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A sexualidade humana: maldição ou mal-entendido?

Human sexuality: curse or misunderstanding?

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão acerca do pavor que, no Brasil, tem assolado grande parcela da sociedade no que se refere às questões de sexualidade e de gênero, mais especificamente, a crença de que as crianças, consideradas desprovidas de sexualidade, podem ser influenciadas pelo discurso “pervertido” que os militantes e apoiadores do movimento LGBTQI+ estariam tentando propagar. Após uma breve descrição do cenário atual, formulações psicanalíticas são apresentadas, visando a desmitificar a equivocada ideia de “pureza” relacionada à infância e levantar hipóteses que explicariam essa rejeição absoluta a tudo o que foge à norma no campo da sexualidade.

Palavras-chave:
Sexualidade; Gênero; Complexo de Édipo; Intolerância; Preconceito

Abstract

This article proposes a reflection on the dread that, in Brazil, has plagued a large part of society with regard to issues of sexuality and gender, more specifically, the belief that children, considered to be devoid of sexuality, can be influenced by “perverted” discourse that activists and supporters of the LGBTQI+ movement would be trying to spread. After a brief description of the current scenario, psychoanalytical formulations are presented, aiming to demystify the mistaken idea of “purity” related to childhood and to raise hypotheses that would explain this absolute rejection of everything that is outside the norm in the field of sexuality.

Keywords:
Sexuality; Genre; Oedipus complex; Intolerance; Preconception

Tous est permis à l' inconscient sauf d'articuler ‹ ‹ “donc je suis›› (Jacques Lacan, “Le Semináire”, Livre XIV, La logique du fantasme)

Nas últimas décadas, o movimento LGBTQI+, com suas lutas e reivindicações, tem alcançado importantes resultados, dos quais podemos citar: a proliferação de um discurso que questiona o binarismo, a naturalização e a normatização relativa a gênero e sexualidade; a remoção da homossexualidade como patologia do DSM-II; a articulação dos direitos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros no campo estabelecido e institucionalizado internacionalmente dos Direitos Humanos; a ampliação da temática LGBTQI+ na mídia em geral; e o surgimento das Paradas do Orgulho Gay - há, hoje, cerca de 200 em todo o Brasil, com participação de mais de 5 milhões de pessoas. A realizada em São Paulo, na Avenida Paulista, é considerada a maior do mundo.

Mas, apesar dessas conquistas, o cenário de hoje é assustador. No Brasil, a implantação de uma política de direitos humanos voltada para a defesa da cidadania de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais tem sido marcada por violentas tensões. Temos visto uma intensificação da intolerância e do sectarismo. É cada vez maior o número de ameaças, agressões e assassinatos da população LGBTQI+. Obras de arte têm sido vetadas e exposições canceladas; espetáculos de teatro têm sido proibidos pela Justiça; e a Câmara dos Deputados, novamente, abre margem para que a homossexualidade seja tratada como patologia, com seu projeto sobre a “Cura gay”.

É fato conhecido que a OMS (Organização Mundial da Saúde), desde a década de 1990, descartou qualquer possibilidade de que a orientação sexual esteja relacionada a uma doença, definindo a homossexualidade como uma variação natural da sexualidade humana. Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou uma resolução que proíbe quaisquer tipos de terapias que tenham o objetivo de tentar alterar a orientação sexual de alguém. O projeto “Cura Gay”, em suma, visa derrubar a resolução do CFP, permitindo a realização de “tratamentos” conhecidos como “Terapia de Reorientação Sexual”, “Terapia de Conversão” ou “Terapia Reparativa”, que consistem na utilização de técnicas que visam extinguir a homossexualidade de um sujeito.

Nesse mesmo contexto, podemos situar a polêmica em torno do chamado “Kit gay”. Em 2004, o Governo Federal lançou o programa “Brasil sem Homofobia”, na intenção de combater a violência e o preconceito contra a população LGBTQI+. Por meio de um convênio firmado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), foi elaborado o material que seria distribuído às instituições de ensino de todo o país.

Contudo, em 2011, quando esse material estava pronto para ser impresso, setores conservadores da sociedade e do Congresso Nacional iniciaram um movimento contra o projeto, nomeando-o, de forma pejorativa, como “Kit gay”. O argumento para esse movimento contrário era de que esse material estimularia a sexualidade nas crianças, além de configurar uma tentativa de “doutrinação de gênero” no ensino. O governo cedeu à pressão e suspendeu o projeto. Desde então, têm circulado nas redes sociais notícias falsas acerca do suposto “Kit gay”. Em 2018, ano de eleição presidencial, essas Fake News se intensificaram e foram rapidamente disseminadas, sendo utilizadas como estratégia política, como apontado pela Revista Exame, em 17 de outubro de 2018 (Fonseca et. al., 2018Fonseca, B., Lara, E., Hauber, G., & Policarpo, A. (2018, 17 outubro). A eleição do “kit gay”. Revista Exame. https://exame.com/brasil/a-eleicao-do-kit-gay/
https://exame.com/brasil/a-eleicao-do-ki...
).

A partir do cenário apresentado, trazemos as seguintes indagações: o que justificaria esse retrocesso no que se refere às conquistas do movimento LGBTQI+? Por que as Fake News, por mais absurdas que pareçam, têm sido tomadas como verdades absolutas, convencendo milhares de pessoas? E, mais ainda, por que o pavor em torno da sexualidade, principalmente no que se refere ao quanto as crianças poderiam ser influenciadas por um suposto estímulo à homossexualidade e à promiscuidade?

