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O uso da interseccionalidade na criminologia

Resumo

O presente artigo tem como objetivo demonstrar que o uso da interseccionalidade, enquanto estratégia analítica, política e social, se compatibiliza com uma leitura crítica e radical da criminologia, considerando as questões LGBT como ponto central das implicações de violência e vulnerabilidade. A interseccionalidade é empregada como estratégia para o pensamento criminológico contemporâneo, diante do seu potencial analítico quanto ao entrecruzamento dos sistemas de poder e a produção de desigualdades. O percurso das reflexões, que tem a violência LGBTfóbica como ponto de partida, inicia com uma breve exposição de dados brasileiros sobre a homotransfobia e suas relações com a perspectiva interseccional. Em seguida, justifica a escolha de Patrícia Hill Collins e sua abordagem da interseccionalidade como teoria crítica social. Avança na análise do pensamento interseccional como estratégia necessária à crítica criminológica contemporânea, ao reposicionar reflexões sobre vulnerabilidade, especialmente quanto aos debates LGBT’s. Os resultados destas discussões deixam em aberto possibilidades de uma mudança paradigmática no pensamento criminológico crítico brasileiro, que se habituou a trabalhar com marcadores sociais da diferença em um viés genérico ou isolacionista, perspectiva que pode ser superada com a criminologia interseccional proposta por Hillary Potter.

Palavras-chave:
Interseccionalidade; Criminologia; Vulnerabilidade; Marcadores sociais da diferença; Lgbtfobia

Abstract

This article aims to demonstrate that the use of intersectionality, as an analytical, political and social strategy, is compatible with a critical and radical reading of criminology, considering LGBT issues as a central point of the implications of violence and vulnerability. Intersectionality is used as a strategy for contemporary criminological thinking, given its analytical potential regarding the intersection of power systems and the production of inequalities. The course of reflections, which has LGBTphobic violence as a starting point, begins with a brief exposition of Brazilian data on homotransphobia and its relations with the intersectional perspective. It then justifies the choice of Patricia Hill Collins and her approach to intersectionality as a critical social theory. It advances the analysis of intersectional thinking as a necessary strategy for contemporary criminological criticism, by repositioning reflections on vulnerability, especially regarding LGBT debates. The results of these discussions leave open possibilities for a paradigm shift in Brazilian critical criminological thinking, which has become accustomed to working with social markers of difference in a generic or isolationist bias, a perspective that can be overcome with the intersectional criminology proposed by Hillary Potter.

Keywords:
Intersectionality; Criminology; Vulnerability; Social markers of difference; Lgbtphobia

Introdução

A criminologia crítica brasileira1 1 Quando neste artigo utilizamos o termo “criminologia crítica brasileira”, nos referimos às gerações de autores e autoras que recepcionou e traduziu o pensamento criminológico crítico no Brasil, em especial oriundo da obra de pensadores europeus (BARATTA, 2002) e latino-americanos (ZAFFARONI, 1988; ANIYAR DE CASTRO, 2005), desde uma mirada estruturalista e marxista, a exemplo de Juarez Cirino dos Santos (CIRINO DOS SANTOS, 2006), Vera Malaguti Batista (BATISTA, 2011) e Vera Andrade (ANDRADE, 2012). Pertinente conferir, ademais, o trabalho de Paula Gonçalves Alves, que investigou as narrativas sobre criminologia crítica brasileira a partir da técnica “bola de neve” (snowball), com entrevistas semidirecionadas feitas com pesquisadores referenciados deste campo teórico (ALVES, 2016). tem sido colocada em tensão pelos saberes feministas, decoloniais, pela teoria crítica da raça e pela teoria queer, assim como por outros desdobramentos intelectuais que vêm desafiando a posição monolítica da categoria “classe” e da “seletividade” como expressões universais que atribuem efeitos agudos do poder punitivo sobre os sujeitos.

A partir dessa constatação, o presente trabalho tem por objetivo demonstrar como o uso da interseccionalidade, como estratégia analítica, política e social, é compatível com uma leitura crítica e radical da criminologia, considerando as questões LGBT2 2 Optamos pelos termos “comunidade LGBT” e “LGBTfobia”, este como conceito guarda-chuva (e seu sinônimo, homotransfobia, utilizado no julgamento da ADO 26 e do MI 4733), considerando que se tornou hegemônico tanto na literatura brasileira quanto no ativismo, conforme definido na 3ª Conferência Nacional LGBT ocorrida em 2016. Não ignoramos as insuficiências dos referidos conceitos, que podem incidir em reducionismos, tendo em vista que: i) o prefixo LGBT pode reforçar a ideia de homogeneidade entre as violências sofridas pelos sujeitos que se inserem nas letras elencadas, quando um olhar interseccional (defendido nesta tese) indica o oposto, ou seja, as diferenças das violências dentro do próprio grupo, resultantes do entrecruzamento dos marcadores sociais da diferença, atingindo de forma muito mais intensa as travestis e as pessoas transgênero; ii) o sufixo “fobia” aponta para medo, pânico e aversão por questões subjetivas, psíquicas e individuais, ou seja, psicopatologizando o “sujeito homo/transfóbico” ignorando a dimensão sociocultural (e portanto, estrutural) desse tipo de violência, decorrente dos processos constitutivos de sociedades patriarcais e heteronormativas (PEIXOTO, 2018/2019, p. 7-23). Reconhecemos, ainda, que a menção de uma “comunidade LGBT” pode representar silenciamento de outras minorias sexuais, a exemplo de grupos de pessoas intersexo, assexuais e queer, compondo a recente sigla LGBTQIA+. Entretanto, para fins de padronização do texto, nos vinculamos aos termos utilizados na 3ª Conferência Nacional, embora reconheçamos que sua utilização pode ser considerada datada e que existam limitações relacionadas a outros grupos com orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas que não se sintam representados pela sigla empregada (LGBT). como ponto central das implicações de violência e vulnerabilidade interseccional. Inclusive, atribuindo, em termos de radicalidade, novos sentidos para criminologia. Nesse sentido, o problema de pesquisa está centrado no seguinte questionamento: a produção criminológica brasileira tem produzido diagnósticos capazes de apreender de maneira satisfatória a violência LGBTfóbica? A hipótese colocada consiste na utilização da interseccionalidade para preencher esta lacuna epistemológica no pensamento criminológico brasileiro.

Para tanto, ao entendermos que as pessoas experenciam posições de opressão e de discriminações que os atravessam de modo distinto, propomos usar o pensamento interseccional - que é anterior ao conceito de interseccionalidade3 3 O conceito de interseccionalidade foi apresentado por Kimberle Crenshaw, em 1989 (CRENSHAW, 1989) Kimberle. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum, 1989, p. 139-167. e decorre da resistência histórica do feminismo negro - como estratégia para o pensamento criminológico contemporâneo, considerando sua capacidade de explicar os sistemas de poder que produzem desigualdades e suas interconexões.4 4 Collins nos adverte sobre a repetição acrítica da “narrativa da criação” (coining narrative) da interseccionalidade. Esta forma de contar a história da interseccionalidade (como um “surgimento” a partir de um indivíduo) reforçaria narrativas ocidentais coloniais e capitalistas, em suas relações de descoberta e exploração. Ao invés de pensar Crenshaw como aquela que “descobriu” a interseccionalidade trazendo-a para a academia, Collins oferece uma narrativa alternativa da interseccionalidade, alinhada às tradições críticas de “projetos de conhecimento de resistência” (resistance knowledge project). Neste viés, a produção de Crenshaw se constituiria menos como um ponto de origem da interseccionalidade e mais como um ponto de inflexão que realça a mudança de relações entre ativistas e academia em condições de decolonização e neoliberalismo. Os trabalhos de Crenshaw foram publicados em uma conjuntura específica na qual grupos subordinados não apenas desafiaram não apenas os arranjos de poder acadêmicos que os excluíram da literatura, da educação e do trabalho, como também a autoridade epistemológica de argumentos acadêmicos que por muito tempo dominaram as explicações sobre as experiências dos referidos grupos (COLLINS, 2019, p. 123-124). Trata-se, portanto, de uma perspectiva teórica que ultrapassa fronteiras acadêmicas, posto que se coloca em diálogo com projetos organizados por pessoas que vivenciam a dominação (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press, 2019., p. 145-146). Neste sentido, pretendemos: i) esclarecer alguns pontos sobre o uso da interseccionalidade; ii) justificar a escolha de Collins; iii) apresentar sua abordagem da interseccionalidade (como teoria crítica social); iv) avançar passos na interseccionalidade como estratégia necessária à crítica criminológica contemporânea, em especial, para entender a relação entre criminologia e os debates LGBT’s; v) e, finalmente, apontar suas implicações para a criminologia (na abordagem de Hillary Potter).

