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Fim da contribuição sindical obrigatória: liberdade cínica

Union contributions unobliged: cynical freedom

Resumo

Em 2017, a Lei da Reforma Trabalhista determinou, dentre mais de 200 alterações normativas, o fim da obrigatoriedade da contribuição sindical. O objetivo desta pesquisa é descrever de que forma essa mudança impacta os sindicatos de categoria profissional com base em Belo Horizonte. Elencamos, ainda, como objetivos específicos, analisar criticamente as justificativas apresentadas para a Reforma Trabalhista e discutir o sistema de custeio da atividade sindical. A metodologia utilizada, com abordagem qualitativa, foi construída pela conjugação de fontes bibliográficas, pesquisa documental e pesquisa de campo. Foi utilizado o instrumento entrevista semiestruturada, aplicada a quatorze dirigentes sindicais vinculados a sindicatos de oito categorias profissionais com base em Belo Horizonte. Os resultados mostram que o fim da obrigatoriedade da contribuição atinge fortemente o orçamento desses sindicatos profissionais, empobrecendo e enfraquecendo a luta e a representação coletivas e possibilitando o agravamento de condutas antissindicais.

Palavras-chave:
Contribuição Sindical Facultativa; Liberdade Sindical; Reforma Trabalhista

Abstract

In 2017, the Reform of Labor Legislation determined, amongst over 200 normative changes, the end of the mandatory union contribution. This paper aims to describe how this change impacts labor unions located in Belo Horizonte. The specific objectives were to make a critical analysis of the justifications for the legislative proposal and to discuss the union activity founding system. The methodology used, with qualitative approach, came from the dialogue between literature sources, documentary research and fieldwork. The methodological instrument used was a semi-structured interview, applied to fourteen union leaders of eight professional categories based in Belo Horizonte. The results show that the end of the mandatory union contribution has a harmfull effect on the budget of workers’ unions located in Belo Horizonte, limiting and hindering their representation and enabeling the aggravation of anti-union behaviour.

Keywords:
Union Contribution; Union Freedom; Labor Reform

1 introdução

Aprovada em quatro meses, tal como fora proposta, a lei 13.467/2017 teve tempo exíguo para ser debatida pelos seus destinatários, tanto empregadores, quanto trabalhadores, e pela comunidade jurídica, bem como para ser conhecida e criticada pela sociedade em geral. Em sua justificativa, constava o objetivo de se adequar a legislação trabalhista às necessidades das relações de trabalho contemporâneas, com maior flexibilidade, bem como o de ampliar a liberdade sindical.

Para tanto, uma das medidas implementadas foi a de acabar com a obrigatoriedade da contribuição sindical, que passou a ser facultativa e depender de prévia e expressa autorização do empregado. Neste artigo buscamos compreender de que forma essa mudança legislativa impactou os sindicatos de categoria profissional com base em Belo Horizonte.

Os dados aqui trazidos foram, em sua maioria, coletados em campo, por meio de entrevistas realizadas no segundo semestre de 2018, com quatorze dirigentes sindicais ligados a oito sindicatos de categoria profissional baseados em Belo Horizonte. Essas entrevistas focavam, a princípio, na introdução de temas em que a negociação coletiva teria força normativa superior à da lei, inclusive em casos prejudiciais ao empregado. Nada obstante, de forma espontânea, representantes de seis dentre os oito sindicatos participantes abordaram a questão do fim da obrigatoriedade da contribuição sindical, de modo que percebemos a relevância do tema para o grupo pesquisado, ainda que o objeto original não tenha se mostrado de menor importância. Assim, esta pesquisa tem o objetivo de compreender de que forma o fim da contribuição sindical obrigatória impacta os sindicatos de categoria profissional com base em Belo Horizonte.

Empreendemos ainda pesquisas bibliográfica e documental, tratando como documentos a exposição de motivos da lei n. 13.467/2017 e as convenções n. 87 e 144 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a fim de compreendermos o fenômeno de forma mais abrangente.

Iniciamos examinando os mitos que, atrelados ao processo de desdemocratização neoliberal (BROWN, 2015BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. New York: Zone Books, 2015.), motivaram a Reforma Trabalhista. A seguir, aprofundamo-nos sobre as formas de custeio da atividade sindical, dentre as quais, a contribuição sindical obrigatória sempre teve posição de destaque. Em seguida, apresentamos os dados encontrados em campo, buscando promover debate com os autores que se debruçaram sobre o tema. Por fim, tecemos algumas considerações finais.

Salientamos que as discussões sobre o tema do financiamento da luta coletiva dos trabalhadores ainda estão em aberto. Prova disso foi a edição pelo presidente Jair Bolsonaro e por seu ministro da economia (responsável pela pasta do trabalho, uma vez que foi opção de governo extinguir o Ministério do Trabalho e Emprego), em março de 2019, após a realização das entrevistas para esta pesquisa, da medida provisória 873.

Apelidada de “MP dos Boletos”, determinava que, mesmo após a expressa autorização do trabalhador, o recolhimento da contribuição para seu sindicato deixasse de ser automático. Passava a ser responsabilidade dos sindicatos enviar à residência dos representados ou, não sendo possível, à sede da empresa onde trabalhassem, boleto ou equivalente eletrônico para cobrança da contribuição. Notável a expressa vedação, inserida no §2º do artigo 582 da CLT, de enviar tal boleto àqueles trabalhadores que não autorizaram a cobrança da contribuição. Mesmo tendo a medida provisória perdido a validade sem análise pelo Congresso, seu conteúdo foi transformado no Projeto de Lei n° 3814, de 2019, de autoria da Senadora Soraya Thronicke (PSL/MS). Mas, após receber 43 emendas na Comissão de Assuntos Sociais, sob relatoria do Senador Paulo Paim (PT-RS), o projeto de lei foi retirado pela autora e teve sua tramitação encerrada (SENADO FEDERAL, 2019).

Além de complexificar o processo arrecadatório da contribuição sindical, a mudança geraria custos aos sindicatos, tanto para o envio quanto para a emissão dos boletos ou equivalentes eletrônicos. Custos esses que, retiram verbas da luta trabalhista e favorecem, diretamente, o setor financeiro.

Todas essas modificações, justificadas por uma suposta promoção da liberdade, causam, na materialidade da vida, uma mais fácil captura da luta organizada dos trabalhadores (ou sua própria desorganização), como veremos adiante.

2 Os mitos motivadores da reforma trabalhista e a desdemocratização neoliberal

A Reforma Trabalhista, instituída pela lei 13.467/17, alterou e introduziu mais de 200 dispositivos na Consolidação das Leis do Trabalho em tempo recorde de apenas 4 meses de tramitação. Isso se deu sem a devida consulta tripartite, orientada pela Organização Internacional do Trabalho na Convenção 144 (da qual o Brasil é signatário), em contexto político nacional conturbado e conduzido por governo pouco comprometido com valores democráticos. Tal situação faz questionar o intuito do legislador em sua aprovação (SOUTO MAIOR; ROCHA, 2017), sendo oportuna investigação hermenêutica para tanto.