A desconstrução psicanalítica do “erro comum”

Em 1905, Freud publicou os seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. No segundo ensaio, intitulado “A sexualidade infantil”, o autor surpreende o leitor com a revelação de que a criança não é um ser ingênuo e sem malícia como se pensava naquela época. Pelo contrário, a criança freudiana não é apenas um ser sexuado, mas dotado de sexualidade perversa.

O estudo da sexualidade infantil fornece ensinamentos valiosos à compreensão da sexualidade no adulto. Freud (1905/2006aFreud, S. (2006a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. VII, 128-231). Imago (Trabalho original publicado em 1905)) destaca como uma das características mais importantes da prática sexual da criança o fato de que, em um primeiro momento, tal prática não está dirigida a outra pessoa, mas se satisfaz no próprio corpo, é “autoerótica”. E observa que a sexualidade infantil é “perverso-polimorfa”, de modo que o pequeno sujeito vem a praticar todas as transgressões possíveis: se exibe e gosta de ficar olhando, ou seja, ela é exibicionista e voyeurista; se satisfaz ao chupar o dedo, por exemplo, e ao manipular a própria genitália; e pratica atividades anais e sadomasoquistas. O que se encontra na sexualidade infantil se manifesta na idade adulta nos fetiches dos perversos, nas alucinações e delírios dos psicóticos, no inconsciente dos neuróticos e nos jogos sexuais de todos.

A partir desses primeiros estudos freudianos, a psicanálise passou a se afirmar como uma descoberta revolucionária acerca da sexualidade humana. Ao inscrever o sexual onde era impensável, no infantil e no inconsciente, Freud fez cair por terra o encanto de uma pretensa inocência infantil. Se, num primeiro momento, a criança expressa sua sexualidade na relação consigo própria (autoerotismo), é na relação com os pais - ou com seus substitutos, que ela irá desempenhar suas primeiras relações objetais.

Inicialmente, essas relações são do tipo passivo: a criança é cuidada, acariciada e punida pelos pais. Contudo, gradualmente, há uma reação, ela busca retribuir aos pais aquilo que eles fazem com ela, tornando-se ativa em relação a eles. É nesse momento que se abrem, para a sua libido, saídas. No terreno dessa situação, surge o complexo de Édipo, como resposta aos conflitos entre diferentes tendências da libido: 1) passividade em direção à mãe; 2) passividade em direção ao pai; 3) atividade em direção à mãe; 4) atividade em direção ao pai (Freud, 1931/2017Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931. Edição bilíngue. Blucher. (Trabalho original publicado em 1997). ).

No início, a criança não percebe conflito algum, obtendo satisfação de todas essas tendências, até que se torna difícil para ela unificar sua atividade em direção à mãe e passividade em direção ao pai - ou o contrário. Se o menino, por exemplo, quiser expressar sua atividade direcionada à mãe, encontra o pai em seu caminho, pois, afinal, é o pai quem possui a mãe, e não ele. Se, por um lado, ele quer direcionar sua atividade agressiva ao pai para afastá-lo, já que ele representa um obstáculo para se chegar à mãe, por outro, também quer se submeter ao pai em todos os aspectos - não pode possuir a mãe e, ao mesmo tempo, permanecer passivo em relação ao pai. A intenção de eliminar o pai é incompatível com a passividade em direção a ele e, assim, o escoamento da libido se encontra em um conflito (Freud, 1931/2017Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931. Edição bilíngue. Blucher. (Trabalho original publicado em 1997). ).

Cabe acrescentar que, na idade precoce do surgimento do complexo de Édipo, a criança ainda não tem conhecimento sobre a diferença entre os sexos, de modo que a mãe e o pai, para ela, inicialmente, não são tomados como seres sexuados. Até que, em algum momento, ela percebe que falta em algumas pessoas o pênis que supunha haver em todos os seres animados, chegando a concluir que a mulher possuía um pênis e que ele foi cortado. O menino é tomado pela angústia de castração, enquanto a menina supõe, com espanto e horror, que um dia possuiu um pênis que foi de algum modo subtraído.

No caso do menino, a posição ativa para com o pai é intensificada e agora é marcada por hostilidade, derivada do medo de que o pai venha a castrá-lo por desejar a mãe. Isso justifica o desejo de morte do pai, que muitas vezes se expressa nos sonhos. E a posição tenra e ativa em relação à mãe sofre uma limitação, já que ela, como um ser castrado, perdeu parte de seu valor. Em outras palavras, a mãe, enquanto objeto da libido, é desvalorizada (Freud, 1931/2017Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931. Edição bilíngue. Blucher. (Trabalho original publicado em 1997). ).

Na medida em que a libido do menino se desvia da mãe e se dirige ao pai, acontece também um significativo aumento da posição passiva em relação ao pai. A parcela da libido do menino que se voltou para a feminilidade (prazer na passividade e necessidade de se submeter ao pai) alcançaria satisfação completa caso se realizasse o pressuposto do menino: de que, por meio da castração, um homem se transformasse em uma mulher. Logo, sua passividade o impele ao desejo de aceitar a castração, tornando-se mulher - identificando-se à própria mãe - e, dessa forma, se livrando definitivamente da angústia de castração. Ele deseja ocupar o lugar de sua mãe, ao lado do pai, substituindo-a (Freud, 1931/2017Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931. Edição bilíngue. Blucher. (Trabalho original publicado em 1997). ).