1. Gênero, raça, sexualidade, desejo, idade, território [...] - Quem sofre a violência?

A comunidade LGBT possivelmente seja um dos grupos sociais mais plurais a ser estudado nas ciências criminais, pois engloba homens e mulheres, cisgêneros e transgêneros, de orientações sexuais diversas (gays, lésbicas, bissexuais, assexuais, pansexuais), de identidades de gênero não hegemônicas (a exemplo das travestis, dos transmasculinos e das pessoas não binárias), de todas as etnias (branca, negra, latina, asiática, indígena), idades, nacionalidades e classes sociais. Desse modo, pensar sobre os processos de violência que implicam às pessoas LGBT’S de forma isolada, inevitavelmente ignora outros marcadores sociais da diferença, cuja intersecção se revelam nos dados brasileiros.

A produção de dados nesta temática enfrenta dificuldades na apuração total dos casos de discriminações e homicídios, considerando o descaso histórico das instituições do Estado brasileiro em colher e compilar informações a respeito da LGBTfobia. Este déficit foi suprido - em parte - pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), uma organização não-governamental (OnG) fundada em 1980 para a defesa dos direitos humanos de pessoas LGBT.5 5 Disponível em: <https://grupogaydabahia.com/>. Acesso em: 28 mar. 2022. Uma de suas atividades consiste em produzir relatórios anuais recolhendo dados sobre as mortes de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis no Brasil, bem como as violações de direitos humanos praticadas contra este grupo.6 6 Estes relatórios têm sido produzidos desde a fundação do GGB, sendo que alguns deles foram publicados em formatos físicos (livro). Neste sentido, os livros publicados por Luiz Mott (MOTT, 2000) e em conjunto com Marcelo Cerqueira (MOTT; CERQUEIRA, 2001).

Os levantamentos realizados nos últimos anos pelo GGB em todas as unidades da federação indicam os seguintes números sobre a quantidade de mortes de pessoas LGBT: i) em 2019, 329 (OLIVEIRA; MOTT, 2020OLIVEIRA, José Marcelo Domingos de; MOTT, Luiz (Orgs.). Mortes Violentas de LGBT+ no Brasil - 2019. Salvador: Grupo Gay da Bahia, 2020.); ii) em 2018, 420 (MOTT, 2018); iii) em 2017 (MOTT, 2017), 445; iv) em 2015, 318 (MOTT, 2015); v) em 2014, 326 (MOTT, 2014). A metodologia adotada para monitoramento destes dados corresponde à identificação de notas jornalísticas publicadas em jornais brasileiros e demais meios de comunicação, feita por militantes do movimento LGBT e sistematizadas pelo GGB. Wendt critica esta metodologia porque: i) a coleta de dados é feita por uma OnG “militante nos próprios direitos” (supostamente enviesada em sua atuação, portanto); ii) a fonte utilizada é a mídia, que se utiliza de estratégias de divulgação dos fatos no sentido de aumentar a sensação de medo, insegurança e ameaça, sentimentos oriundos do senso comum e mobilizados para a expansão do direito penal (WENDT, 2018WENDT, Valquiria P. Cirolini. (Não) criminalização da homofobia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018., p. 119).

A despeito da necessidade de aprimorar a metodologia de coleta de dados das mortes decorrentes da LGBTfobia, entendemos que a crítica de Wendt deve ser recepcionada com ressalvas. Primeiro, porque a “atuação parcial” de militantes na coleta de dados pode soar uma crítica conservadora (desmerecendo o trabalho realizado pelos movimentos LGBT e por ativistas em geral), além de pressupor uma condição positivista de pesquisa (observador universal, não situado e absolutamente neutro diante do seu objeto de estudo). Segundo, porque embora a mídia apresente um sentido político na mediação jornalística, de manutenção da ordem social capitalista (MORETZSOHN, 2002MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em “tempo real”: o fetiche da velocidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.), auxiliando na construção social da criminalidade (num viés sensacionalista) em conjunto com outras instâncias de controle social (BUDÓ, 2013BUDÓ, Marília de Nardin. Mídia e controle social: da construção da criminalidade dos movimentos sociais à reprodução da violência estrutural. Rio de Janeiro: Revan, 2013.), esta lógica não parece se aplicar quando a vítima retratada nas notícias integra a comunidade LGBT.7 7 O jornalista Roldão Arruda investigou assassinatos de homossexuais ocorridos na década de oitenta na cidade de São Paulo, contexto no qual a Polícia Civil apostou na existência de um serial killer, o garoto de programa Fortunato Botton Neto, posteriormente julgado e condenado por uma parcela dos crimes ocorridos. A própria investigação conduzida à época revela como os órgãos policiais e os meios de comunicação eram guiados por uma série de preconceitos aos homossexuais. Neste sentido: “O fato de Gilson morar num bairro de classe média e trabalhar como gerente numa conhecida multinacional despertou a atenção da imprensa, que noticiou o crime com destaque. Os jornais até reproduziram fotos do edifício, no Paraíso, procurando destacar que se tratava de condomínio de pessoas de classe média e referindo-se à vítima como economista, executivo e gerente. Ninguém mencionou a palavra homossexual” (ARRUDA, 2001, p. 203-204). A pesquisa de Arruda é sintomática do modo como a mídia - ao menos, de acordo com a época e o local examinado - não produz notícias a partir de uma narrativa sensacionalista que “favorece” pessoas LGBT, mas ao contrário, atua no sentido de reproduzir a LGBTfobia estrutural. Estudos acadêmicos na Comunicação Social apontam a mídia como corresponsável por parcela significativa do que é difundido socialmente sobre pessoas LGBT, reforçando estereótipos negativos e processos de marginalização (CARVALHO, 2012).

Para além do GGB, outras organizações da sociedade civil procuram reunir dados de violência praticados contra grupos específicos da própria comunidade LGBT. O Núcleo de Inclusão Social (NIS), projeto vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) produziu o “Dossiê do Lesbocídio”, compilando informações de 2014 a 2017 diante da necessidade de perquirir as especificidades das violências contra mulheres lésbicas. Este documento é expressivo porque adota metodologia mais rigorosa do que aquela dos relatórios do GGB8 8 A pesquisa empírica feita no Dossiê do Lesbocídio é feita em seis etapas: busca, análise dos dados coletados, validação, catalogação, monitoramento e divulgação. , estabelecendo uma tipologia dos lesbocídios que contribui para entender as nuances deste fenômeno em particular. O grupo de trabalho responsável pela elaboração do Dossiê constatou que, de 2014 para 2017, o número de registro de mortes de lésbicas aumentou: 16, 26, 30 e 54, respectivamente (PERES; SOARES; DIAS, 2018PERES, Milena Cristina; SOARES, Susane Felippe; DIAS, Maria Clara. Dossiê sobre lesbocídio no Brasil: de 2014 até 2017. Rio de Janeiro: Livros Ilimitados, 2018. Disponível em: <https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/fontes-e-pesquisas/wp-content/uploads/sites/3/2018/04/Dossi%C3%AA-sobre-lesboc%C3%ADdio-no-Brasil.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2022.
https://dossies.agenciapatriciagalvao.or...
).

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) também organiza dossiês e relatórios contendo dados sobre violência contra pessoas trans no Brasil (travestis, homens transexuais, mulheres transexuais e transmasculinos).9 9 No Dossiê de 2019, há uma seção específica apresentando definições sobre cada uma dessas identidades, discutidas nas Conferências Nacionais LGBT. Quanto às estatísticas de homicídio da população trans, a ANTRA reuniu as seguintes informações: i) em 2017, 179 (BENEVIDES, 2017); ii) em 2018, 163 (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019); iii) em 2019, 124 (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2020); iv) em 2020, 175 (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021). Mesmo que os números tenham apresentado uma aparente estabilidade, o relatório mais recente aponta a “subnotificação cistemática”10 10 A utilização desta forma de neologismo (cistema ou invés de sistema) é explicada no dossiê: para demarcar o sufixo “cis” como algo que provém de pessoas cisgêneras ou da cisgeneridade. do assassinato de travestis e demais pessoas trans, como uma decorrência da falta de atendimento adequado das vítimas (seja nas polícias, seja nos Institutos Médicos Legais - IML’s), da qualificação da ocorrência como consta no documento civil - potencialmente divergente da identidade de gênero da vítima nos casos sem retificação do assentamento registral -, dentre outros fatores. O relatório supracitado frisa, ademais, que a taxa de homicídio de pessoas trans cresceu 41% (se comparada à de 2019) e que 78% das vítimas fatais eram negras.