Uma vez vigente a norma, para efeitos interpretativos, é necessário levar em conta os motivos explicitados institucionalmente. Em parecer proferido pela Comissão Especial destinada ao então PL 6.787/16, dentre as razões apresentadas, encontram-se i) a modernização da legislação do trabalho, ii) a facilitação à criação de empregos frente à forte crise econômica que o país atravessava, iii) a diminuição da litigiosidade na Justiça Trabalhista e iv) a ampliação da liberdade sindical nas relações coletivas. Todavia, estas afirmativas são, por vezes, identificadas como mitos por estudiosos do Direito do Trabalho. Passamos, então, à análise de cada uma delas.

A ideia de que a legislação trabalhista era, até então, antiquada e de origem fascista é conhecida como “mito da outorga” (SILVA, 2017SILVA, Alessandro da. A Reforma Trabalhista e o mito da litigiosidade. In SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SOUTO SEVERO, Valdete. Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2017. p. 47-58.). Promulgada na década de 40, no governo de Getúlio Vargas, conhecido como “pai dos pobres”, a CLT teria sido outorgada em ato de bondade e inspirada na Carta del Lavoro italiana (ROMITA, 2001ROMITA, Arion Sayão. O Fascismo no Direito do Trabalho Brasileiro. São Paulo: Ltr, p. 51-80, 2001.). Ora, essa visão invisibiliza a luta dos trabalhadores negros e o anarcossindicalismo atuantes no país desde o fim do século XIX que resultaram na conquista desses direitos (MATTOS, 2009MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.). Associado a isso, a historiografia do Direito do Trabalho revela que, ao contrário do que esta afirmativa supõe, o período da Primeira República não foi um vazio normativo quanto ao âmbito trabalhista (GOMES, 2014GOMES, Ângela de Castro. Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil (1917 – 1937). 2. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.). Por fim, outra faceta ignorada por esse ponto de vista são as inúmeras alterações normativas realizadas na própria CLT e na legislação esparsa desde 1943, ou seja, as leis do trabalho não estiveram imutáveis desde então.

Se para Carlos Drummond de Andrade “os lírios não nascem das leis”, a tentativa de solucionar problemas econômicos estruturais, típicos do capitalismo tardio em economia periférica, por meio de alterações legislativas que flexibilizam direitos tampouco é capaz de criar demanda por contratação. Pelo contrário, a possibilidade de explorar mais dos serviços de um trabalhador reduz a demanda pelos serviços de outro. Jorge Luiz Souto Maior (1999)SOUTO MAIOR, Jorge Luis. Direito do trabalho e desenvolvimento econômico: um contraponto à teoria da flexibilização. 1999. Disponível em: is.gd/M3bwT1. Acesso em: 7 jan. 2020. explica essa dinâmica:

A desregulamentação, a despeito de servir para atacar o desemprego, acaba provocando mais desemprego. Isto porque a grande empresa, racionalizando sua produção, reduz o número de empregos protegidos pela legislação trabalhista. (...) Essa mão-de-obra passa a se voltar para a pequena e média empresa e mesmo para o mercado informal, onde o trabalho não é protegido. Com isso, o nível de desemprego tende a aumentar, até porque ‘não é clara a existência de uma relação entre desregulamentação e recomposição da capacidade de geração de novos empregos das grandes empresas’, ainda mais quando se tenha em vista que empregos precarizados e de curta duração, em verdade, equivalem a desemprego (SOUTO MAIOR, 1999SOUTO MAIOR, Jorge Luis. Direito do trabalho e desenvolvimento econômico: um contraponto à teoria da flexibilização. 1999. Disponível em: is.gd/M3bwT1. Acesso em: 7 jan. 2020., p. 4).

Assim, essa estratégia, fundada no “mito dos custos” (BECK, 1997BECK, Ulrich, Capitalismo sem trabalho. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 41-55, 1997.), ao invés de sanar, gera outros reveses socioeconômicos, por provocar o empobrecimento da classe trabalhadora em favor do aumento dos lucros empresariais.

Quanto à tentativa de desobstrução da Justiça do Trabalho, o legislador acredita que a criação de diversos ônus processuais (despesas processuais, honorários de sucumbência, etc) diminui a litigância descompromissada e a tendência de judicialização do conflito, reduzindo a crescente sobrecarga do Judiciário. Todavia, ao cruzar dados sobre o número de novas ações trabalhistas, o número de vínculos empregatícios e o número de desligamentos entre 2002 e 2015 – período em que se fortaleceu a Justiça do Trabalho e o acesso à Justiça –, Alessandro da Silva (2017)SILVA, Alessandro da. A Reforma Trabalhista e o mito da litigiosidade. In SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SOUTO SEVERO, Valdete. Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2017. p. 47-58. demonstra numericamente que, na realidade, houve declínio da taxa de acionamento, e a maioria dos acionamentos foi posterior à dispensa do empregado, o que refuta, com veemência, o mito da litigiosidade.

Por fim, no que se refere à tentativa de aumento da liberdade sindical, ponto mais controverso e que mais interessa ao objeto de estudo deste artigo, as principails estratégias utilizadas pela Reforma foram o fim da contribuição sindical obrigatória e o instituto do negociado sobre o legislado. Vale dizer que o modelo de “sindicalismo de Estado” vigente no Brasil é criticado pelo próprio movimento sindical desde as décadas de 1970 e 1980, quando do surgimento do “novo sindicalismo”, que reivindicava, dentre outras pautas, por liberdade sindical. Nesse sentido, o discurso de Luís Inácio “Lula” da Silva em 1978, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, que protagonizou as históricas greves do ABC Paulista:

A estrutura sindical brasileira (...) é totalmente inadequada. Não se adapta à realidade, foi feita de cima pra baixo (...). É preciso acabar com a contribuição sindical que atrela o sindicato ao Estado. A estrutura e a legislação sindical deveriam ser reformuladas como resultado das necessidades. O sindicato ideal é aquele que surge espontaneamente, que existe porque o trabalhador exige que ele exista (SILVA, 1981 apudMATTOS, 2009MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009., p. 119).

Contudo, a reestruturação demandada, para que efetivasse a liberdade sindical, incluía, necessariamente, o fim não apenas do imposto sindical, mas também da unicidade e da investidura, como forma de desvincular o sindicato da figura estatal e possibilitar que a organização dos trabalhadores siga os rumos que estes reputarem convenientes (PEÇANHA, 2018PEÇANHA, Sércio da Silva. A prevalência do negociado sobre a legislado e seu impacto nas relações de trabalho: a mitigação da intervenção do judiciário trabalhista. In: HORTA, Denise Alves; FABIANO, Isabela Márcia de Alcântara; KOURY, Luiz Ronan Neves; OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Direito do trabalho e processo do trabalho: principais alterações - atualizado de acordo com a MP n.808 de 14 de novembro de 2017. São Paulo: LTr, 2018. p. 297-304.). Da forma como esta alteração fora instituída, como será visto, o que ocorre é o empobrecimento da luta dos trabalhadores. Associado a isso, a desestruturação financeira acarreta a redução do poder negocial, uma vez que a responsabilidade para a garantia das conquistas dos trabalhadores aumenta através da livre negociação, instituída pelo art. 611-A, que possibilita a retirada de direitos em limites inferiores à lei e a consequente precarização das condições de trabalho, ferindo o caráter de direito fundamental conferido à negociação coletiva (BRASILEIRO, 2018BRASILEIRO, Carol Matias. A prevalência do negociado sobre o legislado após a vigência da Reforma Trabalhista (lei 13.467/2017): impactos e resistência do movimento sindical da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.).

