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Dossiê desigualdade: apresentação

DOSSIÊ DESIGUALDADE: APRESENTAÇÃO* * Sou muito grata à Comissão Editorial da RBCS pelo convite para organizar este dossiê.

Elisa P. Reis

O tema da desigualdade esteve sempre no centro das preocupações das ciências sociais. Entre os "pais fundadores" essa centralidade é indiscutível. Assim, para Marx a desigualdade entre classes constituía a chave tanto para se entender o processo histórico-evolutivo, como para se superar o problema moral da exploração do homem pelo homem. De Tocqueville viu a afirmação da igualdade como uma dinâmica social resultante de processos demográficos naturais. Preocupava-o, porém, uma possível afinidade entre igualdade social e despotismo político. Acostumado a pensar as imunidades dos nobres como freio ao despotismo dos governantes, temia que o fim dos privilégios de status trouxesse consigo uma massa de indivíduos igualmente privados de liberdade. Pragmaticamente, apostou na associação voluntária e contingente de iguais/indivíduos como um antídoto possível à tirania.

Durkheim viu a desigualdade moderna substancialmente como diferença resultante da especialização. Essa última, por sua vez, constituía para ele a chave da complementaridade destinada a cimentar solidariedade social. Era exatamente porque as pessoas não eram iguais que elas dependiam umas das outras e, portanto, se integravam a um todo social. Ressalvadas distorções temporárias inevitáveis, acreditava que uma sociedade de desiguais interdependentes tornava a todos moralmente iguais, posto que igualmente dependentes do todo social.

Max Weber, reservando ao âmbito da responsabilidade dos atores a dimensão moral do problema, insistiu em conferir à questão da desigualdade um tratamento analítico e inaugurou uma tradição ainda hoje vigorosa nos estudos de estratificação social. A idéia de que as fontes de desigualdade são diferenciadas e não necessariamente convergentes tornou-se premissa teórica entre os especialistas e princípio estratégico para se alterar padrões de desigualdade através de políticas específicas.

Os estudiosos contemporâneos do tema, embora tenham reformulado argumentos e instrumentos de análise, são herdeiros legítimos da tradição clássica, tanto no que diz respeito à inspiração teórica, como no que concerne à rejeição moral explícita ou implícita às injustiças distributivas. Não se infira daí qualquer consenso quanto ao tratamento das questões em pauta. Fiéis à sua vocação de cientistas sociais, os especialistas da área continuam imersos em debates e discordâncias vigorosas. Os textos reunidos aqui, porém, não se destinam a ilustrar as divergências características sobre o tema da desigualdade. Meu propósito básico foi propiciar ao leitor um pequeno painel sugestivo dos diferentes ângulos da problemática abordados no interior do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade (NIED), apoiado pelo Programa de Núcleos de Excelência (Pronex) do Ministério de Ciência e Tecnologia.

Não há dúvida que o tema é vasto, múltiplo e complexo, como de resto tudo o que diz respeito à vida social. Por isso mesmo, não temos outro recurso para respeitar sua complexidade e relevância senão simplificá-lo, reduzi-lo a fatias analíticas, privilegiar ângulos específicos. Na impossibilidade de incluir aqui produtos relativos a cada um dos projetos de pesquisa que compõem o programa de trabalho do NIED, vi-me forçada a reduzir ainda mais a riqueza de tratamentos da temática.1 1 Para uma descrição dos diversos projetos ver http://www.nied.org.br Assim, o conjunto de textos a seguir constitui uma amostra limitada da diversidade de temas e abordagens trabalhados no interior do NIED ou por pesquisadores que dialogam com membros do Núcleo.

Como se verá, embora a questão da pobreza seja central para todos os autores aqui incluídos, a noção de desigualdade com que trabalham extravasa os critérios exclusivamente materiais da desigualdade para incluir formas mais amplas de privação e desvantagem. Embora seja mister reconhecer que para amplas camadas da população a questão da sobrevivência material seja vivida dramaticamente, não há dúvidas que a desigualdade, e não a pobreza, é o aspecto distintivo da sociedade brasileira. Também é claro que desvantagens não materiais perpetuam e aprofundam nosso padrão de desigualdade na distribuição de bens e serviços.

