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Representações Sociais sobre Maternidade na Reprodução Humana Assistida: Discursos de Mulheres Inférteis

Social Representations of Motherhood in Assisted Human Reproduction: Discourses of Infertile Women

Representaciones Sociales de la Maternidad en la Reproducción Humana Asistida: Relatos de Mujeres Infértiles

Resumo:

Este trabalho tem o objetivo de analisar as concepções de maternidade para mulheres inférteis de diferentes níveis socioeconômicos que estão em tratamento de reprodução assistida. Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo, que utilizou como instrumento uma entrevista semiestruturada e contemplou temas como o significado de família, desejo/expectativas sobre filho e gestação e expectativas sobre a maternidade. Participaram da pesquisa 48 mulheres inférteis acima de 35 anos que usam tecnologias de reprodução assistida de alta complexidade em instituições privada e pública. Os dados foram tratados pela análise de conteúdo em que emergiram os temas: representações sociais da família; representações sociais da maternidade; expectativas com a gestação e os modelos maternos; e o filho imaginado. As participantes representaram a família de forma positiva, como um sistema de suporte, de fundação e origem de amor, configurando-a como um laço social. Por outro lado, as concepções de família com base na consanguinidade também estiveram presentes, representando a família pela perpetuação da espécie e pela importância do laço biológico. A maternidade foi marcada por significativa idealização, sendo vista como um papel gratificante e de realização da feminilidade. O peso da cobrança social para procriar também foi sentido como um dever a cumprir e que, na impossibilidade de se realizar, gera sentimentos de inferioridade, menos-valia, impotência e inadequação perante a sociedade, o que reforça o estigma da infertilidade. Tais resultados apontam a importância de reflexões sobre o papel da mulher na nossa cultura, visto que a maternidade é ainda utilizada como medida para o sucesso ou fracasso feminino. Faz-se necessário também refletir sobre a possibilidade da maior inserção do trabalho psicológico na reprodução assistida, visto a carga emocional e social envolvidas nesse processo.

Palavras-chave:
Reprodução Humana Assistida; Infertilidade; Maternidade; Família; Representações Sociais

Abstract:

This study aimed to analyze the conceptions of motherhood for infertile women from different socioeconomic levels who are undergoing assisted reproduction treatment. This is a qualitative and descriptive study that used a semi-structured interview as an instrument and included topics such as the meaning of family and desires/expectations about the child, pregnancy, and motherhood. A total of 48 infertile women over 35 years of ages using high-complexity assisted reproductive technologies in private and public institutions participated in this research. The data were treated by content analysis in which the following themes emerged: family social representations; social representations of motherhood; expectations with pregnancy and maternal models; and the imagined son. Participants represented the family in a positive way as a support system and the foundation and origin of love, embracing the family as a social bond. On the other hand, the family concepts based on inbreeding were also present, representing the family by perpetuation of the species and the importance of biological bonds. Motherhood was marked by significant idealization, being seen as a gratifying role and the fulfillment of femininity. The weight of the social demand to procreate was also felt as a duty to be fulfilled that, in the impossibility of carrying it out, generates feelings of inferiority, worthlessness, impotence, and inadequacy toward society, which reinforce the stigma of infertility. Results point to the necessary reflections on the role of women and our culture since Motherhood is still used as a measure of female success or failure. They also point to a reflection on the possibility of greater inclusion of psychological work in assisted reproduction given the emotional and social burden involved in this process.

Keywords:
Assisted Human Reproduction; Infertility; Motherhood; Family; Social Representations

Resumen:

Este estudio tuvo como objetivo analizar las concepciones de maternidad de mujeres infértiles, de diferentes niveles socioeconómicos, que se encuentran en tratamiento de reproducción asistida. Se trata de un estudio cualitativo, descriptivo, que utilizó como instrumento una entrevista semiestructurada e incluyó temas como el sentido de la familia, deseos/expectativas sobre el hijo y el embarazo y expectativas sobre la maternidad. Participaron en la investigación un total de 48 mujeres infértiles, mayores de 35 años, usuarias de tecnologías de reproducción asistida de alta complejidad en instituciones públicas y privadas. Los datos se sometieron a análisis de contenido del cual surgieron los temas: representaciones sociales familiares; representaciones sociales de la maternidad; expectativas con el embarazo y modelos maternos; hijo imaginado. Las participantes representaron a la familia de manera positiva, como sistema de apoyo, fundamento y origen del amor, configurándola como vínculo social. Por otro lado, también estuvieron presentes las concepciones familiares basadas en la consanguinidad, representando a la familia para la perpetuación de la especie y la importancia del vínculo biológico. La maternidad estuvo marcada por una importante idealización, vista como un rol gratificante y de realización de la feminidad. También se sintió el peso de la demanda social de procrear como un deber que cumplir y que, ante la imposibilidad de realizarlo, genera sentimientos de inferioridad, desvalorización, impotencia e inadecuación en la sociedad, lo que refuerza el estigma de la infertilidad. Por tanto, son necesarias reflexiones sobre el papel de la mujer en nuestra cultura, ya que la maternidad se sigue utilizando como medida del éxito o fracaso femenino. También se reflexiona sobre la posibilidad de una mayor inclusión del trabajo psicológico en la reproducción asistida dada la carga emocional y social que implica este proceso.

Palabras clave:
Reproducción Humana Asistida; Infertilidad; Maternidad; Familia; Representaciones Sociales

Introdução

As tecnologias de reprodução assistida (TRA) surgiram no final dos anos 1970 com o objetivo de contornar a infertilidade ao possibilitarem a gestação aos casais inférteis (Machin & Couto, 2014 Machin R., & Couto, M. T. (2014). “Fazendo a escolha certa”: tecnologias reprodutivas, práticas lésbicas e uso de bancos de sêmen. Revista de Saúde Coletiva, 24(4), 1255-1274. https://doi.org/10.1590/S0103-73312014000400012
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), e podem ser classificadas em baixa complexidade e alta complexidade. A inseminação intrauterina é considerada a técnica de complexidade mais simples, que consiste em introduzir espermatozoides previamente preparados em laboratório dentro da cavidade uterina após uma indução de ovulação da paciente. Essa indução tem como objetivo aumentar o número de óvulos e determinar o momento da ovulação por meio de medicamento, sendo assim a fecundação ocorre dentro do organismo da mulher.

Já a fertilização in vitro (FIV), associada ou não a outras técnicas mais recentes e sofisticadas, é considerada uma técnica de alta complexidade. Na FIV, a fecundação é extracorpórea: formam-se embriões em laboratório que serão posteriormente transferidos para o útero materno. Tal técnica pode ser convencional ou feita por meio de injeção intracitoplasmática de espermatozoide (ICSI) (Cavagna, 2009Cavagna, F. (2009). Tratamento da infertilidade - reprodução assistida. In R. M. Melamed, L. Seger, & E. Borges Jr. (Orgs.), Psicologia e reprodução humana assistida: uma abordagem multidisciplinar (pp. 8-16). Livraria Santos. ).

