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Apresentação: sobre vivências de Eneida Maria de Souza

“Não esquecemos,

mas há qualquer coisa de átono que se instala em nós.”

(Roland Barthes)

Em 8 de dezembro de 2023, Eneida Maria de Souza faria 80 anos. Se aqui ainda estivesse, haveria uma grande festa, pois nada lhe agradava mais do que celebrar a vida ao lado dos familiares e dos amigos. Todos os seus aniversários, especialmente aqueles em que sua idade atingia um número redondo, nunca passavam sem uma comemoração. Nesses momentos, sua ímpar vitalidade contagiava a todos os que em torno dela se reuniam e a alegria corria solta. Como pesquisadora, também gostava muito de efemérides e sua invejável memória a mantinha sempre informada com certa antecedência quanto às datas significativas que estariam por vir, a fim de melhor se preparar para estudar os autores e eventos que, no futuro, seriam tema de congressos, seminários, simpósios e publicações em livros e dossiês de periódicos. Considerava que essas efemérides eram ocasião para se revisitar o passado, trazendo à cena aquilo que deveria se manter vivo no presente como recurso para um acurado entendimento das obras, autores e fenômenos que conformam a cultura.

Seguidores do exemplo de Eneida, também desejamos, com o dossiê que preparamos para a Revista da ABRALIC, dar sequência aos prazeres vivenciados em encontros que ocorrem em datas importantes e, simultaneamente, expressar o nosso compromisso com o trabalho de preservação da memória de quem tanto contribuiu para ampliar os horizontes de nossa vida intelectual. Sabemos que nossa crítica mais cult vem recebendo muitas e merecidas homenagens desde sua partida,1 1 Como exemplos, citamos o simpósio “Eneida Maria de Souza e o não-lugar da crítica”, realizado durante o XVIII Encontro Internacional da ABRALIC, além de dois livros organizados em sua homenagem por Roberto Said e Wander Melo Miranda (2023), e Edgar Cézar Nolasco (2023). mas não poderíamos deixar de marcar este dezembro tão esperado por ela sem que nos reuníssemos mais uma vez para celebrar a sua existência.

Muitas são as contribuições de Eneida2 2 A partir desse ponto não utilizaremos mais o sobrenome de Eneida, visto que essa operação, que distancia o pesquisador do objeto estudado, não seria condizente com a enorme carga afetiva com a qual somos atingidos ao abordar a vida e a obra de alguém cuja presença amiga ainda se faz presente em nosso meio. para o desenvolvimento dos estudos literários em nosso país. Sua trajetória enquanto pesquisadora se inicia no auge do Estruturalismo, corrente teórica que priorizava a leitura intrínseca do texto, mas que, ao mesmo tempo, rompia com a hierarquia da ordem dos discursos, ampliando os objetos de análise com a incorporação de diferentes expressões culturais. Com o apoio dos aportes teóricos assimilados durante o mestrado na PUC-Rio, sua dissertação de mestrado, defendida em 1975 e intitulada A barca dos homens: a viagem e o rito, insere-se nesse quadro teórico. Já no doutorado em Literatura Comparada/Semiologia, realizado na Universidade Paris VII, sob orientação de Júlia Kristeva, teve a oportunidade de travar contato com uma cena cultural fervilhante e, no terreno da filosofia e da literatura, como já se processava uma transição do Estruturalismo para o Pós-Estruturalismo, soube produzir um mélange de teorias que se reflete em sua tese sobre Macunaíma, seja pelo investimento detido na decomposição dos elementos textuais da obra, seja pela relativização do conceito de plágio, ao valorizar a diferença que Mário de Andrade imprimia em seus escritos a partir da pesquisa no acervo da cultura popular brasileira.