Como não poderia deixar de ser, os autores aqui reunidos trabalham o tema da desigualdade referenciados a uma noção ética de igualdade. Essa última é tratada por todos como igualdade ontológica, igualdade de oportunidades e/ou igualdade de condições. Sinal dos tempos, talvez, nenhum dos textos dialoga com a noção de igualdade de resultados.

O artigo de José Reinaldo de Lima Lopes, "Direitos humanos e tratamento igualitário", discute direitos humanos em conexão com a temática da igualdade e as tensões com a questão da diferença. Preocupa-o sobremodo a idéia de que a impunidade que caracteriza a sociedade brasileira é filha dileta dos privilégios e hierarquias historicamente cristalizados em nossas estruturas de estratificação. Não se infira daí, porém, que o autor se limite a identificar nos resíduos histórico-culturais nosso substrato injusto e desigual. Sua argumentação clara em favor do reconhecimento universal das diferenças deita raízes em Kant para defender o igualitarismo na doutrina e na prática jurídica.

No texto "Da desigualdade de classe à desigualdade do conhecimento", o objetivo mais amplo de Nico Stehr é chamar a atenção para a necessidade de se levar em conta novas fontes de desigualdade na sociedade contemporânea. Stehr discute em particular o monopólio do conhecimento como instrumento por excelência de desigualização. Não se trata apenas, diz ele, de tomar o conhecimento como fonte de recursos instrumentais para se obter mais renda no mercado de trabalho. Enfatizando que o conhecimento se tornou extra-utilitário, seus argumentos evocam em certo sentido a discussão de Karin Knorr-Cetina2 2 Epistemic cultures. The culture of knowledge societies, Cambridge, Harvard University Press, 1998. Ou ainda, da mesma autora, "Epistemics in society: on the nesting of knowledge structures into social strcutures", Sociologie et Societé, XXX, 1, 1998, pp. 37-50. sobre "epistemics", bem como a argumentação de Sen, discutida mais à frente por Celia Lessa Kerstenetzky, sobre "capabilities". Segundo Stehr, a centralidade contemporânea do conhecimento na formação e preservação de desigualdades decorre do fato de que a informação se transforma em capacidade para a ação.

Célia Lessa Kerstenetzky, com "Desigualdade e pobreza: lições de Sen", discute um dos autores mais citados na literatura sobre desigualdade, o laureado economista indiano Amartya Sen. Trata-se de um belo exemplo da relevância e utilidade de se analisar a produção de autores singulares (e exemplares) no interior da teoria social. A autora propõe uma interpretação bastante original da maneira como Sen encara a questão da desigualdade, chamando a atenção para a acuidade com que ele religa ética e economia, radicalmente separadas tanto pela economia positiva como pela normativa.

O texto de Ricardo Paes de Barros, Ricardo Henriques e Rosane Mendonça, "Desigualdade e pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável", oferece muito mais que um instantâneo da injustiça. Mais apropriado seria dizer que os autores elaboram uma radiografia que desvenda a constância de um padrão de desigualdade intocado pelas políticas econômicas nas duas últimas décadas. As simulações de política distributiva apresentadas pelos autores estimulam a reflexão sobre a eficácia e a viabilidade de políticas sociais específicas.

Finalmente, meu próprio texto, "Percepções da elite sobre pobreza e desigualdade", explora dimensão muito menos contemplada nos estudos sobre desigualdade, qual seja, a visão que os não-pobres têm dessa problemática. Mais exatamente, concentro-me na percepção que as elites brasileiras têm sobre a pobreza e a desigualdade. Convencida de que as percepções daqueles que monopolizam posições e recursos estratégicos em uma sociedade são elementos-chave na compreensão da eficácia e viabilidade de políticas redistributivas, busco, através de dados de survey e entrevistas em profundidade, traçar um esboço geral sobre a visão de nossas elites.

NOTAS

  • 1
    Para uma descrição dos diversos projetos ver
  • 2
    Epistemic cultures. The culture of knowledge societies, Cambridge, Harvard University Press, 1998. Ou ainda, da mesma autora, "Epistemics in society: on the nesting of knowledge structures into social strcutures",
    Sociologie et Societé, XXX, 1, 1998, pp. 37-50.
  • *
    Sou muito grata à Comissão Editorial da
    RBCS pelo convite para organizar este dossiê.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2000
    • Data do Fascículo
      Fev 2000
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