo modelo de segregação espacial pressupõe, necessariamente, uma contraposição em relação a um velho modelo. Apenas a partir dessa passagem inicial, não sabemos qual é a relação precisa entre novo e velho, mas o contraste está colocado desde o início. Em segundo lugar, temos um desdobramento do primeiro pressuposto. Se há um contraste entre um novo modelo de segregação espacial e um padrão antigo, isso significa que o antigo modelo existe. Novamente, à primeira vista parece que estamos diante de uma obviedade sem maiores consequências. No entanto, o ponto que eu gostaria de destacar aqui é o fato de que Caldeira não está falando de segregação versus não segregação, mas de diferentes padrões de segregação urbana. Trata-se, portanto, de apontar para novas clivagens no território de uma cidade já dividida. A questão que se coloca é a maneira da divisão, sua forma de organização espacial em um processo histórico já marcado por separações em sua origem. Em terceiro lugar, se estamos falando de um novo modelo, supõe-se que os condomínios fechados se disseminaram de uma tal maneira na cidade que sua presença maciça altera as características fundamentais da divisão territorial em todo o espaço urbano. Por fim, em quarto lugar, como estamos falando de uma passagem, é preciso entender as transformações sociais que nos levaram do velho ao novo, para que a transição possa ser não somente constatada, mas também compreendida a partir de hipóteses explicativas.4 4 Como não será possível fazer comentáriosmaisdetalhadosnesteartigo, aponto somente o fato de que Caldeira indica quatro transformações necessárias para entender essa passagem, sintetizadas entre as páginas 156 e 158 de “Enclaves fortificados”: (i) a crise econômica da “década perdida” de 1980; (ii) o processo político de abertura e consolidação democrática no Brasil,também na mesma década; (iii) a expansão das atividades do setor terciário em oposição à retração da industrialização; e (iv) “o quarto processo de mudança relaciona-se mais diretamente ao novo padrão de segregação residencial urbana, porque fornece a retórica que o justifica: o crescimento do crime violento e do medo”. A análise do processo de abertura democrática é feita a partir do que a autora chama de seus “efeitos no espaço urbano”: “Desde meados da década de 70, os movimentos sociais organizados por moradores da periferia pressionaram as administrações locais a melhorar a infraestrutura e os serviços públicos de seus bairros,assim comoalegalizar inúmerosloteamentos clandestinos e ‘grilados’. Combinada às mudanças promovidas por eleições livres, essa pressão transformou as prioridades da administração local, direcionando para a periferia uma parcela maior do investimento em infraestrutura urbana. Mais ainda, durante duas décadas de disputas em torno da propriedade urbana os movimentos sociais forçaram os governos municipais a oferecer várias anistias a empreendedores ilegais, que resultaram na regularização de inúmeros lotes e na sua inserção do mercado imobiliário formal. A contrapartida desses processos foi a diminuição da oferta de lotes baratos no mercado” (Caldeira, 1997, p. 157). A análise aponta para efeitos não esperados da demanda por direitos de moradores das periferias. No entanto, a meu ver, tira conclusões causais muito apressadas, especialmente a partir do investimento público nos territórios periféricos e de uma noção de “ilegalidade” que abarca, sem maiores distinções, loteadores, grileiros e movimentos sociais por moradia. Esse é um longo debate, que demandaria uma discussão à parte. Teresa Caldeira tem publicações mais recentes sobre o tema: ver Caldeira (2017).

Para explicitar o que haveria de propriamente novo nos condomínios fechados, Caldeira organiza uma breve história dos padrões de segregação urbana de São Paulo:

As formas pelas quais a segregação social se inscreve no espaço das cidades variam historicamente. No começo do século, São Paulo era uma cidade extremamente concentrada e os diferentes grupos sociais viviam próximos uns dos outros, embora em arranjos residenciais radicalmente distintos: os ricos em casas espaçosas, os pobres amontoados nos cortiços. Da década de 40 à de 80, a divisão entre centro e periferia organizou o espaço da cidade. Durante a vigência desse padrão, grandes distâncias separavam diferentes grupos sociais: as classes média e alta ocupavam os bairros centrais e bem equipados em termos de infraestrutura urbana, enquanto os pobres habitavam a precária periferia. (Caldeira, 1997Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997., p. 156)5 5 Para uma discussão pormenorizada e com dados que qualificam esses padrões históricos, ver Caldeira (2000a, “São Paulo: três padrões de segregação espacial”).

O primeiro marco temporal é colocado no “começo do século”, o que poderia nos dar a falsa impressão de que haveria um início sem segregação. Como fica mais claro em Cidade de muros (Caldeira, 2000aCaldeira, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp/Editora 34, 2000a., pp. 213-ss.), a escolha pela virada do século - e não, por exemplo, pelo ano de fundação da cidade três séculos antes - se dá em função do crescimento populacional incentivado pelo início da industrialização. Antes disso, talvez fosse mais apropriado qualificar São Paulo a partir das características do que entendemos por aldeia e não propriamente como uma cidade. A associação também sugere que segregação urbana e crescimento andam de mãos dadas:6 6 Para uma discussão sobre a correlação entre espraiamento urbano e segregação em São Paulo a partir de uma perspectiva econométrica, ver Ramos e Biderman (2014).

Com o advento da industrialização, a outrora sossegada cidade voltada aos serviços e negócios financeiros associados à exportação de café - a atividade econômica dominante no estado de São Paulo até a década de 1930 - foi transformada num espaço urbano caótico. Na virada do século, a construção era intensa: erguiam-se novas fábricas uma atrás da outra, e residências que tinham de ser construídas rapidamente para abrigar as ondas de trabalhadores chegando a cada ano. As funções não eram espacialmente separadas, as fábricas eram construídas perto das casas, e comércio e serviço intercalavam-se com residências. (Caldeira, 2000aCaldeira, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp/Editora 34, 2000a., p. 213)

A marca desse primeiro padrão de segregação é a concentração espacial. Em outras palavras, a porção territorial de fato ocupada é bastante pequena em termos de área, com alta densidade. Ainda que haja diferenças em relação à localização das residências - “havia uma tendência de a elite ocupar a parte mais alta da cidade - em direção ao espigão central onde se localizaria a Avenida Paulista - e os trabalhadores viverem nas áreas mais baixas” (Caldeira, 2000aCaldeira, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp/Editora 34, 2000a., p. 214) -, pobres e ricos viviam próximos uns dos outros. As condições habitacionais marcavam a hierarquia social no espaço, ainda que a distinção não fosse atravessada pelo espaçamento de longas distâncias. Vilas operárias e cortiços coexistiam na vizinhança das casas das elites.

