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AS TRANSFORMAÇÕES PSÍQUICAS ATRAVÉS DO RORSCHACH: JUAN, UM ADOLESCENTE E NÃO UM DON JUAN!

LAS TRANSFORMACIONES PSÍQUICAS EN EL RORSCHACH: JUAN, UN ADOLESCENTE Y NO UN DON JUAN!

RESUMO

A adolescência é uma fase do desenvolvimento que se caracteriza pela presença de importantes transformações psíquicas que constituem a base dos processos de identidade e de identificação. No contexto social atual, a capacidade de integrar as diferenças culturais é um imperativo do ponto de vista social e emocional, não só para os adolescentes, mas para todos os que com eles se relacionam, sejam pais, professores e técnicos de saúde. Neste artigo, a autora procura realizar uma dupla análise: (1) Apresentar o trabalho psicoterapêutico realizado com Juan, um adolescente de 17 anos, durante o qual é possível observar as mudanças inerentes à construção da sua identidade e dos processos de identificação, inspirando-se num clássico literário espanhol, Don Juan; (2) A utilização do Rorschach, como instrumento de acesso privilegiado ao mundo interior do sujeito, que permite uma compreensão singular das transformações psíquicas presentes no processo de tornar-se adolescente. A utilização do Rorschach desta forma é uma abordagem inovadora para compreender os processos psíquicos envolvidos, melhorando a intervenção na clínica. No caso de Juan, foi possível ver além do seu diagnóstico clínico, lançando novos olhares sobre as suas capacidades psíquicas, favorecendo a construção de uma postura mais adulta, visível no seu desempenho académico, nas relações interpessoais e na dinâmica familiar. Esse trabalho clínico só foi possível graças aos referenciais teóricos que enfatizam os processos de comunicação e de simbolização.

Palavras-chave:
Adolescência; psicoterapia; Rorschach

RESUMEN.

La adolescencia es un periodo de desarrollo que se caracteriza por la presencia de importantes transformaciones que están en la base de los procesos de identidad y de identificación. En el contexto social actual, la capacidad de integrar las diferencias culturales es un imperativo desde el punto de vista social y emocional, no solo para los adolescentes, sino para cualquier persona que tenga relación con ellos, ya sean padres, docentes y técnicos de salud. En este artículo, el autor busca realizar un doble análisis: (1) Presentar el trabajo psicoterapéutico realizado con Juan, un adolescente de 17 años, durante el cual es posible observar los cambios inherentes a la construcción de su identidad e identificación, presentada aquí con inspiración de un clásico literario español, Don Juan; (2) El empleo de la prueba de Rorschach, como instrumento de acceso privilegiado al mundo interior del sujeto, que permite una comprensión singular de las transformaciones psíquicas implicadas en el proceso de convertirse en adolescente. La utilización del Rorschach de esta manera es un enfoque innovador para comprender los procesos psíquicos involucrados, mejorando así la intervención clínica. En el caso de Juan, fue posible mirar más allá de su diagnóstico clínico, permitiendo que esta nueva lectura resalte sus habilidades psíquicas, favoreciendo la construcción de un nuevo posicionamiento, visible en su éxito académico, en las relaciones interpersonales y en su dinámica familiar. Este trabajo clínico solo fue posible dado el nuevo marco teórico que enfatiza los procesos de comunicación y simbolización.

Palabras clave:
Adolescencia; psicoterapia; Rorschach

ABSTRACT

Adolescence is a stage of development that is characterized by the presence of important psychic transformations that form the base of the processes of identity and identification. In the current social context, the ability to integrate cultural differences is an imperative from a social and emotional standpoint, not only for adolescents, but anyone who has a relationship with them, be they parents, teachers and health technicians. In this article, the author seeks to carry out two-fold analysis: (1) Present the psychotherapeutic work conducted with Juan, a 17-year-old adolescent, during which it is possible to observe the changes inherent to the construction of his identity and identification, presented here with inspiration from a Spanish literary classic, Don Juan; (2) The employment of the Rorschach test, as an instrument granting privileged access to the subject’s inner world, which allows for a singular understanding of the psychic transformations involved in the process of becoming an adolescent. Applying a Rorschach test in this fashion is an innovative approach to understanding the psychic underpinnings involved, thereby enhancing clinical intervention. In Juan’s case, it was possible to look beyond his clinical diagnosis, shedding new light on his psychic abilities, favoring the construction of a new position, one more adult and one evidenced in improved academic performance, interpersonal relationships, and family dynamics. This clinical work was further enabled by theoretical frameworks that emphasize the processes of communication and symbolization.

Keywords:
Adolescence; psychotherapy; Rorschach

Introdução

A adolescência é um período durante o qual as transformações do novo e do desconhecido têm lugar, sendo que nos nossos dias os adolescentes estão mais em contacto com a diversidade cultural, o que dá origem a uma variedade e diversidade ainda maior de transformações a serem realizadas, possibilitando a integração das diferenças e ampliando seu dinamismo psíquico.

Este período do desenvolvimento tem sido alvo de inúmeros estudos, com vista à descrição e sistematização dos processos psíquicos que se encontram a decorrer durante a adolescência. Mas, atendendo à diversidade cultural e social em que vivemos, constitui-se como fundamental desenvolver novos organizadores psíquicos que nos possibilitem uma melhor compreensão das transformações psíquicas dos adolescentes.

Neste sentido, procurámos uma inscrição nas teorias que nos permitem compreender o desenvolvimento como um processo dinâmico e co-construtivo, nomeadamente as teorias do pensamento (Bion, 1962Bion, W. R. (1962). A theory of thinking. International Journal of Psychoanalysis, 43, 306-310.), que nos possibilitam elaborar uma compreensão sobre os processos que já se encontram formados e sobre os que ainda se encontram em desenvolvimento, numa lógica facilitadora do crescimento mental.

