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Corpo e história do povo yurok

Resumos

Os Yuroks do norte da Califórnia concebem o corpo enquanto superfície onde mudanças sociais e ambientais são inscritas. Mulheres Yurok atribuem a alta incidência de doenças degenerativas, dependência de drogas psicoativas e crescente criminalidade à violência e à brutalidade dos conquistadores espanhóis, caçadores de peles, garimpeiros e à política indigenista do governo norte-americano. Este artigo analisa oito gerações de dezesseis famílias extensas Yurok, mapeando mudanças ocorridas nas relações sociais e nas práticas políticas do povo. O trabalho aborda as transformações do conhecimento na constituição das ciências naturais e sociais, e o impacto desse conhecimento no território Yurok. Trata-se de uma investigação no campo da Antropologia Médica Crítica, que valoriza a correlação entre corpo e história. A Antropologia Histórica de Marshall Sahlins (1985, 1995), a teoria dos três corpos de Scheper-Hughes & Lock (1987) e o método genealógico de Foucault (1977) mostram como os eventos têm o poder de inscrever memória nos corpos dos indivíduos. É a partir de um conjunto transcultural de práticas híbridas e interdisciplinares, que a imagem que os Yuroks constroem do próprio corpo pode ser melhor compreendida.

corpo; identidade; violência; povo Yurok; Califórnia


Yurok perceptions of the body as the inscribed surface of social and environmental change are explored in this paper. To the violence and brutality of Spaniards, fur traders, gold miners, American soldiers, and Indian policies of the US government since the eighteenth century, Yurok women attribute the high incidence of degenerative diseases, drug abuse and criminality in northern California. The piece contemplates the lives of eight generations of sixteen Yurok extended families, mapping intergenerational shifts in Yurok social relations and political practices. It considers the mutation of knowledge in the constitution of the natural and social sciences and the effects of this knowledge when implemented in Yurok country. Here, Critical Medical Anthropology values the correlation between body and history in the works of Foucault (1977), Sahlins (1985, 1995), and Scheper-Hughes & Lock (1987). This historico-critical investigation shows how certain events mark their power and engrave memories on individuals’ bodies. It is within a hybrid set of cross-cultural and interdisciplinary practices that a more fruitful understanding of Yurok body imagery can be fashioned.

body imagery; identity; violence; Yurok population; California


Corpo e história do povo yurok1 Notas

Mariana Kawall Leal Ferreira

Pós-doutoranda do Departamento de Antropologia/FFLCH/USP

RESUMO: Os Yuroks do norte da Califórnia concebem o corpo enquanto superfície onde mudanças sociais e ambientais são inscritas. Mulheres Yurok atribuem a alta incidência de doenças degenerativas, dependência de drogas psicoativas e crescente criminalidade à violência e à brutalidade dos conquistadores espanhóis, caçadores de peles, garimpeiros e à política indigenista do governo norte-americano. Este artigo analisa oito gerações de dezesseis famílias extensas Yurok, mapeando mudanças ocorridas nas relações sociais e nas práticas políticas do povo.

O trabalho aborda as transformações do conhecimento na constituição das ciências naturais e sociais, e o impacto desse conhecimento no território Yurok. Trata-se de uma investigação no campo da Antropologia Médica Crítica, que valoriza a correlação entre corpo e história. A Antropologia Histórica de Marshall Sahlins (1985, 1995), a teoria dos três corpos de Scheper-Hughes & Lock (1987) e o método genealógico de Foucault (1977) mostram como os eventos têm o poder de inscrever memória nos corpos dos indivíduos. É a partir de um conjunto transcultural de práticas híbridas e interdisciplinares, que a imagem que os Yuroks constroem do próprio corpo pode ser melhor compreendida.

PALAVRAS-CHAVE: corpo, identidade, violência, povo Yurok, Califórnia.

Porque não há evidências concretas entre agrotóxicos e câncer aqui em terra Yurok, o governo libera a utilização de todos os tipos de pesticidas... Então acabaram de criar a terra do câncer por aqui! Sim, é assim que as pessoas se referem a nós: "Vocês vivem em terra de câncer!" Há árvores contorcidas no meu quintal, patos com penas crescendo de fora para dentro e galinhas botando ovos enormes. Meu marido tem câncer na orelha, o vizinho morreu de leucemia. A filha da Mollie morreu de câncer no ovário aos 21 anos. Isto está nos nossos genes, no nosso sangue? Somos mutantes mesmo, e fomos transformados em objetos de pesquisa muito interessantes. Então deixaram esta terra sem lei proliferar. Você sabe, existe um ditado que diz: "Não há lei alguma ao norte do rio Klamath". (D.H. na Reserva Indígena Yurok, em outubro de 1995)2 Notas

Relacionamentos humanos estão no âmago da percepção atual que as mulheres Yurok têm do corpo. O auto-conhecimento dessas mulheres – o conhecimento que constroem a respeito de si próprias – e especialmente as maneiras pelas quais elas dão sentido ao corpo e compreendem as enfermidades são revelados por meio de relações sociais com a família, autoridades governamentais, navegadores estrangeiros, profissionais de saúde, antropólogos e a população mais ampla do norte da Califórnia. Associações que mulheres Yurok estabelecem entre coisas aparentemente desconexas, como acontecimentos da vida diária, histórias, práticas, idéias, desconfortos físicos e emoções, acrescentam outra dimensão a estudos de parentesco na Antropologia e ao estudo da genética humana. Dezesseis genealogias Yurok traçadas para um estudo sobre a política de saúde entre os Yuroks (Ferreira, 1996) dão suporte para a presente argumentação. Delineiam conexões intrínsecas entre a classificação de doenças e valores da família norte-americana; a distribuição da terra e a transformação da alma e da conduta do "índio" (genérico); a circulação de bens, serviços, bebidas alcóolicas e medicamentos e a noção de civilização; e práticas militares e um conhecimento peculiar sobre o corpo humano.

O corpo, aqui, é considerado simultaneamente enquanto artefato político e cultural, produzido natural e culturalmente, e firmemente ancorado no momento histórico específico (Schepes-Hughes & Lock, 1987: 7). Meu objeto de estudo é a relação entre história e corpo, ou, em outras palavras, as relações entre as dimensões individuais, sociais e políticas do corpo Yurok. As interpretações Yurok sobre saúde e doença, que podem variar grandemente, estão no nível da experiência do corpo individual. O corpo social compreende os modos pelos quais os homens e mulheres Yurok usam o corpo enquanto símbolo para construir uma visão de mundo específica, e o pensamento sobre si mesmos e sobre outros seres a partir desta cosmologia. A dimensão política do corpo refere-se às maneiras pelas quais indivíduos Yurok têm sido disciplinados, regulados e controlados dentro de diferentes instituições: internatos, sanatórios, prisões de máxima segurança e clínicas de saúde. Este modelo dos "três corpos" representa três unidades de análise distintas mas sobrepostas, bem como três abordagens teóricas e epistemológicas (a fenomenologia, o estruturalismo e o pós-estruturalismo, respectivamente). Os Yuroks enfatizam o corpo político nos diferentes aspectos das histórias de vida que eles selecionaram para contar. A ênfase do povo no corpo político explica porque certas desordens, como a diabetes e o alcoolismo, são produzidas.

Foto 1: O português Manoel Mattz, a Yurok Sen yu teis na e o filho Emery Mattz, em fotografia de 1900. Arquivo de Lavina Bowers, neta do casal.

Neste ensaio, a história também assume conceituação mais ampla, além daquela tratada pelos eventos enquanto processos físicos ou materiais. Um evento não é apenas um acontecimento no mundo, mas uma relação entre um certo acontecimento e um dado sistema simbólico (Sahlins, 1985:153). Numa perspectiva compreensiva da história, eventos e significados coincidem. Ambos manifestam-se na superfície dos corpos e na superfície das palavras (Foucault, 1977: 175-6; Sahlins, 1985: 154-6).

Eventos podem ser corpóreos, manifestos enquanto enfermidades, ou então extra-corpóreos, localizados em sentimentos que emergem de relacionamentos, ou em idéias e pensamentos presentes em discursos. Esta perspectiva de história permite compreender o corpo enquanto "superfície onde eventos são inscritos. (...) Genealogia, enquanto análise da descendência, é situada, portanto, na articulação entre o corpo e a história" (Foucault, 1977: 148; minha tradução).

Esta investigação histórico-crítica é genealógica no seu desenho e arqueológica no seu método (Foucault, 1984: 46; Sahlins, 1995: 256-63). Arqueológica porque trata aquilo que as mulheres e homens Yurok contaram enquanto eventos históricos. Genealógica porque, ao contrário de abordagens que deduzem quem os Yuroks são a partir do que eles eram, focaliza o presente enquanto produto do que está sendo feito, pensado ou dito. Este estudo de descendência, representado graficamente sob a forma de genealogias, valoriza o conhecimento empírico e consciente, derivado da vida cotidiana e dos sentimentos banais de sujeitos humanos. Tento, aqui, enfatizar a importância do que é específico e particular, na esfera afetiva e no domínio do doméstico.

Mapeando linhas da vida: os primeiros estudos

Idéias de descendência e de hereditariedade têm florescido no âmbito da Antropologia e da Biologia desde meados do século XIX3 3 Em League of the Iroquois (1851), The American Beaver and his Works (1868) e Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family (1877), Morgan desenvolveu idéias próprias sobre família, relações familiares, modos de descendência e regras de casamento. Sobre uma rede de laços biológicos, Lewis Morgan interpretou a complexidade da organização social Iroquois. Cem anos depois de Morgan, a teoria elementar de parentesco de Claude Lévi-Strauss (1969 [1949]) ajudou a dar à Antropologia o status de ciência ao aprimorar, estender e articular teorias de parentesco elaboradas por seus antecessores. . Em California kinship systems (1917) e Yurok and neighboring kinship systems (1934), Alfred Kroeber desenvolveu idéias sobre o parentesco Yurok. Fazendo uso do simbolismo biogenético utilizado para priorizar relacionamentos em sociedades anglo-americanas, Kroeber identificou o sistema de parentesco Yurok como do tipo Salish: "A terminologia tio-sobrinho/tia-sobrinha coincide exatamente com a terminologia inglesa (...) os termos para avô e avó também coincidem com os nossos" (Kroeber, 1934: 15; minha tradução).

Mais recentemente, a partir da década de 1970, a Biomedicina tem se dedicado à analise sistemática da constituição genética de povos indígenas, comparando-a ao genótipo de outras sociedades. A análise dos pedigrees de povos nativos norte-americanos, traçados a partir de informações coletadas em censos de populações indígenas no arquivo da Indian Health Service (IHS; o equivalente, no Brasil, à COSAI – a Coordenação de Saúde Indígena, da Fundação Nacional de Saúde) e em prontuários hospitalares, indica que a diabetes é diretamente relacionada à "herança indígena", por causa do genótipo "thrifty gene" que os nativos carregam.

