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RESENHAS

Para onde andará o “lobo mau” da psicologia?1 1 Freitas, S. M. P. de. (2002). A Psicologia no contexto do trabalho: uma análise dos saberes e dos fazeres. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

Eduardo A. Tomanik

Doutor em Psicologia Social, Professor do Departamento de Psicologia e dos Cursos de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Ecologia da Universidade Estadual de Maringá

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Eduardo A. Tomanik Departamento de Psicologia, Universidade Estadual de Maringá Av. Colombo, 5790, CEP 87020-900. E-mail: eatomanik@uol.com.br

(...) Sentindo que a violência/ Não dobraria o operário/ Um dia tentou o patrão/ Dobrá-lo de modo vário. /De modo que o foi levando/ Ao alto da construção/ E num momento de tempo/ Mostrou-lhe toda a região/ E apontando-a ao operário/ Fez-lhe esta declaração:/ - Dar-te-ei todo esse poder/ E a sua satisfação (...)/ (...) tudo o que vês/ Será teu se me adorares/ E, ainda mais, se abandonares/ O que te faz dizer não (...) (Vinícius de Morais)

A existência de situações de desigualdade, exploração e sofrimento e de práticas de coerção, cooptação e convencimento no mundo do trabalho submetido ao império do capital não constitui qualquer novidade. Tanto aquelas situações quanto essas práticas vêm sendo denunciadas desde Marx e são reconhecidas até pelos defensores dos modos capitalistas de produção (embora vários destes prefiram, cinicamente, escamoteá-las de suas reflexões).

Diante de condições como estas e de todos os demais conflitos que permeiam o mundo do trabalho atual, a inserção dos profissionais da Psicologia nesse mundo não poderia ocorrer senão cercada de polêmicas e de contradições. Afinal, qual deve ser o papel destes profissionais: otimizar desempenhos e lucros, minorar sofrimentos e maximizar o bem-estar coletivo ou arquitetar uma improvável conciliação entre os interesses do capital e os dos trabalhadores (seria mais exato dizer, entre os interesses dos seres humanos detentores dos capitais e dos outros seres humanos submetidos aos primeiros)? A Psicologia aplicada ao trabalho deve ser vista e agir como uma ciência colocada a serviço da empresa e dos processos de produção, como previsto pelo capitalismo, ou como um conhecimento produzido pelos homens e colocado ao serviço destes enquanto realizam as atividades que visam, ao mesmo tempo, garantir o seus sustento e provê-lo de condições para sua auto-realização?

Em 1984, num texto já clássico, Codo mostrava que o psicólogo dedicado a atuar junto ao mundo do trabalho era considerado por muitos dos demais profissionais da Psicologia como uma espécie de “lobo mau” da profissão:

(...) quanto mais cresce a importância da indústria na sociedade contemporânea, mais crescem as críticas que a Psicologia, principalmente no âmbito acadêmico, faz à atuação do psicólogo na indústria (, 1984, p. 195).

Todas aquelas contradições, advindas tanto do mundo do trabalho atual quanto das formas e possibilidades de atuação do profissional da Psicologia nesse mundo, constituem o ponto de partida da dissertação “A Psicologia no contexto do Trabalho: uma análise dos saberes e dos fazeres”, elaborada por Sylvia Mara Pires de Freitas, orientada por Neuza M. F. Guareschi e aprovada pelo Programa de Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em agosto de 2002.

Partindo de um estudo sobre a evolução das teorias desenvolvidas e das práticas adotadas pelos profissionais da Psicologia e de áreas afins, a dissertação distingue três fases (no sentido histórico e contextual), que são também três faces (nos sentidos epistêmico e ideológico) da Psicologia aplicada ao contexto do trabalho.

A primeira dessas fases/faces, denominada Psicologia Industrial, que engloba tanto as teorias da Administração Científica quanto as das Relações Humanas, é caracterizada principalmente por sua focalização no indivíduo que trabalha, seja para direcionar e controlar suas ações, seja procurando incutir no mesmo sentimentos de participação e de importância coletivas para assim obter dele maior adesão aos objetivos da empresa e melhor execução das ações por ela determinadas.