O Rorschach é um instrumento conhecido na avaliação psicológica, mas a possibilidade de ser inscrito no referencial teórico anteriormente referido permite-nos aceder e descrever as transformações psíquicas que se encontram a decorrer durante este período do desenvolvimento. Com este objetivo foram escolhidos dois organizadores psíquicos: a techne como reveladora da capacidade de integração dos processos de simbolização e o ‘campo’ como o lugar (re)significador do desconhecido. Através destes organizadores foi possível conceptualizar as transformações do Eu e da relação Eu-Outro essenciais para a compreensão dos processos psíquicos em curso durante o processo de tornar-se adolescente (Duarte, 2017Duarte, I. (2017). O tornar-se adolescente através do rorschach. Lisboa, PT: Chiado Editora.).

Para exemplificar de que forma é que se realiza a leitura das transformações psíquicas iremos apresentar o caso de Juan, um jovem adolescente de 17 anos, diagnosticado psicopatologicamente com um surto psicótico, explicitando de que modo é que esta nova leitura permite uma abordagem integrativa da sua dinâmica intrapsíquica, favorecendo o seu desenvolvimento mental, integrando as suas diferenças culturais e sociais, uma vez que se trata de um adolescente que se encontra deslocado do seu país de origem.

Tornar-se adolescente nos dias de hoje

Ao longo dos anos têm-se realizado muitos estudos sobre a adolescência, o que tem permitido um enriquecimento dos quadros teóricos. Nos modelos clássicos a adolescência é descrita com base na elaboração de sucessivos lutos que se encontram relacionados com a emergência do corpo sexuado e com a construção das novas identificações (Laufer, 1964Laufer, M. (1964). L’idéal du moi et le pseudo-idéal du moi a l’adolescence. Revue Française de Psychanalyse, 3(4), 591-615.). Esta conceção abre a possibilidade de se realizarem escolhas o que irá permitir a construção de uma nova identidade e uma nova representação do Eu, transmitindo uma dinâmica que só é possível na relação com o(s) Outro(s) (Jeammet, 1980Jeammet, P. (1980). Réalité externe et réalité interne importance et spécificité de leur articulation a l’adolescence. Revue Française de Psychanalyse, 3(4), 481-521. https://doi.org/ 10.3917/dunod.drie.2013.01.0307
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).

A possibilidade de compreendermos a adolescência com base em novas conceções teóricas, nos permite descrever para melhor compreender as transformações que decorrem entre o início e o fim deste período do desenvolvimento. Esta perspetiva envolve principalmente a circularidade do funcionamento mental, em vez da psicopatologia, permitindo a compreensão da adolescência como um processo durante o qual o novo é integrado no já conhecido, num movimento co-construtivo.

Assim, a adolescência é conhecida por ser um processo dinâmico e criativo, durante o qual ocorrem diversas transformações psíquicas que podem ser pensadas através da analogia de ‘construir no escuro’ (Caper, 2009Caper, R. (2009). Building out into the dark: theory and observation in science and psychoanalysis. London, UK: Routledge.). De modo a aceder à essência do tornar-se adolescente procuramos compreender o ‘processo de transformação’ (Braconnier, 1985Braconnier, A. (1985). Ruptures et séparations. Adolescence, 3(1), 5-19.), na medida em que existem processos que já se encontram formados e outros que ainda se estão a desenvolver. Existem continuidades e descontinuidades nos diferentes momentos do desenvolvimento adolescente, que oscilam entre a idealização-de idealização, clivagem-integração que constroem o Eu na relação com o Outro.

Esta oscilação tem lugar entre as posições ativas e passivas, para que ocorra uma afirmação do Eu o que só é possível na relação com os Outros. O modelo das transformações é o que melhor explica o encontro na relação entre o sujeito e o objeto, o mundo interno e o externo, o passado e o presente, numa recriação de novos objetos dotados de novas características e qualidades (Bion, 1982Bion, W. R. (1982). As transformações: as mudança do aprender para o crescer. Rio de Janeiro, RJ: Imago). O conceito de ‘objeto transformacional’ permite-nos representar a relação com o objeto, simbolizando a experiência de transformação (Bollas, 1989Bollas, C. (1989). L’objet transformationnel. Revue Française de Psychanalyse , LIII, 1181-1199.).

Os adolescentes de hoje são diferentes dos do passado e serão diferentes dos de amanhã, no entanto a multiculturalidade tem vindo a aumentar, o que requer de todos nós o ‘aprender com a experiência’ (Bion, 1991Bion, W. R. (1991). Atenção e interpretação: o acesso científico à intuição em psicanálise e grupos. Rio de Janeiro, RJ: Imago.), integrando não só as experiências mas também revelando e (re)significando o desconhecido. Nos nossos dias a multiculturalidade presente na nossa sociedade exige de todos nós um processamento da informação a uma velocidade vertiginosa, sendo os movimentos inconscientes influenciados pelo ritmo das dinâmicas sociais. Assim, constitui-se como fundamental criar um espaço de transformação no qual seja possível criar novos objetos e objetivos, aos quais só é possível aceder através de uma relação intra e intersubjetiva e pelo uso de um espaço co-construtivo que é essencial para o desenvolvimento do Eu na relação com os Outros (Brown, 2011Brown, L. (2011). Intersubjective processes and the unconscious: an integration of freudian, kleinian and bionian perspectives. London, UK: Routledge.).

Para podermos aceder e melhor compreender os processos psíquicos em construção durante o processo de tornar-se adolescente foram utilizados dois organizadores psíquicos, provenientes da literatura que nos permite pensar a clínica: a techne e o ‘campo’.