A organização em torno de uma cidade dual, com territórios bem demarcados entre centro e periferia, vai organizar São Paulo apenas a partir da década de 1940. O modelo concentrado dá lugar ao espraiamento e à dispersão, em que crescimento horizontal e densidades mais baixas andam juntos. A classe trabalhadora passa a morar longe das centralidades consolidadas, em loteamentos irregulares onde em grande parte as casas são autoconstruídas e que passam a ser acessíveis por meio da malha de transporte público centrada na expansão de linhas de ônibus.

Esse conjunto de transformações estava no centro das análises de diferentes pesquisadores vinculados ao Cebrap, para quem olhar para a cidade passou a ser indispensável para entender as especificidades de um modelo periférico de acumulação e modernização, tendo as condições de vida dos trabalhadores como fio condutor. A espoliação urbana, de Lúcio Kowarick, publicado pela primeira vez em 1979, parte do princípio de que a exploração das relações de trabalho não era suficiente para caracterizar as nossas desigualdades; era preciso complementá-la com a dilapidação das condições de reprodução da força de trabalho, que passavam pelo fato de que moradia, saúde, transporte e saneamento não estavam assegurados, mas também pelas longas distâncias entre o lugar precário de moradia e a centralidade do emprego, que saqueava o tempo livre dos trabalhadores em extenuantes trajetos casa-trabalho (Kowarick, 1983Kowarick, Lúcio. A espoliação urbana. 2. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. ).7 7 Para uma discussão sobre a atualidade do conceito de espoliação urbana, ver Marques (2017), Feltran (2017) e Tavolari(2020).“A lógica da desordem”, capítulo que é a espinha-dorsal de A espoliação urbana, já havia sido publicado antes em Camargo et al. (1976). É a partir desse conjunto de preocupações que se coloca o “problema da periferia”, uma questão propriamente urbana, para os diagnósticos mais abrangentes sobre as particularidades do capitalismo brasileiro (Arantes, 2009Arantes, Pedro. “Em busca do urbano: marxistas e a cidade de São Paulo nos anos de 1970”. Novos Estudos, v. 28, n. 1, 2009., pp. 116-ss). Caldeira bebe expressamente nessa fonte e Cidade de muros mobiliza esse conjunto de referências em detalhes. Não só as pesquisas e análises do Cebrap eram influentes no campo crítico de maneira geral,8 8 Para a importância das análises de Paul Singer, Chico de Oliveira, Lúcio Kowarick, Cândido Procópio Ferreira de Camargo e Fernando Henrique Cardoso na origem da formação do campo dos estudos urbanos, ver Arantes (2009) e, para a relação entre essas análises e a associação entre periferia e ilegalidade, ver Tavolari (2015). como Teresa Caldeira possuía vínculo formal de pesquisadora com a instituição à época.

No entanto, o ponto da autora é justamente mostrar que essa contraposição entre uma periferia distante, lugar de residência dos pobres, e um centro munido de infraestrutura, lugar de moradia dos ricos, já havia começado a se esfumar:

Nos últimos quinze anos, no entanto, uma combinação de processos - alguns semelhantes ao que estão afetando outras cidades - transformou profundamente o padrão de distribuição de grupos sociais e atividades econômicas no espaço da cidade. São Paulo continua a ser altamente segregada, mas a maneira pela qual as desigualdades se inscrevem no espaço urbano mudou de modo considerável. Nos anos 90, as distâncias físicas entre ricos e pobres diminuíram, ao mesmo tempo que os vários mecanismos para separá-los tornaram-se mais óbvios e complexos. (Caldeira, 1997Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997., p. 156)

Assim, o que Teresa Caldeira diagnostica é um movimento duplo. Em primeiro lugar, o novo fenômeno: a disseminação de condomínios fechados, murados e fortificados, altera os padrões centro e periferia na medida em que os ricos migram de áreas centrais para lugares mais distantes, antes vistos até mesmo como periféricos. Operam, portanto, o movimento contrário ao padrão de segregação urbana até então vigente: saem das áreas de centralidade, mas para um produto imobiliário específico, munido de promessas de segurança, todos os tipos de lazer, áreas verdes e uma ordem privada fechada em si mesma, com pretensões de autossuficiência. Parte das elites deixa, assim, os lugares tradicionais de privilégio social em direção ao autoisolamento em bairros distantes e até mesmo cruza a fronteira municipal. Além disso, passa a morar muito próximo dos mais pobres. Não são poucos os casos em que os muros dos condomínios são lindeiros a favelas e bairros precários. Por isso a noção de enclave: são áreas homogêneas incrustadas em um entorno marcado pela pobreza, encerradas como se fossem fechadas a chave. E por isso também não basta apenas cercar, é preciso munir de equipamentos e vigilância.

Mas o diagnóstico de Caldeira dá um passo a mais - o segundo passo do movimento duplo. Além de apresentar a disseminação de condomínios fechados como um novo padrão de segregação urbana, ela defende que há “a necessidade de refazer o mapa cognitivo da segregação social na cidade, atualizando as referências através das quais a vida cotidiana e as relações sociais são entendidas” (Caldeira, 2000aCaldeira, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp/Editora 34, 2000a., p. 211, grifo meu). Em outras palavras: não só estamos diante de um novo padrão de segregação urbana, como também de uma espécie de ponto cego das análises sobre a cidade, que continuavam - e talvez ainda continuem - operando como se o padrão centro-periferia estivesse inalterado. Em verdade, muito do diagnóstico intelectual sobre a consolidação do padrão centro-periferia foi formulado justamente no final da década de 1970 e ao longo da década de 1980, quando os condomínios fechados já eram uma realidade, mas não eram incluídos como elementos estruturantes dessa clivagem. Há, portanto, a constatação de um descompasso entre os conceitos e as transformações urbanas das décadas de 1980 e 1990.