A teoria do "thrifty gene" especula que haveria um certo gene com a capacidade de estocar gordura na região do abdomem humano, protegendo o corpo contra a fome em tempos de escassez. Esta "vantagem adaptativa" acabou por se tornar uma desvantagem, por causa dos padrões modernos de consumo de alimentos que acabam levando à diabetes mellitus do tipo II (Neel, 1962, 1982)4 3 Em League of the Iroquois (1851), The American Beaver and his Works (1868) e Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family (1877), Morgan desenvolveu idéias próprias sobre família, relações familiares, modos de descendência e regras de casamento. Sobre uma rede de laços biológicos, Lewis Morgan interpretou a complexidade da organização social Iroquois. Cem anos depois de Morgan, a teoria elementar de parentesco de Claude Lévi-Strauss (1969 [1949]) ajudou a dar à Antropologia o status de ciência ao aprimorar, estender e articular teorias de parentesco elaboradas por seus antecessores. . Tentou-se confirmar, recentemente, essa teoria, a partir da descoberta de uma mutação em um gene envolvido na resposta do organismo à insulina, favorecendo o acúmulo de gordura no tronco e, portanto, antecipando o aparecimento da diabetes tipo II em indivíduos cada vez mais jovens (Walston et al., 1995; San Francisco Chronicle, 1995).

De maneira semelhante, a "teoria da água de fogo" ("fire water theory") propõe que índios não conseguem "segurar" o álcool e que são, por esta razão, especialmente vulneráveis a bebidas alcóolicas. Noventa e quatro por cento dos Navajo adultos no Sudeste Americano concordam que "índios têm um problema com o álcool", e 63% acrescentam que "índios têm uma debilidade física com relação ao álcool, que os brancos não apresentam" (Bernstein, 1989: 328, apud Sigelman et al., 1992: 266)5 6 Veja, também, Bohman et al. (1981), Buydens-Branchey et al. (1989), e von Knorring et al. (1975). .

A partir destas teorias genéticas, indivíduos Yurok com diagnóstico de diabetes, por exemplo, ou então aqueles com probabilidade genética de contraí-la, decidem que riscos podem correr e quais cuidados vale a pena tomar. Como veremos adiante, médicos norte-americanos reclamam de desobediência e do descaso dos pascientes que ignoram tratamentos prescritos. Alguns Yurok argumentam que "se a diabetes está no sangue, não há nada que possa ser feito a respeito". Assim, estas teorias adquirem facticidade, isto é, tornam-se fatos, realidade, incidindo sobre o auto-conhecimento de pacientes, médicos e pesquisadores.

As genealogias traçadas para este estudo mostram que os Yuroks reconhecem a diabetes, o alcoolismo e a dependência de drogas como perigos potenciais contra os quais devem se resguardar. As narrativas Yurok, contudo, consideram os aspectos sociais da noção de risco, revelando, entre outras coisas, conexões entre situações de risco e culpa moral, e entre a imagem de corpo Yurok e mudanças nas condições históricas de vida.

Os modos pelos quais homens e mulheres Yurok (com quem trabalhei durante a pesquisa de doutorado no norte da Califórnia, de 1994 a 1996) mapeiam as linhas de vida transcendem as associações comumente traçadas entre "herança indígena" e diabetes, alcoolismo, obesidade e vida sedentária. O Strong heart study (Howard et al., 1992; Lee et al., 1995), por exemplo, o primeiro estudo comparativo de doenças cardiovasculares e dos fatores de risco, incluindo a diabetes, entre índios norte-americanos de diferentes regiões dos EUA, associa a "diabetes com(...) idade, obesidade, histórico familiar e quantidade de sangue indígena" (Lee et al., 1995: 599). Tais estudos distanciam a diabetes e fatores de risco dos contextos propriamente sociais, ignorando as relações humanas incorporadas nos sinais, sintomas e terapia da desordem. Ao fazer isso, não só mistificam as relações humanas mas também reproduzem uma ideologia em nome de uma ciência de coisas aparentemente "reais" (Taussig, 1992: 84).

Foto 2: Geneva Mattz, em frente à residência da família na Reserva Indígena Yurok, em 1970. Geneva casou-se com Emery Mattz, o bebê da foto anterior, em 1924. (Arquivo de Lavina Bowers, filha de Geneva).

É certo que a Biologia Molecular tem nos mostrado que há uma variedade imensa de genes, inclusive os "facilitadores" do aparecimento de uma dada doença. O problema é que os chamados fatores sócio-culturais ou ambientais, apontados por Lang (1989), Scheder (1988) e Szathmáry (1990), entre outros, não figuram sequer como variáveis analíticas, porque são considerados por demais "complexos" e "abstratos" (Sugarman et al., 1993)6 6 Veja, também, Bohman et al. (1981), Buydens-Branchey et al. (1989), e von Knorring et al. (1975). .

Homens e mulheres Yurok, de idades e profissões variadas, correlacionam a manifestação de sinais e sintomas de várias enfermidades, incluindo a diabetes mellitus do tipo II, a momentos traumáticos de suas vidas. Entre estes momentos estão incluídos mudanças de profissão, arranjos de casamento, situação econômica, violência doméstica e morte prematura. Para construir as genealogias que apresento, os Yuroks usaram um "filtro patológico", isto é, iluminaram desordens dos corpos física, existencial, social e político, na tentativa de apontar para os diferentes contextos de origem da "doença". As histórias de vida falam de infortúnios, eventos traumáticos, violência e desespero. Diabetes, hipertensão, depressão, dependência de drogas psicoativas, alcoolismo e violência doméstica aparecem lado a lado com o confinamento em internatos, prisões de segurança máxima, sanatórios, orfanatos, guerras, etc. As tabelas genealógicas correlacionam, portanto, de maneira resumida, estas experiências traumáticas no âmago de famílias extensas Yurok7 7 O censo de 1852 divulgado por A. Kroeber (1976[1925]:16) iddentificou "casas" e "aldeias" Yurok. O termo "casa" foi usado para designar a construção física, enquanto "aldeia" foi definido como "um conjunto de casas". Waterman (1993[1920]) e Kroeber (1976), por sua vez, definiram "casa" enquanto um grupo de descendência. Em 1925, Kroeber passou a utilizar "família" para designar um grupo de indivíduos vivendo na mesma unidade doméstica ("household"): "Era comum, por volta desta data [1895], uma família possuir duas ou três casas" (1976): 19, minha tradução).Yuroks que participaram do presente estudo referiram-se a indivíduos enquanto membros da "família", quando esses indivíduos pertenciam ao grupo de descendência materno, paterno ou, por vezes, a ambos. .

Sarah Tsurai, Mary Wo’tek e Julia Stowen são as três mulheres Yurok cujas histórias de vida estão retratadas neste ensaio. As genealogias das respectivas famílias extensas datam de meados do século XIX, quando o ouro foi descoberto no norte da Califórnia. Garimpeiros e outros imigrantes invadiram a região a partir da costa do Pacífico, empurrando os Yuroks para o interior do estado e exterminando vários outros povos (Rawls, 1986). Além da memória propriamente dita, os Yuroks recorreram também, para essa reconstrução histórica, a censos governamentais feitos no período – o primeiro censo foi compilado em 1852 (Kroeber, 1976 [1925]: 16) – e a outros documentos – certidões de nascimento, testamentos, processos judiciais e históricos escolares. A maior parte da documentação oficial usada neste ensaio foi obtida no Arquivo Nacional de San Bruno, na Califórnia, onde tive acesso aos Relatórios Sanitários do Serviço de Saúde Indígena dos Estados Unidos (United States Indian Service), antecessor do atual Bureau of Indian Affairs/BIA. Além desses, documentos escolares de internatos para índios da região administrativa de Hoopa Valley Agency, à qual os Yuroks, Karuks e Hupas eram subordinados, foram igualmente importantes.

O doente, o louco e o criminoso: a medicalização de doenças sociais

Os pais, avós e bisavós de Sarah Tsurai, Mary Wo’tek e Julia Stowen foram tratados de várias enfermidades por médicos encarregados da Hoopa Valley Agency. Os nomes dos antepassados dessas mulheres podem ser encontrados em relatórios sanitários do período 1886-1912, sob categorias de "doenças" como tuberculose, coqueluche, cabelos supérfluos, sardas no rosto, sífilis, gonorréia e emissões involuntárias de sêmem8 8 Special Notice do Quartely Sanitary Report of Diseases and Injuries do United States Indian Service, Hoopa Valley Agency, 30 de setembro de 1994. No relatório, as categorias acima são classificadas como "doenças". . "Uma dose ao deitar" do composto "anafrodisíaco para gonorréia" foi usada para reprimir o "instinto" sexual dos índios e combater a epidemia de doenças venéreas em 18939 8 Special Notice do Quartely Sanitary Report of Diseases and Injuries do United States Indian Service, Hoopa Valley Agency, 30 de setembro de 1994. No relatório, as categorias acima são classificadas como "doenças". .

Os médicos que atendiam aos parentes de Sarah, Mary e Julia eram instruídos, pela agência governamental norte-americana, a adotar "métodos racionais" e "princípios elementares de higiene e fisiologia". Impressa na contracapa dos livros-prontuários, o Relatório Trimestral dos Doentes e Injuriados, a seguinte mensagem:

Associado ao relatório sanitário ao final de cada trimestre, o médico deve documentar o progresso dos índios no abandono de seus curandeiros e na adoção de métodos de saúde racionais, o número de índios que procura pelo serviço médico e aqueles que ele procura para tratar... O médico também tentará melhorar as condições higiênicas e sanitárias e instruir os índios como proceder neste sentido. Ele deve se esforçar, com tato e firmeza, a induzir os índios a descartar as suas práticas medicinais nativas, substituindo superstições e ritos bárbaros por tratamentos civilizados [minha tradução].

A organização desses relatórios sanitários – a classificação das doenças e a classificação dos índios de acordo com a "pureza da raça" e com a "disposição em adotar métodos de condutas racionais" – ilustra como o discurso médico sobre indivíduos tem sido estruturado desde o século XVIII, com a emergência do campo da anatomia patológica e o advento da experiência clínica (Foucault, 1975). À semelhança de seus ancestrais, Sarah Tsurai, Mary Wo’tek e Julia Stowen têm sido diagnosticadas, em clínicas de saúde locais, como alcóolatras, obesas, diabéticas e maníaco-depressivas. Os nomes destas mulheres fazem parte da relação de 215 pacientes diabéticos da United Indian Health Services (UIHS), em 1996, onde desenvolvi parte desta pesquisa.

UIHS é um conjunto de dez clínicas que pertencem a cinco povos indígenas da região (Yuroks, Karuks, Hupas, Wiyots e Tolowas) e oferece serviços básicos de saúde a mais de 12.000 índios do norte da Califórnia10 8 Special Notice do Quartely Sanitary Report of Diseases and Injuries do United States Indian Service, Hoopa Valley Agency, 30 de setembro de 1994. No relatório, as categorias acima são classificadas como "doenças". . Enquanto a administração do complexo de clínicas fica a cargo dos índios, os responsáveis pelo Departamento de Medicina são todos não-índios. Os diagnósticos que esses médicos produzem seguem a tradição da medicina do século XVIII, hoje oficial: a doença é observada a partir de sinais e sintomas específicos. Transformados em critérios diagnósticos – testes do teor de açúcar no sangue ou análises de proteína na urina, no caso da diabetes –, os sinais e sintomas de doenças não dizem nada a respeito do mundo Yurok, porque falam apenas do corpo físico, biológico.

