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Perspectivas de pacientes sobre a vivência da psoríase: um estudo qualitativo com base na teoria Junguiana

Patients’ perspectives on living with psoriasis: a qualitative study in the light of Jungian theory

RESUMO

A psoríase é uma doença inflamatória e crônica de pele, de natureza benigna, sistêmica, imunomediada e não contagiosa. Pretendeu-se compreender as expressões simbólicas da psoríase e suas repercussões no processo de individuação de pacientes adultos por meio de uma pesquisa qualitativa descritivo-interpretativa. Utilizada entrevista aberta, técnica de análise de conteúdo temática e referencial teórico da Psicologia Analítica. Amostra de dezesseis participantes com psoríase em tratamento ambulatorial. Delineadas as categorias: psoríase como símbolo: surgimento, crises e remissão; rotina de tratamento: da fronteira da pele ao mundo interior; e, si-mesmo: vereda de aproximações e afastamentos. O desenvolvimento do adulto com psoríase foi compreendido pelas vivências simbólicas que apontaram para alterações na saúde integral. No entanto, reconheceu-se que as relações entre psique e corpo, apesar de conflituosas, proporcionaram aprendizados e favoreceram o processo de individuação.

PALAVRAS-CHAVE:
pele; psoríase; saúde mental; teoria junguiana

ABSTRACT

Psoriasis is an inflammatory and chronic skin disease, of a benign, systemic, immune-mediated and non-contagious nature. It was intended to understand the symbolic expressions of psoriasis and its repercussions on the process of individuation of adult patients through qualitative descriptive-interpretative research. Open interview, thematic content analysis technique and theoretical framework of Analytical Psychology were used. Sample of sixteen participants with psoriasis in outpatient treatment. The categories outlined: psoriasis as a symbol: onset, crises and remission; treatment routine: from the skin frontier to the inner world; and, himself: a path of approaches and distances. The development of the adult with psoriasis was understood by the symbolic experiences that pointed to changes in integral health. However, it was recognized that the relations between psyche and body, although conflicting, provided learning and favored the individuation process.

KEYWORDS:
skin; psoriasis; mental health; jungian theory

A psoríase é uma doença inflamatória, crônica, de natureza benigna, sistêmica, imunomediada e não contagiosa que pode afetar pele, unhas e articulações. Manifesta-se por placas vermelhas e escamosas em qualquer parte do corpo que podem coçar, ressecar, arder e sangrar. Existem vários tipos da doença, incluindo a artrite psoriática, sendo o tipo mais frequente a psoríase em placas (Menter, 2016Menter, A. (2016) Psoriasis and psoriatic arthritis overview. American Journal of Managed Care, 22(8): 216-24. PMID: 27356193.; Gottlieb et al., 2008Gottlieb, A., Feldman, S.R., Lebwohl, M., Koo, J. Y. J., Van Voorhees, A. S., Elmets, C. A., Leonardi, C. L., Beutner, K. R., Bhushan, R., & Menter A (2008). Guidelines of care for the management of psoriasis and psoriatic arthritis: section 1. Overview of psoriasis and guidelines of care for the treatment of psoriasis with biologics. Journal of the American Academy of Dermatology, 58(5), 826- 850. https://doi.org/10.1016/j.jaad.2008.02.040.
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).

Trata-se de um importante e complexo problema de saúde global que afeta em torno de 2% da população mundial, sendo mais prevalente em adultos (0,51% a 11,43%) do que em crianças (0% a 1,37%). Considera-se existir sub registro dos casos de psoríase e escassos estudos sobre a epidemiologia desta doença em todo o mundo (Michalek et al., 2017Michalek, I.M., Loring, B., & John, S. M. (2017) A systematic review of worldwide epidemiology of psoriasis. Journal of the European Academy of Dermatology and Venereology, 31(2):205-212. https://doi.org/10.1111/jdv.13854.
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). No Brasil, estima-se que acometa 1,3% da população com variações a depender da região, sendo os maiores registros no Sul e Sudeste (Sociedade Brasileira de Dermatologia, 2020Sociedade Brasileira de Dermatologia - SBD. (2020). Consenso brasileiro de Psoríase 2020: Algoritmo de tratamento da Sociedade Brasileira de Dermatologia (3ed., 138 p). Coordenação Geral Sérgio Palma. https://www.biosanas.com.br/uploads/outros/artigos_cientificos/152/770a01deea02365ae98071043abd3f12.pdf
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).