TABELA 1
Síntese dos padrões de segregação urbana em São Paulo, segundo o argumento de Caldeira

Os marcadores temporais equivalem a uma tipologia de padrões de segregação na história. Eles nos ajudam a compreender os aspectos mais significativos de cada um dos períodos indicados e também caracterizam a contraposição entre velho e novo. No entanto, a pretensão não é apenas descritiva e explicativa. Para Caldeira, há uma escala entre os padrões, o que significa que há normatividade inscrita nessa sucessão de modelos. Dito de maneira direta: o padrão de segregação dos enclaves fortificados é pior do que os que o antecederam. Isso não quer dizer que as divisões anteriores possam ser avaliadas como positivas, pelo contrário. Novamente, não estamos nos movimentando no terreno da segregação versus não segregação, mas a partir de diferentes tipos de separações de grupos sociais no espaço, com hierarquias socioterritoriais e impedimentos de acesso a condições de urbanidade na cidade. Ainda assim, o modelo dos enclaves fortificados é avaliado como pior, por comparação.

São várias as razões. A primeira delas se torna evidente na pesquisa empírica levada adiante pela autora a partir de anúncios imobiliários dos condomínios fechados:

A publicidade de imóveis ao expressar/criar estilos de vida das classes médias e alta revela os elementos que constituem os padrões de diferenciação social em vigência na sociedade. Os anúncios não só revelam um novo código de distinção social, mas também tratam explicitamente a separação, o isolamento e a segurança como questões de status. Em outras palavras, eles repetidamente expressam a segregação social como um valor. (Caldeira, 1997Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997., p. 159)

Diferentemente dos outros padrões, o modelo que tem os enclaves fortificados no centro endereça expressamente a separação entre classes e grupos. A segregação urbana é escancarada para se tornar valor de empreendimentos imobiliários afastados que defendem a separação. O isolamento se dá em relação aos mais diferentes elementos: a fuga é em direção ao silêncio e à tranquilidade, à natureza que não está presente nos grandes centros, a um espaço onde há segurança, onde apenas pessoas selecionadas são admitidas, garantindo homogeneidade social. É, portanto, uma recusa da própria cidade, o que não era possível entrever nos padrões de segregação urbana anteriores. Pelo contrário, antes as elites escolhiam deliberadamente edificar e viver em bairros construídos para garantir a melhor infraestrutura urbana, atratividade em termos de serviços, comércio e equipamentos urbanos como parques e praças. A proximidade da centralidade passa a ser um valor abandonado pelas elites a partir da década de 1980. Caldeira classifica esse movimento como um ataque ao espaço público moderno:

Eles não se subordinam nem às ruas e ao espaço público, nem a instituições e edifícios circundantes. Em outras palavras, a relação que estabelecem com o resto da cidade e sua vida pública é de evitação; dão-lhes as costas. Assim, com a sua proliferação, as ruas públicas tornam-se espaços para circulação das elites em seus automóveis e dos pobres a pé ou em transporte coletivo. Andar nas ruas vai se tornando um sinal de classe em muitas cidades ou zonas urbanas, uma atividade que as elites estão abandonando. Para estas elites, não apenas as ruas deixam de ser espaços de sociabilidade, como também é necessário assegurar que a vida das ruas, com sua heterogeneidade e imprevisibilidade, fique fora de seus enclaves. (Caldeira, 1997Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997., p. 164)

Os principais elementos da vida pública moderna são negados:

A primazia das ruas e sua abertura; a circulação livre de multidões e veículos; os encontros impessoais e anônimos entre pedestres; o lazer e os encontros públicos em ruas e praças; e, sobretudo, a presença de pessoas de diferentes origens sociais circulando e observando os que passam, olhando as vitrines, fazendo compras, frequentando cafés ou bares, tomando parte em manifestações políticas ou usando os espaços que foram durante muito tempo desenhados especialmente para o entretenimento das massas (passeios públicos, parques, estádios, pavilhões de exposições). (Caldeira, 1997Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997., p. 164)

Mas a posição de Caldeira não é ingênua. Constatar o ataque aos valores modernos de abertura, liberdade e igualdade de direitos não significa defender que esses mesmos valores eram plenamente realizados anteriormente. Ainda que não fossem inteiramente concretizados, não haviam perdido seu lugar de referência, o que garantia um ponto de apoio à crítica imanente, ou seja, era possível contrapor os valores de abertura e igualdade à separação de classes na cidade e explorar a contradição entre promessa e realidade. A segregação urbana só é um problema a ser combatido se houver ideais orientadores de integração. Quando a segregação passa a ser um valor defendido abertamente, é também a desigualdade social que passa a ser defendida abertamente. Dessa forma, o novo padrão de segregação urbana instaurado pelos enclaves fortificados representa, como nenhum outro padrão anterior, um ataque direto à democracia.

No entanto, do ponto de vista dos princípios do planejamento moderno, o argumento de Caldeira é sofisticado ao mostrar que não se trata de uma negação simples, uma tabula rasa. Os enclaves fortificados conservam elementos centrais do planejamento moderno ao mesmo tempo que outros são negados:

Ao se analisar quais elementos da arquitetura e do planejamento urbano modernistas são usados e quais são modificados ou abandonados na nova forma urbana gerada pelos enclaves fortificados, chega-se a uma conclusão clara: os elementos mantidos são aqueles que destroem o espaço público e a vida social moderna (vias expressas - ou seja, ruas socialmente mortas -, construções esculturais separadas por vazios e desconsiderando o alinhamento das ruas, edifícios voltados para dentro); os elementos modificados ou abandonados são os que pretendem criar igualdade, transparência e uma nova esfera pública (fachadas de vidro, uniformidade no desenho, ausência de delimitação material como muros e cercas). (Caldeira, 1997Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997., p. 168)

A modernidade da via expressa encontra, no plano do espaço construído, o ataque aos ideais de abertura, liberdade e igualdade. Como afirma a autora, em uma cidade de muros, esses valores não se apresentam nem mesmo como ficção. Mas os enclaves fortificados não são simplesmente antimodernos. Preservam elementos da modernidade ao mesmo tempo que outros valores modernos são negados, o que revela sua complexidade.

Uma vez que os pressupostos conceituais do diagnóstico de Caldeira foram discutidos, passo à leitura que compara o estatuto da segregação urbana em São Paulo entre a formulação de 1997 e Cidade de muros.

