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EDITORIAL

Este número de Psicologia em Estudo é bastante especial: produz-se a partir do I Encontro Brasileiro de Psicanálise e Sedução Generalizada, realizado em Maringá, PR, no mês de maio deste ano. É, pois, a primeira vez que, no Brasil, pesquisadores cujo trabalho se inspira na Teoria da Sedução Generalizada (TSG), de Jean Laplanche e os últimos escritos deste autor (de 1978 até nossos dias) se reúnem num evento cuja finalidade é abertamente esta: discutir a TSG. É verdade que Laplanche já esteve no Brasil reunindo bastante gente e é também verdade que já houve algumas reuniões em que esses pesquisadores estavam presentes. No entanto, não havíamos assistido ainda a algo assim, um encontro aberto sobre a TSG onde mais de 600 pessoas compareceram, vindas de 14 Estados do Brasil, este país continente.

Sabemos, contudo, que os convidados não eram muitos, pois não há no Brasil muita gente que pesquise sistematicamente a partir da TSG. O propósito do evento, portanto, era não só de reunir, mas também de apresentar esses pesquisadores a um público mais amplo e, mais que isso, de apresentar a própria TSG.

É verdade que esse aporte teórico não é de forma alguma desconhecido pelos psicanalistas e pesquisadores em psicanálise no Brasil. No entanto, não se pode dizer que seja um "velho conhecido". O que se apresenta aqui, pois, visa se não apresentar a TSG ao público brasileiro, ao menos mostrar um pouco dos temas que têm sido pensados nos últimos anos e, dessa forma, buscar algum aprofundamento.

Trata-se dos textos apresentados pelos convidados no I Encontro, mas não só. Há outros textos desses mesmos autores, assim como trabalhos de outros autores que foram convidados pela Fondation Jean Laplanche, por intermédio da pessoa de seu presidente, o psiquiatra e psicanalista Christophe Dejours, que foi o convidado internacional de nosso evento e a quem agradecemos muito pela presença e pela disposição em nos ajudar no que tange à organização da presente publicação.

A TSG nasce na década de 1970. Podemos encontrar já em Vida e morte em psicanálise (Laplanche, 1970/1974), por exemplo, a ideia de que a sexualidade, ao menos no sentido psicanalítico, é algo implantado pelo adulto na criança, a partir de seus próprios fantasmas (do adulto). Isto quer dizer que o vir a ser do psiquismo no homem seria fortemente ligado à presença do outro. Sabemos que isso tem a ver com as tendências principais da psicanálise contemporânea que, desde Abraham, têm posto muita ênfase no objeto. No entanto, Laplanche traz algo novo, que se baseia, antes de tudo, numa crítica a Freud no que se refere à teoria da sedução. O criador da psicanálise, segundo Laplanche (1987/1992), teria descartado essa sua teoria de forma prematura. A sedução restrita, perversa, o abuso sexual de fato não explicaria todas as neuroses, como Freud mesmo propõe em uma nota de "Três ensaios..." (1905/1993). No entanto, uma importante verdade estaria de algum modo no discurso das histéricas de Freud e diria respeito a uma forma de sedução pela qual todos passariam. Todos nós, ao nascermos, seríamos confrontados com significantes inconscientes, portanto enigmáticos, vindos do adulto, e que estariam como que parasitando suas mensagens. Esses significantes, ao serem recebidos pela criança, ou melhor, nela implantados, criariam um grave problema de tradução. Isto é, o infante não teria meios de uma completa tradução, de maneira que uma parte desses elementos enigmáticos seria decifrada e outra não. Essa parte não decifrada, que Laplanche (1987/1992) nomeia objetos fonte, se constituiria como um corpo estranho e um corpo estranho "pressiona" para ser metabolizado; e os significantes enigmáticos, por sua vez, pressionam para serem traduzidos, o que é também uma forma de "metabolização". Essa pressão para traduzir é, pois, para Laplanche a pulsão que é, em última instância, pulsão de traduzir e sua fonte são os restos de elementos linguageiros-sexuais não-traduzidos.

