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Sobre a interpretação antropológica: Sahlins, Obeyesekere e a racionalidade havaiana

Resumos

Empreende-se neste ensaio um esforço de conhecer os pressupostos antropológicos de interpretação do pensamento havaiano do século XVIII a partir da elucidação recíproca dos argumentos de Marshall Sahlins e Gananath Obeyesekere sobre esta maneira de pensar. Não sendo possível reproduzir os argumentos dos autores em toda sua profusão etnográfica e sofisticação teórica, optou-se por destacar a questão da identificação pelos havaianos do capitão Cook como seu deus Lono de modo a explicitar as preocupações de Sahlins e Obeyesekere quanto à validade de tal prática como um comportamento racional.

interpretação antropológica; racionalidade havaiana; Sahlins; Obeyesekere


This essay is an attempt to understand the anthropological presuppositions of interpretation of Hawaiian thought in the 18th century considering the reciprocal elucidation of Marshall Sahlins's and Gananath Obeyesekere's arguments about this way of thinking. It is not possible to reproduce the authors' arguments in all their ethnographical profusion and theoretical sophistication therefore it was our option to emphasize the identification of Captain Cook as the Hawaiian god Lono in order to make explicit Sahlins's and Obeyesekere's concerns regarding the validity of such a practice as a rational behavior.

Antropological interpretation; Hawaiian rationality; Sahlins; Obeyesekere


Sobre a interpretação antropológica: Sahlins, Obeyesekere e a racionalidade havaiana1 1 Gostaria de agradecer ao Prof. Dr. Luís Roberto Cardoso de Oliveira pelo "Seminário Avançado de Teoria An tropológica", ministrado com excelência por ele durante o segundo semestre de 2001, na Universidade de Brasília. Esta disciplina possibilitou o trabalho que ora se apresenta.

Cristhian Teófilo da Silva

Doutorando em Antropologia – UnB

RESUMO

Empreende-se neste ensaio um esforço de conhecer os pressupostos antropológicos de interpretação do pensamento havaiano do século XVIII a partir da elucidação recíproca dos argumentos de Marshall Sahlins e Gananath Obeyesekere sobre esta maneira de pensar. Não sendo possível reproduzir os argumentos dos autores em toda sua profusão etnográfica e sofisticação teórica, optou-se por destacar a questão da identificação pelos havaianos do capitão Cook como seu deus Lono de modo a explicitar as preocupações de Sahlins e Obeyesekere quanto à validade de tal prática como um comportamento racional.

Palavras-chave: interpretação antropológica, racionalidade havaiana, Sahlins, Obeyesekere.

ABSTRACT

This essay is an attempt to understand the anthropological presuppositions of interpretation of Hawaiian thought in the 18th century considering the reciprocal elucidation of Marshall Sahlins's and Gananath Obeyesekere's arguments about this way of thinking. It is not possible to reproduce the authors' arguments in all their ethnographical profusion and theoretical sophistication therefore it was our option to emphasize the identification of Captain Cook as the Hawaiian god Lono in order to make explicit Sahlins's and Obeyesekere's concerns regarding the validity of such a practice as a rational behavior.

Key-words: Antropological interpretation, Hawaiian rationality, Sahlins, Obeyesekere.

We cannot understand the irrational and to suppose that we can is to run into vicious circles; but we can understand the rational in more than one way.

(Hollis, 1970)

O debate entre Gananath Obeyesekere (1997 [1992]) e Marshall Sahlins (2001 [1995]) acerca dos eventos ocorridos nas ilhas havaianas após a chegada de duas embarcações inglesas comandadas por James Cook em 1788 é exemplar dos muitos conflitos interpretativos que caracterizam a Antropologia enquanto disciplina que encontra na etnografia e na comparação de diferentes sociedades a matéria-prima para sua produção. Originado nas opiniões divergentes que cada autor possui sobre suas práticas teóricas e sobre suas respectivas teorias da prática, o debate parece uma atualização de uma pergunta constitutiva da própria disciplina: como pensar exatamente sobre o pensamento (dos outros)? Sob o signo dessa pergunta, o antagonismo entre Obeyesekere e Sahlins seria a reprodução estereotípica de uma discordância, que, a meu ver, encontra no pensamento de Geertz uma formulação adequada:

Em meu ramo particular das ciências sociais, a antropologia, essa questão está presente há muito tempo e de uma forma especialmente enervante. Malinowski, Boas e Lévy-Bruhl, nas fases formativas da disciplina; Whorf, Mauss e Evans-Pritchard um pouco mais tarde; e Horton, Douglas e Lévi-Strauss no momento atual, nenhum deles conseguiu ignorar a questão. Inicialmente formulada como "o problema da mente primitiva", mais tarde como o problema do "relativismo cognitivo", e mais recentemente como "o problema da incomensurabilidade conceitual" – como sempre nesses assuntos, o que mais progride é a grandiosidade do jargão – a discordância entre uma visão mínimo-denominador-comum da mente humana ("até os papuas tiram a média, diferenciam objetos, e atribuem efeitos a causas") e outra que prega que "outros animais, outros conceitos" ("os amazonenses acham que são periquitos, misturam o cosmos com a estrutura da aldeia e acreditam que a gravidez faz os homens ficarem inválidos") não pode mais ser ignorada.(1999: 221)

Este ensaio almeja restabelecer as premissas interpretativas de Obeyesekere e Sahlins sobre o pensamento havaiano a partir dos problemas colocados acima ou, caso se preferir, a partir da discordância entre uma "visão mínimo-denominador-comum da mente humana" (Obeyesekere) e outra que prega "outros animais, outros conceitos" (Sahlins). Espera-se superar com este enfoque a dissonância do diálogo entre Obeyesekere e Sahlins em prol da elucidação das bases interpretativas que viabilizam o próprio pensamento antropológico diante do pensamento dos nativos. Nesse sentido não me ocuparei das vindicações afetivas e políticas utilizadas pelos autores para se criticarem mutuamente, apesar destas trazerem importantes argumentos de natureza teórica e moral para o exercício da interpretação antropológica. Mais do que saber o que Sahlins e Obeyesekere pensam do pensamento um do outro, importa saber como se situam exatamente diante do pensamento havaiano para interpretá-lo.

***

É importante que se comece do começo. Ao que tudo indica este se dá em 1983 durante palestra proferida por Sahlins em Princeton e que provocou a ira de Obeyesekere quando se sustentou a tese de que o Capitão Cook foi percebido pelos nativos havaianos como seu deus Lono. Na verdade, a eficácia perlocucionária (para usar a terminologia de Austin) da palestra de Sahlins sobre Obeyesekere, persuadindo este a escrever um livro sobre a invenção européia de Cook como um deus para os havaianos, se deu em razão da auto-identificação de Obeyesekere como um nativo do Sri Lanka que não conseguia recordar, enquanto tal, um único caso sequer de deificação de um europeu em seu país de origem. A partir daí, para repetir os comentários de Geertz (1995: 4), o que tenha acontecido a Cook ou aos havaianos, nas mais de 600 páginas que compõem o debate, parece muito menos importante do que as questões levantadas sobre como é que nós atribuímos sentido às ações e emoções de pessoas distantes em tempos remotos.

Nesse sentido, parece mais interessante, para os fins deste ensaio, enfocar o problema da identificação de Cook pelos havaianos ou, mais precisamente, sua designação como Lono, de modo a alcançar por uma via mais direta as "respostas" que os autores ofereceram para tais questões de "sentido". Esse enfoque serviria, portanto, como um instrumento metodológico para interpretar as interpretações de Sahlins e Obeyesekere das interpretações havaianas sobre o Capitão Cook, por exemplo.

Vejamos a tese de Sahlins (Cook-foi-o-deus-Lono-para-os-havaianos), mesmo porque, a mesma foi o estopim do livro de Obeyesekere, a qual passarei a citar em seguida com a intenção de reproduzir por fragmentos a dinâmica do debate que se desenvolveu:

Os primeiros havaianos a chegarem ao Resolution, quando ainda estava ancorado em Kaua'i, aparentemente tinham feito encantamentos consagratórios antes de embarcar. Um deles, sem a menor dissimulação, apanhou a primeira coisa em que pôs os olhos, justamente a linha de prumo do navio. Impedido por contra-encantamentos burgueses do sagrado direito à propriedade, justificou-se que apenas a levava para sua canoa. Tudo acontecia como se o acontecimento histórico fosse a metáfora da realidade mítica. Quando os ingleses aportaram no ano seguinte em Kealakekua, os sacerdotes havaianos puderam objetivar a sua interpretação a respeito da figura de Cook, de ser ele o Deus do Ano Lono, chegando em seu retorno anual para fertilizar a terra. Em uma cena que se tornou célebre fizeram com que o Grande Navegador mantivesse seus braços estendidos em uma imitação da imagem de Lono, enquanto os sacerdotes faziam suas oferendas habituais. [...] Cook obsequiou os havaianos incorporando o papel de Lono até o desfecho fatal. (1990 [1987]: 25-6)

Dentre os vários eventos narrados acima, sobressai o "fato" da identificação de Cook com o deus Lono (que nesta citação de Sahlins é bastante ambíguo, pois ficamos sem saber se Cook foi para os havaianos "o Deus do Ano Lono" ou apenas "uma imitação da imagem de Lono") sobre o qual Obeyesekere argumenta:

I question this "fact", which I show was created in the European imagination of the eighteenth century and after and was based on antecedent "myth models" pertaining to the redoubtable explorer cum civilizer who is a god to the "natives". To put it bluntly, I doubt that the natives created their European god; the Europeans created him for them. This "European god" is a myth of conquest, imperialism, and civilization – a triad that cannot be easily separated. (1997 [1992]: 3)

Sahlins contra-argumenta jogando o feitiço contra o feiticeiro:

Se Cook era o deus Lono em pessoa, é estranho que os jornalistas do navio, apesar das perguntas constantes, não tivessem conseguido descobrir isso; ou que os havaianos, em resposta às perguntas constantes, não pudessem afirmar isso enquanto fato (Ob. 95). [...] O exemplo [desta citação de Obeyesekere] poderia ser batizado de "incurso dilemático em petição de princípio". Ele consiste de duas proposições. Primeiro, a ausência de uma menção européia a Cook = Lono significa que, para os havaianos, Cook não era Lono. E segundo, a presença de uma menção havaiana a Cook = Lono indica o mito europeu nesse sentido. Em outras palavras, a não asserção européia é evidência de realidades havaianas, enquanto a asserção havaiana é evidência de crenças européias. (2001 [1995]: 33-4)

Ao que Obeyesekere devolve citando Zimmermann, um dos tripulantes da terceira viagem de Cook ao Havaí:

I will start with the case of the ordinary sailor Zimmermann, who, according to Sahlins, "heard it directly from the Hawai'ians" (N, 17): "They made a god of Captain Cook on the Island of O-waihi and erected an idol in his honour. They called this 'O-runa no te tuti', 'O-runa' meaning god and 'tuti' Cook. This god was made after the pattern of the others but was adorned with white feathers instead of red, presumably because Cook being a European had a fair complexion" (N, 18). For Sahlins, the first Hawai'ian phrase could be glossed as "Cook is indeed Lono." I have asked a several Hawai'ian language teachers to look at Zimmermann's text, on condition of anonymity. Their opinion is that if Zimmermann had some sensitivity to Hawai'ian pronunciation, then "runa" could not mean "Lono" but "above", that is, "luna". In that case, the phrase could mean "Cook is indeed above". If Zimmerman was right that a statue was erected for Cook (which no one else refers to), then "above" could in fact be understood as refering to a godly status because statues are not erected for chiefs. But if Zimmermann represents a tradition coming down from British seafarers, then what has happened here is that an image of Lono, the god, has been identified by some of the ships' crew as that of Cook who was called Lono. Even if one takes Zimmermann at face value, "above" is a relative term and could simply mean that Cook was "exalted", which is perfectly understandable. Because Zimmermann's linguistic ability was at best minimal, his statements must be interpreted cautiously. Moreover, how well did Zimmermann remember this statement three years later? More important, statements onboard ship are sometimes formed collectively in the close and tight space of the ship. All these difficulties mean that Sahlins confident translation that "Cook is indeed Lono" cannot be taken at face value. (Obeyesekere, 1997 [1992]: 206)