O LUGAR DE SÃO PAULO: UMA PERSPECTIVA DE DESCOLONIZAÇÃO

O novo padrão de segregação urbana não era específico de São Paulo. Diversas outras cidades no mundo enfrentavam o mesmo tipo de transformação, em que elites e mercado imobiliário passaram a produzir e demandar formas de morar em condomínios fechados distantes das centralidades consolidadas. Trata-se, portanto, de um fenômeno internacional com ancoragem local, com especificidades em cada cidade diferente. Tanto em “Enclaves fortificados” como em Cidade de muros, Teresa Caldeira se vale das experiências de São Paulo e Los Angeles como pontos de apoio para sua análise, sem deixar de mencionar outros centros urbanos que também viam crescer o número de ordens privadas e cercadas em seus territórios.

No entanto, a contraposição entre o artigo (de 1997) e o livro (de 2000) revela uma diferença fundamental em relação ao estatuto dessa comparação ou, dito de outra forma, em relação ao lugar que São Paulo ocupa no diagnóstico mais amplo sobre o fenômeno da disseminação de condomínios fechados em diversas cidades do mundo. Logo no início de “Enclaves fortificados”, é possível ler:

Para discutir essas transformações, este artigo analisa o caso de São Paulo e toma Los Angeles como comparação. Em São Paulo, a maior região metropolitana de uma sociedade com uma das piores distribuições de renda do mundo, a desigualdade social é óbvia e os processos de segregação espacial são particularmente visíveis, expressos sem disfarce ou sutileza. Na São Paulo contemporânea, com seus altos muros e grades, porteiros e seguranças privados armados, tecnologias de vigilância de toda sorte (câmeras de vídeo, cercas elétricas sobre os muros, portões eletrônicos etc.) e com seus contrastes impressionantes de riqueza ostensiva e extrema pobreza, muitas vezes vivendo lado a lado, o novo padrão de segregação espacial revela-se com clareza. Analisar a forma exagerada de um processo é uma maneira de iluminar algumas de suas características que poderiam passar despercebidas noutras situações. É como olhar uma caricatura. Assim, o caso extremo de segregação espacial de São Paulo ajuda a detectar um padrão que vem se espalhando por cidades no mundo todo, entre elas Los Angeles, ainda que geralmente de forma menos severa e explícita. (Caldeira, 1997Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997., p. 156, grifos meus)

Nessa passagem, Caldeira aponta para o fato de que o padrão de segregação urbana instaurado pela disseminação dos enclaves fortificados é mais evidente e claro em São Paulo. Os contrastes são mais nítidos, a desigualdade social é mais óbvia e extrema. As transformações em São Paulo oferecem uma lente de análise para olhar processos espaciais semelhantes em outras cidades, inclusive Los Angeles. Leio essa caracterização do novo padrão de segregação urbana de São Paulo como um tipo ideal no sentido weberiano.

Para Weber, os tipos ideais conformam um quadro de pensamento que não pretende realizar uma simples decomposição descritiva do mundo à nossa volta, mas antes produzir conceitos a partir dos quais se torna possível medir “a realidade a fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns de seus elementos importantes, com o qual esta é comparada” (Weber, 2006Weber, Max. A “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais. São Paulo: Ática, 2006.). Se meramente reproduzissem, de maneira exemplar, o objeto ou fenômeno que se quer compreender, não serviriam como ferramenta de medição da realidade, não teriam utilidade para a ampliação do conhecimento, já que se confundiriam eles mesmos com a realidade. É por isso que Weber afirma que “podemos conferir a forma de tipo ideal com o auxílio da abstração e da acentuação de determinados elementos seus, conceitualmente essenciais” (Weber, 2006Weber, Max. A “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais. São Paulo: Ática, 2006., grifo meu). No trecho de “Enclaves fortificados”, a segregação urbana de São Paulo é retratada como exagerada, quase uma caricatura - e, por isso mesmo, tem o condão de iluminar com mais clareza aspectos importantes não tão visíveis nas desigualdades territoriais de outras cidades. Serve, portanto, como uma lente de análise e um ponto de apoio para compreender o fenômeno dos enclaves fechados no mundo inteiro, e não somente na própria cidade de São Paulo. Funciona como um tipo ideal na medida em que pode ser utilizada como meio de comparação com a realidade.

Há, no entanto, algumas diferenças importantes em relação ao pensamento weberiano. Se, para Weber, as acentuações são produzidas por quem tem a pretensão de compreender o mundo, aqui o exagero é dado pela própria realidade da segregação urbana de São Paulo. Seria, portanto, uma espécie de tipo ideal concreto, ainda que essa formulação possa parecer uma contradição em termos, já que um dos pontos centrais da construção de tipos ideais é a não aderência à realidade.9 9 Para uma discussão sobre os usos não convencionais dos tipos ideais feitos por György Lukács, Herbert Marcuse e Jürgen Habermas, especialmente no que diz respeito à recusa da separação kantiana entre fenômeno e coisa em si que está pressuposta na abordagem weberiana, ver Hearn (1975). Agradeço a Jonas Medeiros por chamar minha atenção para a história de apropriações materiais dos tipos ideais. Além disso, Weber recusa expressamente a proposta de utilizar tipos ideais para empreender análises normativas, o que também marca uma diferença significativa em relação ao uso feito por Caldeira.

Se minha leitura se sustenta e a segregação urbana em São Paulo pode ser entendida como um tipo ideal concreto, no sentido de que oferece a clareza e o exagero para compreender processos semelhantes em outras cidades, ela serve de quadro de pensamento inclusive para cidades do Norte Global, como Los Angeles, tida como referência inconteste para os estudos sobre segregação espacial. Estamos, portanto, diante de uma virada: não é Los Angeles que é a lente de análise para compreender São Paulo, mas é a segregação urbana de São Paulo que se torna ferramenta para entender os processos de diferenciação territorial que ocorrem em Los Angeles. Defendo, assim, que Teresa Caldeira opera uma espécie de virada epistemológica de descolonização avant la lettre para os estudos urbanos,10 10 Opto pelo termo “descolonização” por ser suficientemente abrangente, diferentemente de outros termos vinculados a movimentos bem localizados na história do pensamento e a autoras e autores específicos. ainda que não a anuncie expressamente dessa forma nem dialogue com a literatura específica.

