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Educação de Qualidade: diferentes visões

RESENHAS

Marcelo Lima

Doutorando em Educação da UFF

RUMMERT, Sonia Maria. Educação de Qualidade; diferentes visões. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1998.

A autora elege como objetivo fundamental em seu trabalho a identificação comparativa dos elementos constitutivos das concepções de educação básica contidas nos pontos de vista dos representantes do Capital e do Trabalho, a fim de explicitar os projetos identificatórios das diferentes entidades representativas de cada uma das classes fundamentais que compõem a sociedade atual. Em minha opinião, sua contribuição vai além e reside em demonstrar como a educação tem se tornado uma espécie de pano de fundo para o Capital veicular o seu projeto identificatório, que é seu arcabouço ideológico que visa rearticular o seu projeto de hegemonia sobre os trabalhadores.

A centralidade da educação no discurso do Capital, no entanto, ao invés de se constituir numa opção clara por um processo educativo que leve os educandos a uma formação omnilateral e cidadã, ou seja uma educação de qualidade, na verdade ocorre no sentido de um deslocamento das formas tradicionais de explicação do fenômeno do desemprego que, em última instância, pretende reiterar a idéia da superação e do anacronismo dos antagonismos de classe.

A autora revela como as instituições representativas do Capital e até dos trabalhadores, ao articularem educação, competitividade e economia, assimilam os pressupostos da teoria do capital humano, supervalorizando a educação como resposta a problemas que não se resolvem apenas no âmbito educativo com uma dita educação de qualidade, mas se situam na estrutura de funcionamento da sociedade.

O que me parece bastante original deste trabalho é como Rummert articula as formas e os elementos não econômicos e não meramente racionais que os aliados do Capital põem em jogo para estabelecer uma espécie de processo de sedução e aliciamento dos trabalhadores em função do que a autora seminalmente chamou de projeto identificatório.

Para tanto, ela tece sua argumentação utilizando as categorias tradicionais do marxismo e incorporando novos elementos conceituais como força social, identidade, ideologia, cultura e hegemonia, o que acaba por proporcionar à sua tese de doutoramento um conteúdo que enfatiza os aspectos não-econômicos do antagonismo entre as classes sociais, sem, no entanto, deixar-se levar por um psicologismo ou um culturalismo linear.

Numa perspectiva assumidamente gramsciniana, a autora vai trabalhando com o termo que se torna central no seu trabalho e que provavelmente vem a ser uma de suas maiores contribuições para o campo das análises sobre a formação do trabalhador, que é o conceito de projeto identificatório. Para ela, a capacidade de se mover no interior e para além das determinações materiais e objetivas é o que indica que um determinado grupo constitui uma força social (p. 23). E são os projetos de hegemonia que conferem a expressão e significado a uma determinada força social, a qual, para desenvolver-se enquanto tal, precisa fazer penetrar o seu modo de ver a realidade, o seu projeto, de modo que ele transcenda os limites de sua própria classe e assuma contornos de um projeto de fato hegemônico (p. 25).

Mas para manter a hegemonia, numa sociedade estruturada sobre o antagonismo, é requerido um permanente exercício de rearticulação, reorganização e renovação de discursos e simbolismos, visando a manter permanentemente o contato com os diferentes grupos que compõem a totalidade social. Ou seja, a consolidação das relações de poder, na totalidade social, se efetiva não somente no plano da racionalidade, mas sobretudo no plano afetivo (p. 31).

Na construção da hegemonia podem ser decisivas as identidades coletivas construídas no reconhecimento das similitudes de interesses (p. 43). O processo de construção da identidade não se dá de forma autônoma e orgânica. Os sujeitos coletivos são construídos através de identidades, através de um projeto identificatório que tem um caráter de convencimento onde os trabalhadores tomam como seus interesses os alheios. Trata-se de um processo heterônomo de identificação, no qual existem elementos objetivos e subjetivos que podem ser reconhecidos como constitutivos das mais profundas aspirações e necessidades de diferentes grupos sociais que integram a sociedade (p. 46).

O projeto hegemônico de uma classe ressignifica os discursos de outra classe, instaurando um terreno de consenso e convencimento via ideologia que apela para um consentimento ativo dos governados. Em conseqüência, um projeto identificatório, para se efetivar, deve encontrar acolhida no imaginário para ser compreendido e reconhecido como expressão sistematizadora de aspirações que motivem para adesão.