As causas da infertilidade são variadas e diferem entre países desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento. Segundo Larsen ( 2000 Larsen, U. (2000). Primary and secondary infertility in sub‐Saharan Africa. International Journal of Epidemiology, 29(2), 285-291. https://doi.org/10.1093/ije/29.2.285
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), nos países em desenvolvimento os casamentos acontecem mais cedo e não há tanta preocupação em adiar a maternidade. Nesses países, a maior causa de infertilidade é de ordem secundária, como o início da vida sexual precoce, que contribui para contaminação com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), as doenças inflamatórias pélvicas que podem levar a sequelas como obstrução tubária e aderências tubo-peritoneais. Além disso, os hábitos de vida sedentários, a obesidade, o tabagismo, o consumo excessivo de álcool e outras drogas são outros importantes fatores de risco para o desenvolvimento de problemas reprodutivos (Cavagna, 2009Cavagna, F. (2009). Tratamento da infertilidade - reprodução assistida. In R. M. Melamed, L. Seger, & E. Borges Jr. (Orgs.), Psicologia e reprodução humana assistida: uma abordagem multidisciplinar (pp. 8-16). Livraria Santos. ). Mulheres e homens em idade mais avançada já tiveram maior probabilidade de exposição a IST ou outras doenças, como a endometriose nas mulheres, que pode causar sérios danos à capacidade reprodutiva. Todos esses fatores contribuem com o aumento de casais inférteis na atualidade (Ribeiro, 2012Ribeiro, M. (2012). Infertilidade e reprodução assistida: desejando filhos na família contemporânea. Casa do Psicólogo. ). O principal fator de risco para a mulher é a maternidade tardia, sendo que a partir dos 35 anos há uma diminuição acentuada da fecundidade.

Nesse sentido, o avanço da Reprodução Humana Assistida (RHA) trouxe mudanças de paradigmas no que diz respeito à filiação e aos novos arranjos familiares, visto que a reprodução e a constituição de uma família são ideias muito valorizadas socialmente. Ainda hoje, ser fértil e ter filhos compõe o ideal de felicidade de muitos homens e mulheres, além de simbolizar o êxito e capacidade de realização (Farinati & Montagnini, 2018Farinati, D. M., & Montagnini, H. M. L. (2018). Vivências e desfechos da reprodução assistida. In C. Avelar, & J. P. J Caetano (Eds.), Psicologia em reprodução humana (pp. 71-76). SBRH. ). Dessa forma, as dificuldades no campo da reprodução fragilizam e causam sofrimento àqueles que encontram obstáculos para reprodução. Além disso, o período em que o casal se dedicou à tentativa de realização desse projeto pode ser considerado um tempo perdido, que muitas vezes foi marcado por renúncias de projetos profissionais, pessoais, acrescentando-se, assim, outras perdas (Farinati & Montagnini, 2018Farinati, D. M., & Montagnini, H. M. L. (2018). Vivências e desfechos da reprodução assistida. In C. Avelar, & J. P. J Caetano (Eds.), Psicologia em reprodução humana (pp. 71-76). SBRH. ).

A limitação imposta pela infertilidade aos casais que se deparam com a impossibilidade de dar continuidade à própria existência por meio de um filho biológico inclui elementos de ordem biológica e psíquica (Leite & Frota, 2014 Leite, R. R. Q., & Frota, A. M. M. C. (2014). O desejo de ser mãe e a barreira da infertilidade: uma compreensão fenomenológica. Revista da abordagem gestáltica, 20(2), 151-160. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-68672014000200002
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), que produzem efeitos devastadores na esfera pessoal e conjugal, podendo desestabilizar as relações do sujeito com seu entorno e ocasionar um decréscimo na qualidade de vida (Farinati, Rigoni & Müller, 2006 Farinati, D. M., Rigoni, M. S., & Müller, M. C. (2006). Infertilidade: um novo campo da Psicologia da Saúde. Estudos de Psicologia, 23(4), 433-439. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2006000400011
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). A descoberta da infertilidade, para a maioria dos casais, é vivenciada como um evento traumático e o mais estressante de suas vidas (Klonoff-cohen, Chu, Natarajan & Sieber, 2001 Klonoff-cohen, H., Chu, E., Natarajan, L., & Sieber, W. (2001). A prospective study of stress among women undergoing in vitro fertilization or gamete intrafallopian transfer. Fertility and Sterility, 4(76), 675-687. https://doi.org/10.1016/s0015-0282(01)02008-8
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). Além disso, a pressão social e parental para se propagar o nome da família acrescenta um grande peso para os casais inférteis (Monga, Alexandrescu, Katz, Stein & Ganiats, 2004 Monga, M., Alexandrescu, B., Katz, S. E., Stein, M., & Ganiats, T. (2004). Impact of infertility on quality of life, marital adjustment, and sexual function. Urology, 63(1), 126-30. Doi: https://doi.org/10.1016/j.urology.2003.09.015
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).

A infertilidade pode gerar culpa e vergonha, desencadeando isolamento, queda da autoestima, sentimentos de inferioridade, podendo se configurar em quadros de depressão e ansiedade e desencadear severas perturbações nas esferas emocional, sexual e dos relacionamentos conjugais. Dessa forma, diante do diagnóstico de infertilidade, exige-se um importante trabalho de elaboração psíquica para dar conta da possível alteração no projeto de parentalidade (Farinati et al., 2006 Farinati, D. M., Rigoni, M. S., & Müller, M. C. (2006). Infertilidade: um novo campo da Psicologia da Saúde. Estudos de Psicologia, 23(4), 433-439. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2006000400011
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).

A infertilidade apresenta causas multideterminadas, portanto não se admite uma intervenção que exclua a dimensão emocional e nem o contexto ambiental no qual está inserida. Dessa forma, é importante a presença do psicólogo com a equipe médica de RHA para auxiliar o paciente infértil a expressar as suas ansiedades em palavras. Esses pacientes muitas vezes chegam às clínicas em busca de soluções rápidas, pois, em geral, estão perto do limite biológico para conceber, e muitas vezes preferem não refletir sobre seu estado emocional (Travain, Lourenço & Tardin, 2014Travain, A. A., Lourenço, G. V., & Tardin, R. M. (2014). Avaliação Psicológica do Paciente Infértil: Áreas a Avaliar e Instrumentos. Revista Brasileira de Terapia Familiar, 5, 155-175. ).

Defrontar-se com a impossibilidade de realizar o desejo de ter filho(s) pode provocar efeitos devastadores no psiquismo, visto que a maternidade tem um importante valor social e qualquer ação que contrarie tal lógica é vista como perversa ou patológica (Roudinesco, 2003Roudinesco, E. (2003). A família em desordem. Zahar. ).

Badinter ( 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Nova Fronteira. ) compreende a maternidade como uma construção social enraizada simbolicamente e que varia segundo diferentes contextos históricos, sociais, econômicos e políticos. Foi a partir dos anos 1770 que foi imposta à mulher a obrigação de ser mãe, e inaugurou-se o mito do amor materno, natural e espontâneo que toda mãe tem pelo filho. Nesse contexto, a mulher era considerada a principal responsável por cuidar dos filhos e dos afazeres de ordem privada e doméstica. Os cuidados com o filho e com o lar se configuraram como funções femininas, valorizadas socialmente e que permitiram que a mulher ocupasse uma posição de aparente prestígio dentro da sociedade.

Nesse sentido, a maternidade foi sendo construída como o ideal máximo da mulher e representava um caminho para alcançar a plenitude e a realização da feminilidade por meio da abnegação e do sacrifício. A mulher passou então a ser enclausurada em seu papel de mãe, não podendo evitar desempenhar esse papel sob pena de condenação moral, passando da responsabilidade à culpa em apenas um passo.

Em seu estudo, Badinter ( 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Nova Fronteira. ) destaca que o modo como se fala dessa “nobre função”, com um vocabulário tomado à religião (como vocação ou sacrifício), indica o aspecto místico que é associado ao papel materno. Nesse sentido, o cristianismo colocou a mulher como sinônimo de mãe, excluindo-se a dimensão erótica da vida das mulheres. Soares ( 2010Soares, G. S. (2010). Experiências reprodutivas e desejos de maternidade em lésbicas e bissexuais. In Diásporas, diversidades, deslocamentos. 9o Seminário Internacional Fazendo Gênero. Florianópolis, SC, Brasil. ) afirma que a mãe casta e virgem, símbolo de Maria, determinou para as mulheres uma vida sexual sem prazer. Assim, o modelo normativo coloca o útero como o centro do corpo feminino e a maternidade assume o lugar de essência, anulando outros desejos e projetos e escondendo as diversas formas de se vivenciar a maternidade.