Presume-se a correlação entre patogênese da psoríase, predisposição genética e fatores de riscos ambientais, uso de alguns medicamentos, aumento de peso corporal e hábitos nutricionais inadequados, traumas físicos, estresse e distúrbios psicológicos, microbiota e infecções prolongadas (Roszkiewicz et al., 2020Roszkiewicz, M., Dopytalska, K., Szymańska, E., Jakimiuk, A., & Walecka, I. (2020) Environmental risk factors and epigenetic alternations in psoriasis. Annals of Agricultural and Environmental Medicine, 27(3), 335-342. https://doi.org/10.26444/aaem/112107.
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). Indivíduos com psoríase são mais suscetíveis a sofrer pelos sinais e sintomas físicos, psicológicos e sociais da doença, além de múltiplas comorbidades, como obesidade, esta associada a desfechos metabólicos e cardiovasculares adversos (Blake et al., 2020Blake, T., Gullick, N.J., Hutchinson, C.E., & Barber, T.M. (2020) Psoriatic disease and body composition: A systematic review and narrative synthesis. PLoS ONE, 15(8): e0237598. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0237598
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), transtornos psiquiátricos como ansiedade e depressão (Lesner et al., 2017Lesner, K., Reich, A., Szepietowski, J. C., Dalgard, F. J., Gieler, U., Tomas-Aragones, L., Lien, L., Poot, F., Jemec, G. B., Misery, L., Szabó, C., Linder, D., Sampogna, F., Evers, A. W., Anders Halvorsen, J., Balieva, F., Lvov, A., Marron, S. E., … Kupfer, J. (2017). Determinants of Psychosocial Health in Psoriatic Patients: A Multinational Study. Acta Dermato-Venereologica, 97, 1182-1188. https://doi.org/10.2340/00015555-2760.
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), tabagismo e alcoolismo (Hayes & Koo, 2010Hayes, J., & Koo, J. (2010). Psoriasis: depression, anxiety, smoking, and drinking habits. Dermatologic Therapy, 23, 174-180. https://doi.org/10.1111/j.1529-8019.2010.01312.x
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), que podem influenciar no tratamento, seja desencadeando, seja exacerbando e prolongando os sintomas.

O tratamento dermatológico visa a remissão e controle dos sintomas por meio da terapia tópica, fototerapia e/ou terapia sistêmica, porém sua escolha deve ser individualizada e compartilhada com o paciente, considerando sua idade, sexo, disponibilidade financeira e de tempo e o quadro clínico da doença (Ibrahim et al., 2020Ibrahim, S., Amer, A., Nofal, H., & Abdellatif, A. (2020). Practical compendium for psoriasis management. Dermatologic therapy, 1-36. https://doi.org/10.1111/dth.13243
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). Embora a dermatologia seja fundamental no estabelecimento do protocolo de tratamento, o cuidado interprofissional contribui para o benefício do quadro e da qualidade de vida do paciente, destacando-se que o diagnóstico precoce, nas fases da infância e da adolescência, pode favorecer o desenvolvimento psíquico e a melhora da relação com a doença (Remröd, et al., 2013Remröd, C., Sjöström, K., & Svensson, Å. (2013). Psychological differences between early- and late-onset psoriasis: a study of personality traits, anxiety and depression in psoriasis. British Journal of Dermatology, 169, 344-350. https://doi.org/10.1111/bjd.12371
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).

Em virtude de a psoríase ser um fator de risco à saúde mental, com possibilidade de transtorno psiquiátrico e de ideação suicida, o acompanhamento psicológico é fundamental (Pronizius & Voracek, 2020Pronizius, E., & Voracek, M. (2020). Dermatologists’ perceptions of suicidality in dermatological practice: a survey of prevalence estimates and attitudes in Austria. BMC Dermatology, 20(10). https://doi.org/10.1186/s12895-020-00107-w
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). Para a Psicologia Analítica, a dimensão psíquica depende do corpo, assim como seu inverso, sendo a psique constituída pela consciência e pelo inconsciente, cuja parte é pessoal e outra coletiva e arquetípica comuns à toda humanidade. Assim, a perspectiva psíquica e física, do inconsciente e do consciente, e da saúde e da doença, agem integrados numa relação de autorregulação e compensação no indivíduo (Jung, 2013Jung, C.G. (2013). A prática da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. (16 ed., Vol. 16/1). Vozes.).

Nesse sentido, o adoecimento se mostra como uma tentativa de o indivíduo se tornar sadio pela emersão de conteúdos simbólicos inconscientes expressos nos sintomas e em outras vias que podem ser, em parte, apreendidos pela consciência. Essa é uma tendência contínua de desenvolvimento psicológico presente em todos os ciclos da vida que, por caminhos paradoxais, está orientado à realização do Ser, processo este denominado individuação, que alcança seu auge na fase adulta (Barreto, 2018Barreto, M. H. (2018). The ethical dimension of analytical psychology. Journal of Analytical Psychology, 63(2), 241-254. https://doi.org/10.1111/1468-5922.12396
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). A prática psicoterapêutica junguiana propõe auxiliar o indivíduo no seu processo de individuação, que é intrinsecamente simbólico por surgir do elo entre consciente e seu ego e o inconsciente e o arquétipo do si-mesmo/Self (Vuletić, 2018Vuletić, G. (2018). Disrupted narrative and narrative symbol. Journal of Analytical Psychology, 63(1), 47-64. https://doi.org/10.1111/1468-5922.12379
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). Assim, a pele é um símbolo cuja origem embriológica é a mesma da psique, contém os órgãos do corpo assim como interage com o meio. Ela significa uma identificação para si e para a sociedade, comunicando emoções e sentimentos, e por isso, são inúmeros os desdobramentos desta relação, incluindo patologias de ordem psiquiátricas e dermatológicas, como a psoríase (González-Parra, 2019González-Parra, S., & Daudén, E. (2019) Psoriasis y depresión: El papel de la inflamación. Actas Dermo-sifiliográficas, 110(1), 12-19. https://doi.org/10.1016/j.ad.2018.05.009.
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).