A teia de analogias (Foucault, 1970: XI) que homens e mulheres Yurok construíram nas genealogias que traçaram transcendem às associações geralmente feitas entre os sinais, sintomas e terapias de categorias biomédicas de doença. As narrativas iluminam a intrínseca relação entre fatores sociais, políticos e econômicos, e a depressão, consumo de drogas psicoativas, violência, diabetes e outras desordens comuns a índios norte-americanos.

Foto 3: Florence Gensaw Shiughnessy, em 1920: alcoólatra, obesa, diabética e hipersexuada, de acordo com os relatórios médicos da época. Depois de oito anos de internato, Florence trabalhou mais vinte como escrava doméstica em San Francisco. (Arquivo de Mollie Ruud, sobrinha de Florence).

Desemprego acentuado, prisões, uso prolongado e intenso de internatos, grau de escolarização baixo, má nutrição e migração das reservas indígenas em direção a centros urbanos, por exemplo, têm sido identificados enquanto fatores de risco ou de estresse de desordens "comórbidas" (Westermeyer et al., 1993; Brown et al., 1993). Por exemplo, vários estudos sobre a manifestação de desordens psiquiátricas entre culturas indígenas têm examinado a correlação entre saúde mental e fatores sociais, políticos e contextuais. Altos índices de adoções, remoções freqüentes de crianças para centros de delinqüentes juvenis, acesso limitado a programas de saúde e desemprego são considerados "fontes possíveis" da alta incidência de desordens psiquiátricas entre populações indígenas norte-americanas (Westermeyer et al., 1993: 519-20).

Outros estudos associam condições adversas de vida na infância a câncer e doenças do coração (Michalek & Mahoney, 1994; Fennerty et al., 1992). O "estresse" está cada vez mais relacionado à concentração de açúcar no sangue de indivíduos diabéticos (Forsdahl, 1977; Hinkle e Wolf, 1952). Mais recentemente, a diabetes mellitus do tipo II vem sendo usada como modelo para examinar as ligações entre desigualdade social e saúde coletiva (Ferreira, 1996; Scheder, 1988).

Lendo as genealogias

Para compreender as genealogias apresentadas a seguir, o leitor deve, em primeiro lugar, localizar a protagonista de cada narrativa. Sarah Tsurai, Mary Wo’tek e Julia Stowen são identificadas por um . Cada uma delas é o nosso ponto de referência, a partir do qual a narrativa se desdobra. símbolo para mulheres é o círculo , enquanto homens são designados por um . Relacionamentos são apresentados da seguinte maneira:

Um casal com três filhos (duas meninas e um menino que faleceu) é, portanto:

Cada geração cobre aproximadamente vinte anos. Os diagramas originais (Ferreira, 1996) incluem aproximadamente 1700 indivíduos, cuja maioria são Yuroks e os demais Karuks (KA), Hupas (HU), Tolowas (TO), Wiyots (WI), Sioux (SI) e não-índios (NI). A filiação tribal, indicada acima, está abreviada no canto superior de cada ou ; caso seja desconhecida, a informação é omitida. No exemplo acima, uma mulher Yurok casou-se com um não-índio, ocorrência comum após a corrida do ouro e a invasão americana da Califórnia. Os três filhos do casal reivindicaram seu sangue Yurok e são, por esta razão, membros da tribo Yurok (YU)11 11 Para tornar-se membro da Tribo Yurok, o indivíduo precisa ter ao menos 1/8 de sangue Yurok. Hoje, a população Yurok gira em torno de 3.500 indivíduos. . A primeira informação que aparece sob cada indivíduo é a data de nascimento e de morte, ocupação principal e outros dados que a protagonista da genealogia considerou relevante. Causas mortii são precedidas por um "+", como em "+acidente de carro".

Dentro de cada ou há marcadores para enfermidades que são associadas com mudanças nas condições de vida e com imagens do corpo Yurok. Essas enfermidades são designadas assim:

Estes marcadores podem estar associados entre si, como por exemplo:

Sarah Tsurai: "Casar com um homem branco era um símbolo de status"

Vejamos como Sarah Tsurai articulou as manifestações físicas aos respectivos contextos sociais. Nascida em 1932, casou-se com um chofer de caminhão, não-índio, com quem teve três filhos, sendo dois meninos e uma menina. Aos 40 anos de idade, após o divórcio, começou a trabalhar como secretária e acabou envolvendo-se com atividades políticas no norte da Califórnia. O nome de Sarah pode ser encontrado em vários processos judiciais envolvendo os Yuroks e o governo dos Estados Unidos. Hoje ela é integrante de várias organizações de direitos e saúde indígenas. Sarah e eu nos encontramos de duas a três vezes por mês entre 1994 e 1996, na sua casa no norte da Califórnia, em eventos sociais patrocinados pelos Yuroks e pela United Indian Health Services em Trinidad – o centro de saúde que Sarah procurava para tratar a diabetes.

Sarah Tsurai narrou, em detalhes12 11 Para tornar-se membro da Tribo Yurok, o indivíduo precisa ter ao menos 1/8 de sangue Yurok. Hoje, a população Yurok gira em torno de 3.500 indivíduos. , as mudanças advindas dos casamentos entre mulheres Yurok e não-índios. Um antigo álbum de família, com fotos das aldeias Yurok nas décadas de 1910, 20 e 30, foi usado por Sarah para traçar a descendência da linhagem materna da família, desde os tetra-avós, Acatasan Notchko e Tewrup Tsurai, nascidos entre 1840 e 1850. (O casal está localizado no topo da página na Genealogia 1). Naquela época, a forma de residência matrimonial era patrilocal, isto é, a maioria das mulheres Yurok, como a própria Acatasan, passava a morar, após o casamento, na casa dos pais do noivo. Os filhos do casal pertenciam à linhagem paterna. Nomes, bens e serviços, por sua vez, eram transmitidos através da linhagem do pai e da mãe (Waterman & Kroeber, 1934)13 11 Para tornar-se membro da Tribo Yurok, o indivíduo precisa ter ao menos 1/8 de sangue Yurok. Hoje, a população Yurok gira em torno de 3.500 indivíduos. . A procura de peles de animais marinhos (principalmente lontras) em fins do século XVIII, bem como atividades mineradoras e a invasão americana da Califórnia em meados do século XIX, trouxeram milhares de imigrantes para a região.

À época, o território Yurok compreendia uma vasta área na costa do Pacífico, ao norte da Bacia de Humboldt, na Califórnia, onde deságua o Rio Klamath (famoso por ser um dos poucos rios no país procurado por várias espécies de salmão para a desova – ver o Mapa 1). A região foi literalmente invadida por navegadores ingleses, irlandeses, portugueses, suecos, alemães e espanhóis recém-chegados da Europa, ou, então, por aqueles que migraram da costa leste do país, durante a corrida do ouro. Um desses homens era Karl Steinen, sapateiro alemão que pagou sessenta dólares a Tewrup Tsurai pela mão de Mer-een Tsurai, a bisavó materna de Sarah14 14 Dos 108 casamentos realizados entre 1850 e 1889 no seio de dezesseis famílias extensas consideradas em Ferreira (1996), trinta (27,7%) dessas uniões eram entre mulheres Yurok e não-índios (Ferreira, 1996: 83; 1998:197). Em 1852, a população Yurok foi estimada em 1.052 indivíduos. Das dezesseis famílias consideradas, apenas uma apresenta casamentos entre mulheres Yuroks e não-índios, até a década de 1970. Em quinze famílias foram constatadas uniões entre índios e não-índios. Os demais casamentos eram entre os próprios Yuroks (51%), entre Yuroks e Tolowas (11%), Yuroks e Karuks (2%) e Yuroks e Hupas (2%). Até o fim da década de 1970, não houve um único casamento entre homens Yuroks e mulheres não-índias. . Nas palavras de Sarah:

Casar com um homem branco tinha muitas implicações. Veja bem, meu bisavô era branco e ele não queria que o meu pai vivesse como um índio. Ele não queria que o papai aprendesse a língua Yurok, cantasse ou dançasse como os ancestrais (...) A maioria dos homens brancos não queria que suas mulheres Yurok vivessem de acordo com as normas de conduta do povo. Eram castigadas se o fizessem. Mas como as mulheres não conseguiam se transformar em ladies, eram trocadas por mocinhas brancas que chegavam da Europa (...) Eles queriam fazer sexo o tempo todo. Quer dizer, crianças e mais crianças, ficou incontrolável. Os brancos não tinham tabus e nem respeitavam o nosso "tempo da lua" [menstruação]. As tatuagens nos queixos das mulheres, o chamado "111", também eram consideradas feias, então paramos com o costume. São poucas as mulheres que ainda se tatuam. Você já leu The four ages of Tsurai?15 15 The four ages of Tsurai é uma coleção de documentos históricos sobre os Yuroks, produzidos por navegadores espanhóis e ingleses, entre outros, nos séculos XVIII e XIX, compilados por Heizer & Mills (1991). Durante a viagem à Baía de Trinidad, em maio de 1793, o capitão George Vancouver escreveu em seu diário: "Entre essa gente, bem como entre a maior parte dos índios que conheci, algum tipo de mutilação ou desfiguração das pessoas é praticado, seja de caráter ornamental ou de instituição religiosa, seja para atingir algum objetivo que desconhecemos. (...) Todos os dentes de ambos os sexos eram, através de algum processo, lixados de maneira uniforme e horizontal, até ficarem de tamanho reduzido próximos à gengiva; as mulheres (...) ornamentavam o lábio inferior com três colunas perpendiculares, uma de cada canto da boca e outra no meio, ocupando três-quintos do lábio e do queixo. Se não fosse por esses costumes amedrontadores, fui informado de que aquelas que visitaram nosso grupo na praia no último dia, havia, entre as mulheres mais jovens, algumas com pretensões à beleza. Os homens também tinham algumas tatuagens e cicatrizes nos braços e corpos (...) nossa curiosidade só foi satisfeita com relação àqueles poucos aspectos que a nossa inspeção pôde revelar" (Heizer and Mills, 1991: 67, minha tradução). Tem um trecho ótimo sobre nossas ‘pretensões à beleza’. Aquelas que não conseguiam se transformar em nice ladies eram abandonadas, com todas aquelas crianças para criar (...) É por isso que você encontra tantas avós criando seus netos. A mãe tinha que sair cedo para trabalhar e os pais dela tinham de cuidar das crianças. E às vezes até a avó da mulher era mãe solteira (...) Mas era um símbolo de status desposar um homem branco e você queria ser respeitada, de qualquer maneira.


Os estrangeiros passavam a residir nas casas das mulheres índias. Mais da metade (67%) dos estrangeiros abandonou as esposas Yurok para procurar mulheres brancas em São Francisco ou na Europa. Cabia às mulheres Yurok a responsabilidade de cuidar de um número enorme de crianças – até treze filhos – em comparação com os quatro ou cinco filhos que elas costumavam ter antes de 1850 (Ferreira, 1996: 8).