É curioso que esta abordagem tenha sido reformulada em Cidade de muros. No livro, Caldeira aponta para o fato de que os enclaves fortificados de São Paulo não são “invenção original, mas partilham várias características com os cids (common interest developments ou incorporações de interesses comuns) e subúrbios americanos” (2000a, p. 261), apontando para suas diferenças. O argumento está mais centrado em mostrar que “o padrão de segregação de São Paulo não é algo único, mas já bem difundido” (Caldeira, 2000aCaldeira, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp/Editora 34, 2000a., p. 302) em outras cidades. É apenas nas últimas páginas do livro que uma formulação atenuada é apresentada, o que enfraquece sua posição no argumento de Cidade de muros:

Primeiro, vários dos instrumentos usados para impor segregação em várias cidades pelo mundo parecem ter sido desenvolvidos primeiramente em Los Angeles e sua região metropolitana. Considera-se mesmo que alguns desses instrumentos conferem à região seu caráter distintivo. Nesse sentido, eles são mais evidentes em L.A. que em outros lugares e podem nos ajudar a entender o processo que ainda está se desenvolvendo em cidades como São Paulo. Segundo, o espaço público não moderno de Los Angeles é menos explicitamente incivil que o de São Paulo e algumas de suas práticas de segregação podem não ser perceptíveis imediatamente. Nesse sentido, São Paulo oferece a forma mais clara e pode guiar a percepção de características de Los Angeles. (Caldeira, 2000aCaldeira, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp/Editora 34, 2000a., p. 328, grifos meus)

Entendo que, nesse caminho de revisita a uma das referências clássicas dos estudos urbanos a partir de questões atuais, a perspectiva oferecida pelo artigo se mostra mais interessante do que a formulação do livro. Não só porque evidencia uma postura de descolonização que não era nada trivial nesse debate na década de 1990, mas também porque ressaltar essa abordagem nos ajuda a iluminar outros aspectos pouco discutidos do próprio diagnóstico de Teresa Caldeira.

Grande parte dos nossos conceitos para pensar a segregação urbana tem origem na sociologia norte-americana, com especial influência da Escola de Chicago (Villaça, 2011Villaça, Flávio. “São Paulo: segregação urbana e desigualdade”. Estudos Avançados, v. 25, n. 71, 2011.). No entanto, se a dimensão racial é reconhecida como estruturante das clivagens da desigualdade territorial nas cidades norte-americanas, com políticas explícitas de separação e redlining (Massey; Denton, 1993Massey, Douglas S.; Denton, Nancy A. American Apartheid: Segregation and the Making of the Underclass. Cambridge: Harvard University Press, 1993.), o mesmo não ocorreu nas cidades brasileiras, o que também eclipsou a dimensão racial.11 11 Os trabalhos recentes de Danilo França são fundamentais para incorporar a raça ao diagnóstico da segregação urbana em São Paulo. Ver França (2017; 2018). Haroldo Torres e Renata Bichir afirmam que a sociologia urbana brasileira confundiu, originariamente, a segregação com os conceitos de pobreza e desigualdade (Torres; Bichir, 2009Torres, Haroldo da Gama; Bichir, Renata Mirandola. “Residential Segregation in São Paulo: Consequences for Urban Policies”. In: Roberts, Bryan R.; Wilson, Robert H. (orgs.). Urban Segregation and Governance in the Americas. Nova York: Palgrave MacMillan, 2009.). No entanto, se levarmos a sério a posição de descolonização, vamos ver que raça e gênero estão mais do que presentes na análise de Caldeira, sem reproduzir o debate norte-americano, o que não faria sentido do ponto de vista da realidade das cidades brasileiras:

Outra cena reveladora é uma entrevista em inglês com um morador de uma edge city americana, que cita como um dos motivos para se mudar para lá o fato de que gostaria de viver numa comunidade racialmente integrada. Esta observação é adulterada nas legendas em português, em que se lê que sua comunidade tem “muita gente interessante” - em São Paulo, a imagem de um condomínio com moradores negros certamente não o tornaria atrativo às elites. Para as classes altas paulistas, os modelos do Primeiro Mundo são bons na medida em que podem ser adaptados para incluir o controle completo (especialmente dos pobres) e a erradicação da heterogeneidade racial e social. (Caldeira, 1997Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997., p. 163)

Nos enclaves fortificados de São Paulo, a homogeneidade social é também racial. Mas o isolamento não se sustenta inteiramente, na medida em que “as classes média e alta estão criando seu sonho de independência e liberdade - tanto da cidade e de sua mistura de classes quanto das tarefas domésticas cotidianas - à base de serviços prestados por trabalhadores pobres” (Caldeira, 1997Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997., p. 163). E não se trata apenas de uma clivagem de classe: são em sua maioria mulheres não brancas, cuja entrada nos condomínios passa por dinâmicas específicas de vigilância:

O método básico de controle é direto e inclui dar poder a certos trabalhadores para que controlem outros. Em vários condomínios, tanto os empregados do condomínio quanto os empregados domésticos das diferentes famílias (mesmo aqueles que moram lá) precisam mostrar seu cartão de identificação para entrar e sair do condomínio. Frequentemente, eles e seus pertences pessoais são revistados nas portarias. Esse controle normalmente supõe homens controlando mulheres. (Caldeira, 1997Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997., p. 161)

Assim, o diagnóstico de que haveria uma nova segregação urbana em São Paulo a partir da disseminação de enclaves fortificados ganha novas dimensões. Ele é ferramenta de análise para diferentes cidades no mundo, inclusive para aquelas em que a instauração dos condomínios se deu antes, do ponto de vista do registro temporal. É a segregação de São Paulo que ilumina processos de demarcação de desigualdades territoriais em outros centros urbanos, que, como um tipo ideal concreto, fornece a chave para ler essas transformações. Além disso, os enclaves fortificados de São Paulo não são apenas murados, monitorados e privatizados. Eles deixam clara a pretensão de homogeneidade social, que também é racial e branca. No entanto, não conseguem forjar uma rigidez absoluta entre dentro e fora por dependerem de trabalhadores pobres, em sua maioria mulheres não brancas, cuja admissão nos enclaves é rigidamente controlada.