Porém, a questão da realização da maternidade ganhou novos rumos com a consolidação da sociedade industrial, passando de um modelo tradicional a um modelo moderno, baseado em escolhas e proles reduzidas. Essa mudança ocorreu em função do ingresso da mulher no mercado de trabalho, do avanço dos métodos contraceptivos e conceptivos, do advento do divórcio e a possibilidade de estabelecer novas relações amorosas. Tais mudanças possibilitaram que as mulheres rompessem com o destino inevitável que a maternidade lhes designava (Scavone, 2001 Scavone, L. (2001). Motherhood: transformation in the family and in gender relations. Interface Comunicação Saúde e Educação, 5(8), 47-60. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/S1414-32832001000100004
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; Leite & Frota, 2014 Leite, R. R. Q., & Frota, A. M. M. C. (2014). O desejo de ser mãe e a barreira da infertilidade: uma compreensão fenomenológica. Revista da abordagem gestáltica, 20(2), 151-160. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-68672014000200002
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).

O advento dos métodos contraceptivos provocou uma revolução nos papéis sociais masculino e feminino. As mulheres passaram de uma recusa circunstancial da maternidade para a possibilidade de escolha e outras formas de realização pessoal, como a vida profissional e novas adequações da vida familiar. Ribeiro ( 2012Ribeiro, M. (2012). Infertilidade e reprodução assistida: desejando filhos na família contemporânea. Casa do Psicólogo. ) aponta que tais mudanças trouxeram uma reformulação das funções masculinas e femininas e necessidades de adaptações do conceito de família. No entanto, o modelo de família vigente ainda pressupõe uma aliança de um lado – o casamento – e a filiação do outro – os filhos.

A mulher infértil costuma associar essa condição a sentimentos de inadequação, desvalorização, incompletude e incapacidade (Avelar & Lima, 2018Avelar, C. C., & Lima, M. E. D. B. (2018). Processos emocionais e intervenção psicológica em reprodução humana. In C. Avelar, & J. P. J Caetano (Eds.), Psicologia em reprodução humana (pp. 15-19). SBRH. ). Além desses sentimentos, a mulher também vivenciava o isolamento, que hoje foi substituído pela “rede de solidariedade”. O advento da rede social proporciona a quebra do silêncio sobre o enfrentamento da infertilidade e compartilhamento de informações e empoderamento dessas mulheres (Allebrandt & Freitas, 2020 Allebrandt, D., & Freitas, C. L. (2020). Em Busca da Cegonha: “tentantes”, “instamigas” e possíveis ativismos em redes sociais. Cadernos Pagu, (59), 1-36. https://doi.org/10.1590/18094449202000590009
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). Já o homem infértil associa tal condição à ausência da virilidade e masculinidade. Portanto, deparar-se com o diagnóstico de infertilidade remete a angústias e frustrações para ambos os sexos, pois coloca o sujeito no lugar das incertezas (Avelar & Lima, 2018Avelar, C. C., & Lima, M. E. D. B. (2018). Processos emocionais e intervenção psicológica em reprodução humana. In C. Avelar, & J. P. J Caetano (Eds.), Psicologia em reprodução humana (pp. 15-19). SBRH. ).

A infertilidade pode ser uma experiência desestruturante, que reabre antigas feridas narcísicas devido à barreira de não poder transmitir a herança genética para futuras gerações. Freud ( 1932/2006Freud, S. (1932/2006). Feminilidade. In Imago Editora (Ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 113-134). Imago. ) postula que a demanda de ter um filho está sempre articulada à castração e à falta, e que o lugar designado a um filho é o resultado de uma resolução edípica. Assim, a maternidade seria a solução dos impasses da feminilidade e a resolução edípica por excelência, com o estatuto ilusório de completude narcísica. Nesse sentido, é possível dizer que um filho geralmente vem para tamponar uma falta, e, no imaginário dos pais, o filho dará continuidade à árdua busca pela onipotência e será o realizador de todos os desejos que eles não puderam alcançar (Freud, 1914/2006Freud, S. (1914/2006). Sobre o narcisismo: uma introdução. In Imago Editora (Ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 77-110). Imago. ).

A maternidade é resultado de um complexo simbólico cujas raízes remontam à pré-história do sujeito e que sobre elas constrói os desejos. Nesse sentido, a reprodução assistida oferece a possibilidade de articular o feminino e o desejo de gerar um filho, sendo um importante recurso para a efetivação dos direitos reprodutivos, com potencial de atender as necessidades das pessoas inférteis, seja por causas biomédicas ou por razões socioculturais. Assim, as tecnologias reprodutivas podem transformar relações sociais, legitimando novos arranjos familiares, de filiação e parentesco.

No Ocidente, o modelo familiar atual mais comum corresponde ao da “família nuclear”: um pai, uma mãe e filhos. Ele está apoiado em uma realidade biológica irredutível até esse momento, ou seja, são necessários um homem e uma mulher para produzir uma criança. Como consequência, a família nuclear procriativa parece se impor como uma verdade incontestável, justamente por estar socialmente de acordo com o fato biológico (Zambrano, 2006 Zambrano, E. (2006). Parentalidades “impensáveis”: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais. Horizontes Antropológicos, 12(26), 123-147. https://doi.org/10.1590/S0104-71832006000200006
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). Assim, o discurso normativo da família define a reprodução como o principal referencial do parentesco.

Considerando a importância social e psicológica da reprodução, assim como as consequências de sua impossibilidade, mostra-se necessária a compreensão sobre esses aspectos, uma vez que em nossa sociedade esse tema é refém de desigualdade econômica e de gênero. Sendo assim, este estudo visa analisar as concepções de maternidade para mulheres inférteis de diferentes níveis socioeconômicos que estão em tratamento de reprodução assistida.

Método

Este estudo é fruto de uma pesquisa de doutorado qualitativa e descritiva (Marciano, 2022 Marciano, R. P. (2022). Aspectos emocionais e concepções de maternidade de mulheres inférteis em programa de reprodução assistida. [Tese de Doutorado, Universidade Federal de Goiás]. https://repositorio.bc.ufg.br/tedeserver/api/core/bitstreams/c20ca024-4338-49dd-9e5d-891b8ef20d6b/content .
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). As participantes foram selecionadas de modo não probabilístico e intencional em duas unidades de reprodução humana assistida, sendo uma clínica particular e um ambulatório público de um hospital universitário, ambos na cidade de Goiânia. Ao todo participaram deste estudo 48 mulheres, 24 de cada instituição. Foram incluídas as mulheres acima de 35 anos que estavam em tratamento de alta complexidade em RHA, e excluídas aquelas que não aceitaram participar da pesquisa. A coleta de dados foi iniciada apenas após a aprovação em Comitê de Ética em Pesquisa, sob o parecer nº 04991518.0.0000.5078.

As participantes foram abordadas nas salas de espera das duas unidades e informadas brevemente sobre a pesquisa, sendo assim convidadas a acompanhar a pesquisadora, ou sua equipe, em sala privativa para obter mais informações. Para que a abordagem citada ocorresse, foi feita uma triagem com a equipe da recepção em que somente as pacientes que cumprissem os critérios de participação fossem convidadas. As mulheres que demonstraram interesse em contribuir para a pesquisa foram direcionadas à sala para coleta de dados, diretamente reservada com a organização de cada instituição para este fim. Em ambiente privativo, a equipe de pesquisa realizou a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Após aceite e assinatura do termo, a pesquisa foi realizada seguindo o roteiro semiestruturado, baseado na Entrevista sobre o Desejo de ter Filhos e o Impedimento da Gestação (Krahl & Piccinini, 2002Krahl, S., & Piccinini, C. A. (2002). Entrevista sobre o desejo de ter filhos e o impedimento da gestação. Instituto de Psicologia – UFRGS. Instrumento não publicado. ) e da Entrevista sobre a Gestação e as Expectativas e Sentimentos das Gestantes (Grupo de Interação Social, Desenvolvimento e Psicopatologia [GIDEP], 1998Grupo de Interação Social, Desenvolvimento e Psicopatologia (GIDEP). (1998). Entrevista sobre a Gestação e as Expectativas e Sentimentos das Gestantes. Instrumento não publicado. ). O instrumento contemplou temas como o significado de família, desejo/expectativas sobre filho e gestação e expectativas sobre a maternidade.