Saindo do escopo de grupos específicos e adentrando em análises gerais quanto à LGBTfobia, o “Atlas da Violência” é um portal que disponibiliza informações sobre a violência no Brasil, gerido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com a colaboração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Sua edição de 2020 trouxe à tona a invisibilização da violência contra a população LGBT, sistematizando dados oriundos das denúncias registradas pelo “Disque 100”, do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e dos registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). As denúncias teriam atingido um patamar máximo em 2012, havendo estabilidade depois de 2015 e até 2018 no número de registros. A equipe que coordenou o Atlas reiterou a escassez de indicadores de violência contra pessoas LGBT, ressaltando ser imprescindível que estejam contempladas nos registros de boletins de ocorrência (IPEA, 2020). As mesmas dificuldades - quanto à captação e à publicização de dados de violência contra a população LGBT - são assinaladas pelo FBSP no Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020), sobretudo porque uma minoria das Unidades Federativas (UF’s) no Brasil produz dados sobre LGBTfobia (FBSP, 2020).

Mesmo diante de entraves relacionados às notificações e aos registros de violência LGBTfóbica, uma pesquisa inédita analisou as notificações de violência contra a população LGBT brasileira entre 2015 e 2017, verificando que metade das pessoas alvo de agressões eram negras (50%), ao passo que aquelas identificadas como brancas seriam 41,4% dos casos (PINTO, 2020PINTO, Isabella Vitral et. al. Perfil das notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Revista Brasileira de Epidemiologia [online]. 2020, v. 23. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbepid/a/YV7VvNY5WYLwx4636Hq9Z5r/?lang=pt#>. Acesso em: 28 mar. 2022.
https://www.scielo.br/j/rbepid/a/YV7VvNY...
). Este trabalho reuniu pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), das secretarias de Atenção Primária em Saúde e de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A equipe de pesquisadoras e pesquisadores coletou as notificações feitas pelo Sinan - o qual integral o SUS - incluindo diversos casos de violência que não foram denunciados. Este dado também parece reforçar a necessidade de uma abordagem interseccional da LGBTfobia, sobretudo considerando suas imbricações com o racismo.

A existência dos relatórios mencionados se justifica pela omissão do Governo Federal na produção de estatísticas oficiais sobre a violência homotransfóbica no Brasil. O último documento produzido se refere aos dados de 2016, abordando os entraves no atendimento e na investigação de crimes com motivação homofóbica (BRASIL, 2016). De qualquer forma, os documentos até então apresentados evidenciam não somente a precariedade dos dados obtidos, como também a subnotificação, fenômeno classificado como “cifra arco-íris” da criminalidade (BURKE, 2019BURKE, Anderson. Vitimologia: Manual da Vítima Penal. Salvador: Juspodivm, 2019., p. 99-100). Ou seja, crimes praticados contra a população LGBT que deixam de ser encaminhados às autoridades públicas ou não são devidamente registrados perante os órgãos policiais.11 11 Na investigação jornalística conduzida por Roldão Arruda, consta que uma das vítimas sobreviventes se cansou do tratamento discriminatório recebido na delegacia de polícia: “Depois de algumas idas e vindas à delegacia, o bibliotecário acabou desistindo do inquérito policial. Cansou-se, disse ele, de ouvir ironias e insinuações a respeito de sua vida sexual” (ARRUDA, 2001, p. 257). Tudo indica que estas práticas não mudaram substancialmente, pois o jornalista Weber Fonseca reuniu relatos das vítimas de LGBTfobia na Grande São Paulo ocorridos nos últimos quinze anos. Uma das entrevistas foi feita com um casal de homens gays agredidos em um bar localizado na Rua Augusta, em 2014, por terem trocado um beijo. Destacaram a dificuldade para registrar um boletim de ocorrência: “A sensação geral que eu tenho em relação à justiça, em relação à polícia, é que é um número. Se for um relatório de uma página é muito, sabe? Porque não importa. Não faz diferença” (FONSECA, 2015, p. 77). Em suma, mesmo diante dos empecilhos para coleta de informações sobre a violência LGBTfóbica, os relatórios e dossiês citados contêm dados que corroboram a necessária releitura da criminologia a partir da interseccionalidade.

2. A Interseccionalidade como ponto de partida

Da mesma maneira, analisar os problemas da violência de gênero, em especial, contra as pessoas LGBT’s apenas sob as lentes de uma criminologia informada somente pela teoria queer forçosamente excluiria outros discursos criminológicos críticos (marxistas, feministas, raciais, por exemplo). Em vista disso, buscamos demonstrar como ponto de partida uma análise alicerçada na interseccionalidade.

Acreditamos ser mais apropriado pensar sobre seres humanos oprimidos desde as discriminações que os atravessam, uma vez que estes sujeitos e estas sujeitas as enfrentam ao mesmo tempo e em diversas direções. Seguindo esta linha de raciocínio, o pensamento interseccional - que é anterior ao conceito de interseccionalidade e decorre da resistência histórica do feminismo negro - se mostra pertinente, considerando sua capacidade de explicar os sistemas de poder que produzem desigualdades e suas interconexões. Trata-se, portanto, de uma perspectiva teórica que ultrapassa fronteiras acadêmicas, posto que se coloca em diálogo com projetos organizados por pessoas que vivenciam a dominação (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press, 2019., p. 145-146).

É preciso reconhecer que a base da interseccionalidade reside no feminismo negro, tanto na esfera teórica quanto na esfera prática (ativista). Não assumir este alicerce pode acarretar os riscos de assumir uma leitura equivocada e superficial, acrescentando o termo de forma a apagar a raça das relações de poder (POTTER, 2015POTTER, Hillary. Intersectionality and criminology: disrupting and revolutionizing studies of crime. New York: Routledge, 2015., p. 40-41). Há, ainda, outros riscos de um uso acrítico da interseccionalidade, indicados por Potter: i) o embranquecimento (whitening ou white-washing) a partir de um uso desprendido do termo, desconsiderando a originalidade da teoria (POTTER, 2015, p. 79); ii) fazer alusão à interseccionalidade (conceito e relevância), mas abandoná-la na sequência, sem conectar a pesquisa à teoria (POTTER, 2015, p. 149). Conforme assinalado por Potter, criminólogo/a/es deveriam, ao menos, cogitar como ser branco pode influenciar nas experiências com a criminalidade e com o sistema de justiça criminal se comparadas com as experiências de indivíduos que não são brancos (POTTER, 2015, p. 150).

Embora não seja usual, é possível adotar o referencial interseccional de Collins para outros grupos vulneráveis, como o LGBT. De acordo com Winnie Bueno, em que pese a obra de Collins estar articulada a partir do ponto de vista das mulheres negras, seu objetivo consiste em recuperar a multiplicidade de vozes silenciadas (BUENO, 2020BUENO, Winnie. Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre: Zouk, 2020., p. 61). Isso significa que os marcos conceituais apresentados pela autora são aplicáveis para outras lutas emancipatórias, incluindo a população LGBT.12 12 “Os marcos conceituais apresentados pela autora, organizados a partir da perspectiva de mulheres negras, são facilmente aplicáveis para pensar outras experiências de luta por emancipação, como as que ocorrem, por exemplo, no interior do movimento LGBT e dos trabalhadores e trabalhadoras pobres brancos” (BUENO, 2020, p. 31). Não obstante a necessidade de preservar seus princípios, mantendo a centralidade na questão racial,13 13 Esta preocupação é sublinhada por Carla Akotirene: “Acredito, por identidade política, que devamos mencionar a interseccionalidade como sugestão das feministas negras e não dizer feminismo interseccional, uma vez que este escamoteia o termo negro, bem como o fato de terem sido as feministas negras proponentes da interseccionalidade enquanto metodologia, visando combater multideterminadas discriminações, pautadas inicialmente no binômio raça-gênero” (AKOTIRENE, 2018, p. 46-47). o alcance da interseccionalidade parece extrapolar a experiência de mulheres negras,14 14 Hillary Potter, por um lado, reconhece que há autoras e autores defendendo o emprego da interseccionalidade unicamente para mulheres negras, mas por outro, afirma que diversos protagonistas - a exemplo de Kimberle Crenshaw - acreditam que sua aplicação ultrapassa a experiência de mulheres negras (POTTER, 2015, p. 70). o que justifica buscarmos interrogar a compatibilidade do seu uso com o pensamento da criminologia.

A interseccionalidade aqui terá como referência orientadora o pensamento de Patricia Hill Collins, em especial na obra Intersectionality as critical social theory. Apesar da existência de feministas negras norte-americanas (a exemplo de Crenshaw) e de feministas negras brasileiras que estão diretamente vinculadas ao pensamento interseccional (Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Carla Akotirene, entre tantas outras), a escolha como ponto de partida de Collins se justifica em virtude da sistematização realizada na referida obra, assim como a proposta de pensar a interseccionalidade como teoria crítica social.