A fase/face seguinte, a da Psicologia Organizacional, diferencia-se da primeira por levar em conta um leque muito maior de fatores, como os efeitos da estrutura organizacional e de outras variáveis sobre as disposições e ações do trabalhador. Em suas práticas, privilegia as tentativas de harmonização das relações humanas no trabalho e prima por escamotear os conflitos e contradições existentes no mesmo (e produzidos por ele) visando, com isto, obter ganhos crescentes de produtividade. Assim, temas como clima ou cultura organizacionais são estudados; lemas como os de qualidade de vida no trabalho, ou mesmo de qualidade total, são adotados e apregoados, mas acobertam, no fundo, objetivos bem próximos aos do momento evolutivo anterior.

Em contraposição, a fase/face da Psicologia do Trabalho surge “(...) direcionada aos estudos da psicopatologia e da psicodinâmica do trabalho, que aposta no trabalho como um meio de realização da felicidade humana (...)” (Freitas, 2002, p. 25, baseando-se em Azevedo, 1995). A ciência psicológica, sob esta perspectiva, deixa de considerar a atividade laboral sob a perspectiva única da produção de bens materiais ou de serviços para a geração de lucro e, fortemente influenciada pelos pressupostos da chamada Psicologia Social Crítica, passa a estudar, por exemplo, relações entre o trabalho e a subjetividade e a propor uma série de ações que têm como meta o bem-estar humano.

Duas décadas se passaram desde o surgimento de produções que proporcionaram o redimensionamento desta disciplina para estudos que ampliam seu campo de atuação, para além do contexto industrial, organizacional e institucional; que instigam um reposicionamento político perante o compromisso ético do profissional da subárea em estudo com o contexto social, bem como forçam à interface com outras disciplinas, inclusive com a Psicologia Social crítica, a Sociologia e a Filosofia (Freitas, 2002, p. 16).

Em Psicologia, o surgimento de uma nova teoria nem sempre implica no abandono das anteriores ou na sua substituição. Assim, as várias fases/faces da Psicologia aplicada ao contexto do trabalho podem coexistir e provavelmente coexistem tanto nas concepções e práticas dos profissionais quanto nos processos de formação dos novos participantes da profissão e da área de atuação. Além disso, as preocupações e formulações teóricas da Psicologia do Trabalho surgem essencialmente nos meios acadêmicos, não dentro das organizações industriais ou comerciais, nem apartir dos desejos ou interesses predominantes nelas.

Fatores como estes sugerem uma série de questionamentos. As idéias/ideais da Psicologia do Trabalho foram ou estão sendo assimilados e assumidos socialmente? Até que ponto os profissionais interessados em atuar nas empresas ou junto a elas adotam ou estão preparados para colocar em prática estes postulados e princípios? Que profissionais os meios acadêmicos estarão formando ou tentando formar?

Diante de tal quadro contextual seria fácil resvalar para um estudo que estabelecesse formas de classificação de profissionais e de propostas curriculares e que, a partir desses critérios classificatórios, visasse apenas obter gráficos e tabelas demonstrativos das tendências de distribuição existentes e das proporções entre elas. Ao invés desta confortável opção pela elaboração de um “retrato científico”, ou seja, de uma descrição pretensamente fria e neutra da situação da formação dos profissionais, a autora da dissertação, coerente com o referencial teórico adotado, preferiu enveredar pelo caminho mais complexo da busca da compreensão do fenômeno e elegeu objetivos como os de estudar como a área de aplicação da Psicologia ao mundo do trabalho vem sendo constituída e difundida nos meios acadêmicos nacionais. Para tanto se dispôs, por exemplo, a identificar em que fase/face da construção histórica da Psicologia no contexto do trabalho se deu a formação dos profissionais que hoje atuam como professores dentro desta área de atuação, mapear suas trajetórias profissionais e conhecer seus posicionamentos atuais sobre as funções da área. Com relação aos aspectos institucionais da formação profissional, a pesquisa que deu origem à dissertação buscou “(...) conhecer os perfis do profissional que as subáreas da Psic. no contexto do trabalho, das IES que os profissionais atuam como docentes, desejam implementar, os posicionamentos dos profissionais com relação a esta formação e as práticas resultantes” (Freitas, 2002, p. 17).