Mesmo após a publicação da tese, intitulada A pedra mágica do discurso (1988SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1988.), Eneida manteve o interesse na obra do autor paulista, a ela sempre retornando, de forma renovada e produtiva, visto que a curiosidade intelectual que a caracterizava implicava o acompanhamento pari passu do movimento das ideias e das metodologias de análise. O seu retorno ao Brasil coincidiu com o processo de redemocratização do país e, com ele, abre-se espaço para a absorção dos trabalhos teóricos produzidos sob a rubrica dos Cultural Studies, o que propiciou o investimento em uma maior contextualização histórico-social na abordagem das obras e o questionamento dos projetos de modernização dos quais participa uma visão excludente do que se considerava como “arte”. Assim, já na segunda edição do livro resultante da tese de Eneida (1999aSOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. 2. ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999a.), podemos perceber, nos ensaios que lhe foram agregados, a mudança que se operava em seu perfil de intérprete da obra marioandradiana, uma vez que a leitura se expande para o amplo campo da cultura, priorizando-se os dilemas ético-políticos vivenciados pela intelectualidade modernista. Não obstante a admiração que nunca deixou de nutrir por Mário de Andrade e outros escritores que tomaram parte no movimento modernista, o tratamento crítico lançado às suas contradições muitas vezes assume lugar de destaque, como se pode comprovar com a leitura de Modernidade toda prosa (2014SOUZA, Eneida Maria de; CARDOSO, Marília Rothier. Modernidade toda prosa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014.), publicado em parceria com Marília Rothier Cardoso, e de seu último livro, Narrativas impuras (2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: CEPE Pernambuco, 2021.). Nesse trabalho crítico, colocava em ação uma das suas recomendações para se chegar a um bom resultado no processo interpretativo: é preciso dosar os gestos de aproximação e distanciamento do objeto de estudo.

Os anos 1980 são também um período de grande importância para a ascensão da Literatura Comparada, que Eneida considerava menos como uma disciplina e mais como uma metodologia de análise. Ela contribuiu com o processo de abertura do doutorado em Literatura Comparada na UFMG e de fundação da ABRALIC, em 1986, tornando-se sua segunda presidente, no biênio 1989-1990. Participou ativamente de muitos dos congressos da Associação, posicionando-se, de forma corajosa e sem resquícios nostálgicos, nos intensos debates que ocorreram em seu interior em torno do questionamento do processo de atribuição do valor literário e da amplitude da prática interdisciplinar, que colocava em risco a hegemonia dos defensores do restrito conceito de literariedade.

Também em 1989, na companhia de Wander Melo Miranda e outros colegas da UFMG, ajuda a criar o Centro de Estudos Literários (CEL), quando do recebimento do acervo de Henriqueta Lisboa, fato que deu início a uma nova frente de pesquisa, voltada para a crítica biográfica. Em 1991, o CEL dá lugar ao Acervo de Escritores Mineiros, iniciativa que também contou com sua ativa participação e que conferiu maior institucionalidade ao trabalho de pesquisa nos arquivos doados pelos escritores à universidade mineira.

Enquanto professora de Teoria da Literatura, Eneida sempre soube acolher as transformações operadas em seu campo de estudo sem que isso significasse a superação de uma corrente teórica por outra, não renegando nunca o Estruturalismo, responsável, segundo ela, pelo desenvolvimento de um rigor analítico inédito no país e pelo refinamento da leitura dos elementos que dão forma à linguagem literária. A visada metacrítica adotada em grande parte de suas publicações, como em Traço crítico (1993SOUZA, Eneida Maria de. Traço crítico. Belo Horizonte: Editora da UFMG; Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1993.), em Tempo de pós crítica (1994SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1994.) e especialmente em seu livro de maior sucesso, Crítica cult (2002SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.), oferece aos leitores a possibilidade de compreender com maior profundidade os debates ocorridos em nosso campo de estudos dos anos 1970 até o presente. São, portanto, referências incontornáveis para quem desejar conhecer a história da crítica literária brasileira.