As entrevistas duraram, em média, de 20 a 50 minutos, foram gravadas e posteriormente transcritas e analisadas à luz da teoria psicanalítica aplicada à pesquisa qualitativa em saúde, utilizando-se da análise temática de conteúdo, que, segundo Minayo ( 2008Minayo, M. C. (2008). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. Hucitec. ), desdobra-se em três etapas: a) pré-análise; b) exploração do material ou codificação; e c) tratamento dos resultados obtidos, inferência e interpretação.

As categorias de análise foram definidas a partir dos temas pré-determinados pela revisão da literatura: configurações familiares, significados e expectativas da maternidade e desejo de ter um filho. Foram realizadas inferências e interpretações com base no quadro teórico desenhado inicialmente, além de novas dimensões teóricas e interpretativas (Minayo, 2008Minayo, M. C. (2008). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. Hucitec. ). Assim, as categorias tiveram como conteúdo os temas levantados inicialmente, quando o instrumento foi elaborado, e foram modificadas e ampliadas conforme as experiências descritas pelas participantes nas entrevistas. Neste artigo foram analisadas as categorias: representações sociais da família; representações sociais da maternidade; expectativas com a gestação e os modelos maternos; e o filho imaginado.

Resultados e discussão

A média de idade das participantes é de 38,5 anos na unidade pública e 39,48 anos na unidade privada. Outra similaridade entre as duas populações é a alta escolaridade das participantes, já que 45,83% das entrevistadas na unidade pública e 50% na unidade privada haviam completado o ensino superior. Dentre os dados sociodemográficos discrepantes estão a renda média, que variou de R$ 5.087,5 no ambulatório do hospital universitário a R$ 21.208,33 na clínica privada.

As participantes foram identificadas pela letra inicial de “Entrevistada” seguida pelo número da entrevista (E+n.), a idade (anos=a), número de gestação (gestação=G) e número de aborto (aborto=A), tal como o exemplo: E1, 37a, G0A0. Foram criadas quatro categorias para a análise de conteúdo.

Representações sociais da família

De acordo com Vala ( 1997Vala, J. (1997). Representações sociais: Para uma psicologia do pensamento social. In J. Vala & M. B. Monteiro (Orgs.), Psicologia social (pp. 353-367). Fundação Calouste Gulbenkian. ), as representações sociais exprimem a relação de um sujeito com um objeto que se encontram na interseção entre o psicológico e o social. Elas são construídas pela interface da afiliação dos sujeitos a diferentes grupos sociais, considerando suas características objetivas e subjetivas, produzidas e compartilhadas socialmente. Dessa forma, as representações sociais da família estão relacionadas com o conceito atual de família que privilegia a configuração conjugal, nuclear, composta por pai, mãe e filho(s). Hoje, no Ocidente, a família é entendida a partir de laços de consanguinidade, afinidade, corporatividade, sistema de moradia e sistema de atitudes, dentre outros aspectos (Braga & Amazonas, 2005 Braga, M. G. R., & Amazonas, M. C. L. A. (2005). Família: maternidade e procriação assistida. Psicologia em Estudo, 10(1), 11-18. https://doi.org/10.1590/S1413-73722005000100003
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).

As representações sociais da família das participantes desta pesquisa foram marcadas positivamente, como de vínculo e cuidado. Para Szymanski ( 2005Szymanski, H. (2005). Teorias e “teorias” de famílias. In M. C. B. Carvalho (Org.), A família contemporânea em debate (6a ed., pp. 21-27). Cortez. ), a família é constituída por um grupo de pessoas vivendo numa estrutura hierárquica sob a proposta de ligação afetiva duradoura, incluindo relação de cuidado entre os adultos e destes com as crianças e idosos daquele contexto. Nesse sentido, as representações sociais da família das participantes desta pesquisa convergem com a definição de família do autor, já que foram marcadas por representações positivas, de vínculo e de cuidado.

As participantes representaram a família com os significantes amor, carinho, sustentação, perpetuação da espécie, mas também por incompletude devido à ausência de filhos: “ A intenção de formar família é seguir o fluxo natural. Há pessoas que optam por não, mas eu, pela educação que recebi, sempre quis ter ” (E38, 37a, G0A0).

Outras representações sociais de família que surgiram estão relacionadas a um sistema de suporte, de acolhimento, representadas por meio de termos como “tudo”, “base”, “união”, “sustentação”, “esteio”. “ Ah, acho que é a base de tudo, né?! Acho que é... a base, o esteio, o ponto de apoio de qualquer pessoa. É isso ” (E6, 37a, G0A0).

As palavras “amor”, “afeto” e “cuidado” expressam o significado do apoio entre os membros familiares, reforçando as funções afetivas da família, ao proporcionar o sentimento de pertencimento e de laços amorosos, mesmo sem laços consanguíneos. Szymanski ( 2002Szymanski, H. (2002). Viver em família como uma experiência de cuidado mútuo: desafios de um mundo em mudança. Revista Serviço Social e Sociedade, 71, 9-25. ) afirma que não existe mais um modelo único de família, e que é a força dos vínculos que mantém as pessoas unidas em laços de família, como corrobora uma das entrevistadas: “ Eu não me apego apenas a parentes, laços de sangue. Família é aqueles que estão com a gente quando a gente precisa, quando a gente ama, quando tem desejo de ajudar ” (E41, 42a, G1A1). “ Família nesse sentido, com filho, começa assim, a partir do momento que você começa a não saber o que fazer com esse amor que está derramando. Acho que pra gente tem esse significado mais ou menos de família ” (E46, 38a, G0A0).

As representações sociais da família estão marcadas pelo conceito hegemônico e tradicional desta, com uma representação ideal, como um padrão ou meta a ser seguida (Albuquerque, Belém, Nunes, Leite, & Quirino, 2018 Albuquerque, G. A, Belém, J. M, Nunes, J. F. C, Leite M. F., & Quirino, G. S. D. (2018). Planejamento reprodutivo em casais homossexuais na estratégia saúde da família. Revista de Atenção Primária à Saúde, 21(1), 104-11. https://doi.org/10.34019/1809-8363.2018.v21.15639
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). Essa visão naturaliza as referências de família por laços consanguíneos, reforçando os vínculos biológicos, como pode ser visto neste trecho:

Eu tenho um conceito de família, apesar do meu marido tá junto. . . nós cinco. É sempre as cinco. As duas sobrinhas, minha irmã e minha mãe. É porque assim, eu tenho o conceito de que ele [marido] pode ir embora. Tudo pode dar errado, e, por mais que a gente brigue, tenha problemas, estamos só as cinco, juntas. É o conceito de família que eu tenho (E5, 35a, G3A3).

No relato acima, a participante marca a importância dos laços consanguíneos, reforçando a continuidade da família, a transmissão da linhagem e da espécie e a valorização da ordem biológica. Tais representações contribuem para reproduzir noções naturalizantes de parentesco em que se prioriza o laço biológico.