O processo de pesquisa envolveu a análise das estruturas das disciplinas que constituem os carros-chefes da subárea da Psicologia no contexto do trabalho em 20 Instituições de Ensino Superior do Sudeste e do Sul do país, além dos depoimentos de profissionais/docentes responsáveis pela estruturação e disseminação daquelas disciplinas.

Os resultados apontam, de início, a existência de inquietações e insatisfações por parte dos profissionais. Apesar disso, fatores como a hegemonia, ainda existente tanto no mundo do trabalho quanto nos meios acadêmicos, “(...)de concepções que compreendem a relação ser humano/trabalho de forma linear, adaptacionista e reducionista(...)” (Freitas, 2002, p. 130) e o tecnicismo profissional resultante dessas concepções parecem levar os profissionais/docentes, mesmo insatisfeitos com os rumos de sua atuação, a privilegiar a adoção de modismos, em detrimento da busca de mudanças mais amplas e profundas, que envolvam também alterações no comprometimento político e social dos profissionais.

Os grupos de profissionais que logram, ou ao menos procuram, desenvolver formas de superar esta tendência hegemônica “(...) recebem críticas de outros profissionais e/ou de outras subáreas, seja por estarem atendendo às demandas do mercado, seja porque as questionam e assim dificultam o acesso dos formandos ao trabalho no mercado” (Freitas, 2002, p. 130).

Além da importância de constatações como essas, há, ainda, outro aspecto a ser ressaltado da leitura do trabalho: a honestidade intelectual de sua autora. Colocando-se, corajosa e coerentemente, não como observadora ou como crítica externa do universo pesquisado, ela assume seu papel como parte desse universo e não hesita em revelar, por exemplo, que

enquanto trabalhava somente como psicóloga em uma empresa federal, no setor de recrutamento e seleção de pessoal, não vivenciei grandes angústias na prática, haja vista que consegui cumprir as atividade como mandavam os manuais (Freitas, 2002, p. 13).

Mais adiante, adotando uma prática pouco comum nos itens relativos à metodologia de trabalhos deste tipo, confessa: “(...) nossa primeira intenção de pesquisa foi a de querer comprovar que estes especialistas não se posicionavam criticamente perante suas práticas” (Freitas, 2002, p. 14).

Assim, abrindo mão de constituir-se ou de considerar-se como modelo ou como imune às contradições que denuncia, assume a noção de processo que permeia seu trabalho e mantém aberta, com seu exemplo, a esperança de superação das condições vividas pela porção da realidade que estuda. Afinal, a concepção dialética de que “ ...o operário faz a coisa/ e a coisa faz o operário”, tão bem exposta pelo mestre Vinícius de Moraes no mesmo poema que serviu de epígrafe a esta resenha, também deve valer para a área da Psicologia aplicada às relações do trabalho.

REFERÊNCIAS

Codo, W. (1984) O papel do psicólogo na organização industrial : notas sobre o “lobo mau” em psicologia. Em S. T. M. Lane, & W. Codo (Orgs.). Psicologia social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense.

Freitas, S. M. P. de. (2002). A Psicologia no contexto do trabalho: uma análise dos saberes e dos fazeres. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

Vinícius de Moraes. (1981). O Operário em construção. Em Vinícius de Moraes. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio.

Recebido em 15/10/2003

Aceito em 20/10/2003

  • Endereço para correspondência

    Eduardo A. Tomanik
    Departamento de Psicologia, Universidade Estadual de Maringá
    Av. Colombo, 5790, CEP 87020-900.
    E-mail:
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    Freitas, S. M. P. de. (2002). A Psicologia no contexto do trabalho: uma análise dos saberes e dos fazeres. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Mar 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003
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