Foto 4: O marido da jovem Yurok Annie Jane Pilgrim, o madeireiro William Ernest Boyd, trocou-a por uma lady recém chegada da Europa. Annie morreu de septicemia generalizada durante o parto da quarta filha, aos 20 anos, num sanatório para tuberculosos. (Arquivos de Bea Nix, filha do casal

As mulheres Yurok se tornaram chefes de famílias numerosas, e essa mudança na forma de residência – de patri para matrilocal – causou mudanças estruturais na organização social e política do povo. A herança de nomes familiares e outros bens, especialmente casas e ornamentos cerimoniais, passou da linhagem paterna para a materna. Muitos homens Yurok estavam, à essa altura, ausentes da região por diferentes razões: haviam sido mortos em conflitos locais com os estrangeiros, ou então estavam envolvidos na mineração e na atividade madeireira, que ainda persistem no norte da Califórnia, até os dias de hoje.

A avó materna de Sarah Tsurai, chamada Dolly Tsurai, nasceu em 1855 e teve doze filhos (só uma filha está representada na Genealogia 1). Dolly narrava a filhos e netos as atrocidades que testemunhou na infância, contra os Yuroks. Sarah Tsurai comenta:

Minha avó me contava dos horrores, do tempo em que os homens brancos chegaram. Os gritos não deixavam ninguém dormir à noite, os homens estuprando as mulheres e crianças, direto. Ninguém foi poupado. Era terrível. As mulheres tinham tanto medo que, para evitar o estupro noite após noite, enchiam as vaginas com areia da praia [de Trinidad]. Ninguém foi poupado, nem as menininhas. Minha avó só escapou porque era miúda e conseguiu se esconder.

Como a maioria das crianças Yurok nascidas na primeira metade do século XX, a mãe de Sarah Tsurai, Dolores Tsurai, passou oito anos confinada num internato para índios do governo norte-americano. Depois disso, passou a trabalhar de doze a quatorze horas por dia na indústria pesqueira, enlatando salmão. Dolores foi uma das primeiras mulheres Yurok de sua geração a desenvolver diabetes e câncer (conforme está indicado na Genealogia 1). Sarah atribuiu as altas taxas de açúcar no sangue da mãe às condições adversas de vida e aos traumas que ambas sofreram, testemunhando a morte prematura ou a incapacitação de parentes em brigas de bar, acidentes na atividade madeireira ou desastres automobilísticos:

Minha diabetes piorou ontem. Subiu para mais de 250, uma coisa assim. Mais uma vez, acho que foram as notícias ruins. É difícil quando a mente é jovem e o corpo não corresponde. Eu me sinto tão jovem, mas olha para mim. Estou gorda e meus olhos estão falhando (...) Foi quando tudo aconteceu. Um médico indígena veio nos ver quando mataram meu filho. O espírito dele disse: "Mamãe, vele meu corpo, eu vou estar ok!" Tive que fazer a dança da guerra para superar meus sentimentos ruins. Eu pensei que estivesse boa, mas meu corpo deixou claro que não estava. Meu corpo começou a reagir. Comecei a sentir sede, sono, vontade de comer porcaria, açúcar, fritura. (...) "Sugar diabetes diabetes açucarada!" Idêntico à minha mãe, ela também não aguentava aquelas memórias. Os internatos para índios, você sabe o que isso significa? Chutam você como um cachorro, batem na sua cara porque você fala uma única palavrinha em Yurok. A cor da sua pele te faz sentir culpada. Nós, os pele-vermelhas! Você quer desistir, acabar com tudo. Não é à toa que o açúcar no sangue sobe incrivelmente! É só pensar em todas aquelas índias sem esperança de vida, cujos filhos foram assassinados, cujos maridos as violentam. Você sabe sobre quem eu estou falando. Elas não estão na sua lista? Todas elas não são diabéticas? Não estão cegas, em cadeira de rodas, com os pés amputados, espetando dedos o dia inteiro para tentar entender que medicamento devem tomar a cada uma, duas ou três horas?

Quando perguntei a Sarah Tsurai como os antepassados dela lidavam com situações como essa, isto é, se havia algum mecanismo social que desse conta de eventos, memórias e emoções traumáticas, ela respondeu:

A muito tempo atrás quando nós enfrentávamos situações ruins, quer dizer, quando perdíamos o controle das coisas, você sabia que um feiticeiro iria dar conta do problema. Como o vovô Billie, o Velho Billie, que foi enfeitiçado. Veja bem, quando você vai a algum lugar, você nunca deve aceitar uma bebida. E se você aceitar, você deve cuspir o primeiro gole. Mas ele não cuspiu...Ele tinha 60 e poucos anos, e acho que ele teve um infarto, um ataque do coração ou algo assim. É isso que os médicos dizem hoje em dia: "Feiticeiros não existem!" Mas acho que é a maneira como você interpreta as coisas. Ser enfeitiçado é como ser condenado à morte: "Você vai morrer". E você morre porque acredita nisso. Então agora a sentença de morte é: "Você tem diabetes", ou "Você tem câncer", ou algo assim. Se você aceita o diagnóstico, você está morta. Eu gosto de pensar que eu não tenho diabetes. Os médicos dizem que podem provar. Quando eu penso assim, eu sinto a sentença, eu me sinto enfeitiçada também.

Devils (diabos, feiticeiros) são entidades que possuem o poder de ferir ou destruir indivíduos invejados ou detestados. Indians devils podem se manifestar de inúmeras maneiras. Eles podem assumir a forma de animais, seres humanos ou objetos. Um homem Yurok, que não queria aceitar o diagnóstico de câncer e hipertensão em 1995, contou-me que "basta que você e os outros à sua volta acreditem que você foi enfeitiçado: o seu corpo se volta contra você e antes que você se dê conta, você está morto" (Ferreira, 1996: 95). Aqui, tanto a feitiçaria quanto os diagnósticos biomédicos funcionam como "metáforas de relações sociais" (Mulling, 1994 apud Scheper-Hughes & Lock, 1987: 24).

O funcionamento de mecanismos psico-fisiológicos em situações de morte por feitiçaria tem sido objeto de estudo desde o início da década de 40:

(...) em cada ocasião e por todas as suas condutas, o corpo social sugere a morte à infeliz vítima, que não pretende mais escapar àquilo que ela considera como seu destino inelutável (...) Incontinente, brutalmente privado de todos os seus elos familiares e sociais, excluído de todas as funções e atividades pelas quais o indivíduo tomava consciência de si mesmo, depois encontrando forças tão imperiosas novamente conjuradas, mas somente para bani-lo do mundo dos vivos, o enfeitiçado cede à ação combinada do intenso terror que experimenta, da retirada súbita e total dos múltiplos sistemas de referência fornecidos pela convivência do grupo, enfim, à sua inversão decisiva que, de vivo, sujeito de direitos e obrigações, o proclama morto, objeto de temores, de ritos e proibições. A integridade física não resiste à dissolução da personalidade social. (Cannon, 1942 apud Lévi-Strauss, 1973: 193-4)16 16 Foi, aliás, este estudo de Lévi-Strauss que me levou a estudar a relação entre o sistema nervoso e a diabetes, o alcoolismo e a hipertensão, entre outras desordens (Ferreira, 1996; 1998). Citando Canon (1942), Lévi-Strauss (1973: 194) explica como os fenômenos de exorcismo e de feitiçaria se expressam no nível fisiológico: "Cannon mostrou que o medo, assim como a cólera, se faz acompanhar de uma atividade particularmente intensa do sistema nervoso simpático. Esta atividade é normalmente útil, acarretando modificações orgânicas que possibilitam ao indivíduo se adaptar a uma situação nova; mas se o indivíduo não dispõe de nenhuma resposta instintiva ou adquirida para uma situação extraordinária, ou que ele considere como tal, a atividade do simpático se amplia e se desorganiza, e pode, em algumas horas às vezes, determinar uma diminuição do volume sanguíneo e uma queda de pressão concomitante, tendo como resultado desgastes irreparáveis para os órgãos de circulação. (...) Estas hipóteses foram confirmadas pelo estudo de inúmeros casos de traumatismos conseqüentes de bombardeios, de ações no campo de batalha, ou mesmo de operações cirúrgicas: a morte intervém, sem que a autópsia possa revelar a lesão".

Profissionais de saúde da United Indian Health Services (UIHS), todos não-índios, como afirmei acima, ficaram surpresos com a comparação que Sarah e outros Yuroks traçaram entre médicos e feiticeiros, e com outras questões também, quando a primeira versão deste ensaio foi apresentada em 1996. Como poderiam os Yuroks falar sobre "feiticeiros" e "sangue ruim" quando o Programa de Atenção à Diabetes da UIHS, considerado modelo na Califórnia, segue as diretrizes da American Diabetes Association (ADA, 1996)?

Os meus "dados" – histórias de vida, detalhes do cotidiano, relacionamentos sociais, emoções e outros "fatores" culturais – eram muito subjetivos e metafísicos para a prática clínica. Era tempo "perdido" tentar decifrá-los. Meu trabalho acrescentava peças estranhas a um quebra-cabeça que a equipe médica da UIHS já sabia resolver, pois a comunidade científica supõe que entende como o mundo é construído (Kuhn, 1970: 5).

A articulação que Sarah Tsurai faz entre história e corpo, localizando manifestações físicas em contextos sociais, questiona a tradição epistemológica que separa mente e corpo; natural e sobrenatural; espírito e matéria; e o mágico e racional. Essa tradição epistemológica é uma construção histórica e cultural, e não uma suposição universal (Scheper-Hughes & Lock, 1987: 7). O sistema de relações que Sarah constrói, articulando aspectos do corpo individual, do corpo social e do corpo político, acaba por subverter paradigmas sobre a saúde de índios norte-americanos, sugerindo novas maneiras de ordenar o conhecimento sobre a diabetes e outras desordens.

Mary Wo’tek : "Nós somos gente muito feia, índios são gente feia"

Mary Wo’tek era uma senhora de estatura pequena e frágil, que morava sozinha num trailer às margens do rio Klamath, na Reserva Indígena Yurok. Quando a visitei pela primeira vez, no inverno de 1995, Mary estava encolhida no chão ao lado de um fogareiro a gás, tentando se aquecer. Latas de cerveja e garrafas de vinho estavam espalhadas pelo chão do pequeno quarto, bem como ao redor do trailer, jogadas ao longo do barranco do rio. Quando perguntei a Mary como ela estava se sentindo, ela murmurou: "Estou com frio, frio, e muito, muito deprimida".