Considerar a multifatorialidade da psoríase enquanto suas causas e repercussões é fundamental para o bom prognóstico dos pacientes afetados (Menter, 2016Menter, A. (2016) Psoriasis and psoriatic arthritis overview. American Journal of Managed Care, 22(8): 216-24. PMID: 27356193.). Porém, ainda são escassos estudos com rigor teórico e metodológico de natureza qualitativa que ampliem a compreensão acerca da psoríase para pacientes adultos (Ersser et al., 2010Ersser, S. J., Cowdell, F. C., Latter, S. M., & Healy, E. (2010). Self-management experiences in adults with mild-moderate psoriasis: an exploratory study and implications for improved support. British Journal of Dermatology, 163(5), 1044-9. https://doi.org/10.1111/j.1365-2133.2010.09916.x
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; Magin et al., 2011Magin, P., Adams, J., Heading, G., & Pond, D. (2011). ‘Perfect skin’, the media and patients with skin disease: a qualitative study of patients with acne, psoriasis and atopic eczema. Australian Journal of Primary Health, 17(2), 181-5. https://doi.org/10.1071/PY10047.
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; Moverley et al., 2015Moverley, A. R., Vinall-Collier, K. A., & Helliwell, P. S. (2015). It’s not just the joints, it’s the whole thing: qualitative analysis of patients’ experience of flare in psoriatic arthritis. Rheumatology, 54(8), 1448-53. https://doi.org/10.1093/rheumatology/kev009.
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; Uttjek et al., 2007Uttjek, M., Nygren, L., Stenberg, B., & Dufåker, M. (2007). Marked by visibility of psoriasis in everyday life. Qualitative Health Research, 17(3), 364-72. https://doi.org/10.1177/1049732306297674
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; Watson & Bruin, 2007Watson, T., & Bruin, G.P. (2007) Impact of cutaneous disease on the self-concept: an existential-phenomenological study of men and women with psoriasis. Dermatology Nurse, 19(4), 351-6, 361-4. PMID:17874604). Logo, buscou-se compreender as expressões simbólicas da psoríase e suas repercussões no processo de individuação de pacientes adultos.

Método

Participantes

A seleção dos participantes ocorreu no dia de atendimento a partir da indicação pelos profissionais de saúde do ambulatório, confirmação dos dados dos pacientes no prontuário multiprofissional, apresentação da pesquisa ao paciente, convite à participação e seu aceite voluntário à pesquisa. Os critérios de inclusão foram: pessoas a partir de 18 anos, com diagnóstico de psoríase confirmado há pelo menos um ano, em tratamento ambulatorial no referido hospital e com condições físicas, emocionais e intelectuais mínimas - com capacidade cognitiva e de comunicação verbal preservadas, orientados no tempo e no espaço, e sem estar em crise psicológica - para participar do estudo identificadas na abordagem ao paciente sobre a pesquisa. Foram excluídos os pacientes com diagnósticos dermatológicos concomitantes à psoríase e sem disponibilidade ou interesse para participar. Houve apenas uma recusa justificada pela falta de tempo para a entrevista. Desenhou-se amostra com seleção de 16 participantes identificados por nome fictício e buscou-se a variedade máxima de discursos para garantir suficiência e saturação amostral a partir do alcance do objeto do estudo quanto ao seu aprofundamento, abrangência e distintas compreensões das vivências com a psoríase pelos pacientes (Minayo, 2017Minayo, M. C. S. (2017). Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: Consensos e controvérsias. Revista Pesquisa Qualitativa, 5(7): 01-12.).

Procedimentos

Utilizou-se como técnica de coleta de dados, entrevistas individuais e abertas guiadas pela pergunta disparadora: “Como é para você viver com psoríase e lidar com o tratamento?”. Tópicos guia foram elaborados e usados quando necessário para amplificação da temática, tais como: relato do diagnóstico e dos tratamentos recebidos; entendimento, sentimentos, sensações, intuições e sonhos relacionados à doença; repercussões em áreas diversas e atitudes utilizadas. As entrevistas tiveram duração média de 70 minutos, foram gravadas e transcritas textualmente, e complementadas com o diário de campo, no qual foram registradas impressões quanto aos aspectos verbais e não-verbais dos participantes, da rotina e dinâmica do campo para possível inclusão na análise.

Análise dos Dados

Para o tratamento dos dados, fez-se uso da técnica de análise de conteúdo temática para desvelar os núcleos de sentido e seus significados na comunicação de cada participante registrado no material coletado (Minayo, 2014Minayo, M. C. S. (2014). O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde (14. ed). Hucitec.). A amplificação e a interpretação dos sentidos foram pautadas no referencial teórico da Psicologia Analítica, especificamente da Escola Clássica, ao considerar o si-mesmo ou Self que se refere a força central que orienta ao desenvolvimento potencial que assume a função de regular a psique e promover a integração entre os aspectos psicológicos; os arquétipos como persona, sombra, anima/animus, ego, Self; e o desenvolvimento da personalidade no processo de individuação.