Se isso já se encontra no texto laplanchiano do princípio da década 1970, nos anos 1980 e 1990 haverá uma espécie de consolidação da proposta não só por meio de artigos publicados aqui e ali, mas, sobretudo, por meio da reunião de artigos intitulada La Révolution copernicienne inachevée (Laplanche, 1987/1992). O que esse tão sugestivo título sugere é o originário exógeno, em que a criança gira em torno do adulto (e recebe suas mensagens enigmáticas) como a Terra gira, faz revoluções, em torno do sol: teoria heliocêntrica, como perigosamente formulou Copérnico em 1543. Parte desses artigos foi publicada no Brasil sob um título não tão belo, mas também sugestivo: Teoria da sedução generalizada e outros ensaios (Laplanche, 1988).

Nos anos 2000, enfim, Laplanche, parece estar se defrontando com problemas bem mais difíceis e que, a nosso ver, se referem, entre outros, à universalidade da TSG. Como poderia, por exemplo, esta última explicar as patologias não-neuróticas — as psicoses, perversões, estados-limite, traumas atuais etc.? Surge, então, a ideia de existirem também mensagens não-implantadas, mas intrometidas, que seriam aquelas produzidas pelo adulto com uma violência tal que elas se tornariam uma espécie de corpos estranhos muito "duros", digamos, cuja tradução/metabolização seria ou impossível ou muito em longo prazo. Seriam, pois, elementos sem simbolização na criança e capazes de explicar sejam as patologias não-neuróticas, sejam os fenômenos limite, como os atos impulsivos e violentos, o suicídio, as crises somáticas etc. Laplanche (2007) propõe, então, uma tópica em que haveria não um, mas três inconscientes. Um primeiro seria aquele formado pelos restos de mensagem não-traduzidos, inconsciente sexual; um segundo seria esse em que se intrometeriam as mensagens nem um pouco traduzidas; e um terceiro seria o acervo cultural, em que se disporiam elementos com certa latência (necessitados de interpretação) e que serviriam como "ajudantes" de tradução. Esse tópica, a nosso ver, seria um modelo capaz de operar com mais conforto toda a descoberta que a teoria vem fazendo até então.

Mas não se trata apenas disso nos anos 2000, pois a teoria se amplia em vários aspectos. Um deles é o da definição do sexual, que Laplanche discute longamente num artigo que o diferencia do sexo e do gênero. O sexual seria o mais primitivo, o polimórfico perverso e seria "o resíduo inconsciente do recalcamento-simbolização [tradução] do gênero pelo sexo" (Laplanche, 2007, p. 153).

Essas são pesquisas importantes e que necessitam mais discussão e clareza, que deveriam ser continuadas..., mas não vão, não pela pena do próprio Laplanche, pois como todos sabem, ele faleceu em maio deste ano de 2012, pouquíssimo tempo depois de nosso evento que, por sinal, foi em sua homenagem.

Evidentemente, ele fará falta, não só como pesquisador, mas também como a pessoa generosa que era, e desde já deixa em nós um enorme vazio. Mesmo assim, a pesquisa continua e é ela que, de algum modo, estamos apresentando neste número especial.