As citações acima deixam claras as preocupações de Sahlins com as ações cosmologicamente orientadas dos havaianos, assim como as preocupações de Obeyesekere com a consciência miticamente orientada dos europeus. Nada mais antinômico do que ter de um lado um antropólogo norte-americano que concebe os havaianos como atores de uma racionalidade mitoprática que toma homens por deuses e, de outro, um antropólogo do Sri Lanka nos Estados Unidos que concebe navegadores europeus do século XVIII como atores de uma racionalidade mito-poética que cria deuses para os homens. Os argumentos de Obeyesekere sugerem que a tese de Sahlins (Cook-foi-o-deus-Lono-para-os-havaianos) parte de um erro, os havaianos – membros que são da comunidade de racionalidade humana (para usar a terminologia de Jarvie) – nunca confundiriam a pessoa de Cook com a idéia de Lono. Aceitar isso é compartilhar da idéia que os primitivos das ilhas havaianas vivem aprisionados em seu mundo cosmológico, como se fossem vítimas de um solipsismo cultural. Para Obeyesekere, Cook foi alvo de um "ritual de investidura" que fez dele um alto chefe havaiano (leia-se humano) e somente após sua morte é que foi "deificado" pelos havaianos. As réplicas de Sahlins, por sua vez, sugerem que a tese de Obeyesekere (Cook-não-foi-o-deus-Lono-para-os-havaianos-a-não-ser-que-você-seja-um-navegador-inglês -para-acreditar-nisso) nega aos havaianos seus próprios pressupostos culturais, tornando-os depositários de uma forma de pensar similar a dos europeus burgueses do século XVIII. Dados etnográficos e contrapontos teóricos são a partir daí legião e é Sahlins quem lembra a advertência de Borges: "não existe homem que, fora de sua própria especialidade, não seja crédulo"...

Nesse cenário torna-se fácil recordar pelo menos uma das diversas inquietações de Wittgenstein diante da obra monumental de Frazer: "Identifying one's own gods with the gods of other peoples. One becomes convinced that the names have the same meaning" (1979: 8e). Dito de outro modo, não estariam Sahlins e Obeyesekere tomando a palavra "deus" inadequadamente como um conceito de experiência próxima (para me utilizar da terminologia de Geertz) e nesse sentido estariam se ocupando mais das crenças havaianas (os havaianos acreditaram ou não que Cook era um deus?) do que dos conceitos havaianos (os havaianos interpretaram ou não Cook como Lono e de que maneiras?)? Será que devemos simplesmente nos convencer que "deus" e "Lono" têm para o pensamento havaiano o mesmo significado?

Deve-se ter em mente o (excessivo) cuidado de Obeyesekere e Sahlins no tratamento dos aspectos lingüísticos e etnográficos que envolvem a categoria havaiana akua (deus ou divindade) nos jogos de linguagem entre havaianos e europeus. No entanto, é o problema das premissas empregadas por ambos para interpretar esta categoria como elemento descritivo da racionalidade havaiana que me interessa aqui. As críticas de Peter Winch (1970) ao estudo de Evans-Pritchard sobre a bruxaria Azande (1937) poderá tornar mais clara a questão que ora apresento.

Em um artigo pensado como um aprofundamento de questões anteriormente elaboradas em The Idea of a Social Science (1958), Winch aborda o trabalho de Evans-Pritchard sobre a bruxaria entre os Azande com a inquietação de saber exatamente o que está envolvido na compreensão antropológica da vida social humana (1970: 78). Nessa ocasião argumenta que o objetivo dos antropólogos ao elaborar uma etnografia é o de apresentar um relato sobre o povo e/ou situação estudados de tal forma a satisfazer o critério de racionalidade exigido pela cultura a que ele e seus leitores pertencem, no caso: "a culture whose conception of rationality is deeply affected by the achievements and methods of the sciences, and one which treats such things as a belief in magic or the practice of consulting oracles as almost a paradigm of the irrational" (idem)2 2 Seguindo a argumentação de Obeyesekere poderíamos acrescentar à lista de irracionalidades a prática de tomar europeus como deuses. Afinal, sua idéia é a de que essa prática não passa de uma construção mitopoética ( mythmaking) do Ocidente. .