A história da família Wo’tek, traçada na Genealogia 2, assemelha-se às trajetórias de vida de indivíduos Yurok, retratadas na Genealogia 1. Um homem inglês, Brian Williams, tornou-se parte da casa Wo’tek quando se casou, na década de 1890, com a avó de Mary, Yater Wo’tek, uma cesteira e cantora nascida em 1886. Entre 1902 e 1916, o casal teve onze filhos (só o pai de Mary, o Velho Mack, está localizado na Genealogia 2). Em seguida, o inglês desapareceu, isto é, mudou-se para San Francisco onde foi viver com uma irlandesa e abriu uma tapeçaria. Com a ajuda dos pais, Yater Wo’tek criou os onze filhos. O pai de Mary, o Velho Mack, tornou-se alcóolatra quando retornou da Segunda Guerra Mundial. Em 1975, foi assassinado numa briga de bar. Mary Wo’tek apresentou os ancestrais da seguinte maneira:

Nós somos gente muito feia; índios são gente feia. Veja a vovó Ya-ter, ela teve muita sorte que o Vovô Brian a escolheu como esposa. Ela não sabia tricotar e costurar, ou ao menos agir como uma lady branca decente. Ela tinha saúde, mas você acha que um inglês está interessado nisso? Cestaria, canções de amor? Aposto que ele se cansou de todas essas coisas indígenas (...) Ele foi embora. No lugar dele, eu iria também. A minha própria mãe teve mais sorte, porque ela foi trabalhar como doméstica em San Francisco. Aprendeu a cozinhar bem, fazer bolos e tortas sofisticadas. E limpar, esfregar bem, claro. Os poucos brancos que visitavam nossa casa diziam: "Que índios limpinhos!" Eles até comiam com a gente! Já o papai era totalmente bêbado. Ele voltou da guerra agarrado numa garrafa e nunca mais parou de beber. É verdade o que as pessoas dizem, que índios não podem consumir bebidas alcóolicas. Mas o papai bebia e por isso ele morreu. Igualzinho a meu marido, ele tinha sangue de índio também. Ele sempre foi viciado (...) Pensando bem, todos nós, meu irmão, minha irmã e eu, todos gostamos de beber. Samuel caiu no rio Klamath. Ele nunca gostou de ser índio. Ele e Maggie foram mandados para a Escola Indígena Carson, no Oregon, mas isso não serviu para endireitá-los. Eles nunca gostaram de ir à escola. O Samuel parou de beber há um ano (...) Mas eu não sei o que acontece com esses jovens de hoje. É sexo e drogas o tempo todo. Não sei se tem alguma coisa a ver com ser índio, sabe? O Jim é um jail bird [passou a maior parte da vida na cadeia]; agora ele está em Pelican Bay [prisão de segurança máxima, no norte da Califórnia]. Ele atropelou uma garota e fugiu. Ele vai ficar preso por um tempo ainda, porque ele é índio. A Jackie já esteve mil vezes em centros de reabilitação de drogados, até que morreu em 87. Ela não gostava de mim. Meus filhos sempre me culparam por ser índia, e por casar com um índio. Mas o George não parecia índio, ele era tão bonito! Eu pensei que a Rita fosse se dar melhor, porque se casou com um mexicano. Acontece que o cara era pior que um índio, tomava todos os tipos de drogas e violentava os filhos também. Os filhos? Eles estão todos encrencados. Só a Nora está bem. Ela não é tão escura, tem pele e pés bonitos. Nora está na faculdade, no College of the Redwoods. Espero que ela se case com um homem branco simpático e decente.

Na virada do século, o consumo desenfreado de bebidas alcóolicas ajudou a enfraquecer a estrutura social Yurok e a deteriorar o relacionamento entre índios e não-índios na Califórnia. As genealogias mostram que indivíduos Yurok nascidos na década de 1890, bem como Karuks, Tolowas, Wiyots e não-índios da Califórnia, já estavam afetados pelo alcoolismo no começo do século XX. "Alcoolismo" foi definido por um líder Yurok como "um problema com bebida, quando as pessoas bebem muito, todo dia" (Ferreira, 1996: 102).

Nas genealogias, integrantes de uma mesma família foram identificados como tendo um "problema com bebida" quando o alcoolismo interfere no trabalho e em relacionamentos sociais, causa o acirramento de brigas e disputas, ou o afastamento ou abandono de eventos sociais, incluindo as danças cerimoniais. A partir de 1960, maconha, crack, cocaína e vários tipos de speed (drogas à base de metanfetamina) passaram a fazer parte da vida da maioria de famílias Yurok17 17 As três principais drogas usadas por índios adultos que são admitidos no United Indian Lodge – um centro de reabilitação de dependentes de drogas no norte da Califórnia, associado ao United Indian Health Services (UIHS), são, em ordem de preferência: maconha, bebidas alcoólicas e drogas à base de metanfetamina (ou speed; fonte de informações: United Indian Lodge, 1996). .

O que me deixou intrigada sobre Mary Wo’tek, porém, foi sua imagem de corpo, a auto-imagem que a mulher construiu sobre si mesma. Mary não só diz que "gostou" da experiência nos internatos para índios, como também realmente acredita que ela e outros índios mereçam a punição e a discriminação recebidas.

Eu chorei as primeiras noites no Sherman Institute, mas logo me recompus. Eu realmente adorava o internato. As supervisoras eram muito envolvidas com as crianças, elas realmente queriam nos ensinar bons hábitos, como ser limpos e arrumados, e fazer todas as tarefas domésticas. Era tão adorável! Elas faziam questão que nós soubéssemos que Deus é nosso pai no firmamento, e que Jesus Cristo fez muito por nós. O Espírito Santo, claro, é muito importante nas nossas vidas. Nós rezávamos ao acordar, marchávamos antes do café da manhã e agradecíamos a Deus antes de comer. Tive sorte das pessoas se importarem comigo.

A imagem do "índio bêbado", bem como do "primitivo", "hipersexuado", "preguiçoso" e agora o "índio diabético", é um produto histórico. Mary Wo’tek e outros Yuroks confirmam empiricamente a realidade dessa imagem, por causa do lugar que essas percepções ocupam em suas vidas, por suas experiências e convicções, e pelos investimentos pessoais e coletivos que têm sido feitos nesse sentido. Sustentadas por teorias genéticas, essas imagens se tornam reais e acabam por formar a auto-imagem dos indivíduos.

Quando apresentei a primeira versão da pesquisa de doutorado sobre a saúde Yurok aos integrantes do Programa de Atenção à Diabetes da United Indian Health Services, em janeiro de 1996, fui informada por um profissional de saúde Yurok que ela havia encontrado

um diagnóstico bem melhor para os povos indígenas: a "desordem do estresse pós-traumático" (PTSD). Esta desordem é, na minha opinião, um diagnóstico que se encaixa melhor na realidade da maior parte dos grupos indígenas, por tudo aquilo que já passamos.

Respondi que um estudo recente mostra que, como a figura do "índio bêbado", a imagem criada em torno da PTSD e da memória traumática que lhe dá sustentação, está errada. A desordem não é atemporal, tampouco possui uma unidade intrínseca (Young, 1995: 5). Quando argumentei que rotular os Yuroks como "PTSD" seria mais uma maneira de medicalizar o sofrimento comunitário, Bea Nix, o profissional que integra a equipe do programa de Diabetes da UIHS, posicionou-se da seguinte forma:

Medicalizado ou não, qual é o problema? Eu prefiro ser diagnosticada – e aposto que a maioria das pessoas aqui também – como tendo esta desordem do estresse pós-traumático, do que ser culpada pelo o que eu como, bebo ou faço. Você sabe como eles jogam a culpa em nós, os índios bêbados. O que quer que aconteça, eles dizem: "Ah, é só um índio bêbado!" Pelo menos existe alguma dignidade numa categoria como PTSD, porque não culpa os nossos genes, nossos hábitos ou a nossa educação (Ferreira, 1996: 196; 1998:188).

Foi então que percebi como atos de violência e perdas pessoais terríveis, que estão por trás de memórias traumáticas, são trivializados por categorias de diagnósticos como PTSD e por teorias genéticas como a teoria do "thrifty gene". Além disso, a reificação dessas categorias de doença acaba por afastar a comunidade daqueles problemas socialmente importantes, que não podem ser reduzidos a um quebra-cabeças, porque não podem ser formulados de acordo com as ferramentas conceituais e instrumentais que o diagnóstico envolve (Kuhn, 1970: 35). Ao atribuir a fonte da doença exclusivamente a fatores biológicos, o sofrimento social é afastado do cenário político e confortavelmente instalado no mundo médico do tratamento individualizado (Baer et al., 1986: 97).

O relacionamento que Mary Wo’tek estabelece entre o corpo individual e o corpo social ilumina aspectos do corpo político Yurok, porque envolve questões de poder e de controle. Se desviarmos nossa atenção dos aspectos estritamente repressivos do poder para os seus atributos positivos, como Foucault ensina, aprendemos que o regulamento, a vigilância e o controle do corpo Yurok têm realçado certos prazeres e desejos.

A partir das relações de poder que classificam, monitoram, invadem e escandalizam o corpo Yurok, as mais repressivas e mortíferas formas de prazeres e de desejos têm sido produzidas. "Uma loucura por junk food, álcool, sexo, drogas e violência, tudo aquilo que você nunca pensou em querer tanto", nas palavras de uma mulher Yurok de 50 anos de idade, que vive num estacionamento de trailers (trailer park) nos arredores da Reserva Indígena Yurok.

Julia Stowen: "O próprio sangue te trai"

Julia Stowen é uma enfermeira Yurok, de aproximadamente 60 anos, que conheci numa Brush Dance (cerimônia terapêutica para crianças fracas ou enfermas) na Reserva Indígena Yurok em agosto de 1995. À semelhança de outros Yuroks, Julia também responsabilizou o confinamento em internatos para índios, prisões de segurança máxima, e trabalho forçado na indústria pesqueira, serrarias, fábricas e em casas de famílias de classe alta em San Francisco, como o locus da distribuição de enfermidades. Ao estabelecer essas conexões, Julia delineou um circuito de mecanismos e estabelecimentos disciplinares que transcendem as associações comumente estabelecidas entre elementos do sistema penal americano (Ferreira, 1996: 234-251)18 18 Os internatos para índios norte-americanos são peça-chave da estratégia governamental do século XIX, para punir e disciplinar os povos indígenas. Tais internatos foram criados a partir do "sistema solitário e silencioso de trabalho forçado" (o " Auburn System"), usado nas penitenciárias do país. O superintendente para questões indígenas, Edward F. Beale, propôs, em 1852, que os internatos fossem modelados como as prisões no país: "um sistema de ‘postos militares’ nas reservas [indígenas] (...) que fossem encarados como reservas militares (...) um sistema de disciplina e instrução" (U.S. Senate, Executive documents, 33d. Cong., Spec. Sess., doc. 4, pp. 373-4, minha tradução). . O sangue aparece como o denominador comum de várias instâncias desse circuito, em que representações de saúde e doença são criadas.