A techne pode ser definida como: Um método que se diferencia das outras áreas de investigação (Freud, 1900Freud, S. (1900). The interpretation of dreams (Vol. IV-V). London, UK: The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis.); uma teoria metodológica que permite pensar o funcionamento psíquico (Vassalli, 2001Vassalli, G. (2001). The birth of psychoanalysis from the spirit of technique: what have we learned? How can we apply it? International Journal of Psycho-Analysis, 82(1), 323. https://doi.org/10.1516/g7qg-dnhn-vanf-6j07
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); e uma força criativa, algo que só pode ser compreendido quando emerge (Carvalho, 1970Carvalho, A. P. (1970). Aristóteles, arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro, RJ: Tecnoprint.). O objeto da techne pode alterar o seu comportamento, sendo a techne a origem e a forma do que emerge, mas que produz um efeito no Outro (Vassalli, 2001Vassalli, G. (2001). The birth of psychoanalysis from the spirit of technique: what have we learned? How can we apply it? International Journal of Psycho-Analysis, 82(1), 323. https://doi.org/10.1516/g7qg-dnhn-vanf-6j07
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). Através deste conceito procuramos explicitar o processo de tornar-se adolescente, na medida em que se trata de um processo que não está constituído à partida, mas que se vai construindo. Assim, a techne permite aprender com o próprio processo de construção, através do qual se expressa a subjetividade do próprio.

A noção de ‘campo’, tal como foi descrita por Ferro (2002Ferro, A. (2002). Some implications on Bion’s thought. International Journal of Psycho-Analysis, 83(4), 597-607. https://doi.org/ 10.1516/WV5M-TR9T-9HPY-RFVJ
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), apresenta uma grande importância porque permite traduzir os processos inconscientes de transformação, nos quais são experienciadas emoções não representadas, levando à introdução do conceito de narrativas, que funcionam como veículos de transformação para as fantasias partilhadas inconscientemente, o que tem por base o trabalho de Bion (1982Bion, W. R. (1982). As transformações: as mudança do aprender para o crescer. Rio de Janeiro, RJ: Imago) das transformações.

Assim, o ‘campo’ pode ser definido como uma matriz de histórias possíveis, na qual está presente uma oscilação entre o saber permanecer na dúvida. E pode definir-se com base nas seguintes características: O espaço-tempo onde tem início a turbulência emocional gerado pelo encontro relacional; a função que descreve a relação entre os dois membros que constituem a dupla relacional; é o lugar onde têm início as narrativas que descrevem as emoções presentes na relação, que são continuamente transformadas em narrativas inteligíveis, promovendo a produção de conhecimento (Ferro, 2000Ferro, A. (2000). A psicanálise como literatura e terapia. Rio de Janeiro, RJ: Imago.).

O ‘campo’ tornou-se um lugar onde todos os mundos se podem abrir como resultado do encontro, que não é só espacial mas também temporal, habitado pelo presente e pelo passado, aberto ao futuro, permanecendo em constante movimento com um padrão próprio (Ferro, 2011Ferro, A. (2011). Avoiding emotions, living emotions. London, UK: Routledge.). A adolescência é por excelência o momento do desenvolvimento de encontro com o próprio, decorrendo num espaço e num tempo que tem lugar entre a infância e a idade adulta, uma transição geradora de enormes tensões e inquietações que nem sempre são compreendidas da melhor forma na sociedade.

O Rorschach: uma forma para revelar o tornar-se adolescente

Na psicologia as teorias encontram-se em constante renovação e construção, constituindo-se ferramentas que possibilitam sonhar, sentir e pensar (Ferro, 2015Ferro, A., & Civitarese, G. (2015). The analytic field and its transformations. London, UK: Karnac Books.), levantando à necessidade de instrumentos para realizar esses avanços, sendo mais sensíveis à singularidade do sujeito.

O Rorschach compreendido como um método é um instrumento privilegiado para aceder ao mundo inter e intrapsíquico do sujeito, tornando possível revelar para melhor descrever as transformações que têm lugar durante o processo de tornar-se adolescente. No trabalho de Duarte (2017Duarte, I. (2017). O tornar-se adolescente através do rorschach. Lisboa, PT: Chiado Editora.) são operacionalizados 2 organizadores psíquicos no Rorschach, baseados na teoria do pensamento (Bion, 1962Bion, W. R. (1962). A theory of thinking. International Journal of Psychoanalysis, 43, 306-310.), que permitem a compreensão dos processos de co-construção: o conceito de techne (Vassalli, 2001Vassalli, G. (2001). The birth of psychoanalysis from the spirit of technique: what have we learned? How can we apply it? International Journal of Psycho-Analysis, 82(1), 323. https://doi.org/10.1516/g7qg-dnhn-vanf-6j07
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) e a noção de ‘campo’ aqui compreendido como um espaço privilegiado para o acesso às transformações inconscientes nas quais as emoções são experienciadas (Ferro, 2002Ferro, A. (2002). Some implications on Bion’s thought. International Journal of Psycho-Analysis, 83(4), 597-607. https://doi.org/ 10.1516/WV5M-TR9T-9HPY-RFVJ
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).

No Rorschach a análise da techne foi realizada com base na sucessão das respostas Rorschach, pela compreensão do significado da sua sucessão e pela conciliação dos movimentos opostos: proximidade vs. distância, aberto vs. fechado, conhecido vs. desconhecido, familiar vs. estranho; que podem ir da dispersão para a integração, com base em processos criativos de simbolização (Duarte, 2017Duarte, I. (2017). O tornar-se adolescente através do rorschach. Lisboa, PT: Chiado Editora.).

