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Os pedagogos da regência: um diálogo com o Maestro Eduardo Lakschevitz, primeiro ato

Conducting pedagogues: a dialogue with Maestro Eduardo Lakschevitz, act I

RESUMO:

Compartilhar experiências da vida acadêmica, artística e profissional no campo da Regência promove uma reflexão sobre a formação de regentes. O que é necessário para ser Maestro? Como equilibrar teoria e prática? Quais técnicas de ensino são essenciais na formação de um regente? Essa entrevista é a primeira de um ciclo de diálogos com Maestros nacionais (Brasil) e internacionais. O primeiro convidado é o Maestro e Professor Eduardo Lakschevitz. Em seu percurso entre o Brasil e os Estados Unidos, Lakschevitz trabalha intensamente como coordenador e pedagogo dos Painéis de Regência Coral da FUNARTE, e suas ações refletem na produção e divulgação do repertório coral e em cursos de formação para regentes e educadores. Dar voz a Maestros como Lakschevitz nos permite visualizar novas perspectivas práticas, conceituais e pedagógicas, e nos direciona o olhar para as reais necessidades do campo da regência: pensar e agir para além da técnica gestual.

PALAVRAS-CHAVE:
Eduardo Lakschevitz; Ensino-aprendizagem da regência; Pedagogos da regência

ABSTRACT:

Sharing experiences of the academic, artistic and professional life on the Conducting field, leads to a reflection about the formation of conductors. What takes to be a Maestro? How to balance theory and praxis? Which teaching techniques are essential in a conductor formation? This interview is the first of a dialogue circuit with national (Brasil) and international Maestros. The first guest is the Professor and Maestro Eduardo Lakschevitz. On his path between Brazil and The United States, Lakschevitz works hardly as the coordinator and pedagogue of FUNARTE Choral Conducting Pannels, and his actions reflect on the production and dissemination of the choral repertoire and on training courses to conductors and musical educators. Giving voice to Maestros such Lakschevitz allows us to visualize new practical, conceptual and pedagogical perspectives, and leads our attention to the real necessities on the Conducting field: thinking and acting beyond the gestural techniques.

KEYWORDS:
Eduardo Lakschevitz; Conducting teaching and learning; Conductors pedagogues

1. Incitações iniciais1 1 Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Estímulo ao Emprego Científico Individual (2022.02280.CEECIND/CP1720/CT0038) e da Unidade de I&D CIDTFF (projetos UIDB/00194/2020 e UIDP/00194/2020).

Refletimos frequentemente que a regência transcende o simples gestual técnico2 2 Exemplificamos em artigo publicado (Lima; Barros, 2021) que a realidade brasileira do regente não está resumida apenas na performance musical. . Por diversas vezes, a atuação do regente não se restringe apenas ao campo musical, ultrapassando as fronteiras do pentagrama e seguindo diretrizes extramusicais, tais como:

  • Caminhos administrativos: envolvem o planejamento de concertos e ensaios, concertos didáticos e temporadas, seleção de maestros e solistas convidados, organização de viagens do ensemble para outras localidades e realização de audições para suprir as necessidades do efetivo instrumental/coral.

  • Preceitos psicopedagógicos: a maneira como nos comunicamos com os músicos durante os ensaios exerce impacto direto nos resultados da preparação e execução musical. Adicionalmente, a comunicação metodológica em ensaios de grupos amadores, alunos e profissionais requer abordagens distintas. Isso inclui a habilidade de lidar com a efemeridade e os imprevistos musicais durante a performance, bem como a seleção e preparação de um repertório desafiador capaz de provocar mudanças significativas em ensembles formados por alunos. Outro aspecto crucial é a execução de um repertório que explore a potencialidade artística de ensembles profissionais, ao mesmo tempo em que se respeita a individualidade humana dos músicos.

  • Âmbito político: compreende a articulação com órgãos governamentais, a busca por subsídios e a participação em editais de fomento à cultura.

As perspectivas supracitadas ilustram exemplos de estruturas dialógicas inerentes ao métier do regente. Não é preciso ir muito longe para perceber que tais estruturas estão presentes ao longo da literatura da área, embora nem sempre sejam explicitamente abordadas3 3 Autores como G. Schuller(1997), M. Rudolf(1994), H. Farberman(1997) e H. Scherchen(1989), afirmam que aspectos musicais e extramusicais são estruturas presentes na formação de um regente. . Contrapondo essa observação, constatamos que os programas de ensino muitas vezes negligenciam esse viés, concentrando-se predominantemente na produção acadêmica voltada para teses, dissertações e artigos científicos exclusivamente centrados na preparação e execução de uma obra musical.

Não podemos subestimar os caminhos extramusicais intrínsecos à atuação do regente. Essas estruturas complementam a formação e necessitam ser abordadas de forma consciente ao longo do ciclo de ensino-aprendizagem. Seria ilusório limitar a formação dos regentes aos preceitos interpretativo-musicais e à técnica geométrica do gesto, visando exclusivamente a performance de uma obra musical4 4 Após a conclusão de um estudo exploratório conduzido e cujos resultados foram publicados pelos autores desta abordagem, torna-se evidente que a produção científica nos primeiros 20 anos no campo da regência se concentra predominantemente no viés da preparação, interpretação e execução de obras musicais. Observa-se, por conseguinte, a escassez de perspectivas mais aprofundadas acerca das particularidades do cotidiano da regência. As áreas menos exploradas, notadamente, envolvem a preparação e organização de ensaios, o ensino da regência e a seleção de repertório. A análise revela uma lacuna significativa no tratamento acadêmico desses aspectos mais práticos e cotidianos da regência, que, por sua vez, desempenham papéis cruciais no processo artístico e educacional. Os estudos existentes tendem a se concentrar majoritariamente nas fases mais tradicionais e formais do processo de regência, negligenciando a riqueza de nuances presentes nos bastidores do fazer musical. No entanto, a valorização e compreensão desses aspectos menos explorados não apenas enriquecem o entendimento global da regência, mas também oferecem insights valiosos para a formação e desenvolvimento de regentes. O cotidiano do regente, permeado por desafios práticos e decisões pedagógicas, é uma dimensão intrínseca ao seu papel, influenciando diretamente a qualidade e a inovação no cenário musical. É crucial, portanto, que futuras pesquisas no campo da regência busquem preencher essa lacuna, abordando de maneira mais detalhada e holística as diversas facetas que compõem a prática da regência além do momento da performance. Dessa forma, será possível construir um corpus de conhecimento mais abrangente e aplicável, contribuindo para a evolução da disciplina e enriquecendo a formação de regentes em todos os níveis de expertise (Lima et al, 2023). .

Para evidenciar que a performance é apenas um dos pilares que sustentam a formação do regente, conduzimos um ciclo de entrevistas com renomados performers e docentes atuantes no cenário brasileiro e internacional5 5 A presente entrevista será conduzida na língua vernácula do entrevistado, o português brasileiro. A intenção subjacente é preservar integralmente a voz do entrevistado, evitando qualquer possibilidade de distorção que uma tradução para outras línguas, como inglês, espanhol ou francês, poderia acarretar. Tal opção visa assegurar a fidelidade e a integridade do contexto que estamos prestes a compartilhar. Ao optarmos por manter a entrevista no idioma original do entrevistado, pretendemos não apenas respeitar sua expressão linguística única, mas também garantir que nuances, sutilezas e detalhes intrínsecos à língua portuguesa sejam devidamente preservados. Este cuidado visa, portanto, a manutenção da riqueza e autenticidade do conteúdo que será apresentado. . Acreditamos que, ao compartilhar as experiências de vida, acadêmicas, artísticas e profissionais desses atores6 6 Entramos em diálogo com a perspectiva da Teoria Ator-Rede de Bruno Latour (2012). Mais precisamente, “actante é tudo aquilo que gera uma ação, que produz movimento e diferença, seja ele humano ou não-humano. O actante é o mediador, ou seja, é aquele que transforma, traduz, distorce e modifica o significado que ele supostamente transporta. […] os meios que participam das associações em um sistema podem ser os mediadores (actantes) ou os intermediários, que são aqueles que não produzem modificações na mensagem. Um mediador pode se tornar um intermediário assim como um intermediário pode se transformar em um mediador” (Praude 2016, 15). , estamos dando um pequeno passo em direção à quebra de estereótipos cristalizados que, por consequência, obstruem o desenvolvimento de novas abordagens metodológicas de ensino-aprendizagem. Simultaneamente, registramos para as futuras gerações de regentes a voz desses pedagogos e performers. A primeira voz a compartilhar suas experiências é a do Maestro e Professor Eduardo LakschevitzLakschevitz, Eduardo. 2009. Um canto comum: percebendo o coro de empresa como um mundo artístico. 2009. Tese (Doutorado em Música) - Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro..

