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O papel das representações psíquicas no processo de somatização

RESENHAS

O papel das representações psíquicas no processo de somatização1 1 Marty, P. (1998). Mentalização e Psicossomática. (A. E. de V. A. Güntert, Trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1996).

Rodrigo Sanches Peres

Graduando do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista - UNESP / Assis

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rua Jesuíno de Arruda, 2753 Centro, São Carlos - SP CEP - 13560-060 E-mail: rodrigo_sanches_peres@hotmail.com

DIGESTO

Se pretendêssemos resumir em poucas palavras o pressuposto central da teoria psicossomática de orientação psicanalítica, talvez pudéssemos fazê-lo da seguinte maneira: corpo (soma) e mente formam um todo inseparável, de modo que as representações psíquicas - que constituem a base de nossa vida mental - exercem um papel central no processo de somatização.

As idéias principais da psicossomática, a despeito de parecerem, à primeira vista, modernas ou contemporâneas, remontam, na realidade, a tempos distantes: a tese da interação entre os aspectos físicos e psíquicos era aceita em diversas civilizações antigas. A Medicina Oriental, há cerca de cinco séculos, já acreditava que doenças são processos complexos, que muitas vezes estão relacionados a estados emocionais. Os pensadores Hipócrates (460-377 a.C.) e Galeno (131-200 d.C.), do mesmo modo, também acreditavam que as emoções influenciam nos aspectos corporais.

Porém, o filósofo francês René Descartes (1596-1650), no século XVII, propôs uma concepção dualista segundo a qual o homem é formado por duas partes básicas e distintas entre si: "mente" (parte abstrata) e "corpo" (parte concreta). A Medicina Ocidental, que gradualmente adotou o modelo cartesiano, passou a atribuir maior importância à transposição direta dos princípios da Física e da Química ao corpo humano e a seu funcionamento, e a considerar a mente como algo de pouca relevância na gênese das doenças.

No entanto, no final do século XIX o médico vienense Sigmund Freud provoca uma nova mudança de paradigma. Com o surgimento e o desenvolvimento da Psicanálise retoma-se a idéia de que sintomas físicos podem surgir sem causas orgânicas; a atenção dos médicos, desse modo, volta-se novamente para o paciente, e não mais para a doença em si, procurando-se compreender as motivações psicológicas, sociais ou somáticas que estão envolvidas no surgimento, no desenvolvimento e na manutenção de sua enfermidade.

Baseando-se nos princípios freudianos e hipocráticos começou a desenvolver-se, notadamente a partir de 1950, a teoria psicossomática. Franz Alexander e o Chicago Institute for Psychoanalysis, nos EUA, tornaram-se notórios por seus estudos, que procuravam correlacionar determinados tipos de personalidade a certas doenças e buscavam uma relação entre o funcionamento fisiológico dos sujeitos e seus momentos de crises existenciais. Ao mesmo tempo, Pierre Marty e colaboradores da Sociedade Francesa de Psicanálise, em Paris, dedicaram-se ao estudo das interligações entre os aparelhos psicológico e físico, enfatizando o papel das mentalizações no surgimento e/ou na prevenção das afecções somáticas. Essas duas vertentes em psicossomática seguiram rumos um tanto quanto distintos, mas ambas têm como pressuposto básico a idéia de que corpo (soma) e mente formam um todo inseparável.

É importante destacar ainda que, simultânea e independentemente do surgimento da psicossomática, a ciência médica passou a comprovar, através de experimentos e investigações rigorosas, que realmente todos os sistemas orgânicos podem ser influenciados por eventos emocionais. Tal constatação empírica representou, principalmente para os conservadores que ainda viam com certo desdém as teses psicossomáticas, a corroboração científica da intrínseca vinculação existente entre mente e corpo, e colaborou para a aceitação e a difusão do referencial em questão, no meio acadêmico (Vieira, 1997).

As mentalizações, para Marty, podem ser definidas resumidamente como as representações psíquicas dos sujeitos e constituem a base de nossa vida mental, exercendo, dessa forma, papel central no processo de somatização. A noção de mentalização surgiu após a formulação da primeira tópica freudiana acerca do funcionamento do psiquismo, que estabelece o sistema pré-consciente como local de manifestação, evocação e permanência das representações.

A abordagem de Marty pressupõe que somos freqüentemente atingidos por excitações instintuais e pulsionais, que exigem um trabalho de descarga através de elaborações mentais ou comportamentos motores. O aparelho psíquico de cada um oferece possibilidades diferentes de elaboração; no entanto, quando as excitações não se escoam de forma satisfatória, ocorre um comprometimento patológico dos aparelhos somáticos. A insuficiência e/ou indisponibilidade de representações é resultado de deficiências orgânicas das funções sensório-motoras ou principalmente de desorganizações mentais que surgem como desdobramento de carências e desarmonias afetivas na primeira infância.

Marty destaca que a quantidade e a qualidade das representações variam conforme os indivíduos, e num mesmo indivíduo, conforme o momento da vida. As boas mentalizações, que permitem a descarga ou o escoamento das excitações, surgem quando um sujeito possui representações psíquicas variadas e enriquecidas, ligadas entre si. Desse modo, as novas excitações são assimiladas com certa serenidade, gerando um eventual aumento de angústia e ansiedade ou, no máximo, causando sintomas somáticos funcionalmente localizados e não evolutivos, que são reversíveis sem maiores dificuldades e não apresentam maiores riscos à saúde, tais como gastrite, úlcera, asma, etc. Sujeitos mal mentalizados, por sua vez, com desorganizações psíquicas progressivas e que acumulam importantes excitações instintuais e pulsionais, são mais propensos a afecções somáticas severas, tais como câncer e doenças cardiovasculares.

Os trabalhos de Pierre Marty indicam que a qualidade das defesas biológicas do organismo está intimamente ligada à qualidade e à quantidade das representações mentais. As psicoterapias destinadas a doentes somáticos visam, desse modo, independentemente do contexto patológico, diminuir a importância e a freqüência das afecções - e talvez até mesmo a erradicação das mesmas, nas somatizações mais moderadas -, atuando basicamente no sentido de se tentar reforçar as defesas mentais dos sujeitos, sempre reconhecendo, por outro lado, o valor das terapêuticas médico-cirúrgicas, que são indispensáveis para as doenças evolutivas.

Comentários e indicações do resenhista

A obra "Mentalização e Psicossomática", de Pierre Marty, traduzida recentemente (1998) para o português, apresenta, de forma didática e simplificada, as noções centrais da teoria defendida pela escola francesa de psicossomática. Trata-se de um trabalho valioso, pois fornece subsídios que nos permitem compreender a influência do funcionamento mental no surgimento e na manifestação de doenças.

Porém, é necessário destacar que esta não é a obra mais indicada aos que procuram aprofundar-se no tema, visto que a fundamentação teórica é superficial e um tanto quanto reducionista. Evidentemente, a compreensão será mais profícua se houver familiaridade com o referencial psicanalítico freudiano, mas nada impede que estudantes e profissionais que seguem outras vertentes teóricas se beneficiem da leitura deste trabalho. Trata-se de um livro básico e introdutório para os interessados no assunto, principalmente levando-se em conta a clareza e a objetividade que o autor utiliza para apresentar sua teoria.

Recebido em 27/01/2001

Revisado em 23/04/2001

Aceito em 30/05/2001

  • Vieira, W. C. (1997). A psicossomática de Pierre Marty. Perfil. 10, 129-30.
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    Marty, P. (1998). Mentalização e Psicossomática. (A. E. de V. A. Güntert, Trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1996).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2001
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