O ‘campo’ é o lugar para os encontros intra e intersubjetivos, permitindo uma dinâmica gerada em torno da identificação projetiva que leva à criação de um espaço de transformação na qual os conteúdos emergem. O ‘campo’ (Ferro, 2009Ferro, A. (2009). Mind works: technique and creativity in psychoanalysis. London, UK: Routledge.) funciona como um continente, gerador de novos sentidos e significados, revelando o processo de desenvolvimento adolescente. Mas, no campo, o que não pode ser pensado e transformado, pode passar de uma mente a outra, principalmente quando as forças que constituem a relação pertencem aos que nela estão envolvidos (Ferro & Civitarese, 2015). No Rorschach, o ‘campo’ é definido pela relação de circularidade que tem lugar entre os objetos.

Quando a techne-continente é um processo criativo de simbolização do conteúdo-campo, ao mesmo tempo podemos dizer que o ‘campo’-continente opera a função alfa para transformar o conteúdo-techne (Duarte, 2017Duarte, I. (2017). O tornar-se adolescente através do rorschach. Lisboa, PT: Chiado Editora.). Desta forma, temos o que Ferro e Civitarese (2015Ferro, A., & Civitarese, G. (2015). The analytic field and its transformations. London, UK: Karnac Books.) descreveram como a atividade do sonho que está presente na parte consciente da mente, o que implica, num primeiro momento, uma consciência, permitindo o desenvolvimento de pensamentos e, consequentemente, a capacidade de pensar através de um modelo complexo da mente que permitirá conhecer ‘O’.

Constitui-se como fundamental poder ilustrar como é que esta leitura se pode realizar, neste sentido inspirámo-nos num clássico da literatura espanhola, Don Juan, através do qual foi possível organizar a narrativa de Juan, um adolescente de 17 anos cuja família solicita ajuda após este ter tido um surto psicótico. Os diferentes atos da obra de Don Juan servem de metáfora para pontuar os vários momentos deste caso clínico, procurando ilustrar as diferentes passagens do seu processo de tornar-se adolescente. Na primeira parte iremos realizar uma leitura dos vários momentos clínicos de Juan e, na segunda parte, iremos realizar uma leitura das transformações psíquicas presentes no seu protocolo de Rorschach, fazendo a articulação com os movimentos psíquicos inerentes ao seu crescimento mental, onde a significação e a simbolização foram fundamentais para a estruturação da sua identidade e dos seus processos de identificação.

Juan, um adolescente mas não um Dom Juan!

Primeira parte:

A primeira parte da obra de Don Juan decorre em Sevilha, nos últimos anos do reinado de Carlos I de Espanha. Há muito que Don Juan e Luís Mejía haviam feito uma dupla aposta: qual dos dois é que conseguiria fazer fortuna ao fim de um ano e qual dos dois se bateria em mais duelos e seduziria mais donzelas. Don Juan ganha a aposta e Luís volta a desafia-lo dizendo-lhe que falta conquistar uma noviça. Este aceita o novo desafio e dedica-se à conquista da sua amada, Dona Inês, acabando o seu parceiro por perder a aposta e por ter um trágico fim (Molina, 2017Molina, T. (2017). Don Juan. Madrid, ES: Penguin Clássicos.).

O início de um processo terapêutico pode ser comparado a uma peça de teatro, composta por vários atos, nos quais se vai desenrolando a história entre o paciente e o terapeuta, entre o paciente e as figuras que lhe são emocionalmente significativas, consigo mesmo, num processo de descoberta interna, uma co-construção intra e intersubjetiva.

Ato I - Marginal (‘Cholo’)

Juan é um adolescente de 17 anos, a quem o meu contacto foi dado para a realização de uma psicoterapia de inspiração psicanalítica por causa da sua língua materna, o espanhol, uma vez que se encontrava a estudar em Portugal, num colégio conceituado de língua inglesa e só fala estes dois idiomas. Vem na sequência de um surto psicótico e depois de ter estado hospitalizado durante um mês, durante as suas férias de verão (Cunha, 2017Cunha, I. (2017). El processo de convertirse en un adolescente: Juan, pero no Don Juan. CeIR - Clínica e Investigación Relacional. Revista Electónica de Psicoterapia, 11(3), 546-553. https://doi.org/ 10.21110/19882939.2017.110306
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).

Alto e magro, com os ombros curvados sobre si, de pele morena e olhos verdes, com um olhar disperso é como Juan se apresenta na primeira sessão. Um estranho em terra estranha, natural da Colômbia, onde viveu até há 2 anos, altura em que veio para Portugal, porque a mãe foi destacada em trabalho por um período de 4 anos. No colégio onde se encontra a frequentar o 12.º ano de escolaridade, as suas origens são motivo de gozo (teasing) fazendo os amigos piadas a propósito da cocaína, fazendo-o sentir-se à parte como um marginal (‘cholo’), levando-o a um isolamento, refugiando-se na utilização das redes sociais e na visualização de pornografia on-line, uma prática comum no grupo dos pares (Cunha, 2017Cunha, I. (2017). El processo de convertirse en un adolescente: Juan, pero no Don Juan. CeIR - Clínica e Investigación Relacional. Revista Electónica de Psicoterapia, 11(3), 546-553. https://doi.org/ 10.21110/19882939.2017.110306
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).