Os conceitos de família que permeiam os discursos das participantes estão predominantemente relacionados ao modelo idealizado de família, baseado no parentesco, ou seja, na família nuclear burguesa, marcada por laços de consanguinidade. Tais representações estiveram mais presentes nos discursos das mulheres entrevistadas que estavam em tratamento de RHA na instituição pública. Já as mulheres que estavam em tratamento de RHA na instituição privada associavam mais as representações da maternidade com os laços afetivos do que com os laços consanguíneos.

É inegável que a família nuclear está a cada dia cedendo espaço em nossa sociedade para outras constituições, especialmente com a diversidade de modelos de família atuais, sendo esta entendida não apenas a partir de laços de consanguinidade, mas também pela afinidade, corporatividade, sistema de moradia e sistema de atitudes, dentre outros aspectos (Braga & Amazonas, 2005 Braga, M. G. R., & Amazonas, M. C. L. A. (2005). Família: maternidade e procriação assistida. Psicologia em Estudo, 10(1), 11-18. https://doi.org/10.1590/S1413-73722005000100003
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). Porém ainda prevalecem representações sociais de família relacionadas à incompletude caso o casal não tenha filhos, como pode ser visto no trecho a seguir:

Eu luto pra ter filhos porque a família... não que quem não tem filhos não tenha a vida completa, mas pra mim o sentido de ter uma família é o meu esposo, nossos filhos. . . só assim a nossa família vai estar toda completa (E1, 37a, G0A0).

De acordo com Straube ( 2007Straube, K. M. (2007). Da família pensada à família vivida: estigma, infertilidade e as tecnologias conceptivas. [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Paraná]. ), a reprodução é o que constitui a família no sistema legal vigente, sendo definida pela presença de filhos. Atualmente o filho é o principal projeto na vida do casal, um prolongamento narcísico deste, que se lança em busca da sua realização a qualquer preço. Na impossibilidade de realizar tal projeto, o casal se depara com a sensação de incompletude, com o sentimento de vazio e de falta.

As tecnologias reprodutivas introduzem a ciência na constituição familiar, por meio de intervenções no corpo que buscam ressignificar suas limitações, permitindo uma pluralidade de arranjos familiares contemporâneos. Ao mesmo tempo, as tecnologias reprodutivas têm reforçado o modelo idealizado de família nuclear e da identidade de mulher-mãe, fortalecendo, assim, o estigma de incompletude da mulher sem filhos.

Tal noção é tão enraizada na nossa sociedade que apenas uma participante afirmou que sente que sua família já está completa, mesmo sem filho. “ Olha, família é importante, é tudo que a gente tem. Mas necessariamente eu não preciso de um filho para ter família ou não. Eu e meu marido somos nossa família ” (E48, 44a, G3A3).

Os conceitos de família que permeiam os discursos das participantes estão predominantemente relacionados ao modelo idealizado de família, baseado no parentesco, ou seja, na família nuclear burguesa (Roudinesco, 2003Roudinesco, E. (2003). A família em desordem. Zahar. ), em que a estrutura é composta pelo pai, a mãe e os filhos. Essa forma de configurar a família pode ser compreendida como um risco psíquico para as participantes, pois o modelo idealizado não corresponde à realidade dessas mulheres que convivem com a infertilidade.

Representações sociais da maternidade

A maternidade é considerada uma experiência complexa que envolve fatores biológicos, culturais, sociais e psicológicos, sendo significada de forma distinta em cada cultura e sociedade, interferindo na vivência individual do que é ser mãe. Nesse sentido, Scavone ( 2001 Scavone, L. (2001). Motherhood: transformation in the family and in gender relations. Interface Comunicação Saúde e Educação, 5(8), 47-60. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/S1414-32832001000100004
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) afirma que a maternidade deve ser entendida como um fenômeno social. Para as participantes desta pesquisa, as expectativas em relação à maternidade foram marcadas por idealizações e desejo, sendo representadas pela realização de um sonho, a ideia de completude da mulher e do casal, um sentido para vida, o desejo de sentir um amor incondicional, de viver algo mágico, maravilhoso, único e natural: “ Ah, eu vejo a maternidade como algo muito mágico, maravilhoso. Eu acho lindo mulher grávida, eu acho lindo a maternidade do recém-nascido, tudo isso pra mim é mágico ” (E24, 39a, G3A1). “É um sonho, é tudo de bom. Vai ser tudo maravilhoso. Sou louca pra ter um bebê. Sou louca com criança” (E8, 39a, G1A1).

Nos trechos acima é possível perceber que a expectativa em relação à maternidade foi frequentemente descrita como uma experiência perfeita, marcada por significativa idealização. Tais achados corroboram a tese de Badinter ( 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Nova Fronteira. ) ao pontuar que a maternidade está impregnada de ideais que a fazem ser vista como um papel gratificante. Para a autora, a maternidade foi construída como o ideal máximo da mulher e representava um caminho para alcançar a plenitude e a realização da feminilidade. Tal representação ainda está presente nos dias de hoje, como mostram os relatos das participantes.

Tubert ( 1996Tubert, S. (1996). Mulheres sem sombra: maternidade e novas tecnologias reprodutivas. Rosa dos tempos. ) assinala que o conceito de maternidade pressupõe um discurso social em que está implícita uma imagem feminina vinculada a sofrimentos, sacrifícios e riscos, impressa na fala da participante:

Ser mãe é amor... Eu sei que é um amor que eu nunca imaginei, mas eu estou preparada pra me doar pra isso, e eu estou preparada pra poder me anular em muita coisa. Eu não sou mãe, mas eu tenho certeza, porque eu sou filha e eu sei o tanto que minha mãe se anulou pra ser mãe, e eu estou preparada pra isso (E35, 34a, G1A1).

Nesses trechos observa-se que a representação social da maternidade está associada ao sacrifício e à devoção. Badinter ( 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Nova Fronteira. ) afirma que a maternidade foi construída, ao longo dos séculos, por meio da abnegação e do sacrifício da mulher. Segundo a autora, a partir do século XVIII a devoção e o sacrifício se tornaram atributos essenciais da função materna, considerados parte integral da natureza feminina. As mulheres passaram a assumir o papel de boa mãe, dedicando-se integralmente aos filhos e se responsabilizando pelo espaço privado da família.

Badinter ( 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Nova Fronteira. ) rompe com a idealização e romantização da maternidade ao afirmar que a promessa de amor e felicidade nem sempre era real diante da árdua tarefa da maternagem, executada de maneira solitária e submissa ao marido, cuja única função era prover financeiramente sua família. Assim, criou-se uma imagem da mãe que zela e se sacrifica pelo seu filho. A mulher que, diante desse cenário, se vê diferente ou impossibilitada de desempenhar o papel considerado ideal, como as mulheres inférteis, tende a se sentir inferior ou incapaz.

Além do sacrifício e da devoção, o conceito de maternidade no ideário ocidental moderno é também concebido em termos do instinto, parte integrante da natureza da mulher. Leite e Frota ( 2014 Leite, R. R. Q., & Frota, A. M. M. C. (2014). O desejo de ser mãe e a barreira da infertilidade: uma compreensão fenomenológica. Revista da abordagem gestáltica, 20(2), 151-160. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-68672014000200002
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) afirmam que, de acordo com o pensamento patriarcal moderno, a mulher era pré-determinada biologicamente a engravidar e a cuidar dos filhos. Era por meio da maternidade que a mulher realizava o seu destino fisiológico e sua vocação “natural”.

Badinter ( 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Nova Fronteira. ) questiona a existência desse amor materno incondicional e a tendência feminina inata à maternidade. A autora pontua que o instinto materno é um mito, visto que não é inerente a todas as mulheres. No entanto, nos relatos desta pesquisa, as representações da maternidade ainda estão marcadas pelas ideias de naturalização desse amor e da função materna, reforçando a noção de instinto materno.