Chegamos, então, aos dois dilemas que compõem o complexo de Édipo: o desejo do menino de matar o pai e, ao mesmo tempo, de se submeter incondicionalmente a ele - “mesmo que por meio do sacrifício da castração e da sua transformação em mulher” (Freud, 1931/2017Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931. Edição bilíngue. Blucher. (Trabalho original publicado em 1997). , p. 57). Mas, embora agora sinta repulsa pela mãe - por ela representar uma advertência da indesejada castração -, ele quer possuí-la, ser seu amante. Esse conflito se torna tão insuportável que o sujeito é lançado a trilhar uma saída. Há, então, uma nova identificação, agora com o pai. Ou seja, ao se ver como incapaz de eliminar o pai ou de submeter-se a ele, a identificação ao pai é um recurso que seria compatível com a eliminação do pai, incorporando-o, sem precisar assassiná-lo, tornando-se, ele próprio, o grande e admirável pai. O menino “mostrará interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser como ele e tomar seu lugar em tudo. Podemos simplesmente dizer que toma o pai como seu ideal” (Freud, 1931/2017Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931. Edição bilíngue. Blucher. (Trabalho original publicado em 1997). ).

[Essa identificação] pode tornar-se expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo do afastamento de alguém. Comporta-se como um derivado do primeiro estádio da organização da libido, da fase oral, em que o objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é assimilado pela ingestão, sendo, dessa maneira, aniquilado como tal. (p. 13)

Em acréscimo ao que já foi dito, é preciso considerar que a criança não toma o pai como objeto de identificação pelo que ele realmente é. Trata-se de um pai “cujo poder e cujas prerrogativas sofreram um extraordinário aumento, enquanto suas fraquezas e erros foram negados” (Freud, 1931/2017Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931. Edição bilíngue. Blucher. (Trabalho original publicado em 1997). , p. 61). Esse pai da infância, onipotente, onisciente e absolutamente bondoso, se transformou, por meio dessa incorporação, em uma instância psíquica, o ideal do eu e supereu, em cuja função negativa e proibidora nos é conhecida pela consciência moral. O desejo parricida resultou na identificação com o pai “e esta, por sua vez, resultou no ideal do eu, o supereu”, que, por toda a vida do sujeito, irá “advertir, reprovar, reprimir [recalcar] e tentar represar e desviar das suas metas todas as moções de desejo da libido”, de modo que sempre haverá uma luta travada entre a libido do eu e o supereu (Freud, 1931/2017Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931. Edição bilíngue. Blucher. (Trabalho original publicado em 1997). , p. 61). A atividade agressiva direcionada ao pai leva a criança à uma identificação paterna e a criação do supereu; enquanto a passividade em relação ao pai leva a uma identificação do tipo materna. O mesmo se aplica, com as substituições necessárias, à menina.

Na menina o complexo de Édipo é uma formação secundária. As repercussões do complexo de castração o precedem e o preparam. E quanto à relação entre o complexo de Édipo e o complexo de castração, se estabelece uma oposição fundamental entre os sexos. Enquanto o complexo de Édipo do menino termina devido ao complexo de castração, o da menina é possibilitado e introduzido por esse último. Corresponde à distinção entre castração consumada e a mera ameaça de castração. (Freud, 1925/2006bFreud, S. (2006b). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XIX, 273-286). Imago. (Trabalho original publicado em 1925), p. 285)

Posto isso, Freud (1931/2017Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931. Edição bilíngue. Blucher. (Trabalho original publicado em 1997). ) também sustenta que, ao refletirmos sobre a identificação com o pai no complexo de Édipo, devemos distingui-la da escolha dele como objeto. No caso da identificação, o pai seria o que gostaríamos de ser; já na escolha de objeto, ele seria quem gostaríamos de ter. Na verdade, primeiro tipo de laço da identificação já é possível antes que qualquer escolha de objeto tenha sido feita. A identificação se esforça por moldar o eu de um sujeito segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo. O complexo de Édipo é, com efeito, um processo de alternância entre aquele com quem o sujeito se identifica e aquele com quem toma como objeto de investimento - um funcionamento reverso entre identificação e escolha de objeto.

Na verdade, desde os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud (1905/2006aFreud, S. (2006a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. VII, 128-231). Imago (Trabalho original publicado em 1905)) já afirmara que qualquer substituição do problema psicológico pelo anatômico é inútil e injustificada. Mais tarde, em sua “Conferência XXXIII” (1933/2006cFreud, S. (2006c). Conferência XXXIII - Feminilidade. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XXII, 113-134). Imago. (Trabalho original publicado em 1933)), sobre a feminilidade, o autor insistiu que aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade foge ao alcance da anatomia. Nesse texto, a expressão da feminilidade é definida como tendência à passividade, principalmente na necessidade de ser amado, inclinação a submeter-se a outros - que alcança o seu extremo no masoquismo. Por outro lado, a masculinidade teria como característica a atividade, ou seja, a necessidade de amar, “de obter poder sobre outras pessoas, e subjugar o mundo externo e alterá-lo de acordo com seus próprios desejos” (Freud, 1931/2017Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931. Edição bilíngue. Blucher. (Trabalho original publicado em 1997). , p. 41).

Embora se espere que a proporção relativa à feminilidade e à masculinidade seja decidida pelo sexo manifesto da pessoa, masculinidade/feminilidade anatômica e psicológica não devem ser confundidas, pois, com frequência, não se apresentam juntas. Na verdade, na maioria dos casos, ambas, masculinidade e feminilidade são bem desenvolvidas - daí a concepção da bissexualidade como constitutiva do sujeito. A masculinidade inata pode ser mais forte do que a feminilidade, ou o contrário: “nas pessoas, tomadas individualmente, encontram-se realizadas, em uma proporção relativa, todas as possíveis gradações.” (Freud, 1931/2017Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931. Edição bilíngue. Blucher. (Trabalho original publicado em 1997). , p. 43).