Juan aborda o surto psicótico que teve como se fosse o seu cartão de cidadão: “Tive um surto psicótico há dois meses, estava muito excitado, sexualmente excitado, com a cabeça muito confusa, muitos pensamentos […] pensamentos sexuais”. Perante a impossibilidade de pensar a relação Juan fica preso numa lógica onde dominam as incertezas e as dúvidas, procurando apropriar-se dos afetos, como se fossem objetos que em rigor da verdade não permaneciam, tal como na pornografia, apenas ficavam as imagens desprovidas de um sentido e de um significado (Cunha, 2017Cunha, I. (2017). El processo de convertirse en un adolescente: Juan, pero no Don Juan. CeIR - Clínica e Investigación Relacional. Revista Electónica de Psicoterapia, 11(3), 546-553. https://doi.org/ 10.21110/19882939.2017.110306
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É durante a adolescência que se desenvolve a capacidade de acalmia face às inquietações provenientes do mundo interno. Cahn (1991Cahn, R. (1991). Adolescence et folie. Les liaisons dangereuses. Paris, FR: PUF.) designou este processo de ‘inquietante estranheza’, considerando-o inevitável para os processos de subjetivação, afeto e representação, que durante este período do desenvolvimento dão lugar às escolhas da sexualidade adulta. Para que este processo decorra com normalidade é fundamental a uma progressiva reorganização da ligação entre as excitações internas e externas ao longo da vida, sendo necessário o bom funcionamento do mecanismo de pára excitação (Cahn, 1991Cahn, R. (1991). Adolescence et folie. Les liaisons dangereuses. Paris, FR: PUF.), facilitador da progressiva diferenciação entre o sujeito e objeto, ou seja, entre o Eu e o Outro.

O encontro terapêutico com Juan decorreu no contexto privado, tendo começado pela realização de uma avaliação psicológica, na qual se inscreve a passagem do Rorschach, como um instrumento privilegiado para o acesso à natureza dos processos psíquicos do sujeito e não apenas como um instrumento fidedigno, dotado de reconhecida validade para a elaboração de um diagnóstico de personalidade. Após a avaliação deu-se início a um processo psicoterapêutico de inspiração psicanalítica, em sessões face a face, com uma frequência semanal e com uma duração de 45 minutos. Soube desde do primeiro momento que iria acompanhar Juan por um tempo limitado, um ano escolar, porque o início das férias levá-lo-ia de volta ao seu país e a novas conquistas, com o fim do secundário e da adolescência e a entrada na Universidade e na vida adulta.

Ato II - Destreza

A destreza no manejo da técnica da psicoterapia de inspiração psicanalítica foi fundamental para pensar as temáticas trazidas por Juan, sessão após sessão, as temáticas estavam sempre ancoradas numa realidade social: o capitalismo, a lei da oferta e da procura nos mercados internacionais, os câmbios… Material que no seu inconsciente individual remetia para o poder e para a riqueza do seu mundo interno, para a comunicação entre o interno e o externo, para as dificuldades nas trocas inerentes às relações interpessoais (Cunha, 2017Cunha, I. (2017). El processo de convertirse en un adolescente: Juan, pero no Don Juan. CeIR - Clínica e Investigación Relacional. Revista Electónica de Psicoterapia, 11(3), 546-553. https://doi.org/ 10.21110/19882939.2017.110306
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).

Com o surto psicótico que havia sofrido, a família de Juan estava destroçada. A sua mãe, uma pessoa muito influente e com uma profissão muito exigente que a obriga a estar fora do seu país por longos períodos de tempo, não se entrega à dor e procura ativamente encontrar soluções para o seu único filho. O pai, muito mais velho que a mãe, foi com ela que contraiu o seu segundo casamento, é uma pessoa muito simples e afetiva, mostra se preocupado com o desenvolvimento e com o futuro do seu filho (Cunha, 2017Cunha, I. (2017). El processo de convertirse en un adolescente: Juan, pero no Don Juan. CeIR - Clínica e Investigación Relacional. Revista Electónica de Psicoterapia, 11(3), 546-553. https://doi.org/ 10.21110/19882939.2017.110306
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).

A mãe de Juan está sempre muito aflita, parece um amplificador, o que dificulta muito a leitura ajustada da realidade, que fica sempre excessivamente deturpada. Juan descreve a relação com a mãe como sendo de apoio e de pouca exigência, mas mais distante das suas emoções e do seu sentir. O pai demonstra acreditar no filho e apresenta um maior ajuste na leitura da realidade. Juan apesar de sentir o pai como mais exigente consegue manter uma maior proximidade afetiva, partilhando com ele alguns gostos e interesses (Cunha, 2017Cunha, I. (2017). El processo de convertirse en un adolescente: Juan, pero no Don Juan. CeIR - Clínica e Investigación Relacional. Revista Electónica de Psicoterapia, 11(3), 546-553. https://doi.org/ 10.21110/19882939.2017.110306
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).

Ato III - Profanação

Depois de três meses de acompanhamento psicoterapêutico Juan já podia pensar sobre os seus atos profanos: a visualização de pornografia acompanhada de masturbação. A experiência terapêutica tornara possível compreender a experiência relacional e emocional inerente ao processo de tornar-se adolescente, uma experiência afetiva que se interioriza, um sinal de uma ausência internalizada, ou seja, de uma presença agora simbolizada. A ligação, tal como foi proposta por Marty (2002Marty, F. (2002). Introduction, le travail du lien ou le chaos. In Le Lien et quelques-uns de ses figures (p. 9-20). Rouen, FR: Publications de l’Université de Rouen), ao nível intrapsíquico, serve para estabelecer as relações simbólicas, para representar e elaborar o que ocorre emocionalmente significativo, procurando manter a coesão interna, de forma a preservar o sentimento de existência do próprio.