O intenso interesse na crítica biográfica, manifestado a partir do trabalho com os arquivos de escritores, levou nossa homenageada a perseguir os liames entre arte e vida sem que isso significasse qualquer perspectiva essencialista. Ciente de que qualquer apreensão totalizante da vida é mais uma das ilusões biográficas, buscou inspiração em Roland Barthes, construindo suas análises a partir da seleção de biografemas que performavam um “saber narrativo, engendrado pela conjunção da teoria e da ficção e pelo sentido precário e inacabado do conhecimento” (Souza, 2004aSOUZA, Eneida Maria de. Saberes narrativos. Scripta, Belo Horizonte, v. 7, n. 14, p. 56-66, 2004a., p. 56). Essa rara e engenhosa capacidade de construção de “pontes metafóricas entre fato e ficção” (Souza, 2002SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002., p. 11) é exercitada de forma, muito provavelmente, pioneira na crítica literária brasileira, na interpretação da obra de autores como Autran Dourado, Jorge Luis Borges, Pedro Nava e Henriqueta Lisboa, para ficar apenas naqueles de cujo estudo resultou a publicação de vários livros (Souza, 1996SOUZA, Eneida Maria de. Autran Dourado. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996., 1999aSOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. 2. ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999a., 2004bSOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava: o risco da memória. Juiz de Fora: FUNALFA, 2004b., 2005SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava. Rio de Janeiro: Agir, 2005. , 2010SOUZA, Eneida Maria de (org.). Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa - Correspondência. São Paulo: Editora da USP; Peirópolis, 2010.). A essas referências somam-se muitos outros ensaios esparsos sobre nomes famosos na cena literária brasileira e mundial, como Silviano Santiago, Cyro dos Anjos, Fernando Pessoa, Carmem Miranda, Coetzee, Roland Barthes, Jean Paul Sartre, dentre outros, reunidos, principalmente, nas coletâneas Janelas indiscretas (2011SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.) e Narrativas impuras (2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: CEPE Pernambuco, 2021.). Além de proceder à análise literária propriamente dita, Eneida, como boa professora, também se mostrava atenta à necessidade de abordar teoricamente o próprio método que adotava em seus estudos, fornecendo aos leitores que se interessassem em se aventurar na crítica biográfica os instrumentos para lidar de forma mais consciente com o tratamento da vida como obra de arte. Exemplar, nesse sentido, é o ensaio “Notas sobre a crítica biográfica”, publicado em Crítica cult (Souza, 2002SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002., p. 105-113), que antecipa muitos dos textos sobre o tema inseridos em Janelas indiscretas.

No último projeto que desenvolveu integralmente, intitulado “Retratos da cultura popular - diário, ficção, iconologia”, Eneida deteve-se no estudo de manifestações artísticas gestadas a partir da observação do mundo das pessoas comuns, tomadas como objeto de representações fotográficas, das quais se depreende o ethos das camadas populares perpetuadas nas imagens. Longe de significar um interesse recente em sua vida, tais investigações, que focalizaram as fotografias de Assis Horta, Geneviève Naylor, Vivian Maier e o trabalho dos fotopintores nordestinos, retomam a atenção e o respeito que sempre dedicou ao histórico cruzamento entre cultura erudita e popular, sintomaticamente incorporado pelo autor de cuja obra mais se ocupou.

Percorrido o trajeto que aqui buscou recuperar algumas informações consideradas cruciais para se traçar um breve perfil de Eneida, pode-se perceber que, em sua carreira acadêmica, desde a realização do mestrado, o olhar já se voltava para uma perspectiva interdisciplinar, ao unir metodologias de análise de vários campos de conhecimento, como a antropologia e as diversas vertentes da teoria literária dominantes à época, exercendo uma prática dialógica que sempre se mostrou relevante para o campo da Literatura Comparada. Na atividade docente e como pesquisadora na UFMG, Eneida Souza agregou, como suporte de seu trabalho, os aportes teóricos do Estruturalismo, do Pós-Estruturalismo e dos Estudos Culturais, sem desconsiderar as contribuições oferecidas por todas essas correntes para um melhor rendimento analítico. Na sua travessia profissional, ela conseguia que sua escrita condensasse erudição e, ao mesmo tempo, uma linguagem límpida, atenta à leitura da cena cultural brasileira e internacional, com uma capacidade única para adentrar aspectos textuais e/ou imagéticos sobre os quais se debruçava, permitindo que diferentes leitores pudessem acompanhar seu pensamento, mesmo aqueles alheios ao universo restrito à crítica literária.