Maestro Lakschevitz7 7 Texto fornecido por Eduardo Lakschevitz em seu currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=B57107. Acessado em: 05 de setembro de 2023. é docente associado à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutor em Música pela mesma instituição, obteve o título de Mestre em Regência Coral na conceituada Universidade de Missouri-Kansas City (EUA), sob a orientação do Dr. Eph Ehly, reconhecido especialista na área e mentor que guiou sua formação de maneira excepcional. Sua destacada trajetória acadêmica nos Estados Unidos foi coroada com a conquista do Graduate Achievement Award, honraria conferida em virtude de sua excelência acadêmica.

O Maestro Lakschevitz conduz pesquisas de vanguarda, concentrando-se principalmente na esfera da música comunitária, com especial destaque para coros corporativos. Além disso, suas investigações abrangem a produção musical e a capacitação de recursos humanos no âmbito musical. Sua atuação transcende as fronteiras acadêmicas, manifestando-se de maneira concreta por meio da ONG Oficina Coral. Nessa organização, exerceu papel coordenador em dez edições do Curso Internacional de Regência Coral, contribuindo para a disseminação global de conhecimentos e práticas no campo da regência coral.

Atualmente, o Maestro Lakschevitz dedica-se a projetos inovadores voltados para a educação corporativa por meio da prática musical, evidenciando sua visão progressista sobre o papel da música no desenvolvimento pessoal e profissional.

Além de suas responsabilidades acadêmicas, o Maestro desempenha a função de Coordenador Pedagógico dos Painéis de Regência Coral promovidos pela Fundação Nacional de Artes (FUNARTE). Nessa posição estratégica, lidera a elaboração e implementação de cursos de formação destinados a regentes e educadores em âmbito nacional. Sua atuação abrange também a concepção e execução de projetos voltados para a produção e divulgação de repertório coral, consolidando-se como uma figura influente no cenário musical brasileiro.

O alcance internacional de sua trajetória acadêmica inclui colaborações como professor convidado em instituições de ensino superior renomadas, tais como Westminster Choir College, Syracuse University, Idaho State University, Escola de Música e Belas Artes do Paraná, University of Nebraska-Lincoln e University of Missouri - Kansas City. Essas colaborações internacionais atestam a relevância e o reconhecimento do Maestro Lakschevitz em níveis globais.

Além de seu papel como educador e pesquisador, o Maestro é um prolífico compositor coral. Suas composições foram gravadas por grupos de destaque no Brasil, Estados Unidos, Venezuela e Eslovênia, consolidando sua presença significativa na produção e divulgação da música coral internacional. Estas notáveis obras encontram-se publicadas por editoras renomadas, como Carus Verlag, Alliance Music e Colla-Voce, conferindo uma dimensão internacional à sua contribuição para o repertório coral contemporâneo.

2. A voz de Eduardo Lakschevitz

Erickinson Lima (EL). André Oliveira (AO): Um olhar sobre si mesmo: Quem é Eduardo Lakschevitz?

Eduardo Lakschevitz (EdL): "Sou marido da Gisele e pai de Sofia e Luisa". Você sabe que já aconteceu de retirarem essa frase quando a escrevi em programas de concertos, congressos ou algum outro evento? Talvez as pessoas pensem que nossos textos biográficos devam versar apenas sobre estudos, concertos, publicações etc. Mas eu não concordo com isso. Quando falo sobre música, que é o caso do presente texto, me parece impossível separar trabalho de outros aspectos da vida. Somos artistas por razões que vão muito além das obras que criamos. Passei a vida inteira fazendo música, o que considero um grande privilégio. Já exerci muitas atividades diferentes: instrumentista (por um breve momento), cantor, regente, arranjador, professor, compositor, editor etc. Em todas elas, meu trabalho se forjou em cima da relação interpessoal, pois tudo o que fazemos na nossa arte acontece em relação ao outro. Como regentes, tema que abordarei aqui, nossa visão do outro, nossa capacidade de ter empatia e de exercer alteridade são fundamentais. Creio que a parte técnica, importantíssima, é uma excelente ferramenta para tratar desses temas, mas a capacidade de ouvir, de olhar ao redor e de se entender parte de um todo constitui nossa verdadeira missão. Lembrando Gregório de MatosMatos, Gregório de. 1992. “Ao braço do mesmo Menino Jesus quando apareceu”. In: Obra poética. Org. James Amado. Prep. e notas Emanuel Araújo. Apres. Jorge Amado. 3.ed. Rio de Janeiro: Record. (1636-1696), "o todo, sem a parte não é todo, e a parte, sem o todo não é parte". Assim, não consigo dissociar minha vida artística e profissional de minhas relações humanas, das quais a família é uma parte fundamental. Sou um regente que entende seu lugar como o de alguém que facilita a cantoria, seja para o cantor, o ouvinte e todos os demais envolvidos no processo. Como professor e regente, acho que minha principal função é inspirar o outro.

EL. AO: A partir de que momento de vida começou sua caminhada na música?

EdL: Meu avô materno, Arthur Lakschevitz (1901-1980), chegou ao Brasil na década de 1920, vindo da Letônia, um país onde a educação musical é encarada de forma muito séria e a cultura ocupa um lugar de destaque no tecido social. Por isso, na minha casa nunca houve discussão com relação à importância do fazer musical como parte da educação das crianças. Foi assim com minha mãe e tio, bem como comigo e com meu irmão. Desde cedo participei de coro infantil, estudei instrumento e teoria. Mas como dizem, "casa de ferreiro, espeto de pau". Quando adolescente, vivi uma fase de grande rebeldia (acho que típica da idade, não é?) e me afastei totalmente de qualquer atividade musical. Quando chegou a época do vestibular, porém, comecei a considerar uma carreira em música como uma possível área de atuação profissional. Muitos amigos de meus pais atuavam nessa área, e nunca tive qualquer objeção familiar para seguir tal carreira, como aconteceu com muitos de meus colegas (e percebo que ainda acontece com alguns alunos). Lá em casa, essa opção não gerava conflitos.

Então, entrei para o Bacharelado em Instrumento (clarinete), aqui na UNIRIO, e fui seguindo na carreira acadêmica: Mestrado em Regência Coral, na UMKC (University of Missouri-Kansas City), Doutorado em Música, na linha do Ensino de Música, na UNIRIO e Pós-Doutorado na Syracuse University, onde pesquisei aspectos de liderança no trabalho do regente coral e do professor de música. Posso dizer que essa caminhada começou bem cedo, mas com um período de interrupção. Algo que me chama atenção nesse percurso é a grande quantidade de lembranças que guardo do período inicial, o coro infantil. Não só o repertório, do qual ainda tenho muita coisa memorizada, mas também de aspectos do funcionamento do fazer musical coletivo. Sem falar nas amizades, que mantenho até hoje. Aliás, a grande maioria dos colegas que tive nesse período de coro infantil é muito bem-sucedida profissionalmente, nas mais diversas áreas. De muitos deles, inclusive, já ouvi testemunhos sobre como essa prática do fazer musical na infância os ajudou em suas respectivas carreiras profissionais. Por outro lado, vários colegas dessa época seguiram carreiras de sucesso em música como cantores, instrumentistas, regentes, pesquisadores, compositores e educadores. Somos exemplos inquestionáveis da relevância da educação e da prática musical na formação de crianças e jovens e do fazer musical coletivo como uma das atividades mais significativas da sociedade contemporânea.

EL. AO: Como tudo começou com a regência?