Algumas mulheres também representaram a maternidade como uma pressão social. Tais achados corroboram outro estudo (Viella, 2015 Viella, I. L. (2015). Para além da maternidade: um estudo sobre mulheres que optaram por não ter filhos. [Trabalho de conclusão de curso de Psicologia, Universidade do Sul de Santa Catarina]. https://repositorio.animaeducacao.com.br/items/6d2bb057-7a0d-4f46-bc35-b1c1020584a1 .
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), pontuando que a decisão de exercer a maternidade geralmente é tomada sob pressão de familiares, da comunidade e da sociedade, o que reforça as normas reprodutivas vigentes: “ Ele é filho único. Os pais já estão bem de idade. Às vezes sofre um pouquinho de pressão mais pelos pais dele, meus pais não cobram muito ”. (E16, 40a, G0A0). “ A família, os amigos, os parentes, tudo cobram um filho. Por mais que você queira ter esse filho, é uma cobrança social que aquilo ali te arrasa por dentro ”. (E18, 38a, G2A1).

Nos dias atuais, o amor materno tornou-se parte de um padrão de atitudes altamente valorizado, mas também uma forma de regulação da vida da mulher por meio da mobilização do sentimento de culpa e da maternidade compulsória. As normas sociais impostas exercem uma carga incalculável sobre os desejos e fazem operar uma série de mecanismos psicológicos que vão desde a culpa ao medo quando tais ideais maternos não são alcançados.

Para Straube ( 2007Straube, K. M. (2007). Da família pensada à família vivida: estigma, infertilidade e as tecnologias conceptivas. [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Paraná]. ), a ideia de reproduzir descendência é inquestionável nas sociedades humanas, considerada uma lei natural cuja quebra pode resultar na descontinuidade social e gerar responsabilização. A cobrança social é sentida como um dever a ser cumprido e que, na impossibilidade de ser realizado, gera sentimentos de incapacidade e impotência. Dessa forma, a cobrança é vista como sequência natural na ordem do ciclo de vida que prevê etapas a serem cumpridas.

Nesse sentido, as mulheres sem filhos sofrem pressão por meio de cobranças de familiares e amigos que se dão por etapas, em que primeiro indagam sobre quando conhecerá um companheiro, depois quando se casar, e, por fim, quando terão filhos. Muitas mulheres dizem não se sentir mal com tais exigências por estarem acostumadas, já que isso acontece há muito tempo em nossa sociedade. As cobranças por filhos têm como justificativa: a) amparo na velhice; b) para vivenciar o “amor verdadeiro” entre mãe e filho; c) a desconfiança sobre a infertilidade, que muitas vezes equipara feminilidade à fertilidade, julgando como inferior e defeituosa aquela que não tem filhos; e d) a realização de um suposto desejo do companheiro por ser pai, ressaltando a desigualdade de gênero ao desconsiderar a opinião feminina em uma questão que demanda a opinião de ambas as partes de um casal (Viella, 2015 Viella, I. L. (2015). Para além da maternidade: um estudo sobre mulheres que optaram por não ter filhos. [Trabalho de conclusão de curso de Psicologia, Universidade do Sul de Santa Catarina]. https://repositorio.animaeducacao.com.br/items/6d2bb057-7a0d-4f46-bc35-b1c1020584a1 .
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).

Há ainda a pressão exercida sob a ótica do “relógio biológico”, que não acompanha a evolução social das mulheres. De acordo com Badinter ( 2011Badinter, E. (2011). O conflito: a mulher e a mãe. Record. ), atualmente as mulheres querem garantir primeiro a sua independência, por meio dos estudos e do trabalho, para só depois dar lugar a um filho. Por vezes é a exigência da idade e do medo de perder a possibilidade de ser mãe que faz com que as mulheres estejam determinadas a reproduzirem, mais do que a vontade de ter filhos “ Hoje a gente casa muito tarde e decide ter filho muito tarde, e a biologia não acompanha essa evolução nossa de querer trabalhar e ter o momento certo de ter um filho, né? ” (E6, 37a, G0A0).

Com o fácil acesso aos métodos contraceptivos e o acelerado avanço das tecnologias reprodutivas, as gestações têm sido cada vez mais planejadas e adiadas. As justificativas para o adiamento da maternidade das participantes desta pesquisa mantiveram-se no âmbito da busca por estabilidade financeira, priorização dos aspectos materiais (comprar casa, carro), dedicação aos projetos individuais (trabalho e estudo) ou mesmo não ter encontrado o companheiro ideal para realizar o projeto parental.

Scavone ( 2001 Scavone, L. (2001). Motherhood: transformation in the family and in gender relations. Interface Comunicação Saúde e Educação, 5(8), 47-60. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/S1414-32832001000100004
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) pontua que a realização da maternidade ainda é um dilema para as mulheres que querem seguir uma carreira profissional, visto que são elas que assumem majoritariamente as responsabilidades parentais. A maternidade continua sendo afirmada como um elemento muito forte da cultura e da identidade feminina por sua ligação com o corpo e com a natureza.

Expectativas com a gestação e os modelos maternos

Com relação à expectativa sobre si mesma enquanto mãe, as participantes descreveram como positiva, imaginando que seriam mães cuidadosas, dedicadas e amorosas. Amor e cuidado apareceram frequentemente associados entre si, e o modelo interno do papel de mãe estava relacionado à experiência com a própria mãe.

A minha [mãe] , né? Pra quase todos os quesitos. E a minha cunhada, que é mãe dos gêmeos. A minha mãe é à moda antiga, e ela [a cunhada] é uma mãe mais moderna. Então eu me vejo muito na minha cunhada também. São modelos de luta né, ela criou os filhos sem o marido, sem a mãe. Então, a luta, eu me inspiro muito nela. E minha mãe, no carinho, no cuidado, no zelo que minha mãe tem, assim, na formação do caráter mesmo, enquanto pessoa. Então tem coisas que a gente traz, mas tem outras que com certeza foi ela que me passou (E46, 38a, G0A0).

O modelo de mãe foi representado pelas palavras “protetora”, “batalhadora” e “guerreira”, de acordo com a experiência com a própria mãe, indicando como elas deveriam se comportar para garantir a proteção do filho. Assim, a idealização da maternidade é a manifestação de um sistema materno de cuidado que está em desenvolvimento, preparando as mulheres para a vivência da experiência da maternidade. Porém algumas participantes não tiveram um modelo materno positivo, e as expectativas sobre si mesma enquanto mãe eram representadas por um modelo diferente do da própria mãe.

Minha mãe não foi uma boa mãe, minha irmã é uma boa mãe, mas ela é boa demais. Porque acho que a gente não pode ser bom demais, porque os filhos têm que aprender a lutar, têm que aprender a buscar. Então se você for boa demais, eles acomodam e montam em cima, que é o que acontece com minha irmã (E21, 42a, G3A1).

O período da gestação é considerado um evento de alta complexidade, tanto para a mulher quanto para a família (Szejer & Stewart, 1997Szejer, M., & Stewart, R. (1997). Nove Meses na Vida da Mulher: Uma abordagem psicanalítica da gravidez e do nascimento. Casa do Psicólogo. ), e que demanda restruturação na vida da mulher e nos papéis que ela exerce. A gravidez, comumente entendida como consequência natural da relação de um casal, é um sonho a ser alcançado pelas mulheres desta pesquisa. No entanto, como afirma Straube ( 2007Straube, K. M. (2007). Da família pensada à família vivida: estigma, infertilidade e as tecnologias conceptivas. [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Paraná]. ), a transição da gravidez esperada para o reconhecimento da incapacidade de procriar é dolorosa. As mulheres que se submetem às técnicas reprodutivas estão, muitas vezes, motivadas pelo desejo de experimentar a gravidez, o parto e a amamentação. Nesse sentido, a gravidez imaginada foi descrita pelas participantes com grande expectativa pela possibilidade de experimentarem, por meio da RHA, a potência e a produtividade do corpo.