Na sua atividade acadêmica, o trabalho com os arquivos e seus variados suportes da memória cultural, como cartas, diários, fotografias, etc., configura-se como fundamental para a reconstrução da vida e da obra de escritores e artistas de diferentes linguagens, abrindo caminho para que outros intelectuais se dedicassem, de forma inovadora, ao exercício da crítica biográfica. No arco de suas reflexões, a ensaísta permitiu-se a liberdade retórica, assumindo uma singular dicção ensaística e colocando-se numa esquina de saberes que convocou um olhar oblíquo e atento às questões urgentes da contemporaneidade, ciente de que o futuro dos estudos literários, na perspectiva da literatura comparada, não pode ficar alheio às urgências dos chamados socioculturais e do perspectivismo diatópico necessário para o laboratório de um pensamento crítico no cenário político brasileiro. A obra deixada por ela é extremamente atual e mantém-se viva para a construção da memória da crítica literária e cultural no Brasil, um desafio que ainda se encontra presente para uma nova geração de críticos e de leitores responsáveis pelo seu legado.

Alguns desses leitores atenderam ao nosso chamado para comemorar os seus 80 anos e aqui se reúnem em torno de sua obra, rememorando os aprendizados proporcionados por ela e expondo suas próprias reflexões a partir de recursos interpretativos assimilados a partir do contato com os livros publicados por Eneida. Vários textos assumem o tom de depoimento pessoal, o que é justificável pelo impacto que o convívio com a homenageada produziu em suas vidas, tanto no âmbito intelectual quanto no da sua constituição subjetiva. Deles, depreende-se a capacidade de Eneida de generosamente se doar no convívio com seus colegas e alunos, contribuindo para o aprimoramento de sua capacidade reflexiva, e também se constata o raro e impressionante investimento realizado por ela na construção de uma rede de amizades espalhada por diversas universidades brasileiras. Essas amizades dão hoje testemunho de que, ainda que sua perda nos deixe uma lacuna irreparável, o legado intelectual com que nos agraciou permanece vivo e com potencial de frutificar em novos e instigantes objetos de pesquisa.

O primeiro ensaio - “Macunaíma e outros heróis, ontem e hoje”, de autoria de Marília Rothier Cardoso -, acompanha a reflexão desenvolvida por Eneida sobre as viagens realizadas por Mário de Andrade pelo Brasil, devido a seu conhecido interesse pela cultura popular, desde sua tese de doutorado até os artigos sobre o autor paulista inseridos em sua última publicação - Narrativas impuras (2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: CEPE Pernambuco, 2021.) -, para, em seguida, discutir, em uma perspectiva suplementar, as obras produzidas na contemporaneidade por artistas provenientes dos espaços periféricos. É sabido que Eneida pretendia, no projeto que não pôde concluir, estudar essas produções, e é gratificante saber que esse trabalho segue seu curso no texto da amiga que a acompanhou por quase toda a vida.

No segundo ensaio - “Pelos caminhos borgianos de Eneida Maria de Souza” -, Cássia Lopes retoma a importância da obra de Jorge Luis Borges no percurso teórico-crítico de nossa homenageada, especialmente no que diz respeito aos criativos recortes imagéticos que estruturam tanto a sua produção ensaística, sintetizados na figura do Aleph, quanto as proposições da crítica biográfica tal como praticada por ela. A autora do artigo, de forma também criativa, segue a mesma trilha de Eneida, partindo de sua experiência ao visitar a biblioteca de Fellini, no museu dedicado ao cineasta em Rimini, para, ao final do ensaio, analisar a reflexão realizada por Eneida sobre a infinitude da memória, ao tratar dos personagens “Funes, el memorioso”, de Borges, e Santiago, em documentário homônimo, de João Moreira Salles.

O artigo de Roniere Menezes - “Eneida - entre livros, artes, amigos, viagens: viver” - consiste em um depoimento pessoal do autor sobre a relação de amizade que se construiu entre orientadora e orientando a partir do momento em que se conheceram. O texto cumpre a importante missão de produzir um perfil biográfico de Eneida, no qual se destaca não apenas sua generosidade intelectual junto aos amigos, mas também o quanto seu notável entusiasmo no acompanhamento da cena artístico-cultural e as experiências e convivialidade possibilitadas pelas viagens realizadas a trabalho contribuíram para fazer com que sua produção crítica sempre se mantivesse atualizada e em constante transformação.