EdL: Nunca fui um bom clarinetista. No máximo, regular. Como disse acima, sempre tive interesses muito diversos na área da música. A ideia de me dedicar a estudar somente um instrumento, ou investir a maior parte do meu tempo numa única atividade principal não me satisfazia. Sempre fui curioso sobre diferentes práticas e espaços de atuação, especialmente quando se tratava de música em conjunto. Certo dia, ouvi falar sobre uma empresa no Centro do Rio que estava abrindo processo seletivo para regente do seu coro de funcionários. Me candidatei e acabei passando. Na época, eu ainda cursava o bacharelado em instrumento. Havia outros candidatos, acho que todos mais experientes que eu como regentes. Veja só, eu nunca havia estudado regência antes, mas cantei em coros de vários tipos desde muito cedo, e toquei em diferentes tipos de conjuntos. Até hoje entendo claramente como essa prática foi muito importante naquele teste, que foi meu início como regente coral. Aquela foi uma época de muito aprendizado, como um estágio remunerado. Foi uma sequência natural, pois cantar num coro e reger são atividades muito diferentes, porém correlatas. E, claro, tinha uma "orientadora" em casa, com quem podia trocar ideias e ouvir um monte de dicas. Muito das competências necessárias para um regente vêm, também, de conhecer por dentro o funcionamento de um coro.

Depois desse trabalho, não me afastei mais dessa área. No ano seguinte, comecei a trabalhar com dois coros na igreja em que frequentava: o coro masculino e o coro jovem. Situações muito diferentes do coro que tinha na empresa. Coros da igreja têm objetivos muito claros, cronogramas a seguir, participação voluntária. Em todos esses grupos, pude praticar não somente questões puramente musicais, mas também o aspecto humano do trabalho, relações com "chefes" e compreensão do coro como parte de uma organização maior. Principalmente, fui aprendendo, na prática, que a arte da regência não se desenvolve sozinha e que um regente não é todo-poderoso, intocável e soberano. Aos poucos, reger coro foi se tornando um mercado de trabalho mais natural para mim, um espaço dentro da música onde me sentia mais confortável.

EL. AO: O que te levou a seguir o percurso na regência coral?

EdL: Como comentei anteriormente, meu percurso não foi fruto de uma consciência messiânica, muitas vezes citada por muitos músicos que, ao comentar esse tema, usam frases do tipo: "não escolhi a música, mas a música me escolheu" ou "é a missão que a vida me deu".

Aos poucos, fui percebendo na regência coral um caminho profissional possível, e fui juntando peças. Apoio familiar, longa experiência na área, facilidade para lidar com pessoas (uma competência que deve ser aperfeiçoada continuamente), formação teórica (gosto sempre de lembrar que o estudo de contraponto foi um dos pilares mais importantes na minha formação), curiosidade e estudo foram forjando esse caminho. Como acontece com qualquer artista, vários fatores entram nessa escolha de carreira. Por um lado, existe o prazer, o talento, a competência e o "frio na barriga" quando se sobe ao palco, por exemplo. Mas por outro, há um pensamento mais pragmático: condições de trabalho, salário, planejamento etc. Todo artista, junto com seu amor pela arte, precisa se estabelecer de forma digna, social e financeiramente. Comento muito com meus alunos sobre o "dia 5", como uma metáfora da consciência que um músico deve ter para organizar o seu sustento. Se analisarmos friamente, percebemos que, na verdade, a atividade da regência coral não existe como profissão, a não ser por raríssimas exceções. Nesse sentido, é necessário para um regente empreender, encontrar caminhos, entender o "porquê" ao invés de buscar somente o "como". Sei que é uma ideia polêmica, mas considerá-la é um exercício muito útil para quem está entrando na área agora. Frederickson e Rooney (1990Frederickson, Jon e Rooney, James F. 1990. “How the Music Occupation Failed to Become a Profession”. International Review of the Aesthetics and Sociology of Music, Zagreb, v. 21, n. 2, p. 189-206.) se perguntam, no título de um artigo, "Como a ocupação em música falhou em se tornar uma profissão?"8 8 How the Music Occupation Failed to Become a Profession. . Pouquíssimos de nós, regentes, fazemos essa reflexão. Alguns chegam a ficar ofendidos com a questão proposta, mas raras vezes se põem a desenvolver argumentos que a contestem. Para quem se dedica ao mundo da arte profissionalmente, não raro é necessário até mesmo forjar esse percurso, criar um caminho próprio, para depois segui-lo.

EL. AO: Poderia nos falar sobre a Maestra Elza Lakschevitz (1933 - 2017), que, sem dúvida alguma, ocupa um lugar de honra na história da música coral brasileira? Como você enxerga o reflexo do trabalho dela no âmbito da prática coral e da regência coral em si?

EdL: Quando minha mãe faleceu, em 2017, em meio a muitas homenagens e postagens em redes sociais, minha esposa postou uma foto dela com minhas duas filhas, ainda crianças. A legenda dizia: “Para nós era só a Vovó Elza”. Essa frase explica um pouco uma dificuldade que tenho com a pergunta acima. O convívio familiar e pessoal muitas vezes torna a percepção da atividade profissional e artística de uma pessoa um pouco turva. Não obstante, tentarei, aqui, trazer algumas observações.

Primeiramente, era notável a importância que ela dava à sua preparação. Tratava sua prática musical com muita seriedade. Estava sempre estudando. Quando crianças, de vez em quando eu e meu irmão ouvíamos um alerta de minha avó: “Não a provoque hoje, porque é dia de concerto”, e aí a gente sabia que a coisa estava séria. Era uma musicista realmente muito acima da média, e sabia que isso não vinha exclusivamente do talento, mas principalmente do trabalho. Começou muito cedo a acompanhar os coros do meu avô Arthur, também regente coral. Ainda muito criança, ia aos cultos da noite na igreja, mas dormia no colo de minha avó, que a acordava somente nos momentos de acompanhar o coro. Mais tarde, foi medalha de ouro em piano e órgão na antiga Escola Nacional de Música (hoje Escola de Música da UFRJ), onde também se formou em composição e regência. Entendia a música como uma missão que exigia grande dedicação.

Recentemente, o André Cardoso (1967 -.)9 9 André Cardoso, Maestro da Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFRJ - ORSEM e Presidente da Academia Brasileira de Música. me mostrou a foto abaixo, da classe de composição do José Siqueira (1907 - 1985), na Escola de Música. Chama atenção o fato de ela ser a única mulher. Sem ser exatamente uma militante, por sua postura, competência e realizações, manteve uma atuação profissional em campos que eram muito difíceis para as mulheres. Nesse ponto, venceu inúmeros desafios, e sua atuação revestiu-se de grande pioneirismo.

No âmbito da música coral, atuou em algumas frentes, uma delas como regente de coros infantis e adultos. No trabalho com crianças, principalmente, eu realmente nunca vi alguém com sua capacidade, tanto na parte musical quanto no aspecto de liderança. Nunca a vi levantando a voz num ensaio. Cativava a atenção de todos sem fazer alarde. Dizia sempre que criança não é boba, mas também não é um pequeno adulto. Procurava sempre entender o mundo em que viviam.

Seus alunos cantam no coro, mas também vão à escola, assistem televisão, têm seus artistas favoritos, jogam bola etc. Temos que levar em consideração os efeitos desses fatores na vida deles. (LAKSCHEVITZ, 2006Lakschevitz, Elza. “Coro infantil”. In Lakschevitz, Eduardo (Org.). 2006. Ensaios: olhares sobre a música coral brasileira. Rio de Janeiro: Oficina Coral.)

Até hoje me pergunto como realizava aquele repertório para coro infantil. Além das peças mais tradicionais para coro a cappella, na ópera ou nas obras corais-sinfônicas, era muito acostumada com música contemporânea. Estreou várias obras brasileiras, por vezes de altíssima complexidade, muitas delas a ela dedicadas. Dificuldades de toda ordem, como número de vozes (lembro de uma peça para coro infantil a 8 vozes), intervalos dissonantes (hoje em dia muitas vezes até desaconselhados em manuais sobre repertório para coros infantis), escrita não-tradicional, polirritmia etc. O mesmo acontecia com seus coros adultos, onde transitava com muita competência, e com quem também estreou peças, e fez inúmeros concertos, turnês e gravações.

