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Sem isolamento: etnografia de pessoas em situação de rua na pandemia de COVID-19

RESUMO

Objetivo:

analisar o viver de pessoas em situação de rua, em tempos de pandemia da COVID-19, no município do Rio de Janeiro.

Método:

pesquisa etnográfica, com utilização de entrevistas e observações e matérias veiculadas em jornais e revistas de grande circulação, com uso de análise de domínio.

Resultados:

os resultados narram como a pandemia de COVID-19 surgiu para a população em situação de rua. O isolamento provocou o esvaziamento das ruas e a redução de transeuntes, prejudicando seus modos de viver e suas táticas de sobrevivência. A fome, a sede, a ausência de locais para o banho e para realização de necessidades fisiológicas passaram a fazer parte do seu cotidiano.

Considerações finais:

diante da impossibilidade de isolamento, da aquisição de alimentos e água e das limitações em realizar medidas preventivas, as ações de cuidado oferecidas pelos gestores para limitar a disseminação do vírus, ainda nessa população, são pouco eficazes.

Descritores:
Pessoas em Situação de Rua; Pandemia; Antropologia Cultural; Saúde Pública; Infecções por Coronavírus

ABSTRACT

Objective:

to analyze how homeless people live, in times of COVID-19 pandemic, in the city of Rio de Janeiro.

Method:

an ethnographic research that used interviews and observations and articles published in newspapers and magazines of great circulation, using domain analysis.

Results:

the results tell how the COVID-19 pandemic emerged for the homeless population. Isolation led to emptying the streets and reducing passers-by, damaging their ways of living and their survival tactics. Hunger, thirst, absence of places for bathing and for fulfilling physiological needs became part of their daily lives.

Final considerations:

given the impossibility of having a place to shelter, acquiring food and water and the limitations in carrying out preventive measures, care actions offered by managers to limit the virus to spread, even in this population, are ineffective.

Descriptors:
Homeless Persons; Pandemics; Cultural Anthropology; Public Health; Coronavirus Infections

RESUMEN

Objetivo:

analizar la vida de las personas que vivenen la calle, em tiempos de la pandemia COVID-19, em la ciudad de Río de Janeiro.

Método:

investigación etnográfica, utilizando entrevistas y observaciones y artículos publicados en periódicos y revistas de amplia circulación, utilizando análisis de dominio.

Resultados:

los resultados narran cómo surgió la pandemia de COVID-19 para personas sinhogar. El aislamiento provoco el vacia do de las calles y la reducción de transeúntes, dañando sus formas de vida y sus tácticas de supervivencia. El hambre, la sed, la ausencia de lugares para bañarse y satisfacer necesidades fisiológicas se convirtieron en parte de su vida diaria.

Consideraciones finales:

dada la imposibilidad de aislamiento, la compra de alimentos y agua y las limitaciones para llevar a cabo las medidas preventivas, las acciones de atención que ofrecenlos gestores para limitar la propagación del virus, incluso e nesta población, no sonmuy efectivas.

Descriptores:
Personas sin Hogar; Pandemia; Antropología Cultural; Salud Pública; Infecciones por Coronavirus

INTRODUÇÃO

A Organização Mundial de Saúde (OMS) caracterizou, em 11 de março de 2020, como pandemia o surto mundial da doença causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), denominada COVID-19(11 Novel Coronavirus Pneumonia Emergency Response Epidemiology Team. The epidemiological characteristics of an outbreak of 2019 novel coronavirus diseases (COVID-19) in China, 2020. Chinese J Epidemiol. 2020;41(2):145-51.doi: 10.3760/cma.j.issn.0254-6450.2020.02.003
https://doi.org/10.3760/cma.j.issn.0254-...
). Nesse momento de pandemia, o grupo que aqui denominamos "sem-isolamento" se refere à população em situação de rua, que vivencia o agravamento de suas condições de vida e de saúde.