Os dois ensaios que se seguem - “A vida do texto e o leitor comum” e “Eneida Maria de Souza: uma influência sem angústia” -, de autoria, respectivamente, de Ana Luiza Andrade e Sandra Regina Chaves Nunes, evidenciam a repercussão que o trabalho de Eneida, especialmente sobre a crítica biográfica, apresenta em suas próprias práticas analíticas: a primeira, ao se deter sobre a obra de Murilo Rubião, objeto de sua tese de doutorado, e em seu mais recente projeto, voltado para a narrativização dos arquivos fotográficos e a recuperação do valor da memória e da história oral, para lidar com os depoimentos produzidos por meio de entrevistas realizadas com pessoas comuns; a segunda, na abordagem que faz de certa prática eneidiana de destacar, em muitas oportunidades, os momentos de doença e morte dos artistas cujo perfil biográfico é por ela elaborado, para, em seguida, buscar exercitar essa mesma estratégia de leitura, que transforma o escritor em personagem, no tratamento de alguns biografemas da vida e da arte de Osman Lins, escritor de sua predileção.

O ensaio “Entre modernismos e descolonialidades: desafios para uma teorização outra”, de Edgar Cézar Nolasco, relê, comparativamente, a perspectiva moderna adotada por Eneida na edificação de sua obra teórico-crítica, e a proposta descolonial desenvolvida por Walter Mignolo e intelectuais reunidos em torno do grupo Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade, evidenciando as diferenças entre os dois projetos e, ao mesmo tempo, apontando o modo como a crítica, ao assumir a interdisciplinaridade como princípio, os procedimentos desconstrutores das teorias como método, e a inscrição subjetiva nos textos que produziu, acaba, de algum modo, se aproximando das teorias descoloniais.

Os dois ensaios que encerram o dossiê - “Eneida Maria de Souza: uma visitante-presente na UFSJ” e “Eneida Souza: um ato crítico para a universidade pública”, de autoria, respectivamente, de Antônio Luiz Assunção e Eliana da Conceição Tolentino, narram a participação de Eneida como Professora Visitante no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei. No texto de Assunção, são detalhadas as contribuições da Visitante, que se tornaria orientadora de sua pesquisa de pós-doutorado, para alargar as perspectivas teóricas assumidas por um professor da área de Linguística, de formação centrada no Gerativismo e no Funcionalismo, e que se via então realizando uma investigação incluída na linha de pesquisa de Crítica da Cultura. Ao recuperar o modo como se deu a abertura para a prática interdisciplinar, o professor promove deslocamentos nos saberes já por ele assimilados e realiza leituras que lhe são recomendadas por Eneida e detalhadas no texto, oferecendo-nos a possibilidade de comprovar o quanto o seu trabalho foi afetado pela convivência com ela. O texto de Tolentino, por sua vez, evidencia o compromisso assumido por Eneida com a universidade pública, seu vigoroso empenho no trabalho realizado enquanto Visitante na UFSJ, ministrando cursos, orientando, organizando eventos aos quais se seguiram várias publicações, numa participação intensa e amigável na vida dessa universidade. O resultado dessa efetiva colaboração, para além das marcas que ficam em cada um dos colegas e alunos que com ela conviveram nesse período, também consistiu na melhoria da avaliação do Programa junto à CAPES.

Finda a apresentação dos artigos que compõem o dossiê em homenagem a Eneida neste número da Revista da ABRALIC, gostaríamos de ressaltar o quão representativo eles são em relação às suas vivências nas inúmeras trocas intelectuais e afetivas que nossa “pequena notável”, como era chamada pelos mais íntimos, realizou em suas andanças pelo Brasil. Afinal, como nos lembra Despret,

As narrativas de homenagem intensificam a presença, são vetores de vitalidade. Essas cerimônias transformam uns e outros e criam novas relações - como novas maneiras de se relacionar com os outros. É um “devir com” no futuro do presente: de agora em diante ele terá sido. Portanto, um devir real para o futuro. O [ente] desaparecido é recomposto para que possamos, no futuro e por muito tempo, pelo menos é o que se espera, compor com ele. É uma maneira bem interessante de pensar o que significa, em um mesmo gesto, ao mesmo tempo, honrar e herdar, dar ao passado um lugar e efeitos no assim chamado futuro do presente: “sua presença neste mundo terá feito uma diferença”. (Despret, 2023DESPRET, Vinciane. Um brinde aos mortos: histórias daqueles que ficam. Tradução de Hortencia Lancastre. São Paulo: N-1 Edições, 2023., p. 52-53).