Desta forma, conhecer os elementos essenciais dos projetos identificatórios formulados para o conjunto da classe trabalhadora, no que se refere às propostas educacionais, pelos que se apresentam como defensores de seus interesses, embora se encontrem em campos opostos no conflito, é fundamental para a compreensão do processo de disputa entre Capital e Trabalho.

Para Rummert, muito diferente dos sistemas de identificação direcionados para os trabalhadores, como o trabalhismo, os elementos constitutivos do projeto identificatório neoliberal oferecem a sociedade uma imagem de um indivíduo abstrato que, supostamente, poderia transitar em diversos planos sociopolítico e econômico, onde este estaria desvencilhado das formulações ideológicas e das relações de classe (p.98).

Este projeto identificatório se alicerça nos seguintes elementos: a) ênfase no individualismo; b) construção simbólica dos culpados pela exclusão das carências da maioria; c) hiperdimensionamento do valor do mérito segundo a lógica do mercado; d) atribuição de caráter superlativo ao presente (ao futuro determinado); e) valorização da descontinuidade dos projetos individuais e coletivos de inserção na vida econômica; f) desafio individual da competição; g) aceitação da lógica mercantil como única capaz de superar todos conflitos e contradições.

Para Rummert, os aspectos que regem as relações sociais são negados e os econômicos são apresentados naturalmente como única alternativa possível para os indivíduos, empresas e nações. Tudo isso é introduzido no imaginário social por meio de ofensivas materiais e simbólicas constantes, onde as idéias de produtividade, eficiência e competição são essenciais ao país que quer se inserir na globalização (p. 106).

Em um texto de mais de 400 páginas, produto de uma investigação de fôlego realizada através de análise documental e entrevistas, a autora procurou evidenciar como se constitui o projeto identificatório do Capital, como ele penetra nas entidades dos trabalhadores e onde, ainda, é possível se perceber resistência e contestação ao mesmo.

Segundo sua pesquisa, os projetos identificatórios elaborados pelas diferentes classes sociais para os trabalhadores podem ser verificados, principalmente, com base nas proposições das seguintes instituições: CNI – Confederação Nacional da Indústria, FIRJAN – Federação da Indústrias do RJ, IHL – Instituto Hebert Levy, CUT – Central Única dos Trabalhadores, CGT – Central Geral dos Trabalhadores e FS – Força Sindical.

Segundo Rummert, para além da questão cognitiva, o Capital visa a mobilizar psiquicamente o indivíduo, precondição mesma de toda atividade produtiva. Faz-se necessário construir um conjunto de valores, comportamentos, formas de representações e socialização que assegurem ao Capital que o trabalhador estará afetivamente comprometido com a produtividade e a competitividade da empresa, o que implica a formação de um novo ambiente cognitivo – e também afetivo – que transcende o âmbito da empresa e se irradia pela totalidade social, com a difusão do "ethos empresarial", como defende a CNI (p. 369). Para isso, é promovida a interiorização de novas identidades pessoais, em que os indivíduos prescindem de referências coletivas para situar-se num novo modelo de sociedade que supervaloriza a individualidade.

Nesse sentido, a lógica totalizadora da compreensão do real transfere-se para a competitividade e, conseqüentemente, para o mercado, que assume o papel de regulador de um novo contrato social centrado no indivíduo. É sobre essas bases que se constroem, para os trabalhadores, os projetos identificatórios apresentados pelo Capital, através da CGT e da FS.

Ao difundir seu projeto, o Capital antecipa para o trabalhador tanto o futuro do país quanto o seu próprio futuro, em que o êxito está assegurado. Uma vez que a meta é o futuro, o discurso não pode ser desmentido no plano do senso comum, que predomina na concepção de mundo da sociedade, sobretudo porque o anúncio desse êxito é, cotidianamente, reforçado pelos meios de comunicação de massa. Se a realidade ainda parece adversa, isso decorre do fato de que as condições para que o projeto identificatório se viabilize ainda não foram atingidas, como é o caso da questão educacional, que ainda carece de solução efetiva (p. 376).Com sua postura tradicionalmente tutelar em relação ao trabalhador, o Capital se pretende como decifrador e porta-voz das aspirações da classe trabalhadora (p.376).