Figura 1:
José Siqueira (1907 - 1985) entre seus alunos da Classe de Composição na Escola Nacional de Música, com o quarteto da mesma instituição. Estão na foto, entre outros, Ricardo Tacuchian (1939 -.), Elza Lakschevitz (1933 - 2017), Roberto Ricardo Duarte (1941 -.), Odemar Brígido (1941 -.) e Jorge Antunes (1942 -.). A foto pertence ao Acervo José Siqueira que se encontra na Biblioteca da EM-UFRJ

Como regente, encarava com muita seriedade seu lugar no palco e a experiência que a música proporciona para cantores e ouvintes. Não admitia qualquer ação que denotasse falta de seriedade. Acho que a maior parte de seu trabalho era feita nos ensaios, muitas vezes o espaço da melhor produção musical. Alguns de seus coristas eram também regentes, que vinham cantar para aprender e tratavam aqueles coros como suas escolas. Às vezes vinha gente até de outros países para cantar em seus coros por alguns meses, com esse propósito. Exigia que seus cantores cantassem de cor, por razões expressivas - considerava importante o público poder ver o rosto dos cantores -, mas também, para se certificar de sua dedicação ao grupo.

No palco, comunicava muito com o olhar. Destacavam-se a sua segurança e economia de gestos, que quase não eram vistos pela plateia. O público, segundo ela, estava ali para assistir o coro, e não o regente. As relações entre regente e cantores não deveriam "descer do palco". Por essa razão, também jamais admitia dar notas no início de uma peça para que o coro as repetisse. Tinha um pequeno diapasão dourado que usava e cantava, muito discretamente, as notas que afinavam o coro. "A plateia não vai cantar junto", dizia.

Para ela, reger um coro, mais que dar instruções, era ouvir e cuidar de todos os detalhes. Um destes, por exemplo, era a escolha de repertório. Antes de trazer alguma peça para o coro, tudo era muito estudado, desde a própria análise da estrutura musical, passando pelo texto, até a ordem do programa (que levava em consideração o texto, o estilo e a tonalidade de cada peça). No caso dos coros infantis, o cuidado com o significado dos textos era ainda maior. O sentido educativo do trabalho do coro era sempre uma prioridade. Por fim, mesmo com uma carreira muito consolidada, jamais a ouvi dizendo que "isso eu não vou ouvir porque já sei". Qualquer situação era momento de melhorar, de se aprimorar. Creio que este é um grande exemplo que ela deixou.

Infelizmente não pudemos trocar experiências por um tempo longo. Ela foi acometida pelo Mal de Alzheimer e viveu um processo degenerativo muito doloroso, que durou cerca de 15 anos. De certa forma, contradisse muito do que se falava sobre a doença àquela época, pois era muitíssimo ativa mentalmente, dominava diversos aspectos musicais, falava mais de um idioma, ou seja, estava fora das projeções e das explicações mais comuns à época consideradas como causadoras daquela doença.

EL. AO: Quais as maiores inspirações, ensinamentos e ações da Maestra Elza Lakschevitz que carregas consigo, e tenta retransmitir aos seus alunos?

EdL: Meu avô Arthur tinha uma postura muitíssimo rígida quando o assunto era a prática coral. Entendo que as diferenças entre sua geração e a geração de minha mãe no âmbito do fazer musical não eram tão significativas, ao passo que uma comparação entre as condições, propósitos e questões práticas do trabalho de minha mãe e do meu apontará muitos pontos de diferença. Somos de gerações distintas, mas apesar disso é possível perceber pontos comuns entre nós três, aos quais eu fui exposto por convivência próxima. Creio que essa pergunta se mistura um pouco com a próxima, que me permitirei responder de forma mais objetiva.

EL. AO: Se retornamos no tempo, na primeira vez que esteve dirigindo um grupo, que memórias você tem desse momento? E o que o Maestro Eduardo Lakschevitz de hoje diria para o jovem maestro Eduardo Lakschevitz desse dia?

EdL: Seguem abaixo ideias que fui acumulando com o tempo, seja pela experiência em coros, pelo convívio com minha mãe (a questão anterior), por conversas com colegas e professores, pela audição de concertos e gravações etc. Não necessariamente remontam à primeira vez, ou ao início de minha atividade na regência coral, mas sim a essa (já longa) caminhada. Eu “me diria" o seguinte:

  • Tenha sempre em mente que você é parte de uma engrenagem, de uma comunidade, e que há muitos fatores envolvidos em seu funcionamento. Ser regente não é ser o centro das atenções, por mais que isso seja sedutor. O trabalho do regente é o de um servidor, alguém cuja função é ser referência para um fazer musical coletivo.

  • Saiba que há sempre espaço para aprender e melhorar, por isso nunca pare de estudar.

  • Tenha interesse por outras áreas e possibilidades. O regente não se faz somente na atividade da regência, mas sim na sua visão de mundo. A experiência séria e intensa em áreas musicais diferentes, como também em áreas não necessariamente conectadas à música, são fundamentais para seu desenvolvimento como regente. Certa vez ouvi de um dos regentes mais requisitados do mundo, que sua atuação na música coral começou por um interesse nas áreas da psicologia e de letras, e que viu na prática da regência coral uma grande oportunidade de juntar essas áreas.

  • Mantenha em mente que o fazer musical que você dirige é realizado pelas pessoas envolvidas. É o que vale mais! O ator principal na atividade coral é o cantor. Regente, público, compositor, arranjador, preparador vocal e gestor também têm seu lugar, mas o cantor é quem mais importa, pois é quem dá vida ao som produzido pelo grupo. E o ensaio é o maior palco para tudo isso. Não se trata apenas de um momento de preparação para um concerto, mas sim do lugar onde a música flui em seu maior potencial. É o momento da convivência, da construção coletiva.

  • Aprenda desde cedo a se valorizar, a saber o lugar e a importância do seu trabalho para sua comunidade. Saiba argumentar a seu favor, lembrando-se de que na maioria das vezes, seus gestores, líderes e superiores hierárquicos não são da área artística e não têm o seu conhecimento sobre o assunto. Muitas vezes a sociedade vai te colocar para baixo, pois considera essa uma profissão supérflua, desimportante e, por isso, essa clareza de argumentação é fundamental.

  • Seja ético. Nosso trabalho pressupõe certa liberdade de atuação e de interpretação, o que nos insta a ser sempre cuidadosos com nossas ações em relação aos outros. Ao trabalhar em conjunto, especialmente na regência, saiba ouvir e compreender o conjunto. Lidere pelo argumento, não pela força.

  • Procure se planejar. Músicos, de certa forma, têm uma abordagem reativa às possibilidades de atuação. "Pintou um trabalho" é um exemplo de expressão que ilustra esse fato. Pensar em plano de carreira não é comum em nosso meio, mas é algo que facilitaria bastante nosso desenvolvimento profissional.

  • Seja claro nas suas informações, tanto artisticamente quanto no âmbito das relações profissionais. Isso vale para informações enviadas gestualmente, no palco, como para instruções durante ensaios, e se refletirá na mensagem que seu coro transmite à plateia.

  • Quando você resolver fazer alguma coisa, entregue-se de corpo e alma.

EL. AO: Na literatura da regência é possível identificar pontos de vista divergentes sobre o ensino-aprendizagem da regência: existe um discurso que afirma que a regência não pode ser ensinada (“não se forma o regente, se nasce regente”); por outro lado, existe um discurso que afirma que com uma determinada estruturação metodológica, a regência pode sim ser ensinada. A partir dessa perspectiva, o que Eduardo Lakschevitz, enquanto regente e professor, diria?

EdL: Não acredito na primeira afirmação. Regente se torna regente, não nasce assim. Pessoas podem ter competências mais ou menos desenvolvidas, maior ou menor facilidade ou talento, mas isso somente não é determinante no resultado de seu trabalho. É claro que há pessoas com talento musical mais aflorado, que têm uma inclinação mais natural para lidar com outras pessoas e para fazer suas ideias aparecerem, pessoas com maior capacidade de liderança, com maior facilidade de ouvir, de tocar, ou mesmo de entender um discurso musical. Mas o fator principal no ofício do regente é sua preparação, o que não acontece de uma hora para outra e não é linear, ou seja, não trata apenas do assunto "regência" (que muitas vezes é confundido simplesmente com a parte gestual do trabalho). A preparação do regente é ampla e contínua. Por isso, creio que há um lado de aprendizado fundamental. Quando se junta as duas coisas, então, é a mistura ideal. Mas talento puro não vai a lugar nenhum, ao mesmo tempo em que somente o esforço e a aprendizagem podem até ir mais longe, mas estes sem o talento (inato ou desenvolvido) também têm um limite.