Diante da demonstração de incongruência entre a proposta formulada pelo legislador, a experiência e as construções teóricas sobre o Direito do Trabalho, encontram-se objetivos não declarados institucionalmente. A Reforma Trabalhista é fruto do seu tempo. Tempo este de reestruturação produtiva, de avanço da ideologia neoliberal e de negação do Direito do Trabalho, na busca por tornar as relações trabalhistas mais flexíveis, o que acaba por transferir os riscos do empreendimento do empregador para o empregado (VASCONSCELOS; VILELA; BRASILEIRO, 2018VASCONSCELOS, Antônio Gomes de; VILELA; Daniela Machado; BRASILEIRO, Ana Clara Matias. Entre o neoconstitucionalismo e o neoliberalismo: a ideologia neoliberal e negação de direitos trabalhistas. In VASCONCELOS, A.G.; VILELA, D.R.M.; AZEVEDO NETO, Platon Teixeira de. Trabalho, globalização e economia: crise dos modelos atuais. Belo Horizonte: RTM: Belo Horizonte, 2018. p. 59-86.). Se este é o tempo em que vivemos, questionamos: para qual direção se caminha? Seria ela adequada aos valores democráticos?

No contexto de crescente desigualdade (PIKETTY, 2014PIKETTY, Thomas. Capital in the Twenty-First Century. Trad. Arthur Goldhammer. Cambridge: Harvard University Press, 2014.) e reestruturação produtiva, o mundo do trabalho é cada vez mais heterogêneo, fragmentado e complexo. Nele, modelos contratuais frágeis e precários, como a terceirização, a subcontratação, o teletrabalho, o part-time job, são predominantes (ALVES; ANTUNES, 2004ALVES, Giovanni; ANTUNES, Ricardo. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. In: Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, p. 335-351, 2004.). São esses subcontratos, que reforçam a fragilidade contratual e as desigualdades, os desenhados para as relações de trabalho no Brasil a partir da Reforma Trabalhista.

Nicos Poulantzas remete-nos à ideia de que o Estado capitalista tem como característica particular “a autonomia específica da superestrutura política e da instância econômica, do poder político e do poder econômico” (POULANTZAS, 1977POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977., p. 186), de modo que a “autonomia do político pode permitir a satisfação de interesses econômicos de certas classes dominadas, limitando, mesmo eventualmente, o poder econômico das classes dominantes” (ibidem). Essa característica, que faz com que o Estado capitalista não seja um mero utensílio das classes dominantes, também as obriga a organizarem politicamente suas demandas, direcionando-as ao Estado seja para preservar posições de seu interesse, seja para frear possíveis avanços das classes dominadas, seja para aprofundar situações de dominação.

O neoliberalismo, como modelo político econômico que, a partir da década de 1970 vem aglutinando as demandas da classe burguesa internacional, fortaleceu-se grandemente no Brasil após o golpe de 2016 (MASCARO, 2018MASCARO, Alysson Leandro. Crise e Golpe. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2018.). A partir de então, intensificou-se a condução dessas transformações, permitindo que o mercado financeiro dite os rumos da sociedade, sem interferência de regulação estatal.

A racionalidade neoliberal degrada elementos basilares da democracia. De acordo com Wendy Brown, para além da dominância mercantil nas instituições, fundamentos constitutivos da democracia, como princípios de justiça, cultura política, hábitos de cidadania e, principalmente, o imaginário intersubjetivo democrático, são desfeitos por uma racionalidade que subordina todos os âmbitos da vida social à esfera econômica. Esse processo é chamado pela autora de “economização” neoliberal da vida política ou de desdemocratização neoliberal (BROWN, 2015BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. New York: Zone Books, 2015.). Portanto, refere-se a um modelo de racionalidade capitalista que não é comprometido com os objetivos da República – com a construção de uma sociedade livre, justa e igualitária, a erradicação da pobreza e com a redução das desigualdades sociais e regionais.

Como resultado do silenciamento da sociedade civil organizada, o movimento sindical se encontra internacionalmente em crise desde o início da reestruturação produtiva toyotista na década de 1970 e da expansão do neoliberalismo nos países de capitalismo tardio na década de 1990. A Reforma Trabalhista faz parte da intensificação desse contexto, como será visto.

2.1 A nova crise do sindicalismo e a liberdade cínica durante a reestruturação produtiva

A desdemocratização, apontada por Wendy Brown (2015)BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. New York: Zone Books, 2015., é fenômeno intrínseco ao modelo neoliberal, que no Brasil tem como marco histórico a década de 1990. Neste modelo, ao se abrirem as portas para o capital internacional, acelerou-se o processo de reestruturação produtiva. A partir da crise estrutural do binômio fordista-taylorista nos países centrais e, por consequência, do compromisso socialdemocrata, com o intuito de dar continuidade à reprodução social capitalista fundada na permanente acumulação, o capital foi forçado a buscar novos padrões de acumulação mais flexíveis, novas formas de gestão organizacional e novo ritmo de desenvolvimento tecnológico (ANTUNES, 2009ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.).

Dentre as inúmeras mudanças econômicas, culturais e comportamentais provocadas pelo toyotismo, uma delas é o forte impacto no movimento sindical em magnitude internacional. A nova crise do sindicalismo internacional, analisada por Ariovaldo de Oliveira Santos (2006)SANTOS, Ariovaldo de Oliveira. A nova crise do sindicalismo internacional. In ANTUNES, Ricardo. Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 447-460., difere-se das anteriores, pois o movimento sindical não enfrenta governos fascistas que se utilizam da força como forma de silenciamento, mas se enfraqueceu diante das novas formas contratuais e de exploração da força de trabalho – que fragmentaram a classe-que-vive-do-trabalho – e da concentração do capital em oligopólios internacionais e firmas transnacionais.

Ricardo Antunes (2010)ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 14ª ed. São Paulo: Cortez, 2010. ao abordar a crise sindical, que atingiu os países de capitalismo avançado na década de 1980 e o Terceiro Mundo na década de 1990, juntamente com a expansão do neoliberalismo e a abertura para a reestruturação produtiva, ressalta as tendências contextuais que dificultam a atuação sindical: 1) relações de trabalho individualizadas; 2) desregulamentação e flexibilização do mercado de trabalho; 3) esgotamento do sindicalismo de participação impossibilitado pelo desemprego estrutural; 4) “burocratização e institucionalização das entidades sindicais”; 5) “culto ao individualismo exacerbado e resignação social”.

O resultado da dificuldade de organização e do enfraquecimento dos sindicatos é o comportamento defensivo destes, na tentativa constante de manter direitos, com “políticas de moderação salarial e mesmo renegociação de conquistas antigas ou recentemente estabelecidas” (SANTOS, 2006SANTOS, Ariovaldo de Oliveira. A nova crise do sindicalismo internacional. In ANTUNES, Ricardo. Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 447-460., p. 454). Nesse sistema, o trabalhador, que ora é empregado, ora desempregado, ora autônomo, ora subcontratado, dificilmente irá identificar-se com uma categoria específica e associar-se a tal sindicato. Mas, na hipótese em que opte pela sindicalização, uma mudança em seu status jurídico faz com que deixe de compor aquela base.