Eneida criou história e continua pulsante em seus leitores. Suas redes de trocas intelectuais e campo de reflexão teórica criou um enredamento que mantém unidos, hoje, todos os que com ela tiveram a oportunidade de partilhar experiências de variada natureza. Assim sendo, manifestamos, por fim, nossa gratidão por tudo o que nos proporcionou e também pelo elo que nos une nessa teia de narrativas escritas em torno do legado por ela deixado e que nós, seus herdeiros, buscamos aqui continuar honrando e colocando em movimento, para o benefício das gerações futuras.

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Na sessão Varia deste número publicamos seis artigos em 4 diferentes línguas estrangeiras, versando sobre diversificados temas, todos a partir de uma visada interdisciplinar, formando um amplo painel comparatista que articula literatura e história, literatura e geologia, literatura e filosofia, literatura e ciências biológicas, e que vão da literatura ao teatro, à música e à pintura, numa montagem babélica que certamente agradaria à homenageada desta coletânea.

O primeiro ensaio - “Geología de la pasión: el retorno a la caverna de G.H.”, de autoria de raúl rodríguez freire -, analisa o romance A paixão segundo G.H. a partir de uma perspectiva transdisciplinar que agencia, ao lado da literatura e da fortuna crítica da obra de Clarice Lispector, a geologia e a filosofia, com o objetivo de evidenciar a importância da hora (meio-dia) em que G.H adentra na “caverna” onde se processa a transformação e “dessedimentação” ou desmontagem da máscara da personagem. A narrativa, segundo a interpretação de Freire, representa uma inaudita crítica radical ao pensamento metafísico.

No segundo artigo da sessão - “Victorian science and morality in Robert Louis Stevenson’s The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1886)” -, Flavia Renata Machado Paiani analisa como a relação entre ciência e moralidade é representada na obra do escritor escocês. Para tanto, retoma as características da ficção gótica do período vitoriano assim como as teorias filosóficas e científicas do século XIX, focalizando os choques entre ciência e moralidade sobre os quais se articula o romance.

O artigo assinado pelo crítico italiano Roberto Vecchi, intitulado “Specchi di parole e lacune della storia: il genere della biografia e la ricostruzione del passato”, procede ao estudo do gênero biográfico tal como desenvolvido por Antonio Piccarolo, intelectual socialista que emigrou para o Brasil em 1904 e que escreveu, com tintas épicas, a biografia de Tito Livio Zambeccari, focalizando os recursos retóricos que, na obra de Piccarolo, reconstroem o passado e o perfil do personagem histórico a partir de uma conjunção entre a subjetividade de biografado e biógrafo. Dessa forma, os limites de reconstrução do passado são acentuados no texto que, para além de discutir a forma como o gênero biográfico é praticado pelo ativista italiano, nos apresenta preciosas informações sobre a relação entre o Brasil e a Itália, no contexto político do século XIX.

O próximo ensaio - “Notes towards the rooting of Utopia in the imagination of politics through performance” -, de autoria de Rui Pina Coelho, traz a ancoragem histórica para pensar a questão da utopia na imaginação política na contemporaneidade através das artes de espetáculo, nomeadamente a performance. Para tanto, o crítico baseia sua argumentação em teóricos como Jameson, Alain Badiou, entre outros, através dos quais rastreia a paisagem das utopias desde a derrocada do socialismo utópico do século XIX levada a efeito por Marx e Engels e avalia a migração da utopia para a ficção e o seu ressurgimento nas manifestações artísticas contemporâneas, com o propósito de intervenção política e transformação do mundo.