Realizou-se a leitura das imagens significativas com carga afetiva que emergiram das narrativas por meio da descrição e analogias pelos indivíduos-participantes aproximando-se de uma compreensão simbólica dessas (Jung, 2011Jung, C.G. (2011). A natureza da psique. (8 ed., Vol. 8/2). Vozes.), considerando a vivência única de cada indivíduo contida no material empírico (Minayo, 2012Minayo, M. C. S. (2012). Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciência & Saúde Coletiva, 17(3):621-626. https://doi.org/10.1590/s1413-81232012000300007.
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). O material foi assimilado e organizado em três categorias de análise que foram destacadas quanto às semelhanças e diferenças para apresentação descritiva e interpretativa (Minayo, 2014Minayo, M. C. S. (2014). O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde (14. ed). Hucitec.). Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) sob CAAE: 84897318.9.0000.5201.

Resultados e Discussão

Os participantes incluídos foram dez mulheres e seis homens com idade entre 26 e 70 anos, cristãos, a maioria de cor parda, casado, com filho, residente em Recife-PE, trabalhadores e com escolaridade mínima de 2º grau completo. As informações sobre a renda familiar não foram referidas pelos participantes, mas todos eram usuários do SUS, sendo que metade da amostra (oito) tinha plano de saúde privado. Eles estavam ou já estiveram na fase moderada a grave da psoríase, em tratamento tópico ou sistêmico e frequentavam semanalmente o ambulatório para fototerapia. O tempo de tratamento variou de um a 28 anos. O acompanhamento psicológico foi referido por seis mulheres, e dessas, duas com assistência psiquiátrica (Quadro 1).

A seguir estão descritas e discutidas três categorias empíricas: psoríase como símbolo: surgimento, crises e remissão; rotina de tratamento: da fronteira da pele ao mundo interior; e, si-mesmo: vereda de aproximações e afastamentos.

Psoríase como símbolo: surgimento, crises e remissão

O acometimento pela psoríase não implica necessariamente na sua primeira manifestação clínica, mas no tempo que o indivíduo reconhece a doença e suas repercussões no cotidiano. O início da psoríase ocorreu para uma das participantes (Dulce) aos dez anos, quando na adolescência, esse diagnóstico pode provocar um fardo na relação consigo e com os outros, devendo ser melhor investigada e cuidada pela família, amigos, comunidade e equipe de saúde (Ramussen et al., 2018Rasmussen, G. S., Kragballe, K., Maindal, H. T., & Lomborg, K. (2018) Experience of Being Young with Psoriasis: Self-Management Support Needs. Qualitative Health Research, 28(1) 73-86. https://doi.org/10.1177/1049732317737311
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). Com os demais participantes, a psoríase teve início na fase adulta e foi atrelada a situações tensas de desafios e mudanças, tais como adoecimento de familiar, luto, divórcio, sobrecarga de trabalho, demissão e dificuldades acadêmicas. A forte tonalidade afetiva que acompanhou esses eventos recebeu marcas na pele, como observa-se na fala de Alana: “Minha primeira crise quando eu descobri, minha mãe tinha tido um aneurisma . . . Fez cirurgia de urgência, ficou internada, pronto. De lá pra cá foi que desencadeou mesmo psoríase”.

Em meio a um evento mobilizador, o surgimento da psoríase foi interpretado como uma “invasão” no corpo dos participantes, da ordem do “incontrolável”, “desconhecido” e “inesperado”. A situação de crise psíquica e sentida na pele, pode fragilizar o ego, mas possibilitar a emersão da doença como símbolo que para cada um são atribuídos significados passíveis de interpretação e inesgotáveis em sentidos (Dahlke, 2009Dahlke, R. (2009). Depressão: Caminhos de superação da noite escura da alma. Cultrix.). Isto porque, a psoríase ativou tanto alterações na pele, literalmente, como o resgate de memórias e sentimentos já vivenciados com os mesmos significados relacionados à doença. Esta é uma dinâmica que a psique faz repetindo temáticas associadas a vivências anteriores do indivíduo e de uma comunidade como uma tentativa natural de cura manifesta por sintomas e sonhos (Jung, 2011Jung, C.G. (2011). A natureza da psique. (8 ed., Vol. 8/2). Vozes.).

Para os participantes, a crise de psoríase foi desencadeada por afetos intensos como “estresse”, “ansiedade”, “angústia”, “medo”, “tristeza”, “frustração”, “vergonha” até mesmo “alegria”; que, consequentemente, favoreceram um estado interno-externo de crise, o que é ilustrado no depoimento a seguir:

Eu entendo que é, é uma doença de inflamação. Então, eu posso ter uma alegria, posso ter uma tristeza, uma mágoa, até simplesmente um pensamento... qualquer coisa eu tenho uma recaída [psoríase]. Porque eu acho que é do emocional. Porque se ela mexe com o emocional, a psoríase, que ela vai além da pele. Num é só essas manchas. (Célia)