Notamos, então, uma enorme dificuldade de adaptação a tais constantes rupturas para promover mobilização da classe. Essa instabilidade reduz consideravelmente o poder de barganha dos sindicatos, que adotam medidas cada vez menos ofensivas contra o capital.

A título ilustrativo, apresentamos dados da OIT sobre a taxa de sindicalização dos trabalhadores no mundo – que demonstram queda de 44% em 1980 para 25% em 2013 – em gráfico elaborado por pesquisa da Fundação Getúlio Vargas.

GRÁFICO 1
TAXA DE SINDICALIZAÇÃO MUNDIAL (em % da força de trabalho) – 1980 a 2003

Diante da conjuntura internacional, não parece ser simples solucionar a crise sindical brasileira. Ela é agravada por se tratar de uma economia dependente e que privilegia o mercado financeiro em detrimento do setor produtivo, por estrutura sindical burocratizada e atrelada à figura estatal (BOITO JÚNIOR, 1991) e por mentalidade escravocrata, autoritária e patriarcal ainda fortemente presente e que subjuga o destino do trabalhador aos interesses da elite pouco adaptados às ideias de desenvolvimento nacional e bem comum (SOUZA, 2017SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.).

A busca por soluções para a crise sindical brasileira passa, constantemente, em meio aos debates teóricos, pelo fim do sindicalismo de Estado e pela ampliação da liberdade sindical, como já abordado. Entretanto, a efetivação desta liberdade depende não apenas de reformulação da estrutura sindical como de proteção contra condutas antissindicais, considerando que as relações entre os entes coletivos de trabalho no contexto brasileiro também carecem de lealdade (BARBATO; MÁXIMO, 2012).

Durante a pesquisa de campo, diversas foram as denúncias dos entrevistados sobre condutas por parte da empresa que pressionavam os trabalhadores a não se sindicalizarem ou não contribuírem com seus sindicatos. Também por essa razão, em entrevista, a representante do SinPro Minas manifestou-se favorável à manutenção da unicidade sindical. Seu temor é que, na ausência do reconhecimento oficial-legal do Estado, sejam criados sindicatos por patrões para, supostamente, representar trabalhadores e que seus empregados fossem coagidos a se sindicalizarem a tais sindicatos fraudulentos. A projeção não parece ser infundada e demonstra como as diversas alternativas esboçadas não suprem a desigualdade de forças entre capital e trabalho, ainda que no plano das relações coletivas.

De todo modo, como visto, há mais de 40 anos a liberdade sindical é reivindicada pelo movimento sindical brasileiro. Apesar de ter sido proclamada pela Constituição da República de 1988, em seu art. 8º, caput e incisos, ela ficou comprometida pela manutenção do sindicalismo de Estado. Contudo, o legislador da Reforma Trabalhista propõe como forma de “solucionar” tal crise, aumentar a liberdade sindical retirando a contribuição sindical e aumentando a liberdade negocial, sem alterar os critérios de investidura e unicidade, permanecendo com o modelo de sindicalismo de Estado.

Trata-se, portanto, de dar liberdade ao trabalhador para que ele escolha entre enfraquecer ou não a instituição que necessariamente é responsável pela garantia dos seus direitos (YAMAMOTO, 2017YAMAMOTO, Paulo de Carvalho. Qual liberdade? O cinismo como figura retórica da Reforma Trabalhista: o caso da contribuição sindical. In SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SOUTO SEVERO, Valdete. Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2017. p. 433-442.). Não é crível que as mudanças que instituem tal liberdade intendam a solucionar alguma crise ou promover justiça social. O cinismo reside no discurso de quem finge boas intenções e intensifica problemas.

3 O fim da contribuição sindical obrigatória: empobrecimento da luta coletiva de trabalhadores

Assim como toda organização no sistema capitalista, os sindicatos dependem de receita para exercer suas atividades e arcar com suas despesas correntes. Desde a década de 1930 até a promulgação da Constituição da República de 1988, o patrimônio e a gestão dos recursos dos entes sindicais eram controlados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Com a garantia do direito de administração, esse controle passa a ser feito pelas próprias entidades, definido por assembleia na forma prevista pelo estatuto. Nesse sentido, desde que mantida a finalidade de defesa dos interesses econômicos ou profissionais, as formas de aquisição de verba não se limitam àquelas previstas pela CLT.

3.1 Fontes de custeio da atividade sindical

Apesar da possibilidade de desenvolver atividade econômica, as contribuições previstas no art. 548 da CLT continuam sendo a principal fonte de receita das entidades sindicais. Desse modo, atentamo-nos às 5 fontes de custeio previstas naquele artigo, quais sejam: i) contribuição associativa ou social; ii) contribuição confederativa; iii) contribuição assistencial; iv) multas e outras rendas eventuais e, por fim, v) contribuição sindical. Apoiadas nos ensinamentos de José Cláudio Monteiro de Brito Filho (2017, p. 140-148)1 1 Compilamos os conceitos apresentados em: BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro. Direito Sindical. 6 ed. São Paulo: LTr Editora, 2017. , explanamos brevemente sobre esses conceitos, deixando a contribuição sindical e as consequências provocadas pela Reforma em última análise.

i) Contribuição Social: também conhecida como contribuição associativa, são mensalidades devidas por trabalhadores sindicalizados, cujo valor e forma de cobrança serão definidos por assembleia e previstos no estatuto de cada sindicato, embasadas no princípio da liberdade coletiva de administração. Para Brito Filho (2018), a contribuição social deveria ser a principal fonte de custeio dos sindicatos, pois demonstra a mobilização da categoria. Nesse ponto, percebemos durante a pesquisa de campo o engajamento dos representantes sindicais em aumentar o número trabalhadores associados ou mesmo o valor cobrado.

ii) Contribuição Confederativa: tem por objetivo a manutenção do sistema confederativo de representação sindical. Ela deve ser repassada pelo sindicato às federações, confederações e centrais sindicais. É também definida em assembleia e devida apenas pelos sindicalizados.

iii) Contribuição Assistencial: também denominada taxa negocial, a contribuição a que se refere o art. 513, e da CLT é estabelecida em convenções ou acordos coletivos e visa ao ressarcimento do sindicato com despesas geradas em negociações, campanhas salariais, etc. Pode ser cobrada também para financiar atividades assistenciais prestadas pelo sindicato (assistência jurídica, planos de saúde, bolsas de estudo). Sua cobrança a trabalhadores não sindicalizados é vedada pela jurisprudência do STF2 2 Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre taxa negocial abstraída dos seguintes acórdãos: RE-220120/SP; RE-337718/SP; RE-220622/SP; RE-189.960/SP e RE-220700-1/RS. , ainda que os demais empregados tenham adquirido as mesmas vantagens por meio da atuação do sindicato.