Segundo a crítica de Winch, Evans-Pritchard estabelece uma distinção entre o que seria "lógico" e o que seria "científico", atribuindo ao segundo um status de validade superior ao primeiro, que não seria necessariamente errado, mas fantasioso e ilusório. Para Evans-Pritchard (como para a maioria de nós antropólogos, inclusive o próprio Winch), os nativos simplesmente aceitam o que todos em sua sociedade tomam como certo, as representações coletivas seriam os pressupostos de um acordo tácito acerca da realidade das coisas e dos homens e de suas relações. As noções científicas, por outro lado, seriam no pensamento de Evans-Pritchard aquelas mais de acordo com a realidade objetiva. O problema passa a ser, portanto, que o fascínio que a ciência exerce sobre nós (e sobre Evans-Pritchard, em particular) torna fácil a adoção da forma científica de pensar como um paradigma para avaliar a respeitabilidade intelectual de outras formas de discurso (dos Azande sobre a bruxaria ou dos havaianos sobre a divindade de Cook, por exemplo). Incorre-se desse modo em um "erro categórico", quer dizer: "Zande notions of witchcraft do not constitute a theoretical system in terms of which Azande try to gain quasi-scientific understanding of the world. This in its turn suggests that it is the European, obsessed with pressing Zande thought where it would not naturally go – to a contradiction – who is guilty of misunderstanding, not the Zande" (93).

A partir dessa discussão, pode-se estabelecer uma relação entre a discordância entre Sahlins e Obeyesekere e o erro categórico de Evans-Pritchard. Segundo Winch, Evans-Pritchard empregou equivocadamente o critério de racionalidade do jogo de linguagem científico para aferir os comentários de Azande sobre a bruxaria. Sahlins e Obeyesekere, por sua vez, partiram de conceitos específicos (como "deus", "racionalidade prática", "mitopráxis" etc.) para aferir as interpretações havaianas de Cook. Se Evans-Pritchard não levou suficientemente a sério a idéia de que os conceitos utilizados por uma sociedade primitiva só podem ser interpretados no contexto do modo de vida destes povos, assumindo por conseguinte que a linguagem oracular ou mágica de um Zande estabelece com a realidade a mesma relação explicativa que a linguagem científica, Sahlins e Obeyesekere não levaram suficientemente a sério os efeitos que seus próprios jogos de linguagem produzem sobre os conceitos nativos, levando-nos a desconfiar da integridade da racionalidade havaiana que permite associações entre o Capitão Cook e o deus Lono. Sahlins e Obeyesekere desconsideram assim o fascínio que a idéia de "deus", nesse caso, exerce sobre nosso próprio pensamento.

Nesse sentido, a argumentação de Winch sobre a interpretação de Evans-Pritchard da bruxaria nos permite reformular as questões colocadas mais acima, de maneira a percebermos que a questão de saber se os havaianos acreditaram ou não que Cook era Lono não importa tanto quanto saber até que ponto a interpretação de Cook como o deus Lono pelos havaianos seria uma identificação racionalmente válida em termos antropológicos. Parafraseando Jarvie (1977: 191), eu diria que estamos diante de duas questões. Uma ampla: compreender os costumes havaianos em si mesmos; e outra específica, saber até que ponto as práticas culturais havaianas implicam idéias que se chocam com as nossas próprias idéias. Como é possível para nós compreendermos que os havaianos aceitam a idéia de um estrangeiro ser um de seus deuses quando a idéia de um estrangeiro ser confundido com um deus é para nós um absurdo?

Estas questões visam elucidar que os limites da linguagem antropológica conjugam-se aos limites da compreensão dos antropólogos e quando esses falam das práticas culturais havaianas através de conceitos como "mitopráxis" e "racionalidade prática" eles estão comunicando antes seus próprios critérios de racionalidade do que apresentando a racionalidade havaiana per se3 3 Concordo neste ponto com a réplica de Obeyesekere a Sahlins, quando alega que: "mythopraxis is as much a Western imposition on the Hawai'ians as my notion of practical rationality" (1997 [1992]: 211). . A verdadeira questão aqui passa a ser, nos termos de Winch (1970: 94): como tornar inteligíveis em nossos termos instituições pertencentes às culturas primitivas, que possuem padrões de racionalidade e inteligibilidade aparentemente estranhos aos nossos próprios?