A mãe de Julia Stowen, Annie Stowen, nasceu em 1906 na Reserva Indígena Yurok. Os anos que ela passou no Sherman Institute lhe trouxeram as habilidades necessárias – costura, cozinha e limpeza – para se tornar empregada doméstica em San Francisco. Um infarto na década de 60 a impediu de trabalhar simultaneamente na indústria pesqueira, enlatando salmão, e nas serrarias locais, "para ter o suficiente para sobreviver". Quando perguntei a Annie Stowen por que, na opinião dela, havia tanta gente naquela área com diagnóstico de diabetes (incluindo uma de suas irmãs, duas filhas, duas sobrinhas e um neto, todos indicados na Genealogia 3), Annie respondeu:

É tudo a mesma coisa. Quando eu fui para o internato, há mais de 70 anos, eles nos faziam entrar em fila para checar nossos absorventes. As supervisoras queriam saber exatamente quando ficamos menstruadas, para poder nos controlar e saber se estávamos nos encontrando com os meninos. Isso era proibido, e o ritual era humilhante. Tínhamos nossos absorventes checados uma vez por mês e depois da menstruação era necessário mostrá-los, limpos, branquinhos, às supervisoras. Os absorventes tinham de estar bem esfregados para ficar brancos como a neve. Então agora você vai à clínica. Você entra em fila. Eles furam o seu dedo e testam o seu sangue. Você ganha um número e esse número trai você. Se você não tem comido bem, quer dizer, um monte de gordura, açúcar, junk food, os médicos ficam sabendo. Se você não se exercita muito, anda vendo muita TV, eles sabem também, porque sobe o açúcar no sangue. Então o próprio sangue te trai. Você não vê? É a mesma coisa!

O diagnóstico de diabetes tipo II envolve testes de glicose no sangue e análises de urina. O tratamento exige que o paciente monitore o nível de glicose no sangue duas a quatro vezes por dia, siga dieta rígida e faça exercícios físicos regularmente. Caso falhe, medicamentos orais e insulina são acrescentados. As refeições dos pacientes são supervisionadas de perto por nutricionistas e os exercícios monitorados por terapêutas ocupacionais. Os Yuroks descreveram as refeições prescritas como "tudo aquilo que você não gosta de comer: verduras cruas, frutas e carne magra". Os profissionais de saúde sabem que um paciente recém-diagnosticado não tem seguido as orientações médicas se o nível de açúcar no sangue permanece alto.

Pressão alta e um alto nível de proteína na urina também indicam que o paciente não vem observando as recomendações médicas. Repetidas infecções do aparelho urinário e a candidíase vaginal também têm sido associadas à diabetes e isto faz com que os médicos exijam exames da genitália feminina. Julia Stowen e outros Yuroks tentam achar meios para enganar os profissionais de saúde: às vezes picam o dedo em jejum e registram a informação como se tivessem acabado de comer, garantindo o nível baixo de açúcar no sangue. Certa vez, uma mulher de 65 anos levou a urina da filha, sadia, para ser testada, no lugar da própria, para que o médico

não me incriminasse por estar comendo mal e não me exercitando. Eu não aguento este controle, todo esse controle. O que eu mais gosto de comer é salmão, carne de veado, queijo, leite. E os médicos dizem que é muita proteína. Eu estou vazando muita proteína [pela urina].

Estes indivíduos que procuravam enganar os profissionais de saúde da United Indian Health Services tinham sido rotulados como "non-compliant", quer dizer, aqueles que não cooperam com o tratamento prescrito, ou então "in denial" – pacientes que se recusam a enxergar os próprios "problemas". As regras de conduta no trato da diabetes, estipuladas no manual entitulado Diabetes Stage Management Guide (Maaze et al. 1995), não permite que os médicos da UIHS enxerguem além da associação comumente feita entre os sinais e os sintomas da diabetes, limitando as soluções consideradas aceitáveis à dieta, exercício e insulina.

A ideologia do sangue

O sangue tem sido muito útil à ciência moderna. A ideologia do século XVII da transmissão hereditária desencadeou uma curiosidade por plantas, animais híbridos e monstros. Essas idéias foram úteis para resolver questões legais relativas à subordinação dos sexos, paternidade, pureza de linhagens e à legitimidade da aristocracia (Canguilhem, 1988: 35). "Meia-raça", "quarto de sangue", "índio puro" e outras expressões semelhantes têm sido utilizadas até hoje nos Estados Unidos, refletindo o que os Yuroks chamam de "a obsessão sanguínea dos brancos". O lugar que essa obsessão ocupa nas vidas, experiências e convicções de muitos Yuroks denota a virulência com que a ideologia da transmissão hereditária vem incidindo sobre as categorias de conhecimento Yurok e, em consequência, sobre a auto-imagem que o povo produz e projeta de si mesmo.

Jamie White, primo de primeiro grau de Julia Stowen, fala de si e dos parentes mais próximos usando o sangue como metáfora, para designar relações sociais. Julia mostrou-me uma fotografia de Jamie, ainda menino, segurando, orgulhosamente, o primeiro salmão-rei que conseguiu pescar no rio Klamath, que atravessa a reserva indígena e deságua no Pacífico.

Aqui está Jamie, aos 11 ou 12 anos. Sua mãe ainda era viva. Todo o mundo sempre critica esse menino. Ninguém jamais lhe deu crédito. Ele era mau, muito mau, mas eu gostava dele mesmo assim. Eu conseguia ver todo o ódio que ele tinha trancado dentro de si, foi isso que conseguiram fazer com ele na [prisão] Pelican Bay. Ele esteve no buraco [solitária] tantas vezes. (...) Para ele a vida era um buraco, como ele sempre dizia. Jamie tinha um jeito de falar com as pessoas sobre os índios. O que ele mais detestava, ele dizia, era ser índio. Ele nunca perdoou sua mãe por isso. Culpava até a própria avó! Ele dizia que éramos todos sujos, nós, os índios, e que a avó dele se casou com um meia-raça. "Se minha mãe tivesse se casado com um homem branco", suspirava Jamie, "eu seria somente um oitavo, em vez de um quarto de sangue"19 18 Os internatos para índios norte-americanos são peça-chave da estratégia governamental do século XIX, para punir e disciplinar os povos indígenas. Tais internatos foram criados a partir do "sistema solitário e silencioso de trabalho forçado" (o " Auburn System"), usado nas penitenciárias do país. O superintendente para questões indígenas, Edward F. Beale, propôs, em 1852, que os internatos fossem modelados como as prisões no país: "um sistema de ‘postos militares’ nas reservas [indígenas] (...) que fossem encarados como reservas militares (...) um sistema de disciplina e instrução" (U.S. Senate, Executive documents, 33d. Cong., Spec. Sess., doc. 4, pp. 373-4, minha tradução). .

"Puro", "meia-raça", "quarto de sangue" e outras frações de indianidade são critérios de identidade comuns a índios e não-índios na Califórnia. Servem para incluir ou excluir indivíduos de certos grupos sociais, e para calcular a probabilidade genética de certo indivíduo desenvolver esta ou aquela doença ao longo da vida. Em certas situações, uma porcentagem alta de sangue indígena é vantajosa (para justificar a incapacidade para o trabalho e receber seguro-desemprego, por exemplo) e em outras é uma desvantagem. O "sangue índio" funciona, portanto, como poderoso selecionador social. Centenas de indivíduos estão tentando provar que possuem no mínimo um oitavo de sangue Yurok, para ser incluídos como membros da tribo.

De acordo com um adolescente Yurok que conheci em 1996, "alguns são sortudos de ter o sangue [Yurok] mas de não ter a aparência de índio". Esta condição permite que indivíduos sejam membros da tribo (garantindo-lhes assistência médica e o envio de cestas básicas – enlatados, farináceos, queijo e leite) e, ao mesmo tempo, evitar a discriminação. À medida que o sangue indígena se dilui entre e através das gerações, os indivíduos também correm o risco de se tornar "lixo-branco", uma categoria obviamente indesejada para Yuroks e não-índios.

Enquanto uma sociedade aristocrática, os Yuroks têm, desde tempos imemoriais, definido o pertencimento à classe Talth, ou "gente das grandes casas", como aqueles que são donos de um ritual, reza, canção e objetos cerimoniais (Thompson, 1991; Pilling, 1989). Os Yuroks não levavam a qualidade ou quantidade de sangue indígena em consideração. O sangue tem ocupado lugar específico na vida Yurok. Até meados do século XIX, era concebido como substância purificadora para homens e mulheres. Apesar de todas as mudanças que o conceito de sangue Yurok enfrentou, muitos Yuroks concebem o sangue menstrual como substância purificadora, que prepara as mulheres para um feito ou conquista espiritual (Buckley, 1988: 190). Homens que desejam atrair riquezas para ascender na hierarquia social Yurok devem arranhar as pernas com lascas de quartzo, para o fluxo do sangue eliminar impurezas psíquicas, preparando-os para a ascensão espiritual (Buckley, 1988: 195). Apesar dessa prática ter sido abandonada por muitos, dois homens Yuroks que conheci reportaram que eles sangram as pernas antes de caçar ou pescar. Al Gray, um líder cerimonial Yurok que faleceu em 1996, aos 83 anos de idade, afirmou que quando ele recebeu o diagnóstico de câncer, "arranhou as pernas e coxas com uma pequena faca, para tirar todo o sangue ruim de dentro".

Até meados do século XIX, os Yuroks não usavam a qualidade do sangue de um indivíduo como o principal sinal do diagnóstico de saúde e enfermidade. Tampouco a quantidade era usada como critério de inclusão ou exclusão de grupos sociais, como já afirmei. Logo após o General Allotment Act de 1887 (quando as reservas indígenas da Califórnia foram loteadas e repartidas entre índios e não-índios), os Yuroks foram apresentados ao sistema latifundiário da propriedade privada.

O critério de indianidade passou a ser biológico, definido a partir da "quantidade" de sangue indígena. Valores do sistema de parentesco norte-americano delinearam o campo simbólico a partir do qual o status de Native American foi definido. Uma ordem de natureza específica, pontuada pelo critério sanguíneo, foi associada a uma ordem de lei muito precisa, marcada por um código de conduta pré-estabelecido (Schneider, 1968, 1989). Julia Stowen explica:

O loteamento [das terras indígenas] fez muito mais do que simplesmente roubar nossas terras e nos obrigar a usar nomes ingleses. Começamos a brigar entre nós mesmos por causa da repartição da terra, quem pagava impostos, quem é parente de quem. Você sabe, eles calculavam o direito a cada parcela de terra de acordo com a porcentagem de sangue indígena. Crianças adotadas por não-índios ainda tinham uma cota, mas filhos adotivos de índios não receberam nada. Casamentos cerimoniais indígenas não eram reconhecidos. Tudo isto acabou gerando muita tensão entre os povos. (Ferreira, 1996: 99; 1998:193)

Julia esclareceu, mais tarde, que seus pais tinham sido envolvidos em disputa judicial por um pedaço de terra na Reserva Indígena Yurok, no fim da década de 1920. O lote de 64 acres, avaliado em 1942 em 1000 dólares, foi dividido em 14 lotes menores, de acordo com a quantidade de sangue indígena de cada indivíduo. Uma das tias de Julia, viúva do proprietário do lote, recebeu 13/39 da parcela total, enquanto cada uma das 13 crianças recebeu 2/39 cada20 20 Dados referentes ao processo de herança de latifúndio do governo dos EUA, Office of Indian Affairs, 1942, caso no. 6890-44 (Ferreira, 1996; 1998:198). .

"Reivindicar o sangue índio", como dizem os Yuroks, passou a ser obrigatório para aqueles que desejam ter acesso aos programas governamentais de assistência à saúde e à educação, bem como ao direito de vender bebidas alcoólicas e cigarros sem pagar impostos, e abrir cassinos em reservas indígenas. O Conselho Governamental da Tribo Yurok, organizado a partir da Constituição Yurok de 1993, estabeleceu o mínimo de 1/8 de sangue Yurok como critério de pertencimento.