iv) Multas e outras rendas eventuais: não representam fonte substancial para os sindicatos profissionais em geral. Já para as entidades patronais, por vezes, são a principal fonte, utilizando-se, além das multas, de doações, aplicações e rendimentos diversos. Segundo matéria divulgada pela Folha de S. Paulo em 2017, 88,9% da receita da Fiesp, em 2016, foi oriunda dessas outras fontes, sendo 61,1% de repasses do Sistema S e 21,3% de receitas financeiras (PEÇANHA, 2018PEÇANHA, Sércio da Silva. A prevalência do negociado sobre a legislado e seu impacto nas relações de trabalho: a mitigação da intervenção do judiciário trabalhista. In: HORTA, Denise Alves; FABIANO, Isabela Márcia de Alcântara; KOURY, Luiz Ronan Neves; OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Direito do trabalho e processo do trabalho: principais alterações - atualizado de acordo com a MP n.808 de 14 de novembro de 2017. São Paulo: LTr, 2018. p. 297-304.).

v) Contribuição Sindical: por força do art. 8º, IV da Constituição da República, é imposta a todas as categorias profissionais e econômicas mediante aprovação em assembleia e regulamentação por norma infraconstitucional. Até a entrada em vigor da lei 13.467/2017, sua cobrança era obrigatória. Após as alterações dos artigos 545, 578 e 579, a cobrança passou a depender de autorização prévia e expressa dos empregados que assim facultarem, seguindo a mesma forma de pagamento, com valor equivalente a um dia de trabalho ao ano, cujo desconto em folha seria realizado pelo empregador no mês de março.

Expostos os conceitos, é perceptível que tais mudanças sobre a contribuição sindical, além de reduzir drasticamente a arrecadação dos sindicatos, expõe os trabalhadores que desejem contribuir para o financiamento da entidade que lhe represente, dando margem ao aumento de condutas antissindicais.

3.2 Contribuição sindical facultativa: inconstitucionalidades e consequências

Das fontes de custeio elencadas, a contribuição sindical é a única que pode ser cobrada a trabalhadores não associados. Portanto, as alternativas para suprir a redução da receita são muito limitadas. Ainda que haja esforços dessas instituições para se aproximarem do trabalhador, de modo que ocorra maior participação da organização coletiva, filiação e anuência com a cobrança de contribuições, a redução de receita é certeira, tendo em vista que muito dificilmente atingirão 100% de sindicalização da base. Nesse sentido, merece transcrição a indagação feita por Aldemiro Rezende Dantas Junior:

Ora, essa contribuição sindical obrigatória servia para o custeio das despesas do sindicato, a manutenção de sua sede, a contratação de advogados, eventuais deslocamentos dos dirigentes, montagem de estrutura de greve ou de uma assembleia geral etc. Pois bem, como funcionará doravante esse custeio? Ou será que o legislador foi ingênuo ao ponto de achar que o sindicato poderá funcionar sem qualquer fonte de renda para pagar as necessárias e evidentes despesas que precisa suportar (DANTAS JUNIOR, 2017, p. 285)?

Além do evidente impacto financeiro, juridicamente, a principal questão controvertida se encontra na retirada da natureza jurídica tributária do imposto sindical, sem alteração dos arts. 8º, IV, 146, III e 149 da CR/88, que versam sobre a exigibilidade da contribuição, incluindo-lhe nas disposições sobre o Sistema Tributário Nacional (PEÇANHA, 2018PEÇANHA, Sércio da Silva. A prevalência do negociado sobre a legislado e seu impacto nas relações de trabalho: a mitigação da intervenção do judiciário trabalhista. In: HORTA, Denise Alves; FABIANO, Isabela Márcia de Alcântara; KOURY, Luiz Ronan Neves; OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Direito do trabalho e processo do trabalho: principais alterações - atualizado de acordo com a MP n.808 de 14 de novembro de 2017. São Paulo: LTr, 2018. p. 297-304.).

Todo tributo, por conceito, é “prestação pecuniária compulsória” (art. 3º do CTN), o que impossibilita a facultatividade do contribuinte estabelecida pela Reforma. Tal vício foi questionado em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5794) – e em outras 18 ADIs – e de Ação Direta de Constitucionalidade (ADC 55), nas quais o STF decidiu ser constitucional a modificação legislativa.

Ademais, ainda que materialmente não houvesse equívoco, outra questão de cunho formal que expõe a inconstitucionalidade da medida, é o fato de que, segundo o art. 146, III da Constituição, cabe à lei complementar “estabelecer normas gerais de matéria de legislação tributária” (BRASIL, 1998). A lei 13.467/2017, no entanto, foi aprovada enquanto lei ordinária, o que enseja diferenças substanciais no rito do processo legislativo.

Outro fator passível de crítica é a ausência de progressividade na aplicação da mudança e, como já abordado, de alteração das demais características do sindicalismo de Estado, o que torna a medida não apenas súbita e incompleta, como aniquiladora dos entes sindicais. Segundo Peçanha,

Alterando-se o modelo para o Pluralismo Sindical, os instrumentos normativos poderiam ser aplicados somente aos membros da categoria filiados ao sindicato que celebrou o instrumento normativo. Assim ficaria resguardado, em todos os aspectos, o princípio da liberdade sindical, pelo qual ninguém seria obrigado a filiar-se ou contribuir financeiramente (PEÇANHA, 2018PEÇANHA, Sércio da Silva. A prevalência do negociado sobre a legislado e seu impacto nas relações de trabalho: a mitigação da intervenção do judiciário trabalhista. In: HORTA, Denise Alves; FABIANO, Isabela Márcia de Alcântara; KOURY, Luiz Ronan Neves; OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Direito do trabalho e processo do trabalho: principais alterações - atualizado de acordo com a MP n.808 de 14 de novembro de 2017. São Paulo: LTr, 2018. p. 297-304., p. 304).

Ou seja, uma vez adotado o modelo de pluralismo recomendado pela OIT na Convenção 87, haveria tendência de ampliação à sindicalização e ao sentido de liberdade sindical, o que estaria adequado à ausência de contribuição obrigatória. O cinismo, novamente, se expõe. O pesquisador Paulo de Carvalho Yamamoto (2017)YAMAMOTO, Paulo de Carvalho. Qual liberdade? O cinismo como figura retórica da Reforma Trabalhista: o caso da contribuição sindical. In SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SOUTO SEVERO, Valdete. Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2017. p. 433-442. fala sobre essa postura:

É curiosa a liberdade cultivada pelo cinismo: ela permite que o trabalhador decida se vai ou não contribuir financeiramente com o sindicato, porém, obriga que o trabalhador seja representado pelo sindicato. Sim, “pelo”: não é por um sindicato qualquer, ou mesmo um sindicato que o trabalhador possa escolher, mas antes, por aquele sindicato definido previamente pelo Estado. O trabalhador tem direito de decidir se vai financiar ou não a entidade que obrigatoriamente negociará seus direitos e que poderá fazê-lo, inclusive, abaixo do patamar mínimo civilizatório positivado na legislação trabalhista (YAMAMOTO, 2017YAMAMOTO, Paulo de Carvalho. Qual liberdade? O cinismo como figura retórica da Reforma Trabalhista: o caso da contribuição sindical. In SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SOUTO SEVERO, Valdete. Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2017. p. 433-442., p. 440).