Para Collins, a interseccionalidade é uma ferramenta de mudança social que reúne ideias de perspectivas distintas, permitindo o compartilhamento de pontos de vista que originalmente são concebidos de forma apartada. É entendida pela autora como uma teoria crítica social que aponta os problemas sociais e as mudanças necessárias para resolvê-los (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press, 2019., p. 2). De modo geral, o termo “crítico” é utilizado intelectualmente para diferenciar determinada teoria das suas contrapartes “tradicionais”. Quanto à interseccionalidade, ela pode ser considerada crítica por estar situada em uma encruzilhada intelectual, onde múltiplos projetos de conhecimento se encontram, num espaço de coexistência das ciências sociais e das humanidades15 15 Quanto a este ponto, Collins explora, em seu livro, três tradições em teoria crítica social do Ocidente que potencialmente constituem fundamentos para um pensamento interseccional: a Escola de Frankfurt, os Estudos Culturais Britânicos e a Teoria Social Francesa. com o ativismo artístico, político e intelectual que atravessa as fronteiras acadêmicas (COLLINS, 2019, p. 54-55).

Nessa seara, Collins reconhece que não há consenso acerca do conceito da interseccionalidade entre seus adeptos, de tal forma que acomoda pontos de vista heterogêneos. O pensamento interseccional, enquanto um campo de investigação crítica, pode ser compreendido a partir de três usos identificados pela referida autora: metafórico, heurístico e paradigmático (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press, 2019., p. 23-24).

Como uma metáfora, a interseccionalidade nomeou um processo de comunicação contínuo para tentar entender raça em termos de gênero, ou gênero em termos de classe, fornecendo um atalho que se baseou nas sensibilidades existentes para vislumbrar as interconexões entre sistemas de poder. A metáfora mencionada por Crenshaw - eixos de poder (classe, raça, gênero, sexualidade) constituem as avenidas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos nas quais as dinâmicas de desempoderamento ocorrem (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas. Florianópolis: Centro de Filosofia e Ciências Humanas, v. 7, n. 12, p. 171-188, jan/2002.) - se tornou acessível a várias pessoas porque invocou relações espaciais tangíveis da vida cotidiana. Uma metáfora que pode ser apropriada pelas pessoas para imaginar diferentes tipos de caminhos e encruzilhadas das opressões que as atravessassem (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press, 2019., p. 26-27).

Em contraste ao uso metafórico, o uso heurístico da interseccionalidade aponta para estratégias de ação sobre como avançar na resolução de problemas sociais e como lidar com os quebra-cabeças existentes. Usar a interseccionalidade como heurística facilitou repensar instituições sociais, como trabalho, família, mídia, educação, saúde e instituições sociais fundamentais semelhantes por meio do que parecem ser abordagens heurísticas bastante diretas. Uma vantagem do pensamento heurístico diz respeito à facilidade de uso para criticar o conhecimento existente e colocar novas questões: no mundo do trabalho, por exemplo, questões simples como “isso se aplica às mulheres?” ou “por que trabalhadores homens e brancos são o foco dos estudos relacionados ao trabalho?” identificam áreas de ênfase exagerada e de déficit em relação a grupos sociais específicos (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press, 2019., p. 34-36).

A interseccionalidade é interpretada por um senso comum acadêmico e ativista como uma teoria identitária em virtude do uso heurístico, a partir do qual emergem tópicos relacionados à identidade (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press, 2019., p. 37). Winnie Bueno explica, contudo, que Collins compreende raça, gênero e classe não como categorias identitárias, mas como sistemas interligados de opressão.

A forma como Patricia Hill Collins compreende raça, classe, gênero, sexualidade, não como categorias identitárias, mas como sistemas interligados de opressão, permite reformular as análises sobre as relações sociais de dominação e resistência. A matriz de dominação localiza as estruturas de raça, classe, gênero e sexualidade a partir de como elas operam enquanto sistemas de dominação social e não a partir dos efeitos cumulativos que se manifestam na vida dos indivíduos que experenciam múltiplas vivências de opressões. O caráter interligado dos sistemas de dominação, na concepção de Patricia Hill Collins, é central na estrutural social (BUENO, 2020BUENO, Winnie. Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre: Zouk, 2020., p. 86-87).

Enquanto paradigma, a interseccionalidade contribui para pensar como relações de poder mutuamente construídas moldam os fenômenos sociais. Nas disciplinas acadêmicas, os paradigmas tradicionais abordavam desigualdades de raça e de gênero de forma distinta, como se fossem fenômenos separados e desconectados. No entanto, a interseccionalidade potencialmente representa uma mudança paradigmática na medida em que se dispõe a refletir sobre sistemas de poder intersectados e suas conexões com desigualdades sociais igualmente intersectadas (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press, 2019., p. 43). Para explicar a interseccionalidade como um paradigma e para delimitar seu conteúdo, Collins propõe um esquema dividido entre os construtos essenciais e as premissas orientadoras, conforme a tabela apresentada a seguir.

TABELA 1
IDEIAS PARADIGMÁTICAS DA INTERSECCIONALIDADE

É pertinente expor, ainda que de forma breve, o conteúdo de cada um dos construtos mencionados no esquema apresentado pela autora. Quanto à relacionalidade, Collins afirma que raça, gênero, classe e outros sistemas de poder são constituídos e mantidos mediante processos relacionais, adquirindo significado a partir da natureza dessas relações. A importância analítica da relacionalidade para a interseccionalidade demonstra como várias posições sociais (ocupadas por atores, sistemas e arranjos político-econômicos estruturais) necessariamente adquirem significado e poder (ou a falta deles) em relação a outras posições sociais (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press, 2019., p. 45-46).

As relações de poder, por sua vez, produzem divisões sociais de raça, gênero, classe, sexualidade, habilidade, idade, país de origem e cidadania que não são adequadamente compreendidas isoladas uma da outra. Desde este ponto de vista, gênero e raça não são identidades individuais; patriarcado e racismo não são sistemas de poder monolíticos. Estas opressões, de caráter estrutural, podem construir-se mutuamente, recorrendo a práticas e formas de organização semelhantes e distintas que moldam coletivamente a realidade social (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press, 2019., p. 46).

A interseccionalidade, ademais, proporcionou uma nova forma de pensar as desigualdades sociais, não como entidades separadas que são naturais ou inevitáveis, mas avaliando como as relações de poder produzem desigualdades sociais e os problemas decorrentes destas disparidades. Nesta esteira, o contexto social também se coloca como aspecto relevante, tendo em vista a forma pela qual a localização social dos indivíduos e grupos em relações de poder intersectadas moldam a produção intelectual, seja em comunidades acadêmicas ou ativistas (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press, 2019., p. 46-47).

Finalmente, as conexões entre categorias de análise indicam que um dos construtos essenciais do pensamento interseccional é a complexidade. Lidar com a interação de diferentes categorias analíticas exige a formulação de problemas e respostas mais complexas do que quando os sistemas de poder eram encarados isoladamente. Questionamentos complexos requerem estratégias de investigação igualmente complexas. Neste cenário, o construto da justiça social enseja questões éticas àquelas e àqueles que se propõem a aplicar a interseccionalidade sobretudo relacionadas à liberdade e à igualdade (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press, 2019., p. 47).

3. Interseccionalidade e vulnerabilidades

Os estudos da interseccionalidade têm sido fundamentais para reposicionar reflexões sobre vulnerabilidade. Num sentido geral, importante salientar, as identidades que formulam a possibilidade de conectar espectros de vulnerabilidades podem ser - e aqui o são - lidas como estratégias situacionais para corpos marcados pela exploração (atividade econômica, subjetiva, libidinal, psíquica, do conhecimento etc.) colonial (SPIVAK, 2009SPIVAK, Gayatri C. Outside the teaching machine. New York; Oxon: Routledge, 2009.).

Spivak sustenta que a “estratégia funciona através de uma crítica persistente (des)construtiva do teórico. ‘Estratégia’ é uma metáfora-conceitual aguerrida e, ao contrário da ‘teoria’, seus antecedentes não são desinteressados e universais” (SPIVAK, 2009SPIVAK, Gayatri C. Outside the teaching machine. New York; Oxon: Routledge, 2009., p. 18, livre tradução). A ideia de “identidade estratégica” pressupõe que não se ignorem os problemas das identidades, tampouco as assuma como pressuposto de reivindicação por direitos, mas faz-se indispensável, para autora, quando se parte da subalternidade, inclusive, atravessada pelos próprios limites do reconhecimento.