A ênfase na quantidade ou qualidade de sangue índio por parte de profissionais de saúde, que apostam em teorias genéticas, também contribui para as concepções que os Yurok produzem sobre o próprio corpo. A crença de que o alcoolismo é genético e, portanto, doença incontrolável que leva à cirrose hepática e, eventualmente, à morte, também é comum entre os Yuroks. O mesmo ocorre com outros males, como a diabetes e o câncer, igualmente incontroláveis porque "estão nos corpos", são "genéticos". Isto é, precisamente, o que um médico na cidade de Eureka, no norte da Califórnia, disse a uma mulher Yurok de 80 anos de idade, que recentemente foi diagnosticada com diabetes. A cegueira e a amputação do pé direito da mulher, segundo ela própria, foi por causa do

meu sangue ruim. Foi isso que o médico me disse. Nós índios temos sangue ruim. Veja bem, por isso que eu bebi tanto em minha vida. Está em mim, no meu sangue. Então não há muito que eu possa fazer. Eu digo sempre para os meus filhos: "Cuidado com a bebida, porque está no seu sangue!" Você acha que eu vou seguir uma dieta rígida e não comer tudo aquilo que eu gosto se está no meu sangue? (...) Meu filho alcóolatra vai aos cassinos direto. Ele gasta todo o dinheiro do seguro-desemprego dele no cassino de Trinidad. Agora, isso você pode dizer que está no nosso sangue, porque nós, índios, sempre gostamos de apostar, jogar baralho de índio, aqueles pauzinhos, sabe?21 20 Dados referentes ao processo de herança de latifúndio do governo dos EUA, Office of Indian Affairs, 1942, caso no. 6890-44 (Ferreira, 1996; 1998:198).

Um médico local, que tem tentado fazer com que a tia materna de Julia, Susie Burns, siga o tratamento prescrito para diabetes, descreve a frustração:

Essa paciente tinha quase caído na minha rede. Falei muitas vezes que o açúcar no sangue dela estava alto, e que ela tinha diabetes na família. Ela repetia: "Não, doutor, eu não sou diabética, e não vou tomar nenhum desses comprimidos!" Eu insisti, e mostrei a ela os resultados dos exames e, mesmo assim, ela não acreditou em mim.

Susie Burns havia me explicado, dois meses antes, a razão da recusa em aceitar o diagnóstico médico:

Veja bem, essa história toda sobre diabetes, os médicos já me explicaram o que é diabetes. Eles dizem: "O seu açúcar está alto, portanto você tem diabetes!" Mas eu não acredito neles. Dizem que têm evidências, e daí querem me examinar para checar as evidências. O programa de diabetes telefona e diz: "Você tem diabetes!" Agora, isso é uma coisa devastadora para dizer a alguém. Todo mundo anda por aí dizendo que eu sou diabética. Os médicos querem que eu tome comprimidos. Você acha que vou ficar engolindo comprimidos assim, um atrás do outro, pop-pop-pop? Por que eles querem?

Exatamente como faz minha irmã, engolindo pílulas assim, o tempo todo. Ela está com essa mania. Pílulas e mais pílulas. Agora, olhe para mim, eu me sinto jovem. As pessoas dizem que eu me alimento como um passarinho. Faço exercício aparando as trepadeiras e a grama em casa. Aí os médicos me perguntam "Você se levanta no meio da noite para urinar?" Não. "Você sente sede o tempo todo?" Não. Todas as minhas respostas são: não. Mas aí eles examinam minha urina e dizem que tem algo errado. Examinam meu sangue e, veja, um dia eu chequei meu sangue e o açúcar estava 175. Aí eles pediram para vir à clínica em jejum, mas eu esqueci. A taxa de açúcar no sangue estava alta, por volta de 180, e os médicos disseram: "Você tem diabetes!" Ora é a urina, ora é o sangue. Até que eles me examinem inteirinha e registrem tudo no papel, até que provem que eu tenho diabetes, não vou admitir. O pessoal diz que sou durona, que não entendo, que quero desafiá-los, mas não é ser durona. O que sou é saudável. Como poderia ser diabética? E aí, veja bem, ninguém na minha família tem essa doença. Como é que poderia ser eu?

A imagem de corpo Yurok, que inclui concepções de saúde e doença, é comparada por uma medicine woman Yurok à imagem de corpo que prevalece para instituições de saúde do norte da Califórnia:

Para nós, Medicina é muito mais do que aquilo que acontece dentro do corpo. Quando estou dentro daquela arena [onde são realizadas as brush-dances, cerimônias terapêuticas] com uma criança, não é só a cura da doença que está em jogo. O importante é fazer a criança ficar forte e feliz. Eu trabalho o relacionamento da criança com o mundo, com o Criador e com as pessoas à sua volta.

Se as pessoas têm sentimentos ruins, elas não deveriam vir aqui. As pessoas têm de estar limpas, como eu. Eu jejuo por 10 dias para poder entrar naquela arena. Deixo de beber água por 10 dias, só outros líquidos. Você viu aquele aviso perto do portão, que diz: "Proibido drogas e álcool"? Bem, é uma maneira de indicar a necessidade de se estar limpo (...) Agora, os hospitais por aqui pensam sobre o corpo de maneira diferente. É uma maneira completamente distinta de se lidar com o mundo, com o Criador, com tudo. O que importa são os seus órgãos e o seu sangue, suas entranhas e não sei o que mais. Te dão um número, um prontuário, uma lista de doenças e uma enorme quantidade de remédios para tomar. Quem você realmente é não faz a menor diferença. Quando eles não conseguem achar o seu nome, forneça o número do Social Security equivalente ao CIC ou a data de nascimento, e eles te localizam rapidinho.

Considerações finais

As transformações pelas quais a auto-imagem Yurok tem passado vem alterando, em grande medida, as relações entre o corpo individual, social e político do povo. Alguns homens e mulheres, como Mary Wo’tek, criam e reproduzem imagens distorcidas sobre o "índio" genérico, a partir do lugar que teorias biogenéticas passaram a ocupar em suas vidas. O corpo individual, neste caso, ocupa uma bio-identidade – a do índio bêbado, doente e criminoso, reconhecido pela probabilidade de adoecer e morrer. É a partir dessas imagens de corpo medicalizado que Mary Wo’tek se relaciona com a sociedade e atribui significados ao mundo em que vive.

Outros, como Sarah Tsurai, são mais conscientes da relação entre corpo e história. As conexões que estabelecem entre o corpo e o meio ambiente, entre enfermidades e contextos sociais perversos, questionam o pensamento dualístico da ciência ocidental e da medicina clínica, que opõe corpo e mente, paixão e razão, natureza e cultura, realidade e ficção. Aqui, as concepções de saúde e doença não obedecem leis exclusivas da fisiologia, tampouco escapam das influências de histórias locais e estrangeiras.

Finalmente, as maneiras pelas quais Julia Stowen e outros Yuroks usam o sangue como metáfora para expressar relacionamentos sociais, iluminam a estreita convergência entre os requerimentos da ideologia política e aqueles da tecnologia médica (Foucault, 1975:38). A estabilidade do corpo político Yurok inclui, agora, a manipulação do quantum sanguíneo para regular o pertencimento à tribo. Este é um mecanismo que acaba disciplinando arranjos familiares, tais como casamentos e adoções. As percepções que os Yuroks têm acerca do corpo vem se tornando um conjunto híbrido de eventos históricos, conhecimentos transculturais e práticas interdisciplinares, que enfatizam relações sociais e a reciprocidade humana.

Jimmy James, líder cerimonial que vive na reserva indígena Yurok, expressou essas idéias, em janeiro de 1995, da seguinte maneira:

Essa coisa do sangue, você sabe como os brancos são obcecados com isso. Para ser índio, você tem de ter um-quarto, um-oitavo de sangue índio. Mesmo se você não pensa como índio, você é índio (...) Os modernos testes genéticos fazem a mesma coisa, dão uma identidade, dizem quem você é. Mas nós, a Tribo Yurok, estamos num nível diferente, uma realidade distinta. Você sabe que havia lugares para onde os Yuroks não atreviam se aventurar, nem mesmo na imaginação? Estou falando sobre antigamente, quando acreditávamos que o nosso mundo era sustentado por redwood trees [pinheiros gigantes]. Bem, entre o céu e a terra havia buracos celestes, por onde os espíritos passavam, para chegar à terra firme novamente (...) Lugares onde ninguém tinha coragem de conhecer, nem mesmo os espíritos. Mas agora as coisas têm mudado tanto, e nós tivemos que nos organizar sob leis diferentes. Tivemos de mudar nossa maneira de ser. Mas nossa cultura nunca morreu, como os brancos pensam. Por que andamos de carro e vamos ao supermercado? Isto é tão significativo? Nós acreditamos que a nossa organização, sob uma Constituição, significa que atravessamos os buracos celestes e emergimos em outro nível do mundo, em que podemos entender aspectos de diferentes sistemas jurídicos e nos engajar, de maneira decisiva, em todas as práticas cerimoniais, como a Brush Dance, a Jump Dance e as cerimônias de Renovação ao Mundo, que os brancos nos forçaram a abandonar.

Agradecimentos

Este trabalho recebeu apoio do Conselho Diretor da United Indian Health Services (UIHS) e de seu Diretor Executivo, Jerry Simone. As sugestões das líderes indígenas Bea Nix e Lavina Bowers, bem como de minha orientadora na Universidade da Califórnia em Berkeley, Nancy Scheper-Hughes, foram fundamentais para a realização deste ensaio. Aos meus colegas Natasha Schüll e Adriana Petryna, e ao professor Lawrence Cohen, da UC Berkeley, devo a leitura crítica do manuscrito. Finalmente, aos membros da Tribo Yurok, que têm dado apoio ao meu projeto de pesquisa na área, sou imensamente grata.

A pesquisa foi financiada pelo CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento), por meio de bolsa de doutoramento no exterior entre 1992 e1996 (processo nº 201359/92-8), bem como pelas seguintes bolsas e prêmios de incentivo à pesquisa da Universidade da Califórnia (UC), em Berkeley: Olson Grants (1994-1995); Continuing Graduate Student Fellowship (1995); e Vice Chanceller for Research Fund Award (1995). O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da UC Berkeley (protocolos nº 94-6-21 e 95-6-81) e pelo Conselho Diretor e Comitê de Pesquisa da United Indian Health Services. O apoio final a este ensaio foi dado pelo MARI – Grupo de Educação Indígena do Departamento de Antropologia da USP –, através do Projeto Temático da FAPESP "Antropologia, História e Educação: A Questão Indígena e a Escola" (processo nº94/3492-9).

1 A primeira versão deste artigo foi publicada com o título "Slipping Through Sky Holes. Yurok Perceptions of the Body in Northern California", em Culture, Medicine and Psychiatry (Ferreira 1998), e apresentada no XIV International Congress of Anthropological and Ethnological Sciences, em Williamsburg, Virginia, em julho de 1998. A presente versão foi apresentada no III Congresso de Antropologia Chilena, em novembro de 1998, em Temuco, Chile.