Como se observa, no atual paradigma, a principal função do sindicato, com o intuito de defender os interesses dos trabalhadores, é estimular a politização da categoria para que essa “liberdade” seja exercida. Diante do contexto de diversos desafios impostos pela modernidade individualista, de flexibilidade das relações de trabalho (ANTUNES, 2009ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.) e da captura da subjetividade do trabalhador (ALVES, 2011ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade: o espírito do Toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.), essa escolha pelo direito é cada vez mais tolhida.

Desde o embrião do Direito do Trabalho Pós-Revolução Industrial, a história ensinou que a irrestrita liberdade entre desiguais leva à opressão. “Trata-se de um sindicato que virá com o pires na mão, ávido pelo recebimento de qualquer migalha que lhe for oferecida” (DANTAS JUNIOR, 2017, p. 280). Esse enfraquecimento previsível e constatado em campo escancara o cinismo do legislador, pois a muitos beneficia, menos ao trabalhador a quem propagava ampliar liberdade.

4 Entre o idealismo libertário e a materialidade desigual

Por meio da pesquisa de campo, foi possível identificar os impactos causados pelo fim da contribuição sindical obrigatória nos sindicatos de categoria da base territorial de Belo Horizonte e a compreensão dada por eles sobre a Reforma como um todo. E o mais importante: após conhecer de perto a realidade de oito dos maiores sindicatos classistas de Belo Horizonte (STEFBH, SindRede, SJP-BH, Sinpro Minas, SindMetal BH, SB-BH, STTR-BH e STICBH-Marreta), a pesquisa teórica ganhou vida e as referências bibliográficas puderam ser compreendidas de acordo com o que é pertinente dentro do contexto estudado.

Em campo, pudemos constatar que as realidades e orientações políticas dentro do movimento sindical são inúmeras, mas, quando se trata de Reforma Trabalhista, é unânime a contrariedade. Isso porque, no fim das contas, todos compartilhavam a função de defender os interesses dos trabalhadores. O que não foi acompanhado pelo legislador. Além disso, institucionalmente, os sindicatos foram prejudicados tanto no custeio de suas atividades, quanto na dinâmica de negociação.

Assim, explicamos o procedimento utilizado. Antes de entrar em contato com os sindicatos, foi elaborada entrevista semiestruturada, atendendo aos objetivos específicos da pesquisa, contendo, previamente, a identificação do entrevistado (todos eles diretores ou presidentes das entidades) e, em segundo momento, dividido em 3 partes sobre: 1) contexto sócio-histórico do Sindicato; 2) o Sindicato e a prevalência do negociado sobre o legislado; e 3) o Sindicato perante outros pontos da Reforma Trabalhista.

Tendo em vista o compromisso de sigilo, não serão reveladas as identidades dos entrevistados, apenas as entidades que representavam. Portanto, não serão analisadas as identificações dos participantes, apesar de terem sido de extrema relevância para darem perspectiva à interpretação dos questionários.

Sobre os entrevistados, apresentamos apenas a compilação de dados gerais. Dos 14, somente 2 eram mulheres. Sobre as faixas etárias, 1 representante tinha até 25 anos; 3 tinham de 26 a 45 anos; e os outros 10 tinham mais de 46 anos. O tempo de exercício da função como dirigentes ou presidentes, no geral, não passa de 3 anos, tempo do mandato da gestão eleita, com exceção de 1 representante, que já ocupava o cargo havia 12 anos.

Na Parte 1, fizemos perguntas a respeito do contexto sócio-histórico dos sindicatos. Nesse ponto, apuramos que as bases territoriais e o número de trabalhadores que compõem a base são variáveis a depender das especificidades da categoria e das demandas do mercado. Os sindicatos com maior articulação política ou que negociam com patronais mais monopolizadas conseguem ampliar suas bases.

O número de trabalhadores sindicalizados também é bastante variável entre os sindicatos em análise. Todavia, verificamos que há uma tendência a maior sindicalização das categorias cujos trabalhadores têm maiores remuneração e qualificação educacional, como os bancários e os professores municipais. Quanto mais precárias as condições de trabalho, menor a garantia de emprego e maior a rotatividade dos postos de trabalho, o que reflete na dinâmica de sindicalização e corrobora as referências bibliográficas que versam sobre os efeitos do capitalismo flexível na crise sindical. É o caso do STICBH-Marreta, que, apesar de transparecer ser o mais atuante, é também o que possui menor número de sindicalizados (Tabela 1). Outro fator que interfere para a baixa sindicalização são as condutas antissindicais por parte dos empregadores, que distanciam os sindicatos de suas bases. O SindMetal-BH fez fortes denúncias a respeito do tema, impressão reforçada por outros sindicatos sobre esta categoria.

TABELA 1
– DADOS QUANTITATIVOS DE IDENTIFICAÇÃO DA AMOSTRA

As médias salariais variam, segundo os entrevistados, entre R$1.600,00 e R$4.500,00, sendo que as categorias com menor remuneração são os trabalhadores da construção civil (em último lugar), os metalúrgicos e os rodoviários. Já os de maior remuneração foram os bancários (em primeiro lugar), os jornalistas e os professores concursados na rede municipal. Nesta última, os trabalhadores terceirizados são pior remunerados (Tabela 1). Tal diferenciação confirma a tese de que as formas de contratos do novo mundo do trabalho, como, por exemplo, a terceirização, são mais precárias (ALVES; ANTUNES, 2004ALVES, Giovanni; ANTUNES, Ricardo. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. In: Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, p. 335-351, 2004.).

Pelo fato de terem sido contatados os sindicatos de maior relevância política em Belo Horizonte, todos são bastante antigos e sua história se assemelha. A maioria foi fundada ainda no período varguista, nas décadas de 1930 e 1940, com exceção do SindRede, criado em 2006, quando deixou de ser sub-sede do SindUTE, e do STEFBH, criado em 1981. A maioria também sofreu intervenção militar, quando passou por greves históricas nas décadas de 1970 e 1980. Na década de 1990, relatam que a autonomia sindical foi ampliada, porém as dificuldades foram acirradas para garantia dos direitos dos trabalhadores. As entidades, em geral, foram empoderadas a partir de 2002, quando as instituições estatais de fiscalização e garantia de direitos dos trabalhadores foram fortalecidas.

Quanto às centrais sindicais, 2 sindicatos são filiados à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Outros 2 à Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST). 2 não possuem filiação a nenhuma central. Os demais se filiam à Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e à Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB).

Sobre as principais pautas defendidas pelas categorias, todas citaram a questão salarial e demonstraram insatisfação com as taxas de reajuste salarial conquistadas nas negociações. Tiveram destaque também as pautas de: fim das terceirizações, redução de jornada e extinção do banco de horas, organização no local de trabalho, cumprimento das normas coletivas, saúde e segurança do trabalhador, com destaque às duas últimas. Essa agenda demonstra o empobrecimento da classe trabalhadora, cuja principal demanda ainda é salarial.

Como demonstrado na Tabela 1, apesar da discrepância das médias entre as categorias, principalmente em razão da qualificação demandada para cada profissão, nenhuma ultrapassa R$5.000,00. Segundo o Dieese (2020), o salário mínimo ideal (aquele que subsidia gastos essenciais para uma família) em outubro de 2018 seria de R$ 3.783,39. Apenas os trabalhadores bancários, dentre as categorias estudadas, ultrapassaram essa média.