A maior consolidação interna de Juan permitiu-nos aceder ao episódio de rejeição que o marcou no passado, qual Don Juan, fez uma declaração a uma rapariga de quem gostava, de quem teve como resposta o afastamento. Este episódio foi vivido como um misto de rejeição e de abandono, não tinha conseguido seduzir a sua donzela e por isso sentia-se descredibilizado junto das raparigas, não sendo ainda possível compreender a complementaridade da relação com o Outro (Cunha, 2017Cunha, I. (2017). El processo de convertirse en un adolescente: Juan, pero no Don Juan. CeIR - Clínica e Investigación Relacional. Revista Electónica de Psicoterapia, 11(3), 546-553. https://doi.org/ 10.21110/19882939.2017.110306
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A progressiva diferenciação Eu-Outro permitiu a Juan compreender melhor a sua dinâmica familiar. O materno e o paterno apresentavam-se como duas entidades muito distintas, difíceis de conciliar internamente, uma vez que possuíam uma lógica antinatural, colocando em causa o movimento de circularidade psíquica inerente ao processo de tornar-se adolescente, impossibilitando assim, a aquisição da boa distância necessária para a melhor compreensão dos limites entre Um e Outro e enviesando a identificação a um modelo masculino, dotado de qualidades e atributos, facilitador da construção de um Eu suficientemente coeso e estável (Cunha, 2017Cunha, I. (2017). El processo de convertirse en un adolescente: Juan, pero no Don Juan. CeIR - Clínica e Investigación Relacional. Revista Electónica de Psicoterapia, 11(3), 546-553. https://doi.org/ 10.21110/19882939.2017.110306
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).

Ato IV - O diabo às portas do céu

No final, da primeira parte Don Juan teve de enfrentar os seus fantasmas e só o amor que sentia pela Dona Inês foi capaz de o salvar de padecer no inferno eternamente (Molina, 2017Molina, T. (2017). Don Juan. Madrid, ES: Penguin Clássicos.). No trabalho psicoterapêutico com Juan surgiam temas como o amor, a traição ou o ódio, emoções que anteriormente lhe estavam inacessíveis e cuja impossibilidade de as poder pensar suscitou um ‘surto’, uma desorganização do seu mundo interno, como resposta à incapacidade de simbolização.

O espaço terapêutico, na sua qualidade contentora, transformadora e (re)significadora permitiu o desenvolvimento da capacidade relacional de Juan, de um novo olhar para o que havia vivido e sentido, agora inscrito num vinculo relacional transformador que permitiu a descoberta: das ‘saudades’ que sentida da sua terra; da falta que sentia da casa da sua infância; da curiosidade sobre o mundo em geral e sobre mim, enquanto sua terapeuta, em particular. As temáticas agora eram outras, lia o Eça de Queiroz e pensava sobre a sociedade do Séc. XIX e abordava temas como o amor, a traição, o ódio, procurando integrar esta nova cultura em que se encontrava inserido, tão distinta do seu mundo de origem, começava assim a construir a sua identidade e novos modelos de identificação.

Alguns meses depois do início do nosso trabalho psicoterapêutico, Juan estava mais seguro da sua identidade, do seu lugar junto dos pares e da família, conseguia integrar a sua dimensão afetiva na relação com o(s) Outro(s). Os sinais físicos da sua mudança eram evidentes, a barba que lhe cobria o rosto, os músculos que lhe davam um porte atlético, o olhar meigo e doce, a autenticidade do seu afeto. Juan era agora consciente do impacto do seu corpo, do que sentia e pensava, era quase um Don Juan!

Segunda parte:

A segunda parte da obra de Don Juan começa passados 5 anos da morte de Luís, com o regresso de Don Juan a Sevilha, ao cemitério onde Luís havia sido enterrado, no qual se depara inesperadamente com a sepultura de Dona Inês, que morreu de tristeza ao perceber que ela e o seu amado nunca poderiam terminar juntos (Molina, 2017Molina, T. (2017). Don Juan. Madrid, ES: Penguin Clássicos.).

Ato I - A sombra de Dona Inês

Na minha prática clínica a análise do Rorschach, funciona quase como a sombra da Dona Inês para Don Juan. A possibilidade de compreender os processos psíquicos que se encontram em transformação com recurso aos organizadores: techne e ‘campo’ apresentam-se como uma mais-valia para melhor compreender o mundo interno dos adolescentes, ajudando-os na minha prática clínica a estruturar melhor a sua identidade e os processos de identificação.

O protocolo de Juan analisado segundo a escola clássica de Rorschach apresentaria um funcionamento psíquico pontuado por fortes clivagens e por um intenso movimento de identificação projetiva, pertencendo claramente a um severo contexto psicopatológico. De acordo com Chabert (2013Chabert, C. (2013). Psychanalyse et méthodes projectives. Paris, FR: Dunod.), poderíamos falar de uma desintegração da representação de si com a perda de limites com fortes ataques à identidade e ao sentimento de continuidade da sua existência. Ao nível projetivo a desertificação da sua vida fantasmática pode ser atribuída à força dos seus movimentos pulsionais destrutivos que atacam o pensamento.

A possibilidade de realizarmos uma leitura e uma interpretação do protocolo de Rorschach de Juan com base nos novos organizadores psíquicos permite-nos realizar uma compreensão diferente sobre a sua dinâmica psíquica, uma vez que nos permite compreender de que forma é que os movimentos psíquicos atacam o seu pensamento e quais são os recursos internos disponíveis para a sua transformação e para o melhor decorrer do seu processo de tornar-se adolescente.