Posto isto, entendemos, com Freud, que o papel de gênero é construído através da história, é passado adiante pela cultura e não se manifesta de forma inata num sujeito, de modo que anatomia, gênero e escolha de objeto são esferas vinculadas artificialmente (Freud, 1920/2006dFreud, S. (2006d). A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XVIII, 157-183). Imago. (Trabalho original publicado em 1920)). De todas as formas, o acento dado por Freud à bissexualidade, conforme os aportes de Lacan à teoria freudiana, evidencia que “a identificação do sujeito a um dos sexos é algo que ocorre secundariamente e por causalidade” (Lacan, 1975/1994Lacan, J. (1994). Respuesta a uma pregunta de Marcel Ritter (Vol. 2, 126-135). In Estudios de Psicosomática. (Trabalho original publicado em 1975), p. 14, tradução nossa) - e isso é resultado do fato de sermos seres de linguagem.

Seguindo essa linha de raciocínio, Lacan considera que o “erro comum”, é reconhecer homens e mulheres pelo que se distinguem anatomicamente, e não em função de critérios formados sob a dependência do simbólico (Lacan, 1971-1972/2012Lacan, J. (2012). O seminário, livro 19: ...ou pior. Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1971-1972)). Anteriormente, nos anos sessenta, em “Posição do inconsciente” (1960/1998aLacan, J. (1998a). Posição do inconsciente. In J. Escritos (843-864). Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1960)) ele concluiu com Freud que “norma”, designa as normas do discurso. Portanto, homem e mulher são produtos do Outro do discurso. E acrescenta: “não é verdade que Deus os tenha feito macho e fêmea” (Lacan, 1960/1998aLacan, J. (1998a). Posição do inconsciente. In J. Escritos (843-864). Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1960), p. 864), pois o espaço da ordem e da norma é o espaço dos semblantes de homem e mulher.

Na década de setenta, em O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante (1971/2009Lacan, J. (2009). O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1971)), o mestre de Paris apresenta a identidade de gênero como oposição homem e mulher, mostrando que esses termos são significantes. E observa que todo significante carrega consigo uma opacidade e, por isso, não podemos propor que há sujeito masculino ou feminino, o sujeito é o que um significante representa para outro significante.

No seminário seguinte, O Seminário, livro 19: ...ou pior, quando se refere à diferença anatômica, Lacan insiste: “Não é que eu negue a diferença que existe, desde a mais tenra idade, entre o que chamamos de uma menina e um menino. É inclusive daí parto” (Lacan, 1971-1972/2012Lacan, J. (2012). O seminário, livro 19: ...ou pior. Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1971-1972), p. 13). E continua,

[...] essa diferença que se impõe como inata é, com efeito, muito natural. Corresponde ao que há de real no fato de que [...] os sexos parecem dividir-se em dois números mais ou menos iguais de indivíduos. Bem cedo, mais cedo do que se espera, esses indivíduos se distinguem, isso é certo (Lacan, 1971-1972/2012Lacan, J. (2012). O seminário, livro 19: ...ou pior. Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1971-1972), p. 15).

De fato, não se trata de negar as diferenças anatômicas, mas de considerar que, como Freud (1925/2006bFreud, S. (2006b). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XIX, 273-286). Imago. (Trabalho original publicado em 1925)) enfatizou, elas produzem consequências psíquicas. A linguagem promove a “desnaturalização” do corpo, na medida em que faz com que a diferença entre os sexos só tenha efeitos se significantizada. É por só reconhecer o falo que o inconsciente não aponta para a diferença sexual (Lacan, 1958/1998bLacan, J. (1998b). A significação do falo. In Escritos (262-703). Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1958)).

Considerando o percurso até aqui realizado, que evidencia claramente o caráter disruptivo da teoria psicanalítica em relação às concepções clássicas de sexualidade e gênero, cabe retomarmos as indagações que abrem este estudo, que podem ser sintetizadas na seguinte questão: se a psicanálise presenteou a humanidade com uma inovadora concepção de sexualidade, por outro lado, há, hoje, uma adesão de um número cada vez maior de pessoas que comungam das mais absurdas hipóteses no que se refere à sexualidade humana e a completa rejeição e até pavor de temas como homossexualidade, transexualidade, sexualidade infantil etc. O que justificaria esse retrocesso?

Quando a paixão pela ignorância supera o desejo de saber

Sabe-se que o termo “pulsão” (Trieb) foi utilizado por Freud ao abordar a sexualidade humana em seus “Três ensaios” (1905/2006aFreud, S. (2006a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. VII, 128-231). Imago (Trabalho original publicado em 1905)) para diferir a sexualidade humana do instinto sexual dos animais, uma vez que o sexual se desdobra de forma complexa e não pode ser reduzida à reprodução da espécie. A pulsão, ao contrário do instinto, se presentifica na série infinita de objetos substitutivos e evidencia a impossibilidade da satisfação integral, já que, conforme demonstrou Lacan em seu ensino, nunca atinge o objeto, mas o contorna (Lacan, 1964/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1964)).

Dentre os objetos das pulsões parciais, destacamos o olhar, que está fundamentalmente enraizado no desejo de saber. Mas qual seria exatamente a relação entre o escópico e o epistemofílico? Entende-se que a visão, em última instância, é uma atividade que deriva do tocar por ser a impressão visual o caminho mais frequente ao longo do qual a excitação é causada. A criança, por não ter, de modo geral, acesso ao corpo desnudo do adulto, se mantém curiosa sobre a nudez e a sexualidade - curiosidade que busca completar o objeto sexual a partir do desnudamento de suas partes ocultas. Essa curiosidade pode vir a ser desviada para objetivos assexuais mais elevados pela via da sublimação, que constitui um desvio da pulsão em relação ao seu alvo, de um alvo sexual para outro, não sexual, propiciando realizações culturais dentre as quais destacamos o desenvolvimento científico (Freud, 1905/2006aFreud, S. (2006a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. VII, 128-231). Imago (Trabalho original publicado em 1905)).