Sabendo que o etnógrafo não pensa como os nativos pensam, o que lhe cabe pensar é "com que", ou "por meios de que", ou "através de que", os outros pensam (Geertz, 1999: 89). A principal categoria por meio da qual o pensamento havaiano pensou sobre o Capitão Cook foi Lono, e nisso Sahlins e Obeyesekere concordam, nem que seja em momentos ou circunstâncias diferentes4 4 Para Sahlins, Cook foi pensado como Lono desde sua chegada ao Havaí, para Obeyesekere, Cook foi tratado como Lono apenas após sua morte pelos havaianos. . Daí a dizer que, sendo Cook pensado através da categoria Lono e sendo Lono um deus, Cook será o deus Lono para os havaianos é uma questão de opinião. Agora no esforço de tornar inteligível em nossos termos as associações havaianas entre Cook e Lono, a análise de Sahlins se apresenta como mais consistente, logicamente falando. Vejamos um dos porquês.

Discordo de Sahlins quando diz: "Obeyesekere afirma que é uma racionalidade prática comum que lhe permite 'falar da outra cultura em termos humanos'. Já que ele opõe essa racionalidade à particularidade cultural, a questão aqui é uma pura negação do conhecimento antropológico" (2001 [1995]: 172-3). Obeyesekere não pode ser acusado de fazer tal "oposição", o que significaria dizer que foi insensível à particularidade cultural havaiana. Trata-se, no caso de Obeyesekere, apenas de enfatizar aquilo que lhe parece negado na análise de Sahlins, nomeadamente, a reflexividade ou o campo de possibilidades reflexivas (expressões que me parecem as mais adequadas para se compreender o sentido de "racionalidade prática" pretendido por Obeye-sekere ao longo do seu trabalho) existente para os havaianos, que não estariam obrigados desse modo a reapresentar a realidade mítica de uma metáfora histórica5 5 Segundo Obeyesekere: "Following Max Weber, I emphasize 'practical rationality', namely, the process whereby human beings reflectively assess the implications of a problem in terms of practical criteria" (1997 [1992]: 19). Esta seria a versão "mínimo denominador comum" que Obeyesekere atribuiria à racionalidade havaiana de modo a compartilhar de seus critérios de validade (particulares, diria Sahlins). . Porém, concordo quando Sahlins afirma, fazendo eco às teorizações de Lévi-Strauss que: "Com efeito, a relação entre inteligibilidade e utilidade é, com freqüência, invertida: as coisas geralmente se tornam úteis de acordo com a maneira como são conhecidas, e não o inverso, de modo que seus 'usos' transcendem de longe os interesses econômico-materiais" (: 174). Sendo assim, Cook deveria ser tornado inteligível antes de ser tornado deus (ou um alto chefe, como quer Obeyesekere) e, para tanto, foi igualado a Lono para ser tornado racionalmente útil pela racionalidade havaiana.

Tal interpretação me parece mais adequada para pensar sobre o pensamento havaiano, pois parte de uma conexão necessária entre conceitos e crenças havaianos e pressupostos antropológicos (leia-se universais) sobre o pensamento e as coisas, tornando a identificação de Cook como o deus Lono perfeitamente plausível, ou racional, tanto em termos havaianos quanto antropológicos.

Obeyesekere resiste em adotar a idéia gadameriana de "fusão de horizontes" quando reconhece que os "preconceitos" do antropólogo sempre se interpõem na política e ética da representação do Outro e prefere o termo "ficção" para descrever o estilo de sua própria interpretação (Obeyesekere, 1997 [1992]: 201) Entretanto, a raison d'être da Antropologia enquanto disciplina consiste exatamente nas diferentes formas de interpretar as ações e reflexões do Outro a partir das conexões possíveis entre o jogo de linguagem deste e o nosso, colocando às vezes em xeque as próprias categorias nativas do antropólogo observador. Evitar o encontro de racionalidades é resguardar-se do exercício da vocação crítica da Antropologia (Cardoso de Oliveira, 1993) que não deve ser confundida com o mero exercício da crítica política da Antropologia e dos antropólogos.