2 Somente 5% da Reserva Indígena (R.I.) Yurok estão nas mãos do próprio povo. Os outros 95% são propriedade de madeireiras (85%) e de não-índios (10%). Ao contrário das terras indígenas brasileiras que são inalienáveis, as reservas indígenas nos EUA podem ser loteadas e comercializadas. A R.I. Yurok é uma "tripa" de 3,2 quilômetros de largura, por 65 quilômetros de extensão, ao longo do rio Klamath, no norte da Califórnia.

4 Um indivíduo é diagnosticado como "diabético" se o nível da glicose sanguínea, em jejum, for igual ou superior a 125 mg/dl (ADA, 1996: 14). A Associação dos Diabéticos Americanos (ADA) eliminou, recentemente, os termos "diabetes mellitus insulino dependente" (IDDM) e "diabetes mellitus não insulino dependente" (NIDDM), mantendo os termos Tipo I e Tipo II, respectivamente (ADA, 1996: 5).

6 Apesar da correlação entre a diabetes mellitus do Tipo II ser conhecida, ela não é citada pela grande maioria dos artigos científicos da Medicina e da Antropologia. Nenhum dos 35 artigos publicados nos Anais de Simpósio "Diabetes in Native American and Alaska Natives", realizado em Mesa, Estado do Arizona, em 1989, usa o trauma como variável de análise (ver, por exemplo, Sugarman et al.,1993).

9 O composto "anaphrodisiac in Gonorrhea" foi descrito no relatório sanitário da Hoopa Valley Agency da seguinte maneira: "Ext. ergot fluidi.....m. xv 1; Tinct. gelsemii.....m. v; Potassi bromidi.....gr. xx 1; Tinct. hyoscyami.....m. xxx 2; Syrupi aurantii, q. s. ad.....3ss 16. Sig. Shake. One Dose at bedtime" (Ferreira, 1996:254; 1998:197). Índios norte-americanos ainda são considerados "altamente vulneráveis" à gonorréia e à sífilis (Rice et al., 1991).

10 UIHS opera com autorização do Congresso Norte-Americano (Act 638). A sede do complexo de dez clínicas é em Trinidad, no Distrito de Humboldt, no norte da Califórnia. A UIHS atende a aproximadamente 12.000 índios de dez povos distintos.

12 Sarah Tsurai e eu nos encontramos dezessete vezes entre agosto de 1994 e novembro de 1996. Doze entrevistas foram concedidas por telefone, para esclarecer detalhes de nossas conversas anteriores. Com Mary Wo’tek mantive onze encontros, e com Julia Stowen, treze.

13 Dos 413 casamentos Yurok analisados por Waterman e Kroeber em 1919, 76,6% eram "casamentos completos" (full marriages), isto é, "o homem ‘paga’ pela esposa e a leva para viver na cidade e na casa dele" (Waterman & Kroeber, 1934: 1, minha tradução).

19 O "buraco" é o nome dado por prisioneiros para a solitária na prisão de segurança máxima Pelican Bay State Prison, na região de Del Norte, no norte da Califórnia.

21 O Jogo do Palito (stick game) é praticado pelos Yuroks, Karuks, Tolowas e Hupas no norte da Califórnia, no final do Brush Dance ou do Jump Dance, cerimônias terapêutica e de renovação do mundo, respectivamente.

Bibliografia

ABSTRACT: Yurok perceptions of the body as the inscribed surface of social and environmental change are explored in this paper. To the violence and brutality of Spaniards, fur traders, gold miners, American soldiers, and Indian policies of the US government since the eighteenth century, Yurok women attribute the high incidence of degenerative diseases, drug abuse and criminality in northern California. The piece contemplates the lives of eight generations of sixteen Yurok extended families, mapping intergenerational shifts in Yurok social relations and political practices. It considers the mutation of knowledge in the constitution of the natural and social sciences and the effects of this knowledge when implemented in Yurok country. Here, Critical Medical Anthropology values the correlation between body and history in the works of Foucault (1977), Sahlins (1985, 1995), and Scheper-Hughes & Lock (1987). This historico-critical investigation shows how certain events mark their power and engrave memories on individuals’ bodies. It is within a hybrid set of cross-cultural and interdisciplinary practices that a more fruitful understanding of Yurok body imagery can be fashioned.

KEYWORDS: body imagery, identity, violence, Yurok population, California

Aceito para publicação em novembro de 1998.

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  • Notas
  • 3
    Em
    League of the Iroquois (1851),
    The American Beaver and his Works (1868) e
    Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family (1877), Morgan desenvolveu idéias próprias sobre família, relações familiares, modos de descendência e regras de casamento. Sobre uma rede de laços biológicos, Lewis Morgan interpretou a complexidade da organização social Iroquois. Cem anos depois de Morgan, a teoria elementar de parentesco de Claude Lévi-Strauss (1969 [1949]) ajudou a dar à Antropologia o status de ciência ao aprimorar, estender e articular teorias de parentesco elaboradas por seus antecessores.
  • 6
    Veja, também, Bohman et al. (1981), Buydens-Branchey et al. (1989), e von Knorring et al. (1975).
  • 7
    O censo de 1852 divulgado por A. Kroeber (1976[1925]:16) iddentificou "casas" e "aldeias" Yurok. O termo "casa" foi usado para designar a construção física, enquanto "aldeia" foi definido como "um conjunto de casas". Waterman (1993[1920]) e Kroeber (1976), por sua vez, definiram "casa" enquanto um grupo de descendência. Em 1925, Kroeber passou a utilizar "família" para designar um grupo de indivíduos vivendo na mesma unidade doméstica ("household"): "Era comum, por volta desta data [1895], uma família possuir duas ou três casas" (1976): 19, minha tradução).Yuroks que participaram do presente estudo referiram-se a indivíduos enquanto membros da "família", quando esses indivíduos pertenciam ao grupo de descendência materno, paterno ou, por vezes, a ambos.
  • 8
    Special Notice do Quartely Sanitary Report of Diseases and Injuries do United States Indian Service, Hoopa Valley Agency, 30 de setembro de 1994. No relatório, as categorias acima são classificadas como "doenças".
  • 11
    Para tornar-se membro da Tribo Yurok, o indivíduo precisa ter ao menos 1/8 de sangue Yurok. Hoje, a população Yurok gira em torno de 3.500 indivíduos.
  • 14
    Dos 108 casamentos realizados entre 1850 e 1889 no seio de dezesseis famílias extensas consideradas em Ferreira (1996), trinta (27,7%) dessas uniões eram entre mulheres Yurok e não-índios (Ferreira, 1996: 83; 1998:197). Em 1852, a população Yurok foi estimada em 1.052 indivíduos. Das dezesseis famílias consideradas, apenas uma apresenta casamentos entre mulheres Yuroks e não-índios, até a década de 1970. Em quinze famílias foram constatadas uniões entre índios e não-índios. Os demais casamentos eram entre os próprios Yuroks (51%), entre Yuroks e Tolowas (11%), Yuroks e Karuks (2%) e Yuroks e Hupas (2%). Até o fim da década de 1970, não houve um único casamento entre homens Yuroks e mulheres não-índias.
  • 15
    The four ages of Tsurai é uma coleção de documentos históricos sobre os Yuroks, produzidos por navegadores espanhóis e ingleses, entre outros, nos séculos XVIII e XIX, compilados por Heizer & Mills (1991). Durante a viagem à Baía de Trinidad, em maio de 1793, o capitão George Vancouver escreveu em seu diário: "Entre essa gente, bem como entre a maior parte dos índios que conheci, algum tipo de mutilação ou desfiguração das pessoas é praticado, seja de caráter ornamental ou de instituição religiosa, seja para atingir algum objetivo que desconhecemos. (...) Todos os dentes de ambos os sexos eram, através de algum processo, lixados de maneira uniforme e horizontal, até ficarem de tamanho reduzido próximos à gengiva; as mulheres (...) ornamentavam o lábio inferior com três colunas perpendiculares, uma de cada canto da boca e outra no meio, ocupando três-quintos do lábio e do queixo. Se não fosse por esses costumes amedrontadores, fui informado de que aquelas que visitaram nosso grupo na praia no último dia, havia, entre as mulheres mais jovens, algumas com pretensões à beleza. Os homens também tinham algumas tatuagens e cicatrizes nos braços e corpos (...) nossa curiosidade só foi satisfeita com relação àqueles poucos aspectos que a nossa inspeção pôde revelar" (Heizer and Mills, 1991: 67, minha tradução).
  • 16
    Foi, aliás, este estudo de Lévi-Strauss que me levou a estudar a relação entre o sistema nervoso e a diabetes, o alcoolismo e a hipertensão, entre outras desordens (Ferreira, 1996; 1998). Citando Canon (1942), Lévi-Strauss (1973: 194) explica como os fenômenos de exorcismo e de feitiçaria se expressam no nível fisiológico: "Cannon mostrou que o medo, assim como a cólera, se faz acompanhar de uma atividade particularmente intensa do sistema nervoso simpático. Esta atividade é normalmente útil, acarretando modificações orgânicas que possibilitam ao indivíduo se adaptar a uma situação nova; mas se o indivíduo não dispõe de nenhuma resposta instintiva ou adquirida para uma situação extraordinária, ou que ele considere como tal, a atividade do simpático se amplia e se desorganiza, e pode, em algumas horas às vezes, determinar uma diminuição do volume sanguíneo e uma queda de pressão concomitante, tendo como resultado desgastes irreparáveis para os órgãos de circulação. (...) Estas hipóteses foram confirmadas pelo estudo de inúmeros casos de traumatismos conseqüentes de bombardeios, de ações no campo de batalha, ou mesmo de operações cirúrgicas: a morte intervém, sem que a autópsia possa revelar a lesão".
  • 17
    As três principais drogas usadas por índios adultos que são admitidos no United Indian Lodge – um centro de reabilitação de dependentes de drogas no norte da Califórnia, associado ao United Indian Health Services (UIHS), são, em ordem de preferência: maconha, bebidas alcoólicas e drogas à base de metanfetamina (ou
    speed; fonte de informações: United Indian Lodge, 1996).
  • 18
    Os internatos para índios norte-americanos são peça-chave da estratégia governamental do século XIX, para punir e disciplinar os povos indígenas. Tais internatos foram criados a partir do "sistema solitário e silencioso de trabalho forçado" (o "
    Auburn System"), usado nas penitenciárias do país. O superintendente para questões indígenas, Edward F. Beale, propôs, em 1852, que os internatos fossem modelados como as prisões no país: "um sistema de ‘postos militares’ nas reservas [indígenas] (...) que fossem encarados como reservas militares (...) um sistema de disciplina e instrução" (U.S. Senate, Executive documents, 33d. Cong., Spec. Sess., doc. 4, pp. 373-4, minha tradução).
  • 20
    Dados referentes ao processo de herança de latifúndio do governo dos EUA, Office of Indian Affairs, 1942, caso no. 6890-44 (Ferreira, 1996; 1998:198).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Mar 2000
    • Data do Fascículo
      1998
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