Nesse caso, o alvo inicial seria os órgãos genitais do outro, e a pulsão seria satisfeita a partir da visão destes. Mas a pulsão, sublimada, irá em direção a objetos socialmente valorizados, como a produção intelectual ou artística, e encontrará satisfação (sempre parcial) nos mesmos. O desejo de saber se apoiaria, então, na pulsão escópica, cuja base é a pulsão sexual e as consequentes teorias sexuais infantis.

Freud (1908/2006eFreud, S. (2006e). Sobre as teorias sexuais das crianças. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. IX, 189-204). Imago. (Trabalho original publicado em 1908)) descreve três teorias típicas elaboradas pelas crianças: a universalidade do pênis, que estaria presente em homens, mulheres e qualquer ser animado; e dessa teoria, se origina a segunda: “se o bebê se desenvolve no corpo da mãe, sendo então retirado, isto só pode acontecer através de um único caminho: a passagem anal” (Freud, 1908/2006eFreud, S. (2006e). Sobre as teorias sexuais das crianças. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. IX, 189-204). Imago. (Trabalho original publicado em 1908), p. 198); e, quando a criança presencia o coito dos pais, formula sua terceira teoria, a de que o ato sexual é um ato de violência. O fato é que, a partir de então, a criança experimenta um tipo de conflito psíquico, já que suas teorias se contrapõem às explicações defendidas pelos adultos. Entretanto, tais explicações não parecem aceitáveis para a criança.

[...] o conjunto de concepções consideradas boas, mas que resultam numa cessação da reflexão, torna-se o conjunto das concepções dominantes e conscientes, enquanto o outro conjunto, a favor do qual o trabalho de investigação infantil coligiu novas provas, as quais entretanto não devem ser consideradas, torna-se o conjunto das opiniões reprimidas e inconsciente. Está assim formado o complexo nuclear de uma neurose. (Freud, 1908/2006eFreud, S. (2006e). Sobre as teorias sexuais das crianças. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. IX, 189-204). Imago. (Trabalho original publicado em 1908), p. 217)

Em suma, no declínio do complexo de Édipo, espera-se que os investimentos libidinais sejam desprezados, dessexualizados e, em parte, sublimados. O prazer de olhar e as teorias sexuais infantis, que se tornaram causa de conflito psíquico, encontrariam na curiosidade dirigida às “coisas do mundo” um destino - se houver sublimação. Mas, e quando não há sublimação?

Em seu ensaio sobre Leonardo da Vinci, de 1910, Freud enumera três destinos possíveis para o desejo de saber: a sublimação, como já foi abordado aqui, o sintoma obsessivo e a inibição neurótica. Vejamos, agora, a relação entre a pulsão de saber e o sintoma obsessivo.

O que nos interessa aqui, no que se refere ao sintoma obsessivo, é a substituição (ou deslocamento) do agir pelo pensar, que estaria, segundo Freud (1909/2006fFreud, S. (2006f). Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. X, 137-276). Imago. (Trabalho original publicado em 1909)) relacionado a um encontro precoce com o sexo, marcado por um excesso de gozo da pulsão escópica que, não sublimada, irá se manifestar na ruminação mental. Trata-se de um processo inverso ao desejo de saber, já que, em vez de impulsionar o sujeito a novas descobertas, ele goza com o próprio ato de pensar. O sintoma obsessivo é, então, marcado por uma erotização das operações intelectuais, de modo que as pesquisas assumem um caráter compulsivo, repetindo-se, infinitamente, a partir de especulações, sem que se chegue a uma conclusão.

Chegamos, então, ao terceiro destino da pulsão de saber: a inibição neurótica. A pesquisa, como vimos, participa do destino da sexualidade. Contudo, a neurose, na maioria das vezes, é marcada por uma certa debilidade no que se refere ao saber sobre si, sobre seus próprios desejos. A curiosidade sexual permanece inibida e a liberdade da atividade intelectual poderá ficar limitada durante todo o decorrer da vida - sobretudo, devido à influência da educação, que acarretará uma inibição religiosa do pensamento.

Se tomarmos o campo das paixões como uma das maneiras com as quais o sujeito tem de se defender da falta que o estrutura, chegamos à tríade de Spinoza: amor, ódio e ignorância, que constitui as paixões do ser. “Se a falta-a-ser sustenta o amor enquanto demanda ao Outro, também o ódio e a ignorância são respostas do Outro que sempre é solicitado a completar o ser” (Lacan, 1958/1998cLacan, J. (1998c). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In Escritos (591-652). Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1958), p. 633-634).

Disso, construímos a hipótese de que os grupos sociais considerados “desviantes” representariam perigo para o sujeito que “nada quer saber”, pois, de algum modo, aqueles “estranhos” lhes refletiriam algo de muito íntimo. Afinal, a gênese do sujeito é um processo individual e coletivo, advém da relação com o outro, do heterogêneo em relação a si mesmo.