À guisa de conclusão, eu diria que sob a luz dos argumentos apresentados acima, a fórmula de Sahlins: "diferentes culturas, diferentes racionalidades" necessitaria imediata reformulação, na verdade: "diferentes antropólogos, diferentes racionalidades". Quanto a isso, Obeye- sekere tem razão, a "cultura" (como a racionalidade) é algo inventado pelos etnógrafos com base em qualquer evidência à mão. Por outro lado, a expressão "ressonância da fantasia", atualizada por Obeyesekere para referir-se ao processo pelo qual os membros de um grupo reagem à fantasia de outros – reproduzindo-a eles mesmos (Obeyesekere, 1997 [1992]: 189) –, poderia ser aplicada, guardando-se as devidas proporções, a ele próprio quando decide em uma determinada situação crítica tomar, inconscientemente ou não, os atributos do "Outro selvagem", fazendo de si um pretenso "nativo universal". Como diria Sahlins: "Não há razão a priori para supor que as culturas e cosmologias dos sul-asiáticos propiciem um acesso especial às crenças e práticas dos polinésios. [...] Essa antropologia do 'nativo' universal é realmente uma noção explícita – e um apelo moral" (2001[1995]: 19).

Percebe-se, com essa discussão, que o pressuposto de Sahlins – "diferentes culturas, diferentes racionalidades" – é tão basilar à sua interpretação antropológica do pensamento nativo quanto o pressuposto contrário – "mínimo-denominador-comum" – de Obeyesekere, que fundamenta sua interpretação nativa às avessas do pensamento antropológico. Tudo isso serve para mostrar que as interpretações antropológicas da racionalidade nativa partem antes do ponto de vista dos antropólogos do que do outrora almejado ponto de vista nativo.

Notas

Bibliografia

Recebido em agosto de 2002

  • CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. 1993 "A vocação crítica da Antropologia", Anuário Antropológico, ed. 93, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
  • GEERTZ, C. 1995 "Culture War", The New York Review, Nov. 30. 1999 O saber local, Petrópolis, Vozes.
  • HOLLIS, M. 1970 "The Units of Irrationality", in WILSON, B. (ed.), Key concepts in the So cial Sciences: Rationality, Worcester, Billing & Sons.
  • JARVIE, I. C. 1977 "Understanding and Explanation in Society and Social Anthropology", in DALLMAYR, F. & MCCARTHY, T. (orgs.), Understanding and Social Inquiry, Notre Dame, University of Notre Dame Press.
  • OBEYESEKERE, G. 1997 [1992] The Apotheosis of Captain Cook, Princeton, Princeton University Press.
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  • SAHLINS, M. 1990 [1987] Ilhas de história, Rio de Janeiro, Jorge Zahar. 2001 [1995] Como pensam os "nativos", São Paulo, Edusp.
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  • WITTGENSTEIN, L. 1979 Remarks on Frazer's Golden Bough, New Jersey, Humanities Press.
  • 1
    Gostaria de agradecer ao Prof. Dr. Luís Roberto Cardoso de Oliveira pelo "Seminário Avançado de Teoria An tropológica", ministrado com excelência por ele durante o segundo semestre de 2001, na Universidade de Brasília. Esta disciplina possibilitou o trabalho que ora se apresenta.
  • 2
    Seguindo a argumentação de Obeyesekere poderíamos acrescentar à lista de irracionalidades a prática de tomar europeus como deuses. Afinal, sua idéia é a de que essa prática não passa de uma construção mitopoética (
    mythmaking) do Ocidente.
  • 3
    Concordo neste ponto com a réplica de Obeyesekere a Sahlins, quando alega que: "mythopraxis is as much a Western imposition on the Hawai'ians as my notion of practical rationality" (1997 [1992]: 211).
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    Para Sahlins, Cook foi pensado como Lono desde sua chegada ao Havaí, para Obeyesekere, Cook foi tratado como Lono apenas após sua morte pelos havaianos.
  • 5
    Segundo Obeyesekere: "Following Max Weber, I emphasize 'practical rationality', namely, the process whereby human beings reflectively assess the implications of a problem in terms of practical criteria" (1997 [1992]: 19). Esta seria a versão "mínimo denominador comum" que Obeyesekere atribuiria à racionalidade havaiana de modo a compartilhar de seus critérios de validade (particulares, diria Sahlins).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jun 2003
    • Data do Fascículo
      2002

    Histórico

    • Recebido
      Ago 2002
    Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
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