Algumas participantes imaginavam a gestação como um período prazeroso, descrevendo um sentimento de plenitude por estar gerando um ser dentro de si, ao mesmo tempo em que desfrutariam das mudanças físicas e do afeto em relação ao filho. A tese de Aulagnier ( 1999 Aulagnier, P. (1999). Nascimento de um corpo, origem de uma história. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 2(3), 9-45. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/1415-47141999003002
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) sustenta essas expectativas ao afirmar que carregar um bebê dentro do ventre corresponde à experiência de plenitude para a mulher, tal como pode ser observado nos trechos a seguir. “ Eu penso que vou ser uma mãe muito bonita grávida. Eu não vejo a hora do barrigão crescer ” (E27, 36a, G0A0).

Outras participantes, porém, imaginavam a gravidez de forma menos idealizada, podendo incluir uma perspectiva mais realista.

Imagino, por conta da idade, que vou ser grávida no sedentarismo, né, imagino que minha situação eu fique mais ofegante, mais assim. Mas também sempre fui muito saudável, apesar do sedentarismo; mesmo sendo gordinha também nunca tive problema de diabetes e colesterol, vou cuidar ainda mais do que eu cuido da minha alimentação. Imagino sendo uma grávida prática também, trabalhando até o último período, também pra poder ficar o máximo com o bebê (E34, 36a, G1A0).

Ao mesmo tempo em que a RHA gera grandes esperanças por possibilitar a conquista da desejada gravidez, mobiliza fortes reações emocionais que, como postulam Borlot e Trindade ( 2004 Borlot, A. M. M., & Trindade, Z. A. (2004). As tecnologias de reprodução assistida e as representações sociais de filho biológico. Estudos de Psicologia, 9(1), 63-90. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2004000100008
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), vinculam a infertilidade a uma experiência devastadora.

A gestação também foi representada com medo da não implantação do embrião, mas que, passado determinado período (primeiro trimestre), haveria a garantia de sucesso da gravidez. Devido à idade tardia, à possibilidade de gestação múltipla ou algum problema de saúde, as participantes tinham consciência de que poderiam ter uma gestação de risco. A expectativa, no entanto, era que os riscos seriam recompensados pela concretização do desejo de ter um filho e que tudo daria certo no final.

A vivência materna em relação à gravidez é complementada pelo olhar do outro, que reconhece e valida essa experiência, o que faz da gestação uma experiência também social. As participantes idealizaram a gestação com base no reconhecimento social, apontando os benefícios que esse período poderia trazer para a mulher, como o cuidado, a atenção, o zelo e o mimo das pessoas próximas.

Menina, sábado eu tava vomitando, domingo vomitando, passando mal, tudo tô passando mal. Eu quase falei “gente, eu não estou grávida ainda.” Calma. Eu me imagino muito manhosa. Eu me imagino. . . que eu vou ter muito repouso por conta da endometriose, isso tudo. Eu me imagino que eu vou ter mais cuidado. Eu vou dar mais atenção a todos os sintomas, a tudo o que acontecer. Não vai passar nada despercebido. E eu vou aproveitar todos os momentos da minha gravidez. Desde a foto da primeira semana até a última. Vou aproveitar tudo (E18, 38a, G2A1).

Para Maldonado ( 2002Maldonado, M. T. (2002). Psicologia da gravidez, parto e puerpério. Saraiva. ) a gravidez é um período de transição que envolve a necessidade de restruturação e reajustamento da vida em várias dimensões como a mudança de identidade e uma nova definição de papéis. Nesse sentido, as mulheres que estavam em tratamento de RHA, imaginavam essa nova identidade – de mulher grávida – recebendo os mimos e os benefícios que a gestação traz por meio do reconhecimento social, da transformação do corpo e da potência feminina em gerar um ser dentro de si.

A gravidez imaginada também revelou sentimentos de medo, angústia e ansiedade relacionados ao fenômeno da concepção por meio da RHA. Constatou-se também uma ambivalência de sentimentos, ora com expectativas positivas sobre o sucesso do tratamento, resultando na gestação, ora com sentimentos negativos, ao temer que a gestação não se sustente. Algumas participantes, ao idealizar a gestação, tiveram suas expectativas ancoradas em uma realidade fantasiosa de que tudo ocorra de forma harmônica e com final feliz.

O filho imaginado

O desejo de ter um filho é um anseio narcisista de completar-se por meio do Outro, sendo o bebê visto como uma extensão de próprio corpo materno, dando uma nova potência à sua imagem corporal. Freud ( 1914/2006Freud, S. (1914/2006). Sobre o narcisismo: uma introdução. In Imago Editora (Ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 77-110). Imago. ) afirma que há nesse desejo uma dose de imortalidade: o bebê representa uma promessa de continuidade, pois tem as características dos pais e o nome da família. O bebê pode significar para os pais, também, o sucesso na realização dos sonhos em que eles mesmos fracassaram. O filho imaginado dará continuidade à árdua busca pela onipotência e será o realizador de todos os desejos dos pais (Marciano, 2016 Marciano, R. P. (2016). A constituição do vínculo materno com o bebê prematuro: possibilidades de intervenção precoce. [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Goiás]. https://repositorio.bc.ufg.br/tedeserver/api/core/bitstreams/51407034-79a7-4a1e-9f2c-ef06dd9c3887/content .
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).

A representação do filho imaginado estava associada à ideia de completude, para preencher uma falta, para dar continuidade à família, dar sentido à vida, para fazer companhia e para ter alguém para cuidar de si na velhice: “ Porque, assim, em um casamento, depois que vai chegando um determinado tempo, falta, sabe? Então eu acho que vai preencher, sabe, aquele espaço que estava vazio ” (E12, 38a, G0A0).

Freud ( 1932/2006Freud, S. (1932/2006). Feminilidade. In Imago Editora (Ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 113-134). Imago. ) afirma que a demanda de ter um filho, por ser uma reivindicação fálica, está sempre articulada à castração e à falta. Assim, é possível dizer que um filho geralmente vem para suprir uma falta. O que leva a mulher a desejar a ter um filho é o vazio da falta estrutural produzido pela castração, bem como outros vazios deixados pelas perdas ao longo da vida. Dependendo do sentido dessas faltas, o filho pode ser idealizado como a compensação da solidão, da ausência de planos, da ilusão da completude (Sales, 2008Sales, L. M. M. (2008). A “loucura” das mães: do desejo à realidade do filho. In C. M. F. Rohenkohl (Org.), A clínica com o bebê (pp. 27-35). Casa do Psicólogo. ).

As participantes representaram os filhos desejados também como um prolongamento do casal, e que irá concretizar o amor dos pais: “ Acho que a gente vai vivenciar de fato o conceito de família mesmo, sabe? Vai aumentar a ligação, cumplicidade. É uma conquista nossa, traz um sentimento de união, de afeto e responsabilidade ” (E38, 37a, G0A0).

Assim, o filho desejado foi descrito como um elemento importante para vida conjugal, associado à ideia de completude, sendo que a possibilidade da ausência de filho representaria uma vida vazia e incompleta. O filho imaginado também foi representado como a satisfação de necessidades pessoais, como alguém para fazer companhia, com a garantia de que seria para sempre, diferente do marido, que pode ir embora: “ Ser sozinho é ruim. Só nós dois é ruim; pensa, se um morre o outro fica largado no mundo ” (E48, 44a, G3A3).