Os limites do reconhecimento se estabelecem na apropriação totalizadora das identidades. Contudo, a interpelação de identidades pode ser ouvida “como afirmação ou insulto, dependendo do contexto em que ocorre (e contexto, aqui, é a historicidade e a espacialidade [...]).” Assim, “o que está em jogo é se a totalização temporária realizada” pelo nome [identidade] é “politicamente facilitadora ou paralisante”, ou se a violência da “redução totalizadora da identidade realizada é politicamente estratégica ou regressiva ou, se paralisante e regressiva” (BUTLER, 2017BUTLER, Judith; ATHANASIOU, Athena. Desposesión: lo performativo en lo político. Buenos Aires: Cadencia Editora, 2017., p. 103). Essa possibilidade de entender “identidades estratégicas” como “categoria social” (BUTLER, 2017, p. 103) é o que coloca em questão a diferença entre o “chamado por reconhecimento dos oprimidos com o objetivo de superar a opressão e o chamado por reconhecimento da identidade que se define por sua ferida, pelo dano recebido” (BUTLER, 2017, p. 110, livre tradução).

De acordo com Butler, inscrever a “ferida” no interior da identidade a transforma em um “pressuposto de auto-representação política”, o que exige um monopólio da dor como mecanismo de identificação. No entanto, quando a ênfase do problema se estabelece na opressão, a “categoria de identidade se converte em algo histórico” e isso implica fazer com que a “política se concentre menos na proclamação e exibição da identidade que na luta para superar as condições sociais e econômicas da opressão muito mais amplas” (BUTLER, 2017BUTLER, Judith; ATHANASIOU, Athena. Desposesión: lo performativo en lo político. Buenos Aires: Cadencia Editora, 2017., p. 110, livre tradução).

Parece importante pensar que, para compreender a interseccionalidade, a qual pode exigir a reivindicação de uma identidade temporária e situacional para corroborar uma posição de vulnerabilidade, é necessário revelar momentaneamente como o foco da incidência de violência marca, mas não define, sujeitos ou grupos em contextos específicos chamados de “situações históricas contingentes”. Essa ideia pode se conectar ao que Butler chama de “fundamentos contingentes” (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Resistencia: repensar la vulnerabilidad y repetición. México: Paradiso Editores, 2018., p. 61-92), hipótese que consiste em dizer que, de acordo com a situação histórica que se coloca no espectro das dinâmicas reais, identidades diversas podem ser assumidas para conectar experiências de vulnerabilidade enquanto uma posição localizada de coligações16 16 A ideia de coligações possíveis através dos “fundamentos contingentes” é extraída da análise de Carla Rodrigues sobre a conexão da “condição de precariedade de todo sujeito, [...] da filosofia de Judith Butler, e a condição de subalternidade pensada principalmente por Gayatri Spivak”. Para a autora, a possibilidade de relacionar os dois conceitos como compartilhamento de luta, através dos fundamentos contingentes entre precariedade e subalternidade, permite a promoção de “coligações entre todos e todas que precisem lutar contra as mais diversas formas de violência de Estado”. Por fundamentos contingentes, Carla Rodrigues entende questões contingenciais, situacionais, que tem por fundamento uma reivindicação plural de estratégias políticas sem que a identidade seja o centro reivindicativo das experiências compartilhadas. Nesse sentido, a autora afirma que “a construção de coligações [...] com aqueles cujo reconhecimento da própria precariedade me permite traçar laços, vínculos, alianças, afetos - aqui no sentido mais estrito do termo, afeto como aquilo que me toca, afecção e afetação dos efeitos do outro em mim. Afetos também são contingentes, circunstanciais, impermanentes, são indicações de que fundamentos contingentes são precários, e para ser construídos no espaço político não partem de um a priori, por mais bem intencionados que sejam, como emancipar as mulheres, acabar com a homofobia, dar um fim ao feminicídio etc.” (RODRIGUES, 2017). em resistência, sem, contudo, que as identidades se tornem propriamente o centro da possibilidade de se lutar em conjunto.

No caso da relação história brasileira, mulheres, LGBT’s e negro/as, a imbricação de precariedade que engendra a própria concepção histórica do Brasil é mais longa, permanente e profunda do que se costuma identificar. Nesse sentido, a “interseccionalidade enquanto um marco teórico crítico, enquanto uma ferramenta analítica para analisar identidades, enquanto contribuição teórica e enquanto paradigma de conhecimento” parece ser mais do que um reforço às exigências de identidades, e sim um “conjunto de ideias e práticas que sustentam que gênero, raça, classe, sexualidade, idade, etnia, status de cidadania e outros marcadores não podem ser compreendidos de forma isolada”, conforme afirma Winnie Bueno (BUENO, 2019). A trajetória político-analítica da interseccionalidade, como acima mencionado, deve ser lida como um contributo histórico já anterior à formulação do “conceito”, em que as perspectivas do feminismo negro, desde sua tradição, propõem olhares de “interconexão entre os sistemas de opressão” (COLLINS, 2000COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. 2ª ed. Nova Iorque; Londres: Routledge. 2000., p. 18), compreendendo opressão como “qualquer situação injusta onde, sistematicamente e por um longo período de tempo, um grupo nega a outro grupo o acesso aos recursos da sociedade” (COLLINS, 2000, p. 4).

Sobre o assunto, Angela Davis afirma que o “feminismo negro surgiu como uma iniciativa teórica e prática que demonstrava que raça, classe e gênero eram inseparáveis nos mundos sociais que habitamos” e que para além de sobreposição de identidades, ou como se “entrelaçam” essas categorias, o pressuposto da interseccionalidade está em “compreender as interrelações entre as ideias e os processos que parecem que estão separados e não relacionados” (DAVIS, 2017, p. 19).

Assim, o passo adiante em que insiste a interseccionalidade através das análises feministas (aqui atribuídas também às variações de gênero e sexualidade) é não tanto o seu foco na formulação de categorias identitárias, as quais podem estabelecer hierarquias de vulnerabilidade - e nesse sentido “ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras” (DAVIS, 2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 13), mas, em especial, como pressuposto político-social, em que o desafio que se tem diante das intenções de construir solidariedades internacionais e vínculos transfronteiriços está não tanto na interseccionalidade das identidades, senão na interseccionalidade das lutas (DAVIS, 2017a, p. 143). Conforme defende bell hooks, é crucial para o movimento feminista ter como objetivo primordial acabar com todas as formas de violência, o que implica insistir que a “luta feminista contra a violência contra as mulheres é indispensável entendida como parte de um movimento mais amplo que busca acabar com a violência” (HOOKS, 2000HOOKS, bell. Feminist Theory: from margin to center. Cambridge: South and Press, 2000., p. 88), num sentido geral.

A ideia de que as lutas por justiça social atravessam invariavelmente um compartilhamento de vulnerabilidade, cuja perspectiva da interseccionalidade se estabelece como nó central, pressupõe ter em vista que essa esfera de projeto teórico-político-social toma como direção o princípio de que entre seus objetivos está a responsabilidade de “governar todas as lutas autênticas das pessoas despossuídas” (DAVIS, 2017bDAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. São Paulo: Boitempo, 2017b., p. 17).

Isso implica levar em conta que as preocupações sobre gênero, raça, sexualidade, nacionalidade, capacidade [e assim por diante] devem estar interrelacionadas com questões que inúmeras vezes são alijadas do contexto de análise sobre “gênero”, como “empregos, condições de trabalho, salários mais altos e violência racista; fechamento de fábricas e com a falta de moradia e com a legislação migratória repressiva; com a homofobia, o idadismo e a discriminação contra pessoas com deficiências físicas” (DAVIS, 2017bDAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. São Paulo: Boitempo, 2017b., p. 17). Assim como, “aborto, creches e esterilizações forçadas” (DAVIS, 2017b, p. 18-19), que geralmente pressupõem reflexões vinculadas às lutas feministas, necessitam ser pensados em conjunto desde as reivindicações antirracistas para compreensão alargada sobre como tais situações de violências se conectam à ausência de serviços públicos, precarização dos serviços de saúde e educação. Ou seja, do conjunto material mínimo para possibilidade de “bem viver”.17 17 “Bem viver” é uma expressão largamente defendida pelos povos indígenas da América Latina, cujo pressuposto não está na mera condição de vida, mas como a possibilidade da vida conectada à terra, à água, à natureza, à expressão espiritual, à ancestralidade, à coletividade e à própria viabilidade da perpetuação da vida é a condição possível de se viver. “Bem viver” é uma representação da cosmovisão dos povos originários, que expressa que a experiência da vida só é possível através da vida compartilhada entre animais - humanos e não humanos - e ecossistema. Inclusive, essa expressão tem sido central nos movimentos feministas indígenas em todo continente americano (LARREA, 2010, p. 15-27).