Todavia, o mundo da regência tem uma certa aura, um mistério que o cerca, e, por isso, torna-se um ambiente propício para o florescimento dessa ideia do talento inato e do dom divino acima de tudo. Como lembra Stephen Cotrell (2006Cotrell, Stephen. 2006. Music, Time, and Dance in Orchestral Performance: The Conductor as ShamanThe conductor as a shaman. Twentieth-century music, Cambridge, 3/1, p. 73-96.), num artigo onde compara o regente a um xamã, a posição de um regente é muito sedutora. Via de regra está de costas para o público, não produz sons, mas parece (muitas vezes age como) o "dono" da situação. Nessas condições, torna-se fácil para uma pessoa confiar em seu talento inato mais do que deveria. Quando alguém julga que já "nasceu regente" e confia puramente nesse talento, com certeza não será um bom artista.

EL. AO: Em síntese curricular você fala que “Desenvolve pesquisas voltadas para a música comunitária, com ênfase em coros de empresa e na produção musical em ambientes corporativos”. Que resultados as suas pesquisas evidenciam? E quais resultados poderão ser transpostos ao ensino-aprendizagem do regente coral?

EdL: Esse é um dos meus assuntos favoritos. Trabalhei por mais de 30 anos como regente de coros de empresa, e sempre fui um observador atento dos aspectos relativos à gestão de processos e às relações humanas nas empresas por onde passei. Aos poucos, fui percebendo que os mecanismos de funcionamento do fazer musical coletivo (vocal ou instrumental) são preciosos como experiências de desenvolvimento de pessoas e, consequentemente, também para as instituições onde atuam.

Nesses coros, busquei sempre a melhor aproximação entre o projeto musical e os ideais daquela empresa, muitas vezes descritos em sua missão, visão e valores. No processo, eu sugeria a participação mais ampla possível dos cantores, evitando colocá-los na posição exclusivamente de cumpridores de ordens do regente. Por vezes, chegavam a participar da construção do repertório, da apresentação de concertos e até da liderança musical do grupo. Sei que é uma abordagem incomum, e até polêmica, mas através desse trabalho com coros de empresas fui construindo uma convicção muito clara sobre os cantores serem a parte central da produção coral.

No Brasil, a partir da década de 1960, coros de empresa foram muito comuns, em instituições dos mais diferentes setores da economia. Durante muito tempo foi uma grande opção de trabalho para regentes corais. Não obstante, na maior parte dos casos, o coro de empresa era tido apenas como mais uma fonte de renda para muitos regentes, que o consideravam um trabalho de menor valor artístico. Ao mesmo tempo, as empresas via de regra tratavam o cantar junto mais como um benefício de entretenimento, de bem-estar para seus funcionários. "Quem canta seus males espanta", por exemplo, foi uma frase muito usada na descrição desses projetos.

Creio que uma das razões pelas quais considero que tive bastante sucesso nessa frente de trabalho foi a compreensão e o argumento de que o coro, numa instituição, não é somente um evento fora da rotina, para alegrar o dia de seus participantes. Em cada empresa, um coro pode - ou deveria - ocupar um espaço mais central, mas isso só se dará a partir do momento em que um regente compreender as engrenagens e o funcionamento da empresa como um todo, e não somente a parte musical de seu trabalho. Trata-se de uma questão válida para todo o tipo de instituição, mas que dificilmente é prioritária para muitos regentes. Mais ainda, esse trabalho me levou a outros projetos, onde até hoje atuo como professor e facilitador de experiências musicais - às vezes em eventos de curtíssima duração - relacionados a diversas áreas, como gestão de projetos, desenvolvimento de competências, processos e comunicação.

Ao me colocar nesse lugar, entre esses dois mundos, me sinto como um tradutor. Por um olhar mais superficial, podem até ser mundos muito diferentes, em seu pensamento, relação com contratos, vestimenta, situação social, aproveitamento do tempo, procedimentos técnicos e significado de sucesso. Mas se buscarmos prismas de observação diferentes, encontramos semelhanças que normalmente não são realçadas. Ao transitar entre o mundo artístico e o corporativo, aparentemente muito distantes, é possível notar muitas similitudes, principalmente pela ótica das relações humanas. Nós, músicos, somos treinados - até mesmo condicionados - a pensar quase que exclusivamente em nosso produto final, e a tratar os processos prioritariamente como uma preparação desse produto, mas nos esquecemos que os processos (de ensaio, principalmente), são exemplos potentes de convivência humana, além de serem a parte que mais ocupa o tempo da produção musical.

Cantar coletivamente é uma atividade que desperta, desenvolve e nos conscientiza sobre vários aspectos do mundo contemporâneo, que são hoje buscados pela educação, pelo mundo dos negócios, setor privado ou público, ou mesmo o terceiro setor. A área de recursos humanos reflete constantemente sobre o tema das competências, por exemplo. É um assunto muito vasto, que transcende o escopo desta nossa conversa, mas através da literatura sobre o assunto percebe-se a existência de competências valorizadas por líderes de organizações atualmente que são de ordem humana, sobre as ações dos indivíduos num mundo contemporâneo instável e incerto. Ao cantar junto, essas competências estão sendo trabalhadas, mesmo que os cantores não estejam falando desse assunto objetivamente. Temas como trabalho em equipe, liderança, flexibilidade, visão sistêmica e mudança, por exemplo, são tratados constantemente na música coral. Por isso, reforço, sempre que tenho oportunidade, que o fazer musical coletivo é a melhor atividade que existe na sociedade contemporânea. E nessa busca por olhares voltados mais aos processos que somente aos nossos produtos, o conceito de Mundos Artísticos de Howard Becker (1982Becker, Howard. 1982. Art Worlds. Berkeley: University of California Press.) é sempre uma grande inspiração. Através do auxílio de olhares como os dele, percebe-se que as competências, comportamentos e experiências constantes nessa atividade musical são as mesmas do mundo das organizações, não obstante a grande diferença entre as duas atividades.

Este é, também, um assunto que me remete ao incômodo que sinto com o lugar que o fazer musical ocupa na sociedade. Com frequência é uma atividade tratada como se fosse a sobremesa, ou seja, se estiver lá, é um grande prazer, a vida fica mais doce; mas se não for servida, ainda assim ninguém morre de fome. Meu colega de PROEMUS10 10 Programa de Mestrado Profissional em Ensino das Práticas Musicais - UNIRIO. , Afonso Claudio Figueiredo11 11 Afonso Claudio Segundo de Figueiredo, professor da ECO-UFRJ e do PROEMUS-UNIRIO. , diz que a arte é fundamental para a construção da identidade de um povo, mas ao mesmo tempo esse povo nem sempre acha que precisa pagar por quem a faz acontecer. Como músicos, para além da excelência artística, nos é fundamental desenvolver argumentos que sustentem a importância do que fazemos em nossas comunidades. Tenho conversado com meus alunos sobre tirar a atividade coral da coluna "despesas" e colocá-la na coluna "investimentos" no planejamento das instituições. Não é uma tarefa fácil, mas a reputo fundamental no trabalho do regente coral contemporâneo.

EL. AO: Sabemos que editou diversas obras da música sacra brasileira. Que desafios encontrou ao editar essas obras, e qual foi a mais desafiadora?

EdL: Em 1993, eu retornei do Mestrado nos EUA, onde estudei Regência Coral com o Prof. Eph Ehly (1936 -.), na UMKC. Foi um período em que minha vida mudou completamente, em que vi um horizonte de novas possibilidades se descortinar à minha frente. Quando lá estive, pude aprender um pouco sobre o funcionamento do mercado editorial do mundo coral norte-americano. Tive contato com editoras de vários tipos. Aprendi a usar o Finale12 12 Software de edição de partituras produzido pela MakeMusic. , que à época era o padrão dessa indústria. Participei de muitas gravações promovidas por editoras. Conheci compositores, donos de editoras pequenas e pessoas que trabalhavam nas casas maiores. Me chamava atenção a falta de uma editora no Brasil especializada em música coral, que tivesse um catálogo de peças disponível para regentes e professores. Em 1993, quando voltei, decidi encarar essa empreitada. Criei a Oficina Coral do Rio de Janeiro e comecei a editar música, inicialmente em duas séries, centradas na publicação de música sacra brasileira. Mas nessa vida a gente acerta e erra. Nesse caso, o prazer e a realização que sinto neste trabalho falaram alto. Como dizem, a emoção ganhou da razão, uma dinâmica que normalmente não resulta bem-sucedida nos empreendimentos comerciais. Não levei em consideração que esse mercado de octavos13 13 Termo da língua inglesa utilizado para designar peças corais publicadas individualmente. funciona muito bem nos EUA por uma questão cultural. Coros habitualmente compram material editado para regentes e todos os cantores, o que movimenta a atividade de compositores e editores. Há uma cultura estabelecida de respeito aos direitos autorais, bem como um sistema de coros escolares muito grande, permeado por festivais, congressos, cursos, workshops e igrejas. Percebe-se, então, que a dificuldade de se encontrar repertório, uma constante reclamação de regentes no Brasil, não é um evento simples, pois é relacionada a um processo muito maior do qual a música coral é parte. Por aqui, os coros têm motivações e formações muito diversas, a notação musical nem sempre é uma ferramenta empregada, e as cópias reprográficas sempre foram utilizadas normalmente. Temos uma cultura musical, coral, social e financeira muito particular.