Olhando com atenção para o caso brasileiro, percebe-se que o autoritarismo se valeu de uma ideologia da intolerância que se expressa na perseguição e tentativa de controle de grupos. Nesse contexto, destacam-se as violências, em diferentes níveis, contra a comunidade LGBTQI+ por sua orientação sexual ou identidade de gênero divergentes dos padrões tidos como normais. O sujeito “desviante” é tratado como um inimigo interno que deveria ser combatido a qualquer custo para se preservar a “família tradicional” e os “valores” de uma sociedade marcada por conservadorismos no campo da sexualidade - consequência de seus contornos morais e, principalmente, religiosos.

Em 1933, Freud publicou, em suas “Novas conferências introdutórias”, a Conferência XXXV, intitulada “A questão da Weltanschauung”. Segundo Freud, Weltanschauung, um conceito especificamente alemão cuja tradução para línguas estrangeiras apresenta dificuldades, “é uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo. Acreditando-se nela, pode-se sentir segurança na vida, pode-se saber o que se procura alcançar e como se pode lidar com as próprias emoções e interesses da maneira mais apropriada.” (Freud, 1933/2006gFreud, S. (2006g). Conferência XXXV - A questão de uma Weltanschauung. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XXII, 155-177). Imago. (Trabalho original publicado em 1933), p. 155).

Nessa conferência, Freud (1933/2006gFreud, S. (2006g). Conferência XXXV - A questão de uma Weltanschauung. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XXII, 155-177). Imago. (Trabalho original publicado em 1933)) considera a religião como útil e respeitável, desde que ela se mantenha dentro de sua própria esfera, ou seja, desde que não tente limitar ou interferir no discurso da ciência. Quando o discurso religioso, isento das regras do pensar racional, tenta se sobrepor à ciência, essa intromissão, nos diz Freud, deve ser repelida. Aceitar as explicações de cunho religioso para processos complexos, como os de sexualidade e gênero, seria como entrar em um avião cujo piloto nos anuncia que pilota segundo os rompantes de sua imaginação desenfreada. Afinal, “simplificar é muito louvável, mas não devemos sacrificar a verdade pela simplicidade.” (Freud, 1931/2017Freud, S. (2017). Manuscrito inédito de 1931. Edição bilíngue. Blucher. (Trabalho original publicado em 1997). , p. 49).

Nessa mesma conferência, Freud (1933/2006gFreud, S. (2006g). Conferência XXXV - A questão de uma Weltanschauung. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XXII, 155-177). Imago. (Trabalho original publicado em 1933)) enfatiza a importância do intelecto, da razão, entre os poderes que mais esperamos vir a exercer algum tipo de influência unificadora sobre os homens - seres tão difíceis de manter unidos e de governar.

Pode-se imaginar como seria impossível existir a sociedade humana, se cada pessoa simplesmente tivesse a sua tabuada particular para multiplicar e suas próprias medidas para aferir comprimento e peso. Nossa maior esperança para o futuro é que o intelecto - o espírito científico, a razão - possa, com o decorrer do tempo, estabelecer seu domínio sobre a vida mental do homem. A natureza da razão é uma garantia de que, depois, ela não deixará de dar aos impulsos emocionais do homem, e àquilo que estes determinam, a posição que merecem. A compulsão comum exercida por um tal domínio da razão, contudo, provará ser o mais forte elo de união entre os homens e mostrará o caminho para uniões subsequentes. Tudo aquilo que, à semelhança das proibições da religião contra o pensamento, se opõe a uma evolução nesse sentido, é um perigo para o futuro da humanidade. (Freud, 1933/2006gFreud, S. (2006g). Conferência XXXV - A questão de uma Weltanschauung. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XXII, 155-177). Imago. (Trabalho original publicado em 1933), p. 167)

Diferentemente da religião, tudo o que a ciência nos ensina é provisoriamente verdadeiro: o que hoje é valorizado, amanhã será rejeitado e substituído por alguma outra coisa - mais uma tentativa -, de modo que o último erro é sempre qualificado como verdade. Apesar das dificuldades que isso representa, a ciência continua indispensável para a humanidade, uma vez que nada pode tomar o seu lugar. É capaz de melhoramentos jamais sonhados, ao passo que aWeltanschauungreligiosa não o é.

Freud indaga-se, então: por que aqueles que criam e disseminam informações sem nenhum fundamento científico simplesmente não admitem que suas teorizações são justamente as que mais se afastam da verdade? Eles não poderiam admitir tal coisa, porque isso implicaria a perda de toda a sua influência sobre a massa. Os adeptos daWeltanschauungreligiosa agem segundo o velho ditado: a melhor defesa é o ataque (Freud, 1933/2006g). Poderíamos, então, afirmar que todo esse pudor e moralidade representariam uma defesa contra os seus próprios desejos? E de que modo Freud inseriu sua teoria na luta contra os fenômenos de hostilidade ao outro?

Do preconceito à intolerância: um olhar psicanalítico

Quando em psicanálise nos referimos a esse tipo de aversão, entramos no campo da angústia, o signo do colapso de todos os pontos referenciais identificatórios que o contato com a diferença causa. Se a diferença pode estar em qualquer lugar, bastando que o real do outro se manifeste como estrangeiro, quanto mais o discurso se exercita no sentido da uniformização, tanto mais o disforme tende a se manifestar. O princípio de unidade que prescinde do exterior leva o ódio ao paroxismo, à eliminação do outro. (Koltai, 2000Koltai, C. (2000). Política e psicanálise: O estrangeiro. Escuta. ).