A população em situação de rua (PSR) se caracteriza como um grupo populacional de grande vulnerabilidade social, heterogêneo, com características relacionadas à pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, sem moradia convencional regular, que utiliza logradouros públicos e/ou áreas degradadas, de forma temporária ou permanente(22 Presidência da República (BR), Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto no 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento e dá outras providências [Internet]. Diário Oficial da União: República Federativa do Brasil; 2009 [cited 2020 Apr 15]. Seção 1: [about 2 screens]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7053.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

A escrita deste artigo ocorreu simultaneamente com o desencadeamento da pandemia de COVID-19. Enquanto os números de casos e mortes pela doença cresciam no Brasil, especificamente no Rio de Janeiro, percebeu-se que a sobrevivência e luta por subsistência da PSR tornava-se mais difícil e trazia novos desafios.

A problemática do viver na rua é atravessada cotidianamente por proliferação de doenças, violência, estresse e hostilidade. O adoecer nas ruas tem características próprias no processo saúde-doença, sendo determinado pelo espaçamento entre refeições, exposição às alterações climáticas e outros fatores(33 Aristides JL, Lima JVC. Health/sickness process of the homeless in the city of Londrina: aspects of living and illness. Rev Espaço Saúde [Internet]. 2009 [cited 2020 Apr 15];10(2):43-52. Available from: https://docplayer.com.br/6621919-Processo-saude-doenca-da-populacao-em-situacao-de-rua-da-cidade-de-londrina-aspectos-do-viver-e-do-adoecer.html
https://docplayer.com.br/6621919-Process...
). Mas, ao mesmo tempo, o viver na rua depende de "oportunidades" que a própria rua traz, como alimento e dinheiro.

Diante do expressivo crescimento do número de casos suspeitos de COVID-19, foi solicitado, pelo Ministério da Saúde, o isolamento social para as principais cidades do Brasil. Assim, diante da emergência de saúde pública, declarada anteriormente pela OMS, o governo do estado do Rio de Janeiro ampliou as medidas de proibição de circulação de pessoas, para tentar enfrentar o coronavírus. Os decretos atingem o comércio em geral, com proibição de qualquer evento que possibilite aglomeração de pessoas, impactando o turismo e o lazer, serviços na área da educação, academias, clubes e transportes intermunicipais e interestaduais(44 Estado do Rio de Janeiro. Decreto nº 47006, de 27/03/2020. Dispõe sobre as medidas de enfrentamento da propagação decorrente do novo Coronavírus (Covid-19), em decorrência da situação de emergência em saúde, e dá outras providências. [Internet]. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro; 2020 [cited 2020 Apr 15]. Mar 30. Available from: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=391908
https://www.legisweb.com.br/legislacao/?...
). Além disso, os impactos, em termos de saúde pública, frente a esse vírus, são muitos, como a mudança abrupta nas rotinas dos serviços de saúde, intensificando o número de internações hospitalares por complicações respiratórias(55 Gallasch C, Cunha M, Pereira L, Silva-Jr J. Prevention related to the occupational exposure of health professionals workers in the COVID-19 scenario. Rev Enferm UERJ. 2020;28(e49596). doi: 10.12957/reuerj.2020.49596
https://doi.org/10.12957/reuerj.2020.495...
).

Em um país com enormes desigualdades sociais como o Brasil, a rede de serviços de saúde pública passa a enfrentar uma pandemia para a qual não estava preparada. A população residente na rua, que historicamente tem o acesso aos serviços de saúde dificultado, passa a ser cerceada ainda mais, podendo ser portadora e transmissora do vírus. A invisibilidade social vivida, até então, se acentua, agravando-se com a inoperância das políticas públicas e dificuldades de acesso aos serviços de saúde(66 Paula HC, Daher DV, Koopmans FF, Faria MGA, Brandão PS, Scoralick GBF. A implantação do Consultório na Rua na perspectiva do cuidado em saúde. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 6):2843-7. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0616
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).

OBJETIVO

Analisar o viver de pessoas em situação em tempos de pandemia da COVID-19, em uma localidade do município do Rio de Janeiro.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Os dados apresentados constituem-se de recorte de um projeto de doutorado em andamento na Universidade Federal Fluminense, Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, que problematiza os aspectos relacionados a cultura, saúde e doença da população que vive em situação de rua. A pesquisa estava na sua fase de trabalho de campo, realizando entrevistas e observações no mês de março de 2020, com a PSR, quando surgiram os primeiros casos da COVID-19 na cidade do Rio de Janeiro. Assim, com o advento da pandemia, houve necessidade de redirecionar e analisar o viver e o sobreviver desse grupo social neste momento.