Um outro aspecto desse projeto, até hoje de grande aprendizado para mim, é a importância do entendimento do outro. À época, eu dirigia um coro no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, chamado Kolina (uma referência à localização geográfica dessa escola, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro). Era um grupo formado por cantores muito experientes, donos de vozes preparadas, e muito flexíveis em termos de estilo. Naturalmente, o repertório que trabalhava com eles era de grande dificuldade técnica. Eu mesmo escrevia boa parte das peças, arranjando temas do contexto da Igreja Batista, mas com estruturas muito complexas, desafios que eram sempre bem recebidos pelo grupo. No projeto da editora, contemporâneo ao do Kolina, publiquei várias peças desse repertório, imaginando que seriam sucesso de vendas, já que eu havia tido essa experiência tão bem-sucedida com o grupo. Obviamente eu estava enganado. Nessa época, comecei a entender a complexidade da diversificação do canto coral brasileiro, assunto que me fascina até hoje.

Há, também, uma questão sobre o que significa o termo "música sacra". Estamos falando de uma música funcional, para ser usada em diferentes liturgias (e me refiro aqui a qualquer religião), ou de uma música que contenha algum aspecto religioso, mas com um propósito de apresentação artística? Acho que são dois campos muito distintos. É uma lição que aprendemos ao estudar a história da música, com a qual me deparei na prática. Com o Kolina, cantávamos obras de execução muito difícil, e tínhamos prazer em nossa capacidade técnica e artística para fazê-lo. Contudo, esse repertório era todo baseado em peças da liturgia protestante. Assim, pelo tema e textos, ficávamos um pouco deslocados de concertos e apresentações em espaços seculares, enquanto pelo enfoque na parte técnica não funcionávamos muito bem dentro das liturgias. Não era fácil encontrar um espaço de atuação para o grupo. Em outras palavras, como regentes, é sempre importante ponderarmos sobre as funções da música que fazemos com nossos grupos. Há muitos fatores envolvidos nessas escolhas, que vão além de nosso gosto e capacidade.

EL. AO: Desde 2007 você atua como Coordenador Pedagógico dos Painéis de Regência Coral da FUNARTE. Como é pensada a estrutura pedagógica dos painéis? E como você vê o papel dos cursos de curta duração na formação dos futuros regentes e daqueles que já atuam profissionalmente com a regência coral?

EdL: O Painel FUNARTE foi um projeto pioneiro. Iniciou-se na década de 1980, sob a liderança de minha mãe. Foi um evento realmente marcante na área, que reunia, anualmente, em alguma cidade brasileira, regentes vindos de todo o país. No início, essas pessoas nem sequer se conheciam, apesar de militarem na mesma prática artística. Foi o começo de um diagnóstico, em âmbito nacional, da atividade coral no Brasil. Procurava-se conhecer trabalhos dos mais diversos tipos de coros e entender suas particularidades: coro universitário, eclesiástico, escolar, de empresa, comunitários etc.

Era parte de um grande esforço de fomento da atividade coral brasileira. Além do Painel, o projeto Villa-Lobos da FUNARTE promovia a composição de música brasileira para coro, através de concursos e encomendas que resultaram em séries publicadas. Havia, ainda, muitas outras ações, de formação de regentes e professores, projetos de reciclagem e diversos cursos espalhados por todas as regiões brasileiras. Era uma época em que eu ainda não atuava como regente e, por isso, não frequentei os Painéis. O que conheço vem de relatos dos que participaram desses eventos. Os momentos de maior efervescência do Projeto Villa-Lobos foram até o início dos anos 1990, quando a FUNARTE foi extinta pelo Governo Collor.

Já em 2007, a convite do saudoso Flávio Silva (1939 - 2019) e da querida Maria José Queiróz, coordenei uma nova etapa desse projeto. Já havia se passado um bom tempo, e a atividade coral no Brasil havia se tornado muito mais diversa. Não havia mais tanta disponibilidade para as viagens de regentes. A internet já era uma realidade e ocupava seu espaço de comunicação sem muitos deslocamentos físicos. Optamos, então, por realizar os Painéis em formato de cursos separados, em diferentes cidades, contemplando todas as regiões do Brasil, convidando professores de vários estados e diferentes especialidades. Cada encontro era uma grande surpresa, pois o público era muito diferente. Havia sempre uma discussão sobre a atividade do regente e um momento de cantoria, de montagem de repertório. Chamava atenção a diversidade de formação dos regentes. Participavam dos Painéis desde aqueles com muita experiência até os mais iniciantes, com trabalhos de coros com propostas muito variadas. Claro que não podemos nos iludir ao pensar que um curso de uma semana será suficiente para formar um regente e nem que um regente já experiente irá ouvir muitas novidades. Mas os relatos que recebemos durante esses anos mostram que eventos de curta duração são fundamentais para a promoção e divulgação dessa atividade no Brasil.

O projeto dos Painéis foi retomado em 2022, organizado pela FUNARTE em conjunto com a UFRJ. Continua com o formato de eventos em diferentes cidades, para onde dois professores são enviados por uma semana. É coordenado por Maria José Chevitarese14 14 Maria José Chevitarese, professora da UFRJ, regente do Coro Infantil da UFRJ e do Brasil Ensemble. , profunda conhecedora do projeto desde sua primeira edição e grande entusiasta da música coral brasileira.

EL. AO: Quais elementos você considera cruciais na formação de um regente coral? E como deveriam ser organizados os diversos conteúdos e habilidades a serem explorados nessa formação?

EdL: A formação de um regente deveria ser posterior à sua formação em música. Deveria vir depois da experiência como músico, da prática de um instrumento e do contato com a história da música, a harmonia, o contraponto e a análise musical. (Me parece quase um pleonasmo dizer que um regente coral deve ser eficiente na leitura musical, mas tenho visto, até com certa frequência, casos que contradizem essa ideia. Esta é uma parte inegociável na formação do regente.) A frase "o melhor líder é, também, o melhor liderado" faz muito sentido para mim, e essa ideia transcende a área da regência. Há uma enorme variedade de livros, vídeos e cursos por aí que ensinam "como ser um bom líder", ao passo em que nunca se vê títulos do tipo "aprenda a seguir". Como disse acima, o trabalho do regente tem uma certa aura, um destaque que chama a atenção de todos. Por isso, muitas vezes as pessoas se esquecem do processo formativo, longo e cansativo, pensando diretamente no produto final, no seu sonho. A formação do regente é demorada, exige maturação e compreensão do métier. A parte gestual, muitas vezes considerada a quintessência desse trabalho, é somente a ponta do iceberg.

Hoje em dia, o significado do termo canto coral (e até certo ponto a função do regente coral) é muitíssimo vasto. Há coros de todos os tipos, com os mais variados propósitos e formas de operação. Mas não existe um "Conselho Nacional de Regência Coral" que determina os requisitos básicos para que alguém exerça tal função, e provavelmente nunca existirá, pela própria natureza da atividade artística. Destarte, torna-se espinhosa a tarefa de sugerir um só caminho, uma hierarquização de conteúdos e habilidades na formação de um regente. Antes de mais nada, creio que há que se determinar quais as competências necessárias para a atividade do regente, para então se conceber um caminho pedagógico.

Durante o doutorado, pesquisei muitos programas e ementas de cursos de regência coral em universidades brasileiras e percebi pouca contextualização com a atividade coral contemporânea naqueles documentos. De certa forma, há uma repetição de formatos e objetivos presentes em tratados do século XIX, com enfoque na parte gestual. As muitas ramificações do cantar junto no mundo contemporâneo abrem um leque de ricas possibilidades expressivas, mas, ao mesmo tempo, exigem que pensemos em formas pedagógicas ao mesmo tempo eficazes e contextualizadas. Este ainda é um grande desafio.