Partindo deste projeto identificatório, a CGT e a FS o ressignificam sobre bases particulares de interesses, expressando um pacto interclassista, revestindo a relação de sujeição em relação de aliança. No âmbito do Trabalho, as divergências e clivagens são profundas e, embora tacitamente ignoradas, definem formas distintas de inserção no cenário nacional. No intuito de diluir, no conjunto das representações sociais, as distinções acima mencionadas, as entidades representativas do Capital e as representativas do Trabalho valem-se, igualmente, do que Bourdieu designou como o efeito de oráculo. Ao se referirem aos trabalhadores, todas as entidades se apresentam como representantes de seus interesses, abordando-os como um conjunto homogêneo de indivíduos com aspirações e concepções de mundo idênticas (p. 381).

O Capital intenciona anular as diferenças, "desideologizar" e "desistoricizar" os movimentos de afirmação e de busca de identidades que, no interior da classe trabalhadora, assumem contornos diferenciados. Por outro lado, revela a permanência do "mito da tutela", que leva os empresários a conferirem a si próprios o direito (e por vezes o dever) de representarem os trabalhadores, definindo aquilo que consideram ser o melhor para eles. Esse mito, introjetado também no imaginário de parte significativa dos trabalhadores brasileiros, constitui mais um exemplo da superficialidade do "moderno" que o atual projeto identificatório anuncia (p.381).

Também as centrais sindicais apresentam suas reivindicações e propostas como aquelas que expressam o conjunto de aspirações e demandas da totalidade da classe trabalhadora, amalgamada num único projeto e obscurecendo a essência dos conflitos internos à própria classe (p. 381). A CUT, entretanto, desqualifica a proposta de difusão do "ethos empresarial", considerado como a "hegemonia radical e absoluta do individualismo capitalista". Apresenta a proposta de uma sociedade socialista, fundada nos "contravalores" da solidariedade e da fraternidade, na qual todos os indivíduos tenham garantia de acesso aos direitos fundamentais (p.382).

Os recursos utilizados pela CUT para se contrapor a toda essa avalanche ideológica e difundir sua concepção de mundo, valores e projetos, bem como a sua crítica à atual situação do país, pautam-se, fundamentalmente, na argumentação lógica, nas análises racionais e mesmo em argumentos baseados em palavras de ordem, no mais das vezes desgastadas. Tais elementos são imprescindíveis, mas não suficientes para se contrapor à ênfase dada ao plano afetivo pelos detentores da hegemonia, quando pretendem obter o consenso para suas proposições e, mais que isso, a participação ativa na viabilização das mesmas (p. 386).

A análise do projeto identificatório formulado pela CUT revela que os objetivos voltam-se para a formação integral do trabalhador e se distanciam do caráter utilitário e funcionalista dos projetos identificatórios anteriormente analisados (p. 386). Mas a CUT ainda não encontrou os recursos discursivos e simbólicos necessários à interpelação da realidade de uma forma nova, diferente da usual, desgastada nos permanentes embates políticos. Essa limitação restringe o alcance de seu projeto identificatório, que só se reveste de apelo psíquico para aqueles que já introjetaram, em maior ou menor grau, os valores básicos de seu ideário (p. 387).

A luta contra-hegemônica exige da CUT, além da superação das dificuldades acima mencionadas, a dupla tarefa de "desconstrução" das representações culturais hegemônicas e de construção de novas formas de dialogar com a classe trabalhadora, em particular, e com a sociedade como um todo (p. 387).

Outro aspecto essencial do projeto identificatório, como o Capital o define, consiste no papel fundamental do futuro anunciado. Trata-se, como vimos, de um futuro específico, que não pode estar marcado pela idéia de retorno a situações passadas. Aqui reside uma grande dificuldade a ser enfrentada pela CUT, uma vez que seu projeto identificatório fundamenta-se no anúncio de um futuro que o passado recente, em certa medida, desacreditou (p. 387).

Rummert conclui, numa posição claramente a favor dos trabalhadores e daquela que é, em sua opinião, a instituição verdadeiramente representativa do Trabalho, a CUT, que é necessário aprofundar o conhecimento das diferenciações e heterogeneidades que marcam a classe trabalhadora atual, suas demandas, aspirações, suas distintas estratégias de luta e sobrevivência para a construção e viabilização de um novo projeto identificatório que possa conseguir se contrapor ao projeto identificatório do capital.

Como se pode notar, o trabalho de Sônia Rummert é denso e complexo, o que torna este esforço de síntese apenas uma sinalização de suas elaborações, remetendo-nos à insubstituível leitura do seu trabalho por completo, na tese original, ou parcialmente no livro Educação e identidade dos trabalhadores: as concepções do capital e do trabalho (2000).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2012
  • Data do Fascículo
    Abr 2001
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