Assim, significa que

[n]ão podemos falar de um corpo sem saber o que sustenta esse corpo e qual pode ser sua relação com esse apoio (ou sua falta). Dessa forma, o corpo é menos uma entidade do que uma relação e não pode ser plenamente dissociado das condições de infraestrutura e das condições ambientais de sua existência. Assim, a dependência de seres humanos e outras criaturas em relação ao suporte infraestrutural expõe uma vulnerabilidade específica que temos quando nos falta apoio, quando essas condições de infraestrutura começam a se decompor, ou quando estamos radicalmente desprovidos de apoio em condições de precariedade. (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Resistencia: repensar la vulnerabilidad y repetición. México: Paradiso Editores, 2018., p. 8, tradução livre)

Nesse sentido, Patricia Hill Collins destaca que as “mulheres negras e outros grupos historicamente oprimidos visam encontrar maneiras de escapar, sobreviver e/ou se opor à injustiça social e econômica prevalecente”, e que é através dessa estratégia de resistência que o “pensamento social e político afro-americano analisa o racismo institucionalizado, não para ajudá-lo a trabalhar com mais eficiência, mas para resistir a ele”. Da mesma forma, o “feminismo defende a emancipação e o empoderamento das mulheres, o pensamento social marxista visa uma sociedade mais equitativa, enquanto a teoria queer se opõe ao heterossexismo” (COLLINS, 2000COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. 2ª ed. Nova Iorque; Londres: Routledge. 2000., p. 9).

Essas contaminações são percursos de enfrentamentos “objetivos” se as categorias forem analisadas individualmente. Todavia, a produção do esforço da “intersecção radical” (RODRIGUES, 2017RODRIGUES, Carla. Contra a tolerância. PISEAGRAMA. Belo Horizonte, número 11, p. 12-19, 2017., p. 65) está em “entender novas formas de injustiça”, o que indica que “as teorias sociais expressas por mulheres que emergem” de grupos diversos “não surgem da atmosfera rarefeita de suas imaginações. Em vez disso, as teorias sociais refletem os esforços das mulheres para chegar a um acordo com experiências vividas dentro de opressões cruzadas de raça, classe, gênero, sexualidade, etnia, nação e religião” (COLLINS, 2000COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. 2ª ed. Nova Iorque; Londres: Routledge. 2000., p. 9).

Portanto, desde a identidade do “pensamento feminista negro” - e não da categoria subjetiva da identidade coletiva -, percebe-se que os moldes da produção dessa produção de conhecimento, ou dessa modalidade de “pensamento”, está posto “como uma teoria social ‘crítica’”, cujo compromisso se estabelece com a justiça, “tanto para as mulheres negras americanas como coletividade quanto para outros grupos igualmente oprimidos” (COLLINS, 2000COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. 2ª ed. Nova Iorque; Londres: Routledge. 2000., p. 9). Na mesma medida em que “a luta contra a injustiça est[e]v[e] no coração das experiências das mulheres negras americanas” [...], “a análise e a criação de respostas imaginativas à injustiça caracterizam o cerne do pensamento feminista negro” (COLLINS, 2000, p. 12) e seu atravessamento no tocante as reflexões sobre vulnerabilidade.

4. Apontamentos finais: a criminologia a serviço de quem?

Sem pretensão de reduzir a consistência da proposta de Collins, aplicamos a interseccionalidade em sua dimensão paradigmática, pois nos interessa pensar como a violência contra as pessoas LGBT e as respostas estatais a esse problema social, nos discursos criminológicos críticos, são usualmente tratados de forma dissociada, sem explorar as conexões e as divergências entre perspectivas criminológicas questionadoras do poder punitivo e a incidência de vulnerabilidade. Além disso, os dados empíricos abordados previamente corroboram a necessidade de pensar a LGBTfobia intersectada com os demais sistemas de poder, dinâmica a partir da qual os processos de exposição à violência, notadamente marcados pela criminalização e vitimização, dos indivíduos pertencentes a este grupo podem ser aprofundados. Por fim, alguns dos construtos essenciais do pensamento interseccional (a exemplo da relacionalidade, das relações de poder e da desigualdade social) deixam em aberto possibilidades de uma mudança paradigmática no pensamento criminológico crítico, o qual, ao menos no tocante à criminologia brasileira, parece ter se habituado a trabalhar com marcadores sociais da diferença em um viés genérico ou isolacionista, restrita a cada nicho de pesquisa.

Collins, como foi exposto, insere a interseccionalidade nos trilhos de uma teoria crítica da sociedade. Hillary Potter, por seu turno, se vale do arcabouço interseccional e o incorpora à criminologia, sobretudo: i) na avaliação do crime ou de políticas e leis relacionadas ao crime; e ii) na administração governamental da justiça (POTTER, 2015POTTER, Hillary. Intersectionality and criminology: disrupting and revolutionizing studies of crime. New York: Routledge, 2015., p. 3). Potter investe em abordagens criminológicas interseccionais tanto empiricamente como teoricamente, demonstrando como outras perspectivas consolidadas e renomadas em criminologia (o que a autora chama de “criminologia ortodoxa”)18 18 Em seu livro, Potter se debruça sobre duas correntes criminológicas estadunidenses consolidadas (que classifica como ortodoxas), as quais não consideram as identidades socialmente construídas dos indivíduos que estão no objeto de estudo das pesquisas: i) a teoria do autocontrole (self-control theory), de Gottfredson e Hirschi, preocupada com a influência das práticas de educação infantil e a tendência de algumas crianças, posteriormente, se envolverem em condutas criminosas ou desviantes devido ao baixo autocontrole desenvolvido na infância; ii) a perspectiva do curso de vida (lifecourse perspective), representada principalmente por Laub e Sampson, voltada à compreensão dos processos subjacentes à continuidade (persistência) e mudança (desistência) no comportamento criminoso ao longo da vida (POTTER, 2015, p. 85-112). desconsideram relações de poder e marcadores sociais da diferença (POTTER, 2015, p. 36-37).19 19 Importante salientar que Potter, ao se referir à “criminologia ortodoxa”, está endereçando a uma vasta gama de criminologias (sejam de viés justificador do status quo, sejam de viés transformador desse status). A autora rechaça o uso do termo criminologia mainstream, pois esta linguagem demarcaria uma marginalidade da criminologia interseccional, o que serviria para promover e legitimar a criminologia dominante, em detrimento daquelas que questionam nomes e teorias reconhecidas como cientificamente corretas. Para Potter, o campo criminológico, em particular, frequentemete e por muito tempo ignorou ou desprezou a importância de identidades construídas socialmente e como elas afetam ou são afetadas pelo crime e pelos processos de criminalização e vitimização perante o sistema de justiça criminal.20 20 Para ilustrar esta constatação, Potter conta a história da criminóloga feminista Kathleen Daly que, numa conferência da Sociedade Americana de Criminologia, em 1991, perguntou aos presidentes da associação (Ronald Akers, Travis Hirschi e C. Ray Jeffery se as pessoas que eles consideravam em suas pesquisas sobre crime tinha uma determinada raça, gênero ou condição socioeconômica. Hirschi a respondeu no sentido de que sua imagem de um infrator seria alguém sem estas identidades (The offender is everyone - they have no qualities of class, race or gender). O moderador do painel sugeriu que a sessão fosse encerrada (POTTER, 2015, p. 82). Por isso, ao invés de manter o pensamento interseccional exclusivamente vinculado à experiência das mulheres negras, Potter defende sua expansão analítica para as experiências de outros grupos vulneráveis, desde que se reconheçam os contínuos desafios enfrentados pelas mulheres negras em sua resistência cotidiana (POTTER, 2015, p. 80).

A criminóloga, ademais, considera desconcertante o fato de muitos criminólogos ainda não considerarem que prisões e outros procedimentos criminais podem diferir de acordo com marcadores de raça e gênero, devido às expressões próprias da realidade destas identidades. Apesar desta tendência, Potter identifica esforços de pesquisadoras e pesquisadores norte-americanos na condução de pesquisas criminológicas que incorporem a abordagem interseccional, precipuamente nos estudos feministas (POTTER, 2015POTTER, Hillary. Intersectionality and criminology: disrupting and revolutionizing studies of crime. New York: Routledge, 2015., p. 116). Neste contexto, a autora destaca a necessidade de desenvolver estudos sobre as questões criminais que tangenciam a população LGBT, ao afirmar:

A pesquisa criminológica interseccional conduzida com outros sexos ou gêneros também está se multiplicando. Há um crescente corpo de pesquisas sobre homens e meninos que fornece uma análise interseccional, a maioria das quais incorpora o papel da masculinidade no exame teórico. E embora a pesquisa criminológica em geral esteja severamente atrasada, os estudos interseccionais sobre as experiências relacionadas ao crime de transgêneros de indivíduos queer também estão apresentando crescimento. (POTTER, 2015POTTER, Hillary. Intersectionality and criminology: disrupting and revolutionizing studies of crime. New York: Routledge, 2015., p. 117, livre tradução)

As teorizações de Collins e Potter são fundamentais para pensar como a questões pertinentes à violência LGBTfóbica e às discussões de gênero, de modo geral, devem ser pensadas não como uma “questão LGBT” estrita, mas enquanto um sistema de poder que se intersecta com os demais, criando níveis distintos de opressão dentro da própria comunidade (atingida pelo racismo, pelo capitalismo e pelo cisheteropatriarcado de formas distintas). Neste sentido, é fundamental que se aprofundem os sentidos críticos inaugurados pela criminologia crítica desde uma mirada interseccional, especialmente quando se trata de um grupo plural e heterogêneo (LGBT) atravessado por diversos sistemas de poder, os quais produzem e reproduzem discriminações que hierarquizam indivíduos, dentro e fora da comunidade LGBT.