PERGUNTAS E CAMINHOS

Passados mais de 25 anos, muita coisa mudou no debate sobre segregação urbana em São Paulo. A partir de meados dos anos 2000, estudos têm defendido a necessidade de metrificação da segregação, a partir de índices de dissimilaridade e outros índices de concentração espacial, com uso de metodologias de georreferenciamento (Torres, 2004Torres, Haroldo da Gama. “Segregação residencial e políticas públicas: São Paulo na década de 1990”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 54, 2004.; Torres et al., 2003Torres, Haroldo da Gama et al. “Pobreza e espaço: padrões de segregação em São Paulo”. Estudos Avançados, v. 17, n. 47, 2003.). Heterogeneidades intraurbanas têm sido destacadas a partir de diferentes indicadores, entre eles a localização dos lugares de moradia, mas não só (Nery; Souza; Adorno, 2019Nery, Marcelo Batista; Souza, Altay Alves Lino de; Adorno, Sergio. “Os padrões urbano-demográficos da capital paulista”. Estudos Avançados, v. 33, n. 97, 2019.).12 12 Ver também o Mapa da Desigualdade (2022), publicado anualmente pela Rede Nossa São Paulo. Ainda que as metodologias contrastem com o estudo empírico qualitativo realizado por Teresa Caldeira, há diversas perguntas e caminhos que podem ser trilhados a partir desta releitura de “Enclaves fortificados”. Organizo alguns deles aqui, sem pretender ser exaustiva.

Em primeiro lugar, diante das mudanças que ocorreram desde a publicação do artigo, ainda faz sentido entender que a segregação urbana de São Paulo pode servir de lente de análise - ou de tipo ideal concreto - para compreender outras cidades do mundo? Diante deste momento de crise, em que cidades como Los Angeles têm uma das maiores populações em situação de rua do mundo, altíssimos valores de aluguel e uma crise habitacional aguda, é possível que São Paulo continue a iluminar a compreensão dos processos de cristalização das desigualdades no território urbano, na medida em que este tipo de miséria já é produzido há muito entre nós, ainda que com arranjos e causas que não necessariamente coincidem com as das cidades do Norte Global.

Além disso, a própria forma dos condomínios fechados se alterou substancialmente. Não é apenas um produto imobiliário das elites ou classes médias: não são poucos os empreendimentos para a faixa de menor renda do Programa Minha Casa Minha Vida que se organizam a partir da tipologia do condomínio fechado.13 13 Para empreendimentos de condomínios fechados na Região Metropolitana de São Paulo e municípios vizinhos, ver Nisida et al. (2015) e Grisotto (2018). Quais são os novos padrões territoriais dos condomínios fechados voltados para a população mais pobre? Há proximidade entre os enclaves fortificados dos anos 1990 e os produzidos pela política habitacional? Estamos diante de um novo padrão de segregação residencial ou a quantidade de condomínios para os mais pobres não é significativa para alterar a clivagem no território da cidade e de suas fronteiras intermunicipais? Levar essas questões adiante exigiria dispor de dados atualizados do Censo, pois os dados de 2010 são anteriores à implementação do Minha Casa Minha Vida. Isso vale para pensar o lugar de moradia de acordo com raça e gênero, além de outras clivagens estruturantes. Se a noção de segregação é relacional - de um grupo em relação a outro -, é preciso atualizar os deslocamentos tanto dos mais ricos quanto dos mais pobres.

Como pensar o espaço público e a sociabilidade urbana a partir de gerações que nasceram e foram criadas em condomínios fechados? Não é à toa que Teresa Caldeira também escreveu sobre os rolezinhos e a apropriação de espaços da cidade (Caldeira, 2014Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Qual a novidade dos rolezinhos? Espaço público, desigualdade e mudança em São Paulo”. Novos Estudos, v. 33, n. 1, 2014.). É, segundo a própria autora, uma reivindicação de direito à cidade e uma tentativa de desestabilizar rituais pouco visíveis de bloqueios e admissão em espaços públicos e em espaços privados abertos ao público em São Paulo.