Atendendo a todos os preceitos éticos que regem as pesquisas com seres humanos, o projeto obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense (UFF) (Hospital Universitário Antônio Pedro/Faculdade de Medicina), com utilização do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, explanação da pesquisa, confidencialidade e segurança dos dados, conforme os princípios éticos e legais estabelecidos pela Resolução nº 466/ 2012(77 Ministério da Saúde (BR). Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Conselho Nacional de Saúde. Brasília, 2012.).

Tipo de estudo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que utilizou a etnografia. O método etnográfico possibilitou, desse modo, fazer este recorte. A etnografia torna possível descrever o mundo como as pessoas o veem, vivem, ouvem, falam, pensam e agem em suas diferentes formas. Permite a descrição de uma cultura, que pode ser a de um pequeno grupo tribal, em uma terra exótica, ou a de uma turma de uma escola dos subúrbios, sendo a tarefa do investigador etnográfico compreender a maneira de viver do ponto de vista dos nativos da cultura em estudo(88 Spradley JP. Participant observation. New York: Holt. Rinehartand Winston Ed; 1980.). Partindo desse pressuposto, entende-se a PSR como sendo os "nativos" da cultura da rua.

Desenho do estudo

Para nortear o presente artigo, utilizou-se o instrumento do Equator denominado Standards for Reporting Qualitative Research (SRQR)(99 O'Brien BC, Harris IB, Beckman TJ, Reed DA, Cook DA. Equator instrument Standards for Reporting Qualitative Research: a synthesis of recommendations. Acad Med. 2014;89(9):1245-51. doi: 10.1097/ACM.0000000000000388
https://doi.org/10.1097/ACM.000000000000...
), que delimita um padrão para relatórios de pesquisa qualitativa.

Procedimentos metodológicos

Como instrumentos de coleta de dados, utilizou-se diário de campo e notícias de jornais e revistas sobre população de rua e pandemia e roteiro de entrevista semiestruturada com uma pergunta central: como o (a) senhor (a) tem vivido e sobrevivido nestes dias de pandemia e de solicitação de isolamento social?

Cenário do estudo

O cenário foi o centro do bairro de Santa Cruz, localizado na zona oeste do município do Rio de Janeiro. Como havia uma aproximação prévia com estes agentes, devido à coleta de dados da tese de doutorado, tornou-se possível estreitar ainda mais a relação e interagir com os participantes.

Fonte de dados

O estudo contou com a participação de sete pessoas em situação de rua, que concordaram em participar das entrevistas, que morassem na rua há, pelo menos, um mês e tivessem mais de 18 anos. As entrevistas ocorreram no final do mês de março e início de abril de 2020. Utilizaram-se as anotações das observações etnográficas presentes no diário de campo e documentos jornalísticos (reportagens) veiculados em jornal (jornal O Globo) e revista de grande circulação (revista Veja) e sites referentes à população de rua e à pandemia, de março a abril de 2020.

Coleta e organização dos dados

Foram realizadas quinze horas de observação da PSR, compreendendo uma hora por dia, durante quinze dias, seguida de anotações e registros em um diário de campo. Paralelo à observação, foram realizadas as entrevistas com as pessoas em situação de rua. A saturação das entrevistas ocorreu conforme as respostas dos participantes se repetiam.

As entrevistas foram gravadas, com tempo médio de uma hora para cada uma das entrevistas, totalizando sete horas. Em seguida, elas foram transcritas e os participantes foram identificados com nomes fictícios: Jonas, Francisco, Thomas, Felipe, Ronaldo, Evandro e Joaldo, escolhidos aleatoriamente para preservar as suas identidades. As anotações do diário de campo serviram para complementar as falas. Com o uso da etnografia, foi muito oportuno utilizar as notícias jornalísticas para aproximar e debater os achados obtidos em campo.

Análise dos dados

Os resultados são apresentados em formato de narrativa, através da análise de domínios para reflexão dos dados. O objetivo dessa modalidade de análise é identificar domínios culturais, que são categorias de significados culturais(1010 Spradley JP. The ethnographic interview. Forth Worth: Hancourt Brace Jovanovich College. 1979.). Esse tipo de análise possibilitou o surgimento de questões estruturais, que