No Brasil, mais uma vez importante lembrar, os esforços que têm sido realizados para capilarizar um pensamento criminológico tocado pela radicalidade crítica da mirada interseccional está sendo produzido pelos estudos da criminologia que toma como ponto de partida os debates sobre raça e sobre os impactos do racismo na exposição desigual à violência.21 21 Perspectiva que no campo da criminologia crítica brasileira tem como expoente a obra de Ana Flauzina (FLAUZINA,2008). Dessa forma, é categórico afirmar que, no âmbito da produção nacional, as pesquisas que estão consistentemente articuladas à interseccionalidade ou à pluralidade de afetação com a qual se permeiam as diversas nuances das vulnerabilidades estão sendo realizadas já há bastante tempo. No entanto, o que buscamos reforçar na presente escrita consiste em deslocar a interseccionalidade como estratégia para compreender os problemas implicados nas demais “análises situadas” da violência.

Nesta perspectiva, o papel da academia e, consequentemente, dos juristas e criminólogos de vieses críticos consiste em somar esforços aos movimentos LGBT para a construção coletiva de projetos e propostas, sejam elas reformistas ou transformadoras, mas efetivamente comprometidas com a realidade deste grupo. A interseccionalidade, enquanto teoria crítica da sociedade, se mostra como ferramenta teórico-política útil para aprofundar e radicalizar os sentidos críticos em criminologia, proporcionando uma virada paradigmática a partir da qual a operacionalidade do poder punitivo passa a ser compreendida para além de uma perspectiva estritamente classista dos processos de criminalização, mas desde o atravessamento de sistemas de poder, que produzem e reproduzem violências estruturais.