O olhar renovado para os trabalhos seminais de Teresa Caldeira certamente abre novos caminhos para discutir padrões de segregação urbana nas cidades brasileiras e de todo o mundo, o lugar dos valores modernos no planejamento urbano, as transformações dos espaços públicos e privados. Mas, especialmente, Caldeira nos lembra a todo tempo que esta não é apenas uma questão para os estudos urbanos ou para a sociologia da violência: compreender os padrões de segregação urbana é nos perguntarmos sobre a democracia na vida cotidiana nas cidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Arantes, Pedro. “Em busca do urbano: marxistas e a cidade de São Paulo nos anos de 1970”. Novos Estudos, v. 28, n. 1, 2009.
  • Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Building up Walls: The New Pattern of Spatial Segregation in São Paulo”. International Social Science Journal, v. 48, n. 147, 1996a.
  • Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Fortified Enclaves: The New Urban Segregation”. Public Culture, v. 8, n. 2, 1996b.
  • Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Un nouveau modèle de ségrégation spatiale: les murs de São Paulo”. Revue Internationale des Sciences Sociales, n. 147, 1996c.
  • Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Novos Estudos, v. 47, n. 1, 1997.
  • Caldeira, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp/Editora 34, 2000a.
  • Caldeira, Teresa Pires do Rio. City of Walls: Crime, Segregation, and Citizenship in São Paulo. Berkeley: University of California Press, 2000b.
  • Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Qual a novidade dos rolezinhos? Espaço público, desigualdade e mudança em São Paulo”. Novos Estudos, v. 33, n. 1, 2014.
  • Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Peripheral Urbanization: Autoconstruction, Transversal Logics, and Politics in Cities of the Global South”. Environment and Planning D: Society and Space, v. 35, n. 1, 2017.
  • Camargo, Cândido Procópio Ferreira de et al. São Paulo 1975: crescimento e pobreza. São Paulo: Loyola, 1976.
  • Feltran, Gabriel. “A atualidade de A espoliação urbana”. Novos Estudos (Blog), 2017. Disponível em: <Disponível em: https://novosestudos.com.br/a-atualidade-de-a-espoliacao-urbana >. Acesso em: 26/2/2023.
    » https://novosestudos.com.br/a-atualidade-de-a-espoliacao-urbana
  • França, Danilo Sales do Nascimento. Segregação racial em São Paulo: residências, redes pessoais e trajetórias de negros e brancos no século XXI. Tese (doutorado em sociologia). São Paulo: PPGS/Universidade de São Paulo, 2017.
  • França, Danilo Sales do Nascimento. “Desigualdades y segregación residencial por raza y classe”. Andamios, v. 15, n. 36, 2018.
  • Grisotto, Daniel. Morar murado: o dia a dia em um condomínio fechado da Faixa 1 do Programa Minha Casa Minha Vida em Piracicaba (SP). Dissertação (mestrado em habitat). São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/Universidade de São Paulo, 2018.
  • Hearn, Francis. “The Dialectical Uses of Ideal-Types”. Theory and Society, v. 2, n. 4, 1975.
  • Kowarick, Lúcio. A espoliação urbana. 2. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
  • Marques, Eduardo. “A espoliação urbana e o campo dos estudos urbanos no Brasil”. Novos Estudos (Blog), 2017. Disponível em: <Disponível em: https://novosestudos.com.br/a-espoliacao-urbana-e-o-campo-dos-estudos-urbanos-no-brasil >. Acesso em: 26/2/2023.
    » https://novosestudos.com.br/a-espoliacao-urbana-e-o-campo-dos-estudos-urbanos-no-brasil
  • Massey, Douglas S.; Denton, Nancy A. American Apartheid: Segregation and the Making of the Underclass. Cambridge: Harvard University Press, 1993.
  • Nery, Marcelo Batista; Souza, Altay Alves Lino de; Adorno, Sergio. “Os padrões urbano-demográficos da capital paulista”. Estudos Avançados, v. 33, n. 97, 2019.
  • Ramos, Frederico Roman; Biderman, Ciro. “Urban Sprawl and Spatial Segregation in São Paulo Metropolitan Region”. In: Encontro Nacional de Economia, 41., 2013. Foz do Iguaçu. Anais… Niterói: Anpec, 2014.
  • Nisida, Vitor Coelho et al. “A inserção urbana dos empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida na escala local: uma análise do entorno de sete conjuntos habitacionais”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 17, n. 2, 2015.
  • Rede Nossa São Paulo. “Mapa da Desigualdade”, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.nossasaopaulo.org.br/campanhas/#13 >. Acesso em: 28/2/2023.
    » https://www.nossasaopaulo.org.br/campanhas/#13
  • Tavolari, Bianca. Direito e cidade: uma aproximação teórica. Dissertação (mestrado em direito). São Paulo: Faculdade de Direito/Universidade de São Paulo, 2015.
  • Tavolari, Bianca. “Jane Jacobs: contradições e tensões”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , v. 21, n. 1, 2019.
  • Tavolari, Bianca. “A desordem como método”. Quatro Cinco Um, n. 39, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/colunas/as-cidades-e-as-coisas/a-desordem-como-metodo >. Acesso em: 26/2/2023.
    » https://www.quatrocincoum.com.br/br/colunas/as-cidades-e-as-coisas/a-desordem-como-metodo
  • Torres, Haroldo da Gama. “Segregação residencial e políticas públicas: São Paulo na década de 1990”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 54, 2004.
  • Torres, Haroldo da Gama; Bichir, Renata Mirandola. “Residential Segregation in São Paulo: Consequences for Urban Policies”. In: Roberts, Bryan R.; Wilson, Robert H. (orgs.). Urban Segregation and Governance in the Americas. Nova York: Palgrave MacMillan, 2009.
  • Torres, Haroldo da Gama et al. “Pobreza e espaço: padrões de segregação em São Paulo”. Estudos Avançados, v. 17, n. 47, 2003.
  • Villaça, Flávio. “São Paulo: segregação urbana e desigualdade”. Estudos Avançados, v. 25, n. 71, 2011.
  • Weber, Max. A “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais. São Paulo: Ática, 2006.
  • 1
    Uma versão preliminar do argumento deste artigo foi apresentada em inglês no workshop Urban Injustices: Normative Ideas and Practices, realizado pelo Centro de Estudos da Metrópole nos dias 13 a 15 de fevereiro de 2023. Agradeço a Katarina Pitasse Fragoso e Pedro Lippmann pela organização do seminário e pelo convite para a apresentação. Também agradeço os comentários e as perguntas que me ajudaram a lapidar e consolidar algumas das ideias desenvolvidas neste texto. A apresentação no seminário foi preciosa por abrir caminho para um diálogo muito generoso com a própria Teresa Caldeira. Foi uma honra comentar algumas das ideias deste artigo com a própria autora. Agradeço a Eduardo Marques pela ponte. Outra versão do argumento foi discutida no colóquio da research area [Hi]Stories do Mecila — Maria Sibylla Merian Centre, em 21 de agosto de 2023. Agradeço a Tilmann Heil pelo convite.
  • 2
    O artigo da Public Culture não foi o primeiro que antecipou os argumentos do livro. Ver: Caldeira, (1996aCaldeira, Teresa Pires do Rio. “Building up Walls: The New Pattern of Spatial Segregation in São Paulo”. International Social Science Journal, v. 48, n. 147, 1996a.) e Caldeira (1996cCaldeira, Teresa Pires do Rio. “Un nouveau modèle de ségrégation spatiale: les murs de São Paulo”. Revue Internationale des Sciences Sociales, n. 147, 1996c.).
  • 3
    Algo semelhante aconteceu com o seminal Morte e vida de grandes cidades, de Jane Jacobs. Para essa discussão, ver Tavolari (2019Tavolari, Bianca. “Jane Jacobs: contradições e tensões”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , v. 21, n. 1, 2019.).