A partir dos relatos da Parte 2 da entrevista, sobre a Prevalência do Negociado sobre o Legislado, depreendemos que todos os sindicatos veem com maus olhos a mudança dos arts. 611-A e 611-B. Os representantes acreditam que, com o enfraquecimento financeiro das entidades e a precarização da classe pela Reforma, sindicatos profissionais não terão poder negocial para enfrentar as tentativas patronais de redução dos direitos contidos nos Acordos e Convenções Coletivas de Trabalho. Isso indica a simbiose entre as alterações legais que interferem negativamente no campo negocial e contributivo.

Todos os sindicatos haviam realizado negociações após a vigência da Reforma e destacam a mudança do comportamento das empresas ou sindicatos patronais no decorrer do processo ou no respeito às normas coletivas. Alguns entrevistados, como os ligados ao STEFBH, o SJP-BH e o SindMetal-BH, relatam a insegurança jurídica que dispositivos inconstitucionais da Reforma provocaram. Para eles, o fato de não se saber ainda qual o posicionamento que será adotado pela Justiça do Trabalho fez com que o comportamento patronal durante as negociações deste ano tenha sido mais cauteloso. Ainda assim, houve perda de direitos, como a implementação de banco de horas positivo e negativo e a retirada de benefícios, como plano de saúde.

Em outros sindicatos, como o SinPro Minas, o STTR-BH e o SB-BH, o comportamento patronal foi muito mais ofensivo. Os 2 primeiros sindicatos fizeram greve neste ano para demonstrar discordância com as propostas de acordos. O SB-BH afirma que, estrategicamente, os componentes da mesa de negociação da FENABAN, que eram os mesmos há 27 anos, foram trocados por outros com maior formação jurídica e que conheciam a Reforma Trabalhista a fundo. Essas entidades relatam que as negociações pós Reforma foram mais conflituosas e demoradas. Eles comemoram o fato de terem conseguido manter os principais direitos garantidos em suas respectivas Convenções e Acordos Coletivos de Trabalho, ainda que tenham tido perdas.

Além da agressividade durante as negociações, algumas entidades patronais têm aumentado o descumprimento tanto das normas autônomas quanto das heterônomas. Vejamos:

Os caras ‘tão muito mais agressivos e isso até fora dos períodos de negociação. Como eu ‘tava falando pra você, eu ‘tava chegando agora de uma greve e os caras não ‘tão respeitando mais nada, nenhum tipo de marco legal (representante STTR-BH, 2018, informações orais).

Apenas no STICBH-Marreta a Convenção Coletiva de Trabalho foi completamente mantida. Todos os demais sindicatos tiveram perdas de direitos mais ou menos significativas. Percebemos que este sindicato é o mais atuante dentre os visitados. Segundo seus representantes, a paralisação das obras é frequente, o contato com as bases é próximo, há reuniões constantes nos canteiros de obras e recurso ao então Ministério do Trabalho e Emprego (hoje, Secretaria do Trabalho) para cobrar fiscalização das obras.

Apesar de conseguir manter as garantias da Convenção Coletiva de Trabalho, sua situação também piorou depois da Reforma. Os entrevistados denunciam o crescimento das condições de trabalho análogas à escravidão – que já eram alarmantes –, da terceirização e do desrespeito às normas de saúde e segurança do trabalhador pelos empregadores.

A Convenção, até 2017, as empresas cumpriam a maior parte dela. Então, o pós-Reforma, tem várias empresas que estão se aventurando a fazer sua própria norma. / Sem consultar o sindicato? / ‘Tá fazendo. Só que todo dia a gente vai pro canteiro de obras, em discussão com os trabalhadores a gente fica sabendo e aí a gente, em algumas ações a gente aciona o Ministério do Trabalho, em outras a gente faz ação de paralisação. (...) Tá que chega CAT aqui. Antes as empresas escondiam esses acidentes, agora com a Reforma em prática elas mandam, tá vindo uma CAT atrás da outra (representante STICBH-Marreta, 2018, informações orais).

O prejuízo, portanto, foi generalizado. Mesmo na única categoria que manteve a Convenção Coletiva de Trabalho, as condições laborais foram precarizadas pela mudança de comportamento patronal provocada pela nova lei.

Por fim, na Parte 3 da entrevista, os informantes foram questionados, dentre outros temas relativos à Reforma Trabalhista, sobre a contribuição sindical.

Como dito, o fim do imposto sindical foi, certamente, o ponto mais debatido nas entrevistas. Foi necessário provocar constantemente os entrevistados sobre o art. 611-A da CLT, considerando que o intuito original era abordar este aspecto da Reforma, caso contrário, falariam majoritariamente sobre as inúmeras dificuldades financeiras que atravessam. Embora no meio acadêmico o instituto do negociado sobre o legislado tenha sido enormemente debatido, em campo, percebemos que o impacto financeiro imediato provocado pelas alterações legislativas foi o primeiro foco preocupação dos representantes sindicais naquele momento, sendo este artigo um retorno aos sujeitos da pesquisa.

Dentre as estratégias utilizadas para substituir a renda retirada, o SinMetal-BH, o SB-BH, STICBH-Marreta e o SinPro Minas afirmam terem aprovado em assembleia a cobrança de taxa negocial, o que diverge da jurisprudência do STF analisada, que veda a cobrança de tal contribuição para trabalhadores não sindicalizados.

O STEF-BH diz que boa parte do orçamento do sindicato se sustenta por meio de honorários advocatícios de ações bem-sucedidas. Alguns relatam terem demitido funcionários. Até mesmo venda de livros e bazares têm sido estratégias para arrecadar fundos, relata o SJP-BH. Trata-se do sindicato de “pires na mão” como previu Dantas Júnior (2017).

Dentre os 8 sindicatos entrevistados, 7 tinham posição contrária à cobrança obrigatória do imposto sindical, por lhes criar dependência da figura estatal, estimular o peleguismo e desestimular a atuação dos sindicatos por meio de enfrentamento político. Inclusive, o SindRede já realizava a devolução dos valores àqueles trabalhadores que não anuíssem com a cobrança. Neste sindicato, a mudança foi benéfica ao encerrar com a necessidade do procedimento. Nesse sentido, a fala do dirigente do SJP-BH, representativa sobre a posição adotada pelos demais:

Já existia antes uma discussão sobre o fim dos repasses obrigatórios do governo, da contribuição obrigatória e tal, mas eram discussões que eram feitas com planejamento pra não quebrar as pernas dos sindicatos, mas pra organizar e fazer essa ruptura que é necessária, romper com a posição do Estado. Porque você fica preso. Se você ataca o Estado você corre o risco de perder a maior fonte de renda, né? Mas isso criou também uma dependência do modelo sindical brasileiro com o Estado e até com as empresas (representante SJP-BH, 2018, informações orais).

Apenas o SinPro Minas acredita que o modelo de sindicalismo de Estado é o único possível para a sobrevivência dos sindicatos no Brasil e manifestou-se totalmente contrário ao fim da contribuição sindical obrigatória, fundamentando a posição nos atos antissindicais e na postura desleal dos representantes patronais para/com a organização dos trabalhadores.