Nas narrativas dos participantes, a descrição da aparência da pele foi acompanhada pelo seu estado psíquico, sendo frequente a expressão de pele “limpa” ou “calma” usada para o momento de redução e ausência dos sintomas alusiva ao estado de bem-estar. Contrariamente, as expressões de pele “pipocada”, “estourada”, “tomada”, “coberta”, “empestada” ou “agitada” foram utilizadas nas recaídas para descrever o aspecto vermelho das lesões, associando-as à ansiedade e ao estresse envolvidos. Diante da alternância entre os estados de remissão e crise característicos da psoríase, alguns participantes (Kátia, Célia, Dulce e Davi) sublinharam a necessidade de “sempre dar a continuidade ao tratamento” (Davi), objetivando o controle dos sintomas tal como confirma a literatura (SBD, 2020Sociedade Brasileira de Dermatologia - SBD. (2020). Consenso brasileiro de Psoríase 2020: Algoritmo de tratamento da Sociedade Brasileira de Dermatologia (3ed., 138 p). Coordenação Geral Sérgio Palma. https://www.biosanas.com.br/uploads/outros/artigos_cientificos/152/770a01deea02365ae98071043abd3f12.pdf
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).

Embora tenha sido presente a compreensão multifatorial acerca da doença, alguns participantes (Lígia, Rita e Maria) salientaram que nem todas as crises de psoríase foram acompanhadas de um afeto intenso, situação percebida como um “mistério, porque às vezes você num tá nem aperreada, ela volta. Às vez você tá aperreada, aí aparece. Aí eu num sei não” (Lígia).

Quadro 1
Caracterização da amostra. Recife, Pernambuco, 2019.

Evidencia-se, portanto, as diversas e opostas maneiras que o indivíduo pode responder às situações que lhe são apresentadas, ampliando o caráter de mistério das doenças ao próprio ser humano (Jung, 2017Jung, C. G. (2017). Presente e futuro. (8 ed., Vol.10/1,). Vozes.). Ou seja, o mistério pode ser tanto do curso da doença no indivíduo quanto um desconhecimento ou desinteresse no exercício do autoconhecimento, conforme expressa o relato abaixo:

Eu procurei a dermatologista, aí diagnosticou psoríase, né, por conta de estresse, pá, num sei quê. "você anda estressado?", eu digo: "não que eu me lembre", mas... eu, assim, eu me estresso muito pouco por nada, eu sou meio estourado assim, às vezes eu sou um pouco ignorante, né?! Alguns momentos. Mas, assim, estressado, no dia a dia, não. Possa ser no subconsciente por conta do meu trabalho. (Caio)

O relato desse paciente com um ano de tratamento, inclina-se para a tentativa de consciência sobre si, da sua subjetividade, mas que de forma mais ampla, o autoconhecimento refere-se, em grande parte, à dimensão inconsciente e, às noções de individuação e Self, ou seja, a totalidade da psique (Barreto, 2018Barreto, M. H. (2018). The ethical dimension of analytical psychology. Journal of Analytical Psychology, 63(2), 241-254. https://doi.org/10.1111/1468-5922.12396
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).

Concomitante à emergência dos primeiros sintomas, destaca-se que foi presente em todas as narrativas a menção às dificuldades operacionais, como a demora para o agendamento com um especialista e definição do diagnóstico. Nessa espera, houve relatos de uso de automedicação e indicação de medicações ineficientes prescritas por médicos generalistas, tal como compartilharam Jonas, Luís e José.

Ademais, situa-se o contexto complexo e frágil do SUS no Brasil e nesta região do nordeste em específico, com filas de espera para o atendimento de pacientes, em sua maioria, com limitações econômicas e sociais que repercutem no tratamento. Igualmente, um estudo multicêntrico com pacientes adultos de treze países europeus, entre 2011 e 2013, supôs que as diferenças culturais e climáticas, do sistema de saúde e de acesso aos tratamentos, podem influenciar o impacto da psoríase no bem-estar do paciente (Lesner et al., 2017Lesner, K., Reich, A., Szepietowski, J. C., Dalgard, F. J., Gieler, U., Tomas-Aragones, L., Lien, L., Poot, F., Jemec, G. B., Misery, L., Szabó, C., Linder, D., Sampogna, F., Evers, A. W., Anders Halvorsen, J., Balieva, F., Lvov, A., Marron, S. E., … Kupfer, J. (2017). Determinants of Psychosocial Health in Psoriatic Patients: A Multinational Study. Acta Dermato-Venereologica, 97, 1182-1188. https://doi.org/10.2340/00015555-2760.
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).

Rotina de tratamento: da fronteira da pele ao mundo interior

O tratamento para a psoríase foi caracterizado por todos como “longo”, “caro” e que impôs novos hábitos. Os participantes referiram seguir a rotina de tratamentos prescrita de “hidratação”, “proteção solar”, “medicações” e “fototerapia”, mas com tensão e vigilância no cumprimento. Isso foi relacionado ao desafio de conciliar o tratamento da psoríase com as atividades da vida diária, principalmente com a profissão, como apontado por uma das entrevistadas:

Eu consigo associar fases que eu tô mais ansiosa... ela aumenta... assim, porque aumenta quando eu tô no pique maior [trabalho], aumenta porque não... eu junto com a ansiedade a não fazer o tratamento, então eu não hidrato direito porque eu esqueço, aí junta as duas coisas. Mas eu consigo saber que é isso. Eu faço: ‘epa, botar o pé no freio, que tá demais'. (Dulce)

Essa narrativa também expressa a importância de identificar ao menos um dos aspectos da vida que pode estar sendo negligenciado ou sobrecarregado para “frear” a dinâmica desregulada que repercute no adoecimento. Ou seja, a psique inconsciente busca complementar a sua parte consciente ao produzir símbolos compensatórios, como por exemplo, os sintomas na pele, como uma forma de expressão da psique que procura alertar o indivíduo à saúde, regulando o processo saúde e doença ao longo da individuação (Jung, 2013Jung, C.G. (2013). A prática da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. (16 ed., Vol. 16/1). Vozes.).