São, pois, trabalhos que "aplicam" ou "testam", de algum modo, a TSG ou, mesmo, apenas se inspiram nela, mesmo que de forma distante, tendo para isso múltiplos objetos. Trata-se da crise somática, que Dejours liga à mensagem intrometida e de difícil tradução; é a experiência corporal, que Isabelle Gernet propõe que deve ser levada em conta na compreensão da gênese do pensamento, juntamente com o modelo tradutivo; é a prática psicanalítica para a qual Hélène Tessier propõe uma metapsicologia calcada na TSG; é a psicodinâmica do trabalho, que Dejours agora relaciona à TSG; trata-se do sofrimento traumático de Sarah Kofman, durante a ocupação alemã da França na Segunda Guerra Mundial, relatado autobiograficamente e discutido por nós enquanto traduzido na forma de uma neurose de transferência; é a neurose traumática, para cuja compreensão Tereza de Melo Carvalho lança mão da concepção segundo qual a angústia diante de um evento traumático torna-se, ao se desenvolver, angústia diante da pulsão e isso, pois torna possível a introdução da TSG nesse estudo; é o ciúme patológico, que Paulo de Carvalho Ribeiro discute à luz do masoquismo primário e da identificação feminina; é o masoquismo clínico de um paciente cujo progresso analítico Fernando Andrade busca explicar pelas traduções do enigma sexual; é a projeção na paranoia, que Luiz Carlos Tarelho discute a partir da ideia de enclaves psicóticos, tal como isso aparece na TSG; é o paraexcitações freudiano, que Fábio Belo propõe que deva ser repensado à luz da TSG e aproximado à ideia de paraskeuê, termo grego, encontrado no Novo Testamento, que significa "preparação"; são as manifestações clínicas de duplo funcionamento, para as quais Duarte Rolo propõe o modelo tópico de Dejours como explicativo; é a cultura, enquanto "tesouro" de elementos capazes de auxiliar a tradução do enigma sexual, que Viviana Velasco Martinez discute a partir do episódio bíblico de Susana e os velhos e sua representação pictográfica feita pela artista barroca, Artemísia Gentileschi, no século XVII; é ainda a clínica, mas tomada sob a nossa pena e o que esta busca é ressaltar a sedução no processo analítico, presente nas mensagens do outro terapeuta/analista e que se junta a uma espécie de projeto transferencial do paciente, produzindo, então, algo a ser, desde então, traduzido e isso — esse algo — é a própria análise/terapia; é o sofrimento psíquico de uma mãe cujo filho, tido como psicótico, está em análise, que Henriqueta Melo, Fernando Andrade e Hélida Magalhães discutem sob o crivo das ideias de forclusão e de mensagens intrometidas; é o recalcamento originário, objeto do artigo de Felipe Figueiredo Lattanzio e Paulo de Carvalho Ribeiro — novamente — que é relacionado à TSG e ao conceito de gênero; é a perversão, que Fábio Belo e Larissa Bracelete discutem pela análise de uma personagem fictícia denominada de Dexter, que é o protagonista de uma produção televisiva norte-americana; e é enfim a literatura da escritora norte-americana Carson McCullers, que fazem Juliana Baracat e Viviana Velasco Martínez discutir a dialética pulsional entre ligação e desligamento e o trabalho de tradução/metabolização.

Como se pode ver, não somente há uma variedade de temas, como também os autores buscam imprimir-lhes a sua própria singularidade, de forma que pelo trabalho de Laplanche, construírem suas próprias teorias e, por vezes, conceitos.

Ainda, é preciso dizer que tanto o I Encontro Brasileiro de Psicanálise e Sedução Generalizada como este número de Psicologia em Estudo foram organizados pela Professora Doutora Viviana Carola Velasco Martinez, que se desdobrou em esforços para que tudo isso ocorresse.

Resta-nos, finalmente, a leitura; a ela pois!

Prof. Dr. Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto

e-mail: garmneto@gmail.com

  • Freud, S. (1993). Tres ensayos de teoría sexual. In S. Freud. Obras Completas . (Vol. 7, pp. 111-222). Buenos Aires: Amorrortu. (Publicado originalmente em 1905).
  • Laplanche, J. (1974). Vie et mort en psychanalyse. Paris: Flammarion. (Publicado originalmente em 1970).
  • Laplanche, J. (1988). Teoria da sedução generalizada e outros ensaios. Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Laplanche, J. (1992). La révolution copernicienne inachevée; travaux 1967-1992. Paris: Aubier.
  • Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise. (Cláudia Berliner, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Publicado originalmente em 1987).
  • Laplanche, J. (2007). Sexual. Paris: PUF.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Abr 2013
  • Data do Fascículo
    Set 2012
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