Podemos trazer para essa discussão o fato de a homossexualidade, no regime nazista, ser fonte de ódio ao outro que determinou a segregação dos sujeitos homossexuais. Desde o final do século XIX, a aversão aos homens e às mulheres cuja escolha por diferentes posições libidinais, que não as determinadas pela anatomia dos sexos, foi o fio condutor da patologização da homossexualidade, considerada uma alteração sexual. Mas não foi apenas isso: o famoso parágrafo 175 do Código Civil da Alemanha criminalizou as relações homossexuais baseando-se, justamente, nesse diagnóstico de doenças de seres inferiores e degenerados.

No alvorecer do século XX, Freud contrapôs ao ideal da relação sexual marcada pela anatomia do sexo um outro olhar: o homem é um animal pulsional, ou seja, movido por uma força constante em direção a um objeto faltoso. Desde então, Freud, como formula Marco Antonio Coutinho Jorge (2020Coutinho Jorge, M. A. (2020). O real e o sexual: Do inominável ao pré-conceito. In A. Quinet. & M. A. Coutinho Jorge (Eds.). As homossexualidades na psicanálise (19-32). Atos e Divãs Edições.), empenhou-se em mostrar que há um real do sexo inabordável pelo simbólico sobre o qual a cultura tenta urdir a complementariedade entre os dois sexos. Nada poderia ilustrar melhor essa ideia do que a própria cultura nazista que, na tentativa de tornar verdade absoluta a fantasia de atração entre sexos opostos, edificou uma fábrica de extermínio de alteridades. O Nacional Socialismo, de mãos dadas com a ciência, arrastou ao paroxismo o horror a outras versões da sexualidade humana que não aquela cientificamente “normal”. Entre as denúncias que Freud fez a esse conluio “cientificista” com vistas a anular a diferença sexual, o real em jogo na sexualidade, há uma passagem em “O homem Moisés e a religião monoteísta” bastante contundente: “Vivemos numa época particularmente curiosa. Descobrimos com espanto que o progresso selou uma aliança com a barbárie” (Freud, 1939/2014Freud, S. (2014). O homem Moisés e a religião monoteísta. L&PM. (Trabalho original publicado em 1939), p. 89). O que interessa aqui ressaltar é que todo o desenvolvimento teórico do fenômeno de intolerância ao outro apresentado por Freud no referido texto ilumina com cores fortes a sua declaração ao jornal vienense Die Zeit, em 27 de outubro de 1903, 3 anos depois de fundar a psicanálise:

A homossexualidade não é algo a ser tratado nos tribunais. Eu tenho a firme convicção que os homossexuais não devem ser tratados como doentes, pois uma tal orientação não é uma doença. Isto nos obrigaria a qualificar como doentes um grande número de pensadores que admiramos justamente em razão de sua saúde mental [...]. Os homossexuais não são pessoas doentes. Eles também não devem ser julgados por nenhuma corte de justiça. (Freud como citado em Ceccarelli, 2008Ceccarelli, P. R. (2008). A invenção da homossexualidade.Revista Bagoas, 2, 71-93., p. 76)

Três décadas após essa entrevista, Freud assina um apelo ao Reichstag alemão junto com Arthur Schnitzler, Stefan Zweig, Herman Swoboda e outros, para revogar a parte do código penal que havia transformado relações homossexuais em crime. Um fragmento desse manifesto nos dá a medida de quanto a psicanálise, aí representada pela assinatura de Freud, em sua tessitura teórica abriu as portas para se pensar novas formas de subjetividade, mais além da anatomia sexual:

Essa lei representa grave violação dos direitos humanos, porque nega aos homossexuais a própria sexualidade, embora os interesses de terceiros não sejam usurpados [...]. Os homossexuais têm os mesmos direitos civis a cumprir, como todos os outros. Mesmos direitos civis, mas, sobretudo, o direito de permanecer exercendo uma orientação sexual estrangeira à maioria. (Freud, 1977Freud, S. (1977, June). The gay right Freud. Body Politic, 34. https://shorturl.at/rCLQ8
https://shorturl.at/rCLQ8...
).

Entretanto, quando convidado a escrever numa coluna do jornal inglês Time and Tide, sobre o antissemitismo, em 1938, Freud ponderou que uma tomada de posição contra o antissemitismo e a favor do povo judeu deveria vir do outro, da maioria. Portanto, preferiu declinar o convite. Essa é a mesma posição que encontramos em um pequeno texto de 1938, intitulado “Um comentário sobre o antissemitismo”, escrito logo depois de ter decidido publicar seu “O homem Moisés e a religião monoteísta” na Inglaterra. Se nos fosse permitido sugerir uma interpretação para a decisão de não advogar em causa própria, em contraposição à petição assinada em favor dos homossexuais, diríamos que ela traduz uma posição ética em que a identificação ao outro excluído do laço social constitui uma estratégia de combate à barbárie.

Acreditamos que os analistas encontram, na assinatura de Freud em favor dos homossexuais e em sua resposta negativa ao jornal inglês de se pronunciar sobre o antissemitismo, um paradigma da responsabilidade do sujeito pelo outro da diferença. Dar voz aos acontecimentos relegados à margem: a loucura, os fenômenos sensitivos, as percepções, as imagens e crenças diagnosticados pela psicologia e medicina como mero erro de sentido, ou mesmo puramente ilusórias - não foi isso também o que marcou o nascimento da prática analítica?

Parece, portanto, mais do que justo que Freud tenha colocado à prova, em seu texto testamentário, “O homem Moisés”, a consistência dos conceitos metapsicológicos que sustentam a teoria psicanalítica da intolerância. Nesse processo, ele revisitou o campo da política - que naqueles tempos sombrios, de mãos dadas com a ciência e a razão, tinha decidido, em nome de um ideal, destruir tudo aquilo que não é semelhante, sem considerar que é justamente o dessemelhante que estrutura qualquer subjetividade.