Por se tratar de uma doença sistêmica, a necessidade do cuidado integral foi reconhecida pela maioria que referiu esforçar-se para cumprir as orientações médicas, incluindo a atenção com a saúde mental. A presença e a escuta acolhedora dos dermatologistas foi destacada por todos os participantes com gratidão por sensibilizá-los a dialogar com o corpo e identificar quando não estivessem bem, fosse por um sintoma aparentemente físico ou psíquico. Tal situação foi explícita na fala de Hugo: “E aí assim, realmente, é como doutor fala: ‘-olhe seu corpo’, ‘-ah, mas eu tô bem’, ‘-tá não. Tem alguma coisa que não tá, porque seu corpo fala por você’". Esta orientação ao paciente é vital, assim como a necessidade da parceria entre dermatologistas e profissionais da saúde mental, especialmente quando presente ideação suicida em pacientes (Pronizius & Voracek, 2020Pronizius, E., & Voracek, M. (2020). Dermatologists’ perceptions of suicidality in dermatological practice: a survey of prevalence estimates and attitudes in Austria. BMC Dermatology, 20(10). https://doi.org/10.1186/s12895-020-00107-w
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).

Ressalta-se que, durante a entrevista, vários participantes (Lígia, Célia, Luís, Inês e Caio) mostraram as manchas escuras deixadas por crises anteriores da psoríase como registro na pele da vivência com a doença, conforme o relato:

O que me estressa é isso, que é uma doença que você gasta, gasta, gasta e num tem cura. Pronto. Fico estressada porque nunca some. Pelo menos aí, eu nunca fiquei limpa não. Eu nunca fiquei limpa. Dizer: "não tenho nada", nunca. Nesses dez ano? Nunca fiquei. E ela também vai simbora e fica deixando essa mancha preta, tá vendo? (Lígia)

Da mesma maneira, marcas psíquicas continuaram após a remissão dos sintomas, além da expectativa de nova crise. Esse “estresse” ao lidar com os sintomas foi comum a todas as narrativas, pois acarretou retorno ao tratamento e, consequentemente, alterações na rotina. No entanto, considera-se que a vivência com a psoríase para cada paciente seja singular, por se relacionar com o desenvolvimento da personalidade e com os complexos ativos em cada história atrelados tanto ao inconsciente pessoal quanto coletivo (Jung, 2011Jung, C.G. (2011). A natureza da psique. (8 ed., Vol. 8/2). Vozes.). Para a participante Lígia, sua pele revela as polaridades desse símbolo por percebê-la como parte do caminho ao autoconhecimento e pelo sofrimento diante das marcas aparentes.

A convivência entre pacientes psoriáticos no ambiente de sala de espera para a fototerapia foi referido por todos eles como uma oportunidade para o desenvolvimento da percepção sobre si e sobre o outro. Relataram situações que provocaram ora acolhimento ora incômodo, tensões, críticas, mas, sobretudo, aprendizado, desenvolvimento de empatia, sentimento de pertencimento e aquisição de maior naturalidade para lidar com próprio quadro e com o de outros, o que fica explícito na afirmação de Maria:

Eu vejo aquilo como eu não sou a única. Tem gente, inclusive, muito pior que eu. Eu fico pensando: ‘Meu Deus, eu posso reclamar do meu caso que tô aqui andando, ainda tenho condições de colocar uma roupa por cima?’ Por mais que isso seja incômodo pra mim, por mais que isso me afete socialmente, afete minha rotina, eu digo: ‘Eu acho que eu num tenho direito de encarar que o meu problema é maior do que o de ninguém’. Eu acho que eu não tenho esse direito. Principalmente vendo o que eu vejo aqui dentro.

Além da sala de espera oportunizar os pacientes a compartilharem suas vivências com a doença, pode favorecer a realização de grupos terapêuticos abertos visando a promoção de saúde dos usuários do serviço bem como dos seus acompanhantes e dos demais presentes do contexto (Becker & Rocha, 2017Becker, A. P. S., & Rocha, N. L. (2017). Ações de promoção de saúde em sala de espera: contribuições da Psicologia. Mental, 11(21), 339-355. ).