Outras mulheres representaram o filho desejado de forma menos idealizada, mais próxima da realidade: “ Então, eu tô tentando consertar porque eu acho que meu significado tá um pouco errado. Eu queria não ser sozinha, mas o filho não é da gente, o filho é do mundo ” (E5, 35a, G3A3). As participantes apontaram também as mudanças que imaginam que o bebê irá trazer para suas vidas e como irá afetar a vida do casal:

Vai mudar toda a rotina, vou ter mais trabalho do que já tenho hoje, vou ter que me desdobrar mais. Porque na vida dos homens, as coisas não mudam tanto, né? Mas eu acho que vai ser bom mesmo assim (E26, 39a, G1A0).

No estilo de vida contemporâneo, com as conquistas alcançadas pelas mulheres, que garantiram maior liberdade e independência, nem sempre a maternidade tem espaço garantido na vida delas. Assim, a maternidade deixou de ocupar o papel principal na vida das mulheres para dar espaço a outros objetivos, especialmente aqueles relacionais ao estudo e ao trabalho. Há um desejo de não perder nada das conquistas pessoais e profissionais ao ter um filho, além do medo das mudanças que a maternidade gera na vida da mulher.

Algumas mulheres também representaram o filho desejado como uma recompensa, caso os pais sejam merecedores, e como uma autoafirmação da capacidade de gestar, sob as condições das tecnologias reprodutivas.

Deus capacitou o homem e só vem no assentimento de Deus. Eu tenho muito na minha cabeça assim, não cai uma folha da árvore sem o consentimento, então o filho só vem quando Deus permite. É tipo um milagrinho. Se ele achar que meu marido merece ser pai e tudo, ele vai dar nossa benção (E24, 39a, G3A1).

A pressão social pela procriação aparece nos discursos de várias entrevistadas, com frustração e sensação de inferioridade diante das outras mulheres que conseguem engravidar com facilidade, enquanto tentam repetidas vezes engravidar com o uso de tecnologias reprodutivas. Trindade e Enumo ( 2002 Trindade, Z. A, & Enumo, S. R. F. (2002). Triste e incompleta: uma visão feminina da mulher infértil. Psicologia USP, 13(2), 151-182. https://doi.org/10.1590/S0103-65642002000200010
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) pontuam que as mulheres que não têm filhos, seja por opção, circunstância ou impedimento, desviam-se de uma norma secular e instauram uma diferença significativa daquelas que são mães. É como se elas não se realizassem por inteiro, e em geral sentem-se excluídas, estigmatizadas como mulheres tristes e incompletas. Assim, a gestação passa a ser vista como autoafirmação da capacidade reprodutiva dessas mulheres.

Conclusão

A maternidade, assim como o conceito de família, é multideterminada e dependente da cultura, contexto histórico e social da população. Portanto, não se admite uma intervenção que exclua a dimensão emocional, nem o contexto ambiental no qual está inserida. Dessa forma, é importante a presença do psicólogo com a equipe médica de Reprodução Assistida para auxiliar o paciente infértil a expressar a sua angústia em palavras.

A relevância desse tema se dá devido à importância da maternidade na nossa sociedade, visto que ela é um dos projetos de vida essencial na vida adulta e um dos alicerces do relacionamento conjugal. Deparar-se com a infertilidade é uma situação potencialmente traumática que pode gerar sentimentos de inferioridade, baixa autoestima, ansiedade, tristeza, afetando diversas esferas da vida.

A infertilidade, porém, só emerge quando o sujeito deseja se reproduzir. A partir daí começa a busca por especialistas e a investigação de um diagnóstico sobre uma gravidez que não ocorre. O desejo pela busca de um filho biológico é apontado como um anseio de transmitir a genética, reconhecer os traços individuais e do casal no filho. Há uma forte influência sociocultural nesse desejo, visto que a maternidade ainda é exaltada e tem um grande valor social.

A partir das falas das mulheres entrevistadas ficou evidente o caráter positivo que o conceito de família tem para elas. A família foi representada como um sistema de suporte, de fundação e origem de amor, assim como de perpetuação da espécie. Este último sentido atribuído à família é rapidamente relacionado à incompletude na ausência de filhos, e isto é relevante, pois a família nuclear se mostra expressiva no ideário das participantes. A cultura de completude após o nascimento de um filho, amplamente presente na pesquisa, contribui para o fortalecimento do estigma envolvendo a mulher e a posição social feminina. Sentir-se faltante e inadequada perante a sociedade eleva a reprodução assistida a uma esperança quase onipotente de resolução, que muitas vezes é buscada a todo e qualquer custo, configurando-se como um risco à saúde psíquica dessas mulheres.

As participantes representaram a maternidade por meio de uma visão idealizada, como algo sublime, mágico e como condição para que a mulher se sinta realizada e completa. Por meio dos discursos das mulheres, pode-se perceber o quanto a maternidade ainda é associada à feminilidade, representada como algo natural, instintivo, além de ser altamente valorizada, gerando sentimento de culpa e inferioridade naquelas que não podem gestar.

As mulheres reconhecem as dificuldades e as possíveis dores que enfrentarão no processo de gestação e criação de seus filhos, mas a avaliação predominante é de que a abnegação e o sofrimento serão recompensados ou não serão sentidos como negativos. Além disso, há ainda a concepção de instinto materno, parte fundamental na naturalização do sofrimento e maior responsabilização feminina dentro da criação do filho.

Apesar do extenso avanço feminino na sociedade, a maternidade ainda mantém seu papel preponderante sobre as outras áreas da vida da mulher enquanto uma exigência social. Esse não é um fato desapercebido pelas participantes, pois a maternidade foi também relacionada à cobrança social e ao sofrimento causado pelo descompasso entre fisiologia e conquistas pessoais. A exigência social, familiar e biológica imprimem nessas mulheres a incerteza sobre sua aceitação nesses espaços, e contribuem para a emersão do sentimento de culpa e incapacidade. Isso pode ser confirmado pelo anseio das entrevistadas por serem cuidadas, priorizadas, como recompensa pelo desafio de gestar e cumprir o esperado para uma mulher.

Como limitação da pesquisa vale destacar que talvez um número maior de participantes pudesse trazer resultados mais abrangentes e consistentes para o entendimento das representações sociais acerca da maternidade. Por se tratar de um assunto ainda pouco difundido no Brasil, sugere-se a realização de mais pesquisas na área que abordem o tema da maternidade e da parentalidade no cenário da reprodução assistida.

Dada a complexidade da experiência da infertilidade, o intenso desgaste pessoal e conjugal, parece imprescindível que se ampliem os espaços de atendimento psicológico para essa população. As técnicas reprodutivas acabam por expor ainda mais o casal ao sofrimento psíquico da infertilidade, sendo, portanto, recomendável que se ofereça aos pacientes acompanhamento de profissional da área de saúde mental para avaliar os aspectos emocionais e manejar a angústia dessa experiência devastadora. É fundamental que surjam novas pesquisas sobre tais temas, dada a profundidade e complexidade destes, assim como a escassez literária.

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  • Como citar:
    Marciano, R. P., Damaceno, N. S., & Amaral, W. N. (2024). Representações Sociais sobre Maternidade na Reprodução Humana Assistida: Discursos de Mulheres Inférteis. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-15. https://doi.org/10.1590/1982-3703003258946
  • How to cite:
    Marciano, R. P., Damaceno, N. S., & Amaral, W. N. (2024). Social representations of motherhood in assisted human reproduction: discourses of infertile women. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-15. https://doi.org/10.1590/1982-3703003258946
  • Cómo citar:
    Marciano, R. P., Damaceno, N. S., & Amaral, W. N. (2024). Representaciones sociales de la maternidad en la reproducción humana asistida: relatos de mujeres infértiles. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-15. https://doi.org/10.1590/1982-3703003258946

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2021
  • Aceito
    19 Jan 2023
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