Anteriormente, em “O mal estar na cultura”, Freud (1930/2006hFreud, S. (2006h). O mal-estar na civilização. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XXI, 67-148). Imago. (Trabalho original publicado em 1930)) se valera da noção de “narcisismo da pequena diferença”, cunhada no texto “O tabu da virgindade” (Freud, 1918/2006iFreud, S. (2006i). O tabu da virgindade. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XI, 197-215). Imago. (Trabalho original publicado em 1918)), para analisar as brigas entre povos irmãos com características muito semelhantes. No “narcisismo da pequena diferença” trata-se de pinçar uma característica do sujeito e reduzir o sujeito a esse traço, tratando-o como diferente e desprezível por causa daquela característica. A repulsa, projetada sobre um objeto externo a quem é endereçado ódio está, na verdade, relacionada ao que lhe é mais íntimo, familiar.

No dia 1º de agosto de 1936, Adolf Hitler abria a XI Olimpíada, também chamada de Jogos Olímpicos de Verão, em Berlim, na Alemanha. Os Jogos Olímpicos, realizados de 1º a 16 de agosto, marcaram a história da Olimpíada e, também, da Alemanha. Hitler não poupou dinheiro e esforços para usar o evento como propaganda de uma Alemanha nazista pacífica. Ele retirou das ruas todos os símbolos antissemitas, prendeu cerca de 800 ciganos que viviam na cidade e criou uma delegação com 348 atletas, em sua maioria arianos. O Terceiro Reich conseguiu polarizar os olhares, provocando um fenômeno de identificação que pôde ser facilmente percebido nos olhos da massa exaltada do estádio. Esse evento foi um marco na história do nazismo, que terminou emudecendo milhares de inocentes em campos de extermínio.

Dias após a abertura dos Jogos Olímpicos, um jovem psicanalista chamado Jacques Lacan foi à Marienbad, para o XIV Congresso Internacional de Psicanálise, onde apresentava suas primeiras considerações sobre o que viria, mais tarde, a conceituar como “estádio do espelho”. Com essa formulação, Lacan (1949/1998dLacan, J. (1998d). O estádio do espelho como formador da função do eu. In. Escritos (96-103). Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1949)) retomou as teorizações de Freud a respeito da constituição do eu em sua relação intrínseca com o outro - o estrangeiro como condição da identidade, reafirmando que o potencial de exclusão, situado para além de uma diferenciação entre o eu e o outro, visaria eliminar a diferença: “ou eu, ou o outro; ou eu mato o outro, para quebrar esta imagem insuportável, ou ele me mata, roubando-me a mim mesmo” (Julien, 1993Julien, F. (1993). O retorno a Freud de Jacques Lacan. Médicas Sul., p. 139).

A força da discriminação viria, então, da fascinação primordial de cada um pelo seu semelhante. Essa visão, ilusão especular, exclui o estranho (Unheimlich) de que fala Freud (1919/2006jFreud, S. (2006j). O estranho. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XVII, 235-273). Imago. (Trabalho original publicado em 1919)), que é aquele com quem o sujeito não poderia se identificar, pois, por ser tão familiar a ele, não lhe permitiria nenhum tipo de diferenciação. Após sua apresentação em Marienbad, Lacan deixou o congresso para assistir as Olimpíadas em Berlim e foi à quermesse nazista. O que acabara de evidenciar em sua comunicação foi a fonte do preconceito e intolerância e, em Berlim, recebeu um espetáculo manifesto disso.

Referências

  • Ceccarelli, P. R. (2008). A invenção da homossexualidade.Revista Bagoas, 2, 71-93.
  • Coutinho Jorge, M. A. (2020). O real e o sexual: Do inominável ao pré-conceito. In A. Quinet. & M. A. Coutinho Jorge (Eds.). As homossexualidades na psicanálise (19-32). Atos e Divãs Edições.
  • Fonseca, B., Lara, E., Hauber, G., & Policarpo, A. (2018, 17 outubro). A eleição do “kit gay”. Revista Exame https://exame.com/brasil/a-eleicao-do-kit-gay/
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  • Freud, S. (1977, June). The gay right Freud. Body Politic, 34. https://shorturl.at/rCLQ8
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  • Freud, S. (2006a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. VII, 128-231). Imago (Trabalho original publicado em 1905)
  • Freud, S. (2006b). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XIX, 273-286). Imago. (Trabalho original publicado em 1925)
  • Freud, S. (2006c). Conferência XXXIII - Feminilidade. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XXII, 113-134). Imago. (Trabalho original publicado em 1933)
  • Freud, S. (2006d). A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XVIII, 157-183). Imago. (Trabalho original publicado em 1920)
  • Freud, S. (2006e). Sobre as teorias sexuais das crianças. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. IX, 189-204). Imago. (Trabalho original publicado em 1908)
  • Freud, S. (2006f). Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. X, 137-276). Imago. (Trabalho original publicado em 1909)
  • Freud, S. (2006g). Conferência XXXV - A questão de uma Weltanschauung In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XXII, 155-177). Imago. (Trabalho original publicado em 1933)
  • Freud, S. (2006h). O mal-estar na civilização. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XXI, 67-148). Imago. (Trabalho original publicado em 1930)
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  • Freud, S. (2006j). O estranho. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XVII, 235-273). Imago. (Trabalho original publicado em 1919)
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  • Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1964)
  • Lacan, J. (2009). O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1971)
  • Lacan, J. (2012). O seminário, livro 19: ...ou pior. Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1971-1972)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2020
  • Aceito
    01 Abr 2021
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