Si-mesmo: vereda de aproximações e afastamentos

A aparência das lesões cutâneas, principalmente em locais visíveis do corpo, repercutiu no rebaixamento da autoestima dos pacientes e prejudicou a forma de adaptação deles em relação ao meio social, visto que a maior aceitação da persona, um dos arquétipos adaptativos que faz oposição à sombra, é necessária ao desenvolvimento psíquico saudável do indivíduo (Jung, 2011Jung, C.G. (2011). A natureza da psique. (8 ed., Vol. 8/2). Vozes.). A imagem mental formada sobre si foi alterada, incentivada por ser mostrada ao outro, simbolizando um desnudamento sem a própria vontade. Percebido como uma ameaça da própria pele contra si, os participantes usaram roupas apropriadas para disfarçar ou mesmo cobrir as lesões em áreas expostas e para se protegerem e evitarem as consequências sociais da exposição. O risco velado no “cobrir” e no “evitar” pode ser de pouca consciência de estarem escondendo de si esse estado, rejeitando a pele e, portanto, se afastando de si mesmo (Dahlke, 2009Dahlke, R. (2009). Depressão: Caminhos de superação da noite escura da alma. Cultrix.).

E quando você tá na crise, é como se fosse assim, de uma certa maneira mexe com você, você num quer tá... quer se expor. Aí eu acho que ela tem a ver com isso, né, quando eu tô bem eu num faço questão de usar camiseta. Mas se eu tiver na crise eu já num quero usar, pra num tá expondo a... a questão isso aí eu num sei se é problema da... da minha imaginação ou se é uma questão da autoestima também. (Hugo)

Essa fala revela que além das roupas, uma das formas de esconder ou disfarçar seria a conter os afetos, que pode provocar desconfortos e sentimento de culpa (Jung, 2013Jung, C.G. (2013). A prática da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. (16 ed., Vol. 16/1). Vozes.). A compreensão da família acerca da doença foi unânime nos relatos dos participantes, mas em face ao desconforto dos mesmos sobre a pele, sugeriu interferir nas relações, mesmo acolhedoras. Somado a isso, houve relatos de vivências discriminatórias que levaram os participantes a adotarem comportamentos restritivos e reservados a fim de evitar lidar com comentários, olhares e atitudes de outrem:

Minha família, graças a Deus, aceitou, né, mas... a sociedade não, viu?! Não, não, de jeito nenhum. ‘Isso pega? Tu tem marido? Teu marido gosta de tu assim? Vige Maria... é amor, né?! Porque eu mermo num queria não’, era isso que eu escutava. (Olga)

O julgamento que o entrevistado acha que recebeu, parece incomodar quando a autocrítica ainda é desconhecida. O processo de conhecer a si mesmo demanda do indivíduo a retirada das projeções sobre o outro, o reconhecimento e a aceitação das próprias características e a administração dos conflitos inerentes ao seu desenvolvimento. Portanto, seguir em busca do Self, meta do processo de individuação, é uma jornada interior corajosa (Nascimento & Caldas, 2020Nascimento, A. K. C., & Caldas, M. T. (2020). Dimensão espiritual e psicologia: A busca pela inteireza. Revista da Abordagem Gestáltica, 26(1), 74-89. https://doi.org/10.18065/RAG.2020v26n1.7
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).

A fim de ilustrar uma forma possível de ressignificação da pele psoriática, Dulce contou que aguardou o momento de controle da doença para marcar sua pele com uma tatuagem cujo símbolo escolhido remeteu às escamas de peixe, tal como sua pele descamou nas crises. Há espaço para a aceitação da própria pele e de tudo o que a psoríase provoca enquanto mudanças, o que está estreitamente vinculada à forma como o indivíduo compreende as coisas, seus significados (Jung, 2013Jung, C.G. (2013). A prática da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. (16 ed., Vol. 16/1). Vozes.).

Com uma fase adulta atravessada por vivências de sofrimento e crises de psoríase, o atual momento foi referido como de adaptação à doença quando comparado ao seu início, embora este estágio de acomodação não seja definitivo, devido ao funcionamento dinâmico da psique e de eventos externos que poderão demandar novas adaptações (Jung, 2011Jung, C.G. (2011). A natureza da psique. (8 ed., Vol. 8/2). Vozes.). Diante disso, a participante que recebeu o diagnóstico de psoríase na infância e teve acompanhamento psicoterapêutico nesta fase, confirmou mudanças na sua percepção conforme a passagem pelos ciclos da vida:

Que eu não sei se era meu olhar de adolescente para o mundo ou se era o olhar do mundo pra mim. Porque também tem isso, né?! Nas fases da vida a gente vai interpretando o diferente. Hoje eu tô muito, muito, muito tranquila. (Dulce)

Na tentativa de obterem momentos de bem-estar apesar da psoríase, alguns participantes (Jonas, Kátia e Inês) mencionaram relações compulsivas com bebida alcoólica, alimentação e vestuário durante um tempo. Tais comorbidades foram citadas em estudos de revisão de literatura que encontraram associação entre a psoríase e padrões anormais de gordura (Blake et al., 2020Blake, T., Gullick, N.J., Hutchinson, C.E., & Barber, T.M. (2020) Psoriatic disease and body composition: A systematic review and narrative synthesis. PLoS ONE, 15(8): e0237598. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0237598
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) e entre ansiedade, depressão e o abuso de tabaco e álcool (Hayes & Koo, 2010Hayes, J., & Koo, J. (2010). Psoriasis: depression, anxiety, smoking, and drinking habits. Dermatologic Therapy, 23, 174-180. https://doi.org/10.1111/j.1529-8019.2010.01312.x
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). A relação entre essas variáveis contribui para manter o paciente em um ciclo vicioso, embora seja controversa a associação entre causa e efeito entre elas. Por isso, a importância de ter consciência durante o processo de vivência genuína com a psoríase, contando com suporte de psicólogo e, se necessário, de psiquiatra a fim de favorecer a passagem por acontecimentos, percebendo o que ocorreu e sentiu. Salienta-se que o indivíduo pode se emocionar ou se afetar quando presentes os sintomas fisiológicos, mas não quer dizer que tenham sido percebidas as reações de sentimento (Jung, 2015Jung, C.G. (2015). Sobre sentimentos e a sombra: sessões de perguntas de Winterthur (2 ed.) (Trans. L. Richter). Vozes.).