O penúltimo artigo - “Entre peinture et musique : la répétition chez Clarice Lispector”, de Carolina Antonaci Gama -, também focaliza a obra da autora de A paixão segundo G. H., priorizando o estudo da função cumprida pelas repetições de palavras, ideias e personagens em sua produção literária. Promovendo uma leitura comparada do modo como as repetições são recebidas pela crítica no campo da pintura e da música e recorrendo a autores que já sinalizaram o procedimento retórico da repetição em Lispector, Gama argumenta que ele assume o objetivo de trazer à tona o “real”, obrigando-nos a encará-lo diretamente, vez que não há como escapar à sua insistente presença.

No último artigo publicado neste número - “Voices from the South: Decolonial and postcolonial conversations” -, Bárbara Inês Ribeiro Simões Daibert estuda o percurso histórico das teorias desenvolvidas por autores como Walter Mignolo e os integrantes do grupo Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade, produzidas em oposição aos estudos pós-coloniais, questionando as visões dicotômicas que separam os dois campos de produção teórica sobre o pós-colonial e o decolonial, em busca da possibilidade de promoção de uma interrelação produtiva entre eles, com vistas ao desenvolvimento de uma profícua articulação Sul-Sul e à convivência entre antigas e novas epistemologias.

Para concluir, faz-se necessário lembrar que esta coletânea de artigos encerra o último número da Revista da Associação Brasileira de Literatura Comparada de 2023. Neste final de ano, como vimos no início desta Apresentação, uma das intelectuais mais destacadas dessa disciplina completaria 80 anos e os textos aqui reunidos visam satisfazer a um desejo de rememoração do muito que ela fez por nosso campo de estudos. Esperamos que eles possam amainar um pouco o nosso sentimento de perda ao trazer um pouco de sua colorida presença à cena de leitura, mobilizando reflexões com vigor suficiente para continuar a fazer girar a roda de nossa vida intelectual, mantendo-nos convictos de que o labor crítico-teórico que ela exercitou com tanto prazer faz todo sentido e está inevitavelmente destinado à sobrevivência.

REFERÊNCIAS

  • DESPRET, Vinciane. Um brinde aos mortos: histórias daqueles que ficam. Tradução de Hortencia Lancastre. São Paulo: N-1 Edições, 2023.
  • NOLASCO, Edgar Cézar (org.). Eneida Maria de Souza: amizades perto do coração. Campinas: Pontes, 2023.
  • SAID, Roberto; MIRANDA Wander Melo (org.). Uma crítica cult: em memória de Eneida Maria de Souza. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.
  • SOUZA, Eneida Maria de (org.). Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa - Correspondência São Paulo: Editora da USP; Peirópolis, 2010.
  • SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso 2. ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999a.
  • SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1988.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Autran Dourado Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras Recife: CEPE Pernambuco, 2021.
  • SOUZA, Eneida Maria de. O século de Borges Belo Horizonte: Autêntica, 1999b.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava Rio de Janeiro: Agir, 2005.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava: o risco da memória. Juiz de Fora: FUNALFA, 2004b.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Saberes narrativos. Scripta, Belo Horizonte, v. 7, n. 14, p. 56-66, 2004a.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1994.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Traço crítico Belo Horizonte: Editora da UFMG; Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1993.
  • SOUZA, Eneida Maria de; CARDOSO, Marília Rothier. Modernidade toda prosa Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014.
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    Como exemplos, citamos o simpósio “Eneida Maria de Souza e o não-lugar da crítica”, realizado durante o XVIII Encontro Internacional da ABRALIC, além de dois livros organizados em sua homenagem por Roberto Said e Wander Melo Miranda (2023SAID, Roberto; MIRANDA Wander Melo (org.). Uma crítica cult: em memória de Eneida Maria de Souza. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.), e Edgar Cézar Nolasco (2023NOLASCO, Edgar Cézar (org.). Eneida Maria de Souza: amizades perto do coração. Campinas: Pontes, 2023.).
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    A partir desse ponto não utilizaremos mais o sobrenome de Eneida, visto que essa operação, que distancia o pesquisador do objeto estudado, não seria condizente com a enorme carga afetiva com a qual somos atingidos ao abordar a vida e a obra de alguém cuja presença amiga ainda se faz presente em nosso meio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023
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