A techne pensada através da sucessão das respostas no Rorschach, tendo por base o processo criativo de simbolização. No cartão III do Rorschach, a techne apresenta uma função contentora e (re)significadora numa relação dinâmica com o ‘campo’ transformador e revelador do processo intrapsíquico e intersubjetivo presente no crescimento. Neste cartão Juan dá-nos uma resposta que liga a infância à vida adulta: “É um homem que parece um sapo, ouvindo música”. Aqui temos o sapo que pertence à infância, aos contos de fadas, enquanto o adolescente a caminho de ser adulto está a ouvir música à procura de uma identificação, como se espera na resposta a este cartão, um movimento integrador da sua passagem da infância para a idade adulta.

No cartão IV é possível reconhecer e elaborar os opostos “[…] São duas botas que andam e são usadas por um homem que vê de longe”. A infância e a vida adulta são dois caminhos opostos que dão lugar à adolescência, uma antes e outra depois, que devem ser conectadas e integradas durante este período do desenvolvimento, duas botas que devem andar alinhadas num mesmo corpo, no corpo do ‘homem que vê de longe’ que necessita de crescer do ponto de vista psíquico para que o avanço no crescimento possa ter lugar.

Esta mudança é notória na entrada dos cartões pastel, no cartão VIII Juan dá a resposta: “Duas iguanas que estão a subir uma montanha e que estão a camuflar a sua cor [...]”, fazendo uma integração da mudança de cor deste cartão, numa lógica de adaptação ao meio, um movimento essencial para a sobrevivência dos animais na natureza; uma aprendizagem fundamental a adquirir durante a adolescência.

O ‘campo’ como organizador é revelador da circularidade psíquica de Juan. Ao cartão I, a sua resposta foi: “São duas pessoas a dançar [...]” potencializando sua boa capacidade de elaboração do desconhecido da entrada no Rorschach, evidenciando uma circularidade psíquica na dinâmica Eu-Outro. Esse movimento está presente em todo o protocolo, não só no cartão I que é compacto, mas também nos bilaterais e nos pastel.

No cartão VII Juan evoca uma relação face à maternidade através da resposta: “Duas crianças que brincam no parque […] têm as mãos para cima”. Temos novamente uma boa relação entre a infância, com a procura das ligações dessas crianças que estendem as mãos para serem recebidas, um movimento de ligação e de relação com o(s) Outro(s). No final da prova, no cartão X, onde há uma maior dispersão, Juan evoca uma ‘festa’, o que nos indica uma boa capacidade de conter a dispersão presente no último cartão, mas que ao mesmo tempo é reveladora da boa integração das suas origens, dos ambientes calorosos dos ritmos quentes da Colômbia, da sua capacidade interna de ter afetos e de os expressar de uma forma equilibrada, contendo aqui a angustia sentida na chegada ao fim da prova.

Apesar da sombra do diagnóstico psicopatológico tão pesado que Juan trazia consigo, alguns dos movimentos psíquicos explicitados no seu protocolo de Rorschach mostravam-nos a sua capacidade de conciliar e integrar movimentos opostos, o que faz de uma forma relacional e criativa, dando-nos conta da existência de um dinamismo psíquico, ou seja, de um potencial para a realização de um trabalho clínico.

Ato II - A estátua de Don Gonzalo

Durante o processo de desenvolvimento adolescente constitui-se como fundamental a estruturação do materno e do paterno, dois eixos importantes na construção da identidade e que no Rorschach se encontram diretamente ligados à representação das imagos parentais, que funcionam como uma base para as transformações que decorrem durante este período do desenvolvimento, em especial a transformação de mapeamento identitário que é reveladora de uma procura identitária. Este tipo de transformação expressa-se no Rorschach através de respostas que nos revelam a procura de um rosto com atribuições femininas e/ou masculinas (Duarte, 2017Duarte, I. (2017). O tornar-se adolescente através do rorschach. Lisboa, PT: Chiado Editora.).

No Rorschach de Juan encontramos uma resposta que ilustra a transformação de mapeamento identitário no cartão IX: “É uma cara que está furiosa e que está atenta a tudo o que acontece [...]” um movimento que traduz a procura de um rosto, de uma identidade, mas que só pode ser compreendida desta forma através da nova leitura do Rorschach com base nos novos organizadores psíquicos, porque do ponto de vista clássico seria reveladora de uma forte inquietação e de índices de ordem paranoide, característicos de um funcionamento psicótico da personalidade.

Mas, a maior dificuldade de Juan encontrava-se diretamente relacionada com a estruturação da sua identidade, o que desde logo foi expresso de uma forma muito poética na resposta dada ao cartão V do Rorschach: “É uma borboleta que está a crescer, que quer voar mas não pode voar [...]” uma analogia com o seu próprio processo de tornar-se adolescente, um processo de crescimento e de consolidação da sua identidade, no qual existem dificuldades, onde só a elaboração realizada no espaço terapêutico lhe permitirá levantar voo!

O trabalho psicoterapêutico pode ser comparado com a analogia de construir no escuro’ (Caper, 2009Caper, R. (2009). Building out into the dark: theory and observation in science and psychoanalysis. London, UK: Routledge.), um caminho de descoberta e de integração, no qual temos de acreditar que iremos chegar a um fim, mesmo quando não o conseguimos ver e temos de ir caminhando, no escuro, acreditando que a construção vai acontecendo, um processo co-construtivo e intersubjetivo fundador das bases para a vida adulta.

Ato III - A misericórdia de Deus e a apoteose do amor

A adolescência precisa muito da ‘misericórdia de Deus’ uma vez que se trata de um longo período do desenvolvimento, durante o qual é preciso lidar com o desejo de vir a Ser e a impotência do não Ser ainda, numa oscilação entre espaços e lugares que lhe dão um colorido adorável, mas que em muitos momentos tocam a psicopatologia.