Apesar das críticas apresentadas ao longo deste artigo sobre como o sindicalismo de Estado fere princípios relativos à liberdade sindical, de todo modo, é possível questionar a contradição na postura dos sindicatos entrevistados, que, mesmo diante de problemas orçamentários e de enfraquecimento do poder negocial proporcionado pela alteração, permanecem favoráveis ao fim da contribuição sindical. Provocadas pelo posicionamento do SinPro Minas, percebemos que, na prática, a alteração se demonstrou insustentável. Ainda que fosse acompanhado do fim da unicidade e da investidura, como orienta a OIT e a unanimidade das teorias revisadas, seria este modelo adequado ao contexto de capital flexível agravado pela condição sulamericana?

Não há resposta pronta para esse questionamento. Contudo, preservamos o juízo de que a organização dos trabalhadores se contraponha aos interesses do Estado burguês e que, por isso, não pode estar a ele subjugado. Salta aos olhos o que a realidade demonstra, o que não deve ser desprezado, ignorado.

Seguindo com a análise dos dados, todos também proferiram críticas à forma como a mudança foi implementada pelo legislador. Primeiro, porque ela ocorreu com a manutenção do sistema de unicidade sindical, em que a sindicalização de trabalhadores é baixa por pressupor representação de toda a categoria, incluindo não-associados. Segundo, pela pressa na implementação, sem qualquer medida transitória, que oportunizasse planejamento dos sindicatos. Além disso, demonstraram-se preocupados com condutas antissindicais que restrinjam a anuência do trabalhador com a contribuição, conforme se verifica no fragmento:

Uma coisa é o sindicato estar presente e a empresa entregar um formulário pro cara dizer se ele quer ou não contribuir com o seu sindicato. Outra é a empresa pegar uma pessoa lá do seu escritório central e falar ‘aqui, ó, cê vai assinar aqui pra você não contribuir com o sindicato (representante STICBH-Marreta, 2018, informações orais).

Os informantes, ao serem perguntados sobre as perspectivas de adaptação ou resistência à Reforma, remeteram-se às questões orçamentárias, por meio das estratégias mencionadas, e às formas de enfrentamento mais radicais e unificadas pela classe trabalhadora.

Sentiu um impacto muito forte, né. Isso daí nos leva a utilizar de estratégias completamente diferentes no sentido de poder se autofinanciar. Isso daí não é um problema só nosso, é de todas as entidades sindicais do país, entendeu? Vai ter que ser criativo, vai ter que buscar outras fontes de financiamento (representante STTR-BH, 2018, informações orais).

Nesse sentido, a pesquisa de campo se mostrou alinhada com a revisão bibliográfica e explicitou o cinismo do legislador. Com uma retórica de que estaria proporcionando liberdade sindical, criou outros problemas na condução das lutas dos trabalhadores.

5 Considerações finais

No decorrer desta pesquisa, buscamos compreender de que forma o fim da contribuição sindical obrigatória impacta e impactará os sindicatos de categoria profissional com base em Belo Horizonte. A determinação introduzida pela Reforma Trabalhista (lei n. 13.467/2017), ao alterar os artigos 545, 578 e 579 da CLT, fez com que a cobrança, até então automática e compulsória, passasse a depender de autorização prévia e expressa dos empregados que assim facultem.

Por meio das pesquisas bibliográfica, documental (tomando como documentos de análise a lei da Reforma Trabalhista e sua exposição de motivos e as convenções n. 87 e 144 da OIT) e de campo (caracterizada por entrevistas a quatorze dirigentes de oito sindicatos de categoria profissional com base em Belo Horizonte) realizadas, pudemos concluir que a ampliação da liberdade sindical, argumento que vem justificando tais alterações – ditas “modernizações” – na legislação trabalhista, não é concretizada por medidas como essas. Ao contrário, a necessidade de prévia e expressa autorização do empregado para que seja realizado o desconto da contribuição sindical de sua folha de pagamento apresenta-se como meio de empobrecimento do movimento dos trabalhadores, podendo levar à sua asfixia financeira.

Percebemos que a reforma da legislação trabalhista tem se apoiado em mitos que atravessam a reputação do Direito do Trabalho. O “mito da outorga”, que apaga a luta dos trabalhadores pela conquista dos seus direitos sociais, o que tende a facilitar a supressão dessas garantias; o “mito dos custos”, que macula a imagem dos direitos dos trabalhadores, vinculando a melhoria nas condições de trabalho à redução dos postos; o “mito da litigiosidade”, que reduz o acesso à justiça em razão de uma suposta cultura de “demandas aventureiras” na seara trabalhista, que seria causa da obstrução do judiciário.

Por fim, junto a esses mitos, há o oportunismo hermenêutico ao utilizar-se de uma pauta do próprio movimento sindical, que historicamente é contrário ao sindicalismo de Estado, para enfraquecê-lo. O fim da obrigatoriedade da contribuição sindical não veio acompanhado do fim da investidura e da unicidade sindicais, tampouco de um período de transição, como defendido tanto pela militância trabalhista, quanto pela teoria. Veio, sim, acompanhado da possibilidade de se negociar aquém do patamar civilizatório mínimo estabelecido pela lei e do fim da ultratividade das negociações coletivas.

De fato, a questão do “imposto sindical” sempre foi tema polêmico no debate brasileiro e internacional sobre direito coletivo do trabalho, de modo que, dentre os representantes entrevistados, apenas um deles afirmou ser completamente contrário à sua extinção. A tese, defendida inclusive pela OIT, de que sua existência manteria o sindicato refém do Estado, permeia os discursos dos informantes. Contudo, todos eles afirmaram que as escolhas legislativas reformistas fazem com que, ao contrário de ampliar, reduza-se, bruscamente, a liberdade dos sindicatos, uma vez que as entidades passam a estar “de pires na mão”, com o empobrecimento da luta dos trabalhadores.

É ponto incontroverso também o fato de que há vício formal na extinção via lei ordinária da contribuição sindical, que, conforme os artigos 8º, IV, 146, III e 149 da CR/88, que versam sobre sua exigibilidade, está incluída no Sistema Tributário Nacional. Desse modo, apenas lei complementar ou emenda à Constituição poderiam modificar sua forma de cobrança.

Desse modo, ao argumento de ampliar a liberdade sindical, principalmente, a liberdade dos trabalhadores em relação ao sindicato, o legislador golpeou a organização coletiva da classe trabalhadora como um todo. Cinicamente, fez com que o trabalhador, já empobrecido por todo o conjunto de flexibilizações – leia-se fragilizações de direitos – e desregulamentações inseridas pela Reforma Trabalhista, tivesse de escolher entre contribuir ou não para o sustento da entidade que, obrigatoriamente, representará seus interesses. E que, sequer, conta com a proteção da lei.

  • 1
    Compilamos os conceitos apresentados em: BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro. Direito Sindical. 6 ed. São Paulo: LTr Editora, 2017.
  • 2
    Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre taxa negocial abstraída dos seguintes acórdãos: RE-220120/SP; RE-337718/SP; RE-220622/SP; RE-189.960/SP e RE-220700-1/RS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2020
  • Aceito
    15 Set 2020
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