EL. AO: Coral versus orquestral: você considera-os como ramos segregados na formação do regente?

EdL: O saudoso Marcos Leite (1953 - 2002), sempre espirituoso, dizia que músicos e atores "frequentavam enfermarias diferentes". Muito habituado a lidar com ambos, Marcos entendia bem as diferenças de modus operandi, de jeitos de lidar com o trabalho, com o tempo, com a preparação, com o sucesso etc. Acho que a anedota também pode dizer respeito a cantores e instrumentistas. São ramos diferentes, mas complementares. O principal ponto em comum é o fato de o regente ser a referência de um grupo. Não obstante, a compreensão do funcionamento do conjunto e de suas idiossincrasias é determinante para a qualidade de sua preparação.

Há distinções práticas e musicais. O músico da orquestra percebe o regente de forma diferente do cantor. O repertório orquestral é formado por obras mais longas, o instrumentista tem acesso somente à sua parte e não está sempre em ação, ou seja, é mais dependente da referência de tempo e da clareza das entradas do regente. A distribuição no espaço físico e o olhar do instrumentista para a sua estante influenciam o tamanho do gesto. Há também uma liturgia própria na orquestra, caminhos mais formais por onde as informações transitam. Como é um grupo maior, as ações do regente geram consequências mais fortes.

Por outro lado, a música coral é guiada pelo texto, e é aí que reside seu poder: a capacidade de entregar uma mensagem de palavras com o reforço de notas e ritmos. Cantores geralmente recebem partituras já com todas as vozes (a grade) e têm mais artifícios para navegá-las. Considero a dicção uma das ferramentas mais importantes na expressão da música coral. Não há um ensaio em que eu deixe de falar nesse assunto. É o melhor caminho para a compreensão do sentido melódico de um trecho, além da organização fraseológica de uma peça, o que implica numa concepção de gesto diferente daquele usado na música instrumental. Parece algo muito básico, mas compreender bem a proporção de vogais e consoantes e seu tratamento em cada momento de uma peça é uma ferramenta expressiva poderosíssima porque trata da clareza do discurso, algo que vale também para a regência orquestral. O Maestro Pablo Casals (1876 - 1973), por exemplo, falava em "dicção para instrumentistas de cordas" (BLUM, 1977Blum, David. 1977. Casals and the art of interpretation. Los Angeles: University of Califórnia Press.), o que só reforça a ideia de complementaridade entre essas duas áreas. Por isso, creio que a preparação do regente deva considerar essas diferenças. Como disse antes, é primordial entender quais as competências mais necessárias e qual o contexto para o qual um regente está se preparando.

Um colega, também regente, diz que todo bom cantor precisa ter tocado em orquestra para aprender a contar, e todo bom instrumentista precisa ter cantado em coro para aprender o sentido de fraseado musical. É ainda um outro jeito de reforçar a interdependência dessas práticas.

EL. AO: Como você estrutura sua preparação técnica para reger e interpretar uma obra? E como são estruturados os seus ensaios?

EdL: Nosso trabalho pressupõe uma preparação de fundamentos musicais, ligada ao conhecimento da técnica vocal, harmonia e contraponto, à expressão e comunicação gestual, bem como ao domínio de instrumento harmônico. O estudo de questões sobre o comportamento humano, que forja um trabalho de liderança eficaz, também deveria ser parte importante desse processo. Porém, por esta ser uma reflexão de ordem não-musical, muitas vezes não recebe a devida atenção.

Com o tempo e a experiência, creio que o foco da preparação vai mudando. O tempo dedicado a esses fundamentos diminui, o que é natural. Tendemos a voltar nossa atenção a detalhes mais específicos, sejam de práticas interpretativas ou aspectos educacionais, por exemplo. Mas há questões sempre presentes, como o estudo do repertório que, além do conhecimento da própria peça, de se saber o que acontece, quando e onde, pressupõe, também, aspectos estilísticos. Toda obra musical foi pensada com certos ideais expressivos, que podemos compreender de acordo com o período histórico, o lugar de onde vem, a história do compositor, ou mesmo uma situação particular para a qual foi composta.

Posso dizer que atualmente minha preparação técnica é primordialmente relacionada à estruturação dos ensaios. Na regência coral, por uma série de questões, que vão desde a duração de peças e ensaios, a comunhão entre música e texto e a fluência de leitura musical, a preparação técnica do regente é menos dependente da parte gestual. Muitas vezes um trabalho bem realizado nos ensaios diminui a dependência do grupo no gesto do regente. Isso traz autonomia para o cantor, e facilita a comunicação entre coro e público. Ao tratar do tema ensaio coral, meu dileto professor Eph Ehly insistia em duas palavras: realização e desafio. "Seu corista deve sair de um ensaio realizado pelo trabalho bem-feito, mas sempre desafiado a fazer melhor da próxima vez", dizia.

Ao me aprontar para um trabalho, sempre levo em conta o coro que irei reger, suas possibilidades musicais e práticas. Coros são muito diferentes uns dos outros, e isso vale até mesmo para os grupos dos quais você mesmo é o regente. Sempre que possível, procuro conhecer os grupos da melhor forma possível, o que considero, também, parte de minha preparação. Ultimamente minha atividade como compositor de obras corais se intensificou, e nela percebo toda essa preparação como regente constantemente se manifestando.

Uma curiosidade. Há muito tempo percebi que, quando tenho algum pesadelo à noite (o que nem é muito frequente), quase sempre a cena gira em torno de eu estar despreparado para reger um ensaio, um concerto ou para dar uma aula. E aí eu acordo sobressaltado. Acho que esse assunto, a preparação do regente, é mesmo uma de minhas maiores preocupações na vida.

EL. AO: Com a sua experiência enquanto performer e professor, você acha ser possível conciliar a vida acadêmica e artística? Que estratégias você utiliza para equilibrar ambas as realidades?

EdL: Conciliar pode significar coisas diferentes. Uma delas é ter uma vida acadêmica ligada à universidade e uma atividade artística paralela, associada a diferentes instituições, como teatros, centros culturais, orquestras etc. A outra é desenvolver uma atividade artística dentro da própria universidade, onde a dedicação à pesquisa e às publicações são prioridade. Ambas são difíceis, pois a primeira esbarra na questão do tempo e a segunda no objetivo. A preparação do regente para uma carreira musical em alto nível demanda tempo, dedicação e estudos muito específicos, o que de certa forma acaba atrapalhando as obrigações acadêmicas. Por outro lado, ao trazer essa proposta de carreira para a universidade, o artista fica sujeito a métricas e parâmetros de avaliação não necessariamente adequados ao trabalho que produz15 15 A Pesquisa Artística vem crescendo no Brasil nos últimos anos e trata exatamente nas fronteiras (ou interseções) entre o trabalho artístico e os métodos de investigação comuns no meio acadêmico. Ver: Daniel Cerqueira (2021). . Nattiez (2005Nattiez, Jean Jaques. 2005. “O desconforto da musicologia”. Per Musi, Belo Horizonte, n.11, p 5-18, jan - jun.) menciona a questão estética como um exemplo de problema no tratamento da Musicologia como ciência, apresentando um problema semelhante, numa área correlata.

Porque a musicologia trata de uma arte e, ainda que o conceito de obra de arte, no sentido ocidental do termo, não seja adequado, como no caso da etnomusicologia, os julgamentos de valor - invocando uma noção indefinida de Belo musical ou de autenticidade - não estão ausentes dele.

Sinto falta, no Brasil, de espaços estatais de produção artística em alto nível, que possam viabilizar um sistema de contratações e residências para o fomento da atividade em criação e performance musical, privilegiando métricas próprias de avaliação de trabalhos artísticos. Há pouquíssimas instituições como essas, que ficam sempre à mercê de trocas de governo, pois a cultura nunca é tratada como política de estado. A FUNARTE (que felizmente está retomando muitas atividades que foram interrompidas nos últimos anos) é um exemplo de instituição valiosíssima, que deveria gozar de maior prestígio e ter sua atuação reforçada, pela centralidade de suas atividades para a sociedade brasileira.