A psicose é conhecida pela presença de alterações psíquicas graves, cujas principais manifestações psicopatológicas se encontram marcadas pelo desinvestimento, pela ausência de uma vida relacional e afetiva e por uma representação de si em desintegração. Estas características em termos projetivos traduzem-se por uma inadaptação à realidade externa, falhas ao nível da contenção e da integração dos afetos, uma sensibilidade dolorosa às relações de objeto precoce (Rebelo, 2017Rebelo, T. (2017). La méthodologie projective et les fonctionnements psychotiques à l’adolescence. In M. Emmanuelli, & C. Azoulay. L'interprétation des épreuves projectives (p. 161-170). Toulouse, FR: Érès. https//doi,org/10.3917/lcp.170.0033
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).

No trabalho clínico realizado com Juan a apoteoses do amor foi uma realidade que se tornou visível nas várias transformações presentes no decurso do seu processo de tornar-se um adolescente. Em termos projetivos este movimento é visível desde logo no cartão X do Rorschach através da resposta: “É uma […] festa onde todas as cores estão a dançar e as cinzentas são as anfitriãs da festa [...]” a qual evidencia uma boa capacidade de conter a angústia trazida pelo último cartão, enunciando uma transformação de tipo progrediente reveladora da capacidade de diferenciação Eu-Outro, na sua plena aceção contentora e transformadora, na qual está presente uma lógica de complementaridade e a presença de um movimento intersubjetivo e co-construtivo (Duarte, 2017Duarte, I. (2017). O tornar-se adolescente através do rorschach. Lisboa, PT: Chiado Editora.).

A transformação progrediente traduz-nos a articulação entre o que ainda não é conhecido, mas que pode ser revelado, dotado de um novo sentido e de um novo significado, sustentador da estruturação dos novos processos psíquicos que se encontram na base da identidade e dos processos de identificação.

Algumas conclusões

O processo de transformação do adolescente implica a integração do desconhecido no já conhecido, o reencontro do novo com o antigo, resultando uma (re)criação com novos sentidos e significados. Algo semelhante ao processo de ‘construir no escuro’ (Caper, 2009Caper, R. (2009). Building out into the dark: theory and observation in science and psychoanalysis. London, UK: Routledge.), a personalidade adolescente é ligada para dar lugar à idade adulta.

A metodologia projetiva apresenta uma grande riqueza para o acesso e para a compreensão do funcionamento psíquico dos adolescentes. Para Rebelo (2017Rebelo, T. (2017). La méthodologie projective et les fonctionnements psychotiques à l’adolescence. In M. Emmanuelli, & C. Azoulay. L'interprétation des épreuves projectives (p. 161-170). Toulouse, FR: Érès. https//doi,org/10.3917/lcp.170.0033
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) constitui-se como particularmente importante para poder compreender a dinâmica psíquica de adolescentes com um funcionamento psicótico, em particular depois de uma descompensação psicótica.

O desenvolvimento de novos organizadores psíquicos que possibilitem aceder, para melhor descrever e compreender os processos que já estão formados e os que ainda se encontram em construção durante este período do desenvolvimento, possibilitando uma intervenção clínica mais ajustada às necessidades do desenvolvimento e menos estigmatizada pela psicopatologia.

Na relação paciente-terapeuta a intersubjetividade deve ser co-criada pela subjetividade de cada um por meio da criatividade (Brodie, 2020Brodie, B. (2020). Object relations and intersubjective theories in the practice of psychotherapy. New York, NY: Routledge.). No Rorschach, as respostas que surgem no contexto da relação podem ser pensar a partir desta componente criativa, onde a dinâmica entre estes dois organizadores psíquicos a techne e o ‘campo’ representam um papel de relação intersubjetiva.

Desse modo, é importante pensar o Teste de Rorschach não apenas como um instrumento diagnóstico, mas também como um instrumento de acesso ao inconsciente que nos traz o que Ogden (2004Ogden, T. (2004). The analytic third: implications for psychoanalytic theory and technique. Psychoanalytic Quarterly, 73(1), 167-195. https//doi.org/10.1002/j.2167-4086.2004.tb00156.x
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) descreveu pelo processo inconsciente de intersubjetividade do terceiro. A observação da subjetividade do terapeuta pelo paciente, por vezes, funciona como o terceiro psicológico que permite o crescimento emocional e psicológico (Brodie, 2020Brodie, B. (2020). Object relations and intersubjective theories in the practice of psychotherapy. New York, NY: Routledge.). O Rorschach inscrito neste contexto teórico constitui-se como um instrumento privilegiado de acesso ao sujeito, inequivocamente relevante para a compreensão dos processos de comunicação, simbolização e transformação, no processo de adolescência.

O protocolo de Rorschach de Juan analisado de uma forma clássica é redutor e estigmatizante, não permitindo a melhor compreensão do seu funcionamento psíquico. A compreensão das transformações de Juan permitiram-nos realizar uma leitura do seu dinamismo psíquico, revelando-nos uma necessidade de mapeamento da sua identidade, construindo-a na relação com o Outro, num movimento progressivo no sentido do crescimento, ou seja, uma transformação de crescimento em realidade última ‘O’ de Bion que possibilita o acesso ao conhecimento do próprio (Duarte, 2017Duarte, I. (2017). O tornar-se adolescente através do rorschach. Lisboa, PT: Chiado Editora.).

O trabalho psicoterapêutico realizado com Juan permitiu realizar uma (re)organização da sua identidade, na qual as diferenças culturais eram uma realidade, mas que não foram limitativas do seu melhor desenvolvimento social e emocional, permitindo-lhe tornar-se num adolescente, com toda a sua autenticidade e habilidade para seduzir tal como um verdadeiro Don Juan.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2020
  • Aceito
    29 Maio 2021
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