Ressalta-se que, quando o tratamento medicamentoso se mostrou insuficiente, apenas participantes mulheres (Kátia, Célia, Olga, Alana, Dulce e Inês) aderiram a psicoterapia para lidar com a psoríase. O diagnóstico dessa doença crônica oportunizou o indivíduo a atender ao chamado de seu Self, expresso simbolicamente, e atribuindo-lhes significados, com autonomia e criatividade, em prol do desenvolvimento pessoal. Na relação analítica, é o psicoterapeuta quem agirá como função transcendente, isto é, facilitador da compreensão e integração dos conflitos psíquicos a fim de contribuir para novas atitudes e favorecer o processo de individuação (Jung, 2011Jung, C.G. (2011). A natureza da psique. (8 ed., Vol. 8/2). Vozes.).

Ressalte-se a busca pela saúde psíquica por meio da espiritualidade, exercício físico, meditação e yoga, como mencionado no relato que aponta para esse benefício:

Passei uma época fazendo yoga, sabe, pra diminuir a ansiedade. Mas assim, eu noto que minha ansiedade diminuiu bastante. Tenho feito esse acompanhamento psicológico, aí assim, considero que eu tô bem equilibrada em termos de ansiedade, que eu era muito ansiosa, muito, muito. E agora eu tô mais... tranquila. (Kátia)

Por fim, destaca-se que os participantes (Kátia, Célia, Dulce, Olga e Jonas) que estavam em acompanhamento por outras especialidades e profissionais além do dermatologista (psiquiatra, psicólogo, reumatologista e/ou nutricionista) no momento da entrevista, afirmaram que a equipe de saúde não estabeleceu um diálogo interprofissional. Coube ao próprio paciente realizar as pontes entre os saberes, estreitando as distâncias para favorecer o tratamento a fim de que ele fosse integrado e sistêmico, conforme é característico da doença. Ademais, o tratamento, quando interdisciplinar, contribui para promoção de saúde integral e prevenção de agravos no quadro clínico do indivíduo, atendendo suas necessidades.

Considerações Finais

Os achados desta pesquisa partiram da descoberta da psoríase para os participantes que foi relacionada a um evento desafiador e mobilizador de intensas emoções, tais como tristeza, medo, ansiedade e vergonha. A relação de interdependência entre os sintomas no corpo e na psique revelaram processos vivenciais singulares e simbólicos diante dos significados que foram possíveis serem atribuídos. Não obstante, desvelou símbolos recorrentes comuns aos pacientes, como a noção de invasão na pele, da perda do controle sobre os sintomas, da exposição do corpo psoriásico e dos disfarces utilizados. Assim como houve para alguns deles, o reaprendizado ao lidar com as mudanças no corpo e na psique, favorecendo o processo de individuação, isto é, contribuindo para potencializar o desenvolvimento psicológico, repercutindo na adaptação social, no estabelecimento de nova rotina e na autoestima dos indivíduos em questão.

Contudo, as narrativas expressaram uma tonalidade mais fortemente relacionada às emoções, que inclui as sensações físicas, do que aos sentimentos cuja função é valorativa. Compartilhá-los e disponibilizar-se a compreender o sentido dos símbolos expressos, ressignificando experiências conflituosas, possibilita ao indivíduo tomar consciência e exercitar o autoconhecimento por perceber o significado da sua vivência com psoríase ao longo do processo de individuação que se desenvolve em torno do Self que é psique e corpo, integrando polaridades e minimizando sofrimento psíquico. Para respaldar uma vereda consciente da vivência dos pacientes, a criação de espaços de interação entre eles e intervenções em salas de espera facilitadas por profissional de saúde, pode ser uma alternativa factível a hospitais conveniados ao SUS.

Os participantes mostraram-se cientes da necessidade de um cuidado integral e, para alguns, houve a busca pela sua individuação estimulada pelos dermatologistas e favorecida pelo acolhimento recebido pelos familiares. No entanto, a falta de diálogo entre os profissionais envolvidos no tratamento dos participantes apontou para a necessidade dessa prática a fim de favorecer a compreensão ampliada e multifacetada sobre cada indivíduo com psoríase. Recomenda-se que pesquisas versem sobre a psoríase na perspectiva do paciente à luz da Psicologia Analítica, visto escassas as publicações acerca dessa interface e que pode ter limitado a discussão.

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  • Conformidade ética

    Esta pesquisa foi financiada pelos próprios autores. Os mesmos declaram que não têm conflito de interesse.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2022
  • Aceito
    11 Ago 2022
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