É uma situação realmente difícil. No meu caso, esse equilíbrio veio da compreensão de eu ser muito mais um educador que um performer. Assim, pude "escolher um lado" naturalmente. Mesmo que no passado algumas de minhas atividades tenham me colocado num ponto de disjunção entre a academia e a prática musical, hoje tenho tido sucesso em trazê-las para a universidade, especialmente em discussões relacionadas ao mercado de trabalho e à construção de carreira dos jovens músicos.

EL. AO: Para finalizar, você poderia dizer aos aspirantes da regência, especialmente aos alunos mais jovens, uma palavra de encorajamento sobre a carreira musical na regência?

EdL: Jamais apareça para um ensaio sem estar devidamente preparado. Sua função principal é ser referência, e isso exige muito cuidado. É, também, um sinal de respeito para com as pessoas que naquele momento seguem sua liderança.

Desconfie dos elogios, pois eles podem ser enganosos. Dependem de quem vem, de onde vem, e com que propósito. Em nosso trabalho, esse é um fato ainda mais sensível, pois há um componente estético forte no que fazemos. Por isso, nunca pare de aprender. Saiba ouvir, observar e criticar para construir sua filosofia sobre o assunto. Você será reconhecido pela qualidade de seus argumentos. Mas não se espante se estes forem mudando com o passar do tempo. Isso significa maturidade.

Por fim, lembre-se de que nosso trabalho é um grande privilégio. Agradeça sempre por isso.

3. Referências

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    » https://doi.org/https://doi.org/10.5965/2525530408022023e0208
  • Lima, Erickinson Bezerra de., & Barros, Klênio. 2021. Diálogos desclassificados: a música e a voz por trás da teoria da desclassificação, segundo passo. Orfeu, 6(1). https://doi.org/10.5965/2525530406012021e0019.
    » https://doi.org/https://doi.org/10.5965/2525530406012021e0019
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  • Scherchen, Hermann. 1989. Handbook of conducting New York: Oxford.
  • Schuller, Gunther. 1997. The compleat conductor New York: Oxford University Press.
  • 1
    Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Estímulo ao Emprego Científico Individual (2022.02280.CEECIND/CP1720/CT0038) e da Unidade de I&D CIDTFF (projetos UIDB/00194/2020 e UIDP/00194/2020).
  • 2
    Exemplificamos em artigo publicado (Lima; Barros, 2021Lima, Erickinson Bezerra de., & Barros, Klênio. 2021. Diálogos desclassificados: a música e a voz por trás da teoria da desclassificação, segundo passo. Orfeu, 6(1). https://doi.org/10.5965/2525530406012021e0019.
    https://doi.org/https://doi.org/10.5965/...
    ) que a realidade brasileira do regente não está resumida apenas na performance musical.
  • 3
    Autores como G. Schuller(1997Schuller, Gunther. 1997. The compleat conductor. New York: Oxford University Press.), M. Rudolf(1994Rudolf, Max. 1994. The grammar of conducting: a comprehensive guide to baton technique and interpretation. California: Schirmer, Thomson Learning.), H. Farberman(1997Farberman, Harold. 1997. The art of conducting technique: a new perspective. Florida: Warner Bros.) e H. Scherchen(1989Scherchen, Hermann. 1989. Handbook of conducting. New York: Oxford.), afirmam que aspectos musicais e extramusicais são estruturas presentes na formação de um regente.
  • 4
    Após a conclusão de um estudo exploratório conduzido e cujos resultados foram publicados pelos autores desta abordagem, torna-se evidente que a produção científica nos primeiros 20 anos no campo da regência se concentra predominantemente no viés da preparação, interpretação e execução de obras musicais. Observa-se, por conseguinte, a escassez de perspectivas mais aprofundadas acerca das particularidades do cotidiano da regência. As áreas menos exploradas, notadamente, envolvem a preparação e organização de ensaios, o ensino da regência e a seleção de repertório. A análise revela uma lacuna significativa no tratamento acadêmico desses aspectos mais práticos e cotidianos da regência, que, por sua vez, desempenham papéis cruciais no processo artístico e educacional. Os estudos existentes tendem a se concentrar majoritariamente nas fases mais tradicionais e formais do processo de regência, negligenciando a riqueza de nuances presentes nos bastidores do fazer musical. No entanto, a valorização e compreensão desses aspectos menos explorados não apenas enriquecem o entendimento global da regência, mas também oferecem insights valiosos para a formação e desenvolvimento de regentes. O cotidiano do regente, permeado por desafios práticos e decisões pedagógicas, é uma dimensão intrínseca ao seu papel, influenciando diretamente a qualidade e a inovação no cenário musical. É crucial, portanto, que futuras pesquisas no campo da regência busquem preencher essa lacuna, abordando de maneira mais detalhada e holística as diversas facetas que compõem a prática da regência além do momento da performance. Dessa forma, será possível construir um corpus de conhecimento mais abrangente e aplicável, contribuindo para a evolução da disciplina e enriquecendo a formação de regentes em todos os níveis de expertise (Lima et al, 2023Lima, Erickinson Bezerra de., Oliveira, André Luiz Muniz., Souza, David., & Almeida, Victor. .2023. Estado da Arte: a produção científica brasileira nos primeiros 20 anos do séc. XXI no campo da regência. Orfeu, 8(2), e0208. https://doi.org/10.5965/2525530408022023e0208.
    https://doi.org/https://doi.org/10.5965/...
    ).
  • 5
    A presente entrevista será conduzida na língua vernácula do entrevistado, o português brasileiro. A intenção subjacente é preservar integralmente a voz do entrevistado, evitando qualquer possibilidade de distorção que uma tradução para outras línguas, como inglês, espanhol ou francês, poderia acarretar. Tal opção visa assegurar a fidelidade e a integridade do contexto que estamos prestes a compartilhar. Ao optarmos por manter a entrevista no idioma original do entrevistado, pretendemos não apenas respeitar sua expressão linguística única, mas também garantir que nuances, sutilezas e detalhes intrínsecos à língua portuguesa sejam devidamente preservados. Este cuidado visa, portanto, a manutenção da riqueza e autenticidade do conteúdo que será apresentado.
  • 6
    Entramos em diálogo com a perspectiva da Teoria Ator-Rede de Bruno Latour (2012Latour, Bruno. 2012. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador/Bauru: Edufba/Edusc.). Mais precisamente, “actante é tudo aquilo que gera uma ação, que produz movimento e diferença, seja ele humano ou não-humano. O actante é o mediador, ou seja, é aquele que transforma, traduz, distorce e modifica o significado que ele supostamente transporta. […] os meios que participam das associações em um sistema podem ser os mediadores (actantes) ou os intermediários, que são aqueles que não produzem modificações na mensagem. Um mediador pode se tornar um intermediário assim como um intermediário pode se transformar em um mediador” (Praude 2016Praude, Carlos C. 2016. “Teoria Ator-rede e Arte”. Anais Do 15º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia (#15.ART) 15: 14-21., 15).
  • 7
    Texto fornecido por Eduardo Lakschevitz em seu currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=B57107. Acessado em: 05 de setembro de 2023.
  • 8
    How the Music Occupation Failed to Become a Profession.
  • 9
    André Cardoso, Maestro da Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFRJ - ORSEM e Presidente da Academia Brasileira de Música.
  • 10
    Programa de Mestrado Profissional em Ensino das Práticas Musicais - UNIRIO.
  • 11
    Afonso Claudio Segundo de Figueiredo, professor da ECO-UFRJ e do PROEMUS-UNIRIO.
  • 12
    Software de edição de partituras produzido pela MakeMusic.
  • 13
    Termo da língua inglesa utilizado para designar peças corais publicadas individualmente.
  • 14
    Maria José Chevitarese, professora da UFRJ, regente do Coro Infantil da UFRJ e do Brasil Ensemble.
  • 15
    A Pesquisa Artística vem crescendo no Brasil nos últimos anos e trata exatamente nas fronteiras (ou interseções) entre o trabalho artístico e os métodos de investigação comuns no meio acadêmico. Ver: Daniel Cerqueira (2021Cerqueira, D. 2021. Pesquisa Artística: um breve panorama. Revista Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (RICS), 7(1), 28-43.).
  • Section Editor:

    Fernando Chaib
  • Layout Editor:

    Fernando Chaib

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Nov 2023
  • Aceito
    27 Fev 2024
  • Publicado
    22 Mar 2024
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