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  • WENDT, Valquiria P. Cirolini. (Não) criminalização da homofobia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.
  • ZAFFARONI, Eugenio Raul. Criminología: aproximación desde un margen. Bogotá: Editorial Temis S.A, 1988.
  • 1
    Quando neste artigo utilizamos o termo “criminologia crítica brasileira”, nos referimos às gerações de autores e autoras que recepcionou e traduziu o pensamento criminológico crítico no Brasil, em especial oriundo da obra de pensadores europeus (BARATTA, 2002BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002.) e latino-americanos (ZAFFARONI, 1988ZAFFARONI, Eugenio Raul. Criminología: aproximación desde un margen. Bogotá: Editorial Temis S.A, 1988.; ANIYAR DE CASTRO, 2005ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Trad. Sylvia Moretzsohn. Rio de Janeiro: Revan, 2005.), desde uma mirada estruturalista e marxista, a exemplo de Juarez Cirino dos Santos (CIRINO DOS SANTOS, 2006CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. 2. ed. Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2006.), Vera Malaguti Batista (BATISTA, 2011BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.) e Vera Andrade (ANDRADE, 2012ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012.). Pertinente conferir, ademais, o trabalho de Paula Gonçalves Alves, que investigou as narrativas sobre criminologia crítica brasileira a partir da técnica “bola de neve” (snowball), com entrevistas semidirecionadas feitas com pesquisadores referenciados deste campo teórico (ALVES, 2016ALVES, Paula Pereira Gonçalves. Trocando em miúdos: narrativas brasileiras em torno da criminologia. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Franca, 2016, p. 139-140.).
  • 2
    Optamos pelos termos “comunidade LGBT” e “LGBTfobia”, este como conceito guarda-chuva (e seu sinônimo, homotransfobia, utilizado no julgamento da ADO 26 e do MI 4733), considerando que se tornou hegemônico tanto na literatura brasileira quanto no ativismo, conforme definido na 3ª Conferência Nacional LGBT ocorrida em 2016. Não ignoramos as insuficiências dos referidos conceitos, que podem incidir em reducionismos, tendo em vista que: i) o prefixo LGBT pode reforçar a ideia de homogeneidade entre as violências sofridas pelos sujeitos que se inserem nas letras elencadas, quando um olhar interseccional (defendido nesta tese) indica o oposto, ou seja, as diferenças das violências dentro do próprio grupo, resultantes do entrecruzamento dos marcadores sociais da diferença, atingindo de forma muito mais intensa as travestis e as pessoas transgênero; ii) o sufixo “fobia” aponta para medo, pânico e aversão por questões subjetivas, psíquicas e individuais, ou seja, psicopatologizando o “sujeito homo/transfóbico” ignorando a dimensão sociocultural (e portanto, estrutural) desse tipo de violência, decorrente dos processos constitutivos de sociedades patriarcais e heteronormativas (PEIXOTO, 2018/2019, p. 7-23). Reconhecemos, ainda, que a menção de uma “comunidade LGBT” pode representar silenciamento de outras minorias sexuais, a exemplo de grupos de pessoas intersexo, assexuais e queer, compondo a recente sigla LGBTQIA+. Entretanto, para fins de padronização do texto, nos vinculamos aos termos utilizados na 3ª Conferência Nacional, embora reconheçamos que sua utilização pode ser considerada datada e que existam limitações relacionadas a outros grupos com orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas que não se sintam representados pela sigla empregada (LGBT).
  • 3
    O conceito de interseccionalidade foi apresentado por Kimberle Crenshaw, em 1989CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum, 1989, p. 139-167. (CRENSHAW, 1989CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum, 1989, p. 139-167.) Kimberle. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum, 1989, p. 139-167.
  • 4
    Collins nos adverte sobre a repetição acrítica da “narrativa da criação” (coining narrative) da interseccionalidade. Esta forma de contar a história da interseccionalidade (como um “surgimento” a partir de um indivíduo) reforçaria narrativas ocidentais coloniais e capitalistas, em suas relações de descoberta e exploração. Ao invés de pensar Crenshaw como aquela que “descobriu” a interseccionalidade trazendo-a para a academia, Collins oferece uma narrativa alternativa da interseccionalidade, alinhada às tradições críticas de “projetos de conhecimento de resistência” (resistance knowledge project). Neste viés, a produção de Crenshaw se constituiria menos como um ponto de origem da interseccionalidade e mais como um ponto de inflexão que realça a mudança de relações entre ativistas e academia em condições de decolonização e neoliberalismo. Os trabalhos de Crenshaw foram publicados em uma conjuntura específica na qual grupos subordinados não apenas desafiaram não apenas os arranjos de poder acadêmicos que os excluíram da literatura, da educação e do trabalho, como também a autoridade epistemológica de argumentos acadêmicos que por muito tempo dominaram as explicações sobre as experiências dos referidos grupos (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Intersectionality as critical social theory. Durham: Duke University Press, 2019., p. 123-124).
  • 5
    Disponível em: <https://grupogaydabahia.com/>. Acesso em: 28 mar. 2022.
  • 6
    Estes relatórios têm sido produzidos desde a fundação do GGB, sendo que alguns deles foram publicados em formatos físicos (livro). Neste sentido, os livros publicados por Luiz Mott (MOTT, 2000MOTT, Luiz. Violação dos direitos humanos e assassinato de homossexuais no Brasil - 1999. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2000.) e em conjunto com Marcelo Cerqueira (MOTT; CERQUEIRA, 2001).
  • 7
    O jornalista Roldão Arruda investigou assassinatos de homossexuais ocorridos na década de oitenta na cidade de São Paulo, contexto no qual a Polícia Civil apostou na existência de um serial killer, o garoto de programa Fortunato Botton Neto, posteriormente julgado e condenado por uma parcela dos crimes ocorridos. A própria investigação conduzida à época revela como os órgãos policiais e os meios de comunicação eram guiados por uma série de preconceitos aos homossexuais. Neste sentido: “O fato de Gilson morar num bairro de classe média e trabalhar como gerente numa conhecida multinacional despertou a atenção da imprensa, que noticiou o crime com destaque. Os jornais até reproduziram fotos do edifício, no Paraíso, procurando destacar que se tratava de condomínio de pessoas de classe média e referindo-se à vítima como economista, executivo e gerente. Ninguém mencionou a palavra homossexual” (ARRUDA, 2001ARRUDA, Roldão. Dias de ira: uma história verídica de assassinatos autorizados. São Paulo: Globo, 2001., p. 203-204). A pesquisa de Arruda é sintomática do modo como a mídia - ao menos, de acordo com a época e o local examinado - não produz notícias a partir de uma narrativa sensacionalista que “favorece” pessoas LGBT, mas ao contrário, atua no sentido de reproduzir a LGBTfobia estrutural. Estudos acadêmicos na Comunicação Social apontam a mídia como corresponsável por parcela significativa do que é difundido socialmente sobre pessoas LGBT, reforçando estereótipos negativos e processos de marginalização (CARVALHO, 2012CARVALHO, Carlos Alberto de. Jornalismo, homofobia e relações de gênero. Curitiba: Appris, 2012.).
  • 8
    A pesquisa empírica feita no Dossiê do Lesbocídio é feita em seis etapas: busca, análise dos dados coletados, validação, catalogação, monitoramento e divulgação.
  • 9
    No Dossiê de 2019, há uma seção específica apresentando definições sobre cada uma dessas identidades, discutidas nas Conferências Nacionais LGBT.
  • 10
    A utilização desta forma de neologismo (cistema ou invés de sistema) é explicada no dossiê: para demarcar o sufixo “cis” como algo que provém de pessoas cisgêneras ou da cisgeneridade.
  • 11
    Na investigação jornalística conduzida por Roldão Arruda, consta que uma das vítimas sobreviventes se cansou do tratamento discriminatório recebido na delegacia de polícia: “Depois de algumas idas e vindas à delegacia, o bibliotecário acabou desistindo do inquérito policial. Cansou-se, disse ele, de ouvir ironias e insinuações a respeito de sua vida sexual” (ARRUDA, 2001ARRUDA, Roldão. Dias de ira: uma história verídica de assassinatos autorizados. São Paulo: Globo, 2001., p. 257). Tudo indica que estas práticas não mudaram substancialmente, pois o jornalista Weber Fonseca reuniu relatos das vítimas de LGBTfobia na Grande São Paulo ocorridos nos últimos quinze anos. Uma das entrevistas foi feita com um casal de homens gays agredidos em um bar localizado na Rua Augusta, em 2014, por terem trocado um beijo. Destacaram a dificuldade para registrar um boletim de ocorrência: “A sensação geral que eu tenho em relação à justiça, em relação à polícia, é que é um número. Se for um relatório de uma página é muito, sabe? Porque não importa. Não faz diferença” (FONSECA, 2015FONSECA, Weber. Lgbtfobia: casos de violência por discriminação de gêneros, identidades e orientações sexuais na Grande São Paulo. São Bernardo do Campo: Lamparina Luminosa, 2015., p. 77).
  • 12
    “Os marcos conceituais apresentados pela autora, organizados a partir da perspectiva de mulheres negras, são facilmente aplicáveis para pensar outras experiências de luta por emancipação, como as que ocorrem, por exemplo, no interior do movimento LGBT e dos trabalhadores e trabalhadoras pobres brancos” (BUENO, 2020BUENO, Winnie. Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre: Zouk, 2020., p. 31).
  • 13
    Esta preocupação é sublinhada por Carla Akotirene: “Acredito, por identidade política, que devamos mencionar a interseccionalidade como sugestão das feministas negras e não dizer feminismo interseccional, uma vez que este escamoteia o termo negro, bem como o fato de terem sido as feministas negras proponentes da interseccionalidade enquanto metodologia, visando combater multideterminadas discriminações, pautadas inicialmente no binômio raça-gênero” (AKOTIRENE, 2018AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018., p. 46-47).
  • 14
    Hillary Potter, por um lado, reconhece que há autoras e autores defendendo o emprego da interseccionalidade unicamente para mulheres negras, mas por outro, afirma que diversos protagonistas - a exemplo de Kimberle Crenshaw - acreditam que sua aplicação ultrapassa a experiência de mulheres negras (POTTER, 2015POTTER, Hillary. Intersectionality and criminology: disrupting and revolutionizing studies of crime. New York: Routledge, 2015., p. 70).
  • 15
    Quanto a este ponto, Collins explora, em seu livro, três tradições em teoria crítica social do Ocidente que potencialmente constituem fundamentos para um pensamento interseccional: a Escola de Frankfurt, os Estudos Culturais Britânicos e a Teoria Social Francesa.
  • 16
    A ideia de coligações possíveis através dos “fundamentos contingentes” é extraída da análise de Carla Rodrigues sobre a conexão da “condição de precariedade de todo sujeito, [...] da filosofia de Judith Butler, e a condição de subalternidade pensada principalmente por Gayatri Spivak”. Para a autora, a possibilidade de relacionar os dois conceitos como compartilhamento de luta, através dos fundamentos contingentes entre precariedade e subalternidade, permite a promoção de “coligações entre todos e todas que precisem lutar contra as mais diversas formas de violência de Estado”. Por fundamentos contingentes, Carla Rodrigues entende questões contingenciais, situacionais, que tem por fundamento uma reivindicação plural de estratégias políticas sem que a identidade seja o centro reivindicativo das experiências compartilhadas. Nesse sentido, a autora afirma que “a construção de coligações [...] com aqueles cujo reconhecimento da própria precariedade me permite traçar laços, vínculos, alianças, afetos - aqui no sentido mais estrito do termo, afeto como aquilo que me toca, afecção e afetação dos efeitos do outro em mim. Afetos também são contingentes, circunstanciais, impermanentes, são indicações de que fundamentos contingentes são precários, e para ser construídos no espaço político não partem de um a priori, por mais bem intencionados que sejam, como emancipar as mulheres, acabar com a homofobia, dar um fim ao feminicídio etc.” (RODRIGUES, 2017RODRIGUES, Carla. Contra a tolerância. PISEAGRAMA. Belo Horizonte, número 11, p. 12-19, 2017.).
  • 17
    “Bem viver” é uma expressão largamente defendida pelos povos indígenas da América Latina, cujo pressuposto não está na mera condição de vida, mas como a possibilidade da vida conectada à terra, à água, à natureza, à expressão espiritual, à ancestralidade, à coletividade e à própria viabilidade da perpetuação da vida é a condição possível de se viver. “Bem viver” é uma representação da cosmovisão dos povos originários, que expressa que a experiência da vida só é possível através da vida compartilhada entre animais - humanos e não humanos - e ecossistema. Inclusive, essa expressão tem sido central nos movimentos feministas indígenas em todo continente americano (LARREA, 2010LARREA, Ana Maria. La disputa de sentidos por el Buen Vivir como proceso contrahegemónico. In: Los nuevos retos de América Latina: Socialismo y Sumak Kawsay. Secretaría Nacional de Planificación y Desarrollo (Senplades): Quito, 2010., p. 15-27).
  • 18
    Em seu livro, Potter se debruça sobre duas correntes criminológicas estadunidenses consolidadas (que classifica como ortodoxas), as quais não consideram as identidades socialmente construídas dos indivíduos que estão no objeto de estudo das pesquisas: i) a teoria do autocontrole (self-control theory), de Gottfredson e Hirschi, preocupada com a influência das práticas de educação infantil e a tendência de algumas crianças, posteriormente, se envolverem em condutas criminosas ou desviantes devido ao baixo autocontrole desenvolvido na infância; ii) a perspectiva do curso de vida (lifecourse perspective), representada principalmente por Laub e Sampson, voltada à compreensão dos processos subjacentes à continuidade (persistência) e mudança (desistência) no comportamento criminoso ao longo da vida (POTTER, 2015POTTER, Hillary. Intersectionality and criminology: disrupting and revolutionizing studies of crime. New York: Routledge, 2015., p. 85-112).
  • 19
    Importante salientar que Potter, ao se referir à “criminologia ortodoxa”, está endereçando a uma vasta gama de criminologias (sejam de viés justificador do status quo, sejam de viés transformador desse status). A autora rechaça o uso do termo criminologia mainstream, pois esta linguagem demarcaria uma marginalidade da criminologia interseccional, o que serviria para promover e legitimar a criminologia dominante, em detrimento daquelas que questionam nomes e teorias reconhecidas como cientificamente corretas.
  • 20
    Para ilustrar esta constatação, Potter conta a história da criminóloga feminista Kathleen Daly que, numa conferência da Sociedade Americana de Criminologia, em 1991, perguntou aos presidentes da associação (Ronald Akers, Travis Hirschi e C. Ray Jeffery se as pessoas que eles consideravam em suas pesquisas sobre crime tinha uma determinada raça, gênero ou condição socioeconômica. Hirschi a respondeu no sentido de que sua imagem de um infrator seria alguém sem estas identidades (The offender is everyone - they have no qualities of class, race or gender). O moderador do painel sugeriu que a sessão fosse encerrada (POTTER, 2015POTTER, Hillary. Intersectionality and criminology: disrupting and revolutionizing studies of crime. New York: Routledge, 2015., p. 82).
  • 21
    Perspectiva que no campo da criminologia crítica brasileira tem como expoente a obra de Ana Flauzina (FLAUZINA,2008FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2024

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2022
  • Aceito
    25 Fev 2023
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