  • 4
    Como não será possível fazer comentáriosmaisdetalhadosnesteartigo, aponto somente o fato de que Caldeira indica quatro transformações necessárias para entender essa passagem, sintetizadas entre as páginas 156 e 158 de “Enclaves fortificados”: (i) a crise econômica da “década perdida” de 1980; (ii) o processo político de abertura e consolidação democrática no Brasil,também na mesma década; (iii) a expansão das atividades do setor terciário em oposição à retração da industrialização; e (iv) “o quarto processo de mudança relaciona-se mais diretamente ao novo padrão de segregação residencial urbana, porque fornece a retórica que o justifica: o crescimento do crime violento e do medo”. A análise do processo de abertura democrática é feita a partir do que a autora chama de seus “efeitos no espaço urbano”: “Desde meados da década de 70, os movimentos sociais organizados por moradores da periferia pressionaram as administrações locais a melhorar a infraestrutura e os serviços públicos de seus bairros,assim comoalegalizar inúmerosloteamentos clandestinos e ‘grilados’. Combinada às mudanças promovidas por eleições livres, essa pressão transformou as prioridades da administração local, direcionando para a periferia uma parcela maior do investimento em infraestrutura urbana. Mais ainda, durante duas décadas de disputas em torno da propriedade urbana os movimentos sociais forçaram os governos municipais a oferecer várias anistias a empreendedores ilegais, que resultaram na regularização de inúmeros lotes e na sua inserção do mercado imobiliário formal. A contrapartida desses processos foi a diminuição da oferta de lotes baratos no mercado” (Caldeira, 1997, p. 157). A análise aponta para efeitos não esperados da demanda por direitos de moradores das periferias. No entanto, a meu ver, tira conclusões causais muito apressadas, especialmente a partir do investimento público nos territórios periféricos e de uma noção de “ilegalidade” que abarca, sem maiores distinções, loteadores, grileiros e movimentos sociais por moradia. Esse é um longo debate, que demandaria uma discussão à parte. Teresa Caldeira tem publicações mais recentes sobre o tema: ver Caldeira (2017Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Peripheral Urbanization: Autoconstruction, Transversal Logics, and Politics in Cities of the Global South”. Environment and Planning D: Society and Space, v. 35, n. 1, 2017.).
  • 5
    Para uma discussão pormenorizada e com dados que qualificam esses padrões históricos, ver Caldeira (2000aCaldeira, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp/Editora 34, 2000a., “São Paulo: três padrões de segregação espacial”).
  • 6
    Para uma discussão sobre a correlação entre espraiamento urbano e segregação em São Paulo a partir de uma perspectiva econométrica, ver Ramos e Biderman (2014Ramos, Frederico Roman; Biderman, Ciro. “Urban Sprawl and Spatial Segregation in São Paulo Metropolitan Region”. In: Encontro Nacional de Economia, 41., 2013. Foz do Iguaçu. Anais… Niterói: Anpec, 2014.).
  • 7
    Para uma discussão sobre a atualidade do conceito de espoliação urbana, ver Marques (2017Marques, Eduardo. “A espoliação urbana e o campo dos estudos urbanos no Brasil”. Novos Estudos (Blog), 2017. Disponível em: <Disponível em: https://novosestudos.com.br/a-espoliacao-urbana-e-o-campo-dos-estudos-urbanos-no-brasil >. Acesso em: 26/2/2023.
    https://novosestudos.com.br/a-espoliacao...
    ), Feltran (2017Feltran, Gabriel. “A atualidade de A espoliação urbana”. Novos Estudos (Blog), 2017. Disponível em: <Disponível em: https://novosestudos.com.br/a-atualidade-de-a-espoliacao-urbana >. Acesso em: 26/2/2023.
    https://novosestudos.com.br/a-atualidade...
    ) e Tavolari(2020Tavolari, Bianca. “A desordem como método”. Quatro Cinco Um, n. 39, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/colunas/as-cidades-e-as-coisas/a-desordem-como-metodo >. Acesso em: 26/2/2023.
    https://www.quatrocincoum.com.br/br/colu...
    ).“A lógica da desordem”, capítulo que é a espinha-dorsal de A espoliação urbana, já havia sido publicado antes em Camargo et al. (1976Camargo, Cândido Procópio Ferreira de et al. São Paulo 1975: crescimento e pobreza. São Paulo: Loyola, 1976.).
  • 8
    Para a importância das análises de Paul Singer, Chico de Oliveira, Lúcio Kowarick, Cândido Procópio Ferreira de Camargo e Fernando Henrique Cardoso na origem da formação do campo dos estudos urbanos, ver Arantes (2009Arantes, Pedro. “Em busca do urbano: marxistas e a cidade de São Paulo nos anos de 1970”. Novos Estudos, v. 28, n. 1, 2009.) e, para a relação entre essas análises e a associação entre periferia e ilegalidade, ver Tavolari (2015Tavolari, Bianca. Direito e cidade: uma aproximação teórica. Dissertação (mestrado em direito). São Paulo: Faculdade de Direito/Universidade de São Paulo, 2015.).
  • 9
    Para uma discussão sobre os usos não convencionais dos tipos ideais feitos por György Lukács, Herbert Marcuse e Jürgen Habermas, especialmente no que diz respeito à recusa da separação kantiana entre fenômeno e coisa em si que está pressuposta na abordagem weberiana, ver Hearn (1975Hearn, Francis. “The Dialectical Uses of Ideal-Types”. Theory and Society, v. 2, n. 4, 1975.). Agradeço a Jonas Medeiros por chamar minha atenção para a história de apropriações materiais dos tipos ideais.
  • 10
    Opto pelo termo “descolonização” por ser suficientemente abrangente, diferentemente de outros termos vinculados a movimentos bem localizados na história do pensamento e a autoras e autores específicos.
  • 11
    Os trabalhos recentes de Danilo França são fundamentais para incorporar a raça ao diagnóstico da segregação urbana em São Paulo. Ver França (2017França, Danilo Sales do Nascimento. Segregação racial em São Paulo: residências, redes pessoais e trajetórias de negros e brancos no século XXI. Tese (doutorado em sociologia). São Paulo: PPGS/Universidade de São Paulo, 2017.; 2018França, Danilo Sales do Nascimento. “Desigualdades y segregación residencial por raza y classe”. Andamios, v. 15, n. 36, 2018.).
  • 12
    Ver também o Mapa da Desigualdade (2022Rede Nossa São Paulo. “Mapa da Desigualdade”, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.nossasaopaulo.org.br/campanhas/#13 >. Acesso em: 28/2/2023.
    https://www.nossasaopaulo.org.br/campanh...
    ), publicado anualmente pela Rede Nossa São Paulo.
  • 13
    Para empreendimentos de condomínios fechados na Região Metropolitana de São Paulo e municípios vizinhos, ver Nisida et al. (2015Nisida, Vitor Coelho et al. “A inserção urbana dos empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida na escala local: uma análise do entorno de sete conjuntos habitacionais”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 17, n. 2, 2015.) e Grisotto (2018Grisotto, Daniel. Morar murado: o dia a dia em um condomínio fechado da Faixa 1 do Programa Minha Casa Minha Vida em Piracicaba (SP). Dissertação (mestrado em habitat). São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/Universidade de São Paulo, 2018.).
Editora responsável: Renata Francisco.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Rua Morgado de Mateus, 615, CEP: 04015-902 São Paulo/SP, Brasil, Tel: (11) 5574-0399, Fax: (11) 5574-5928 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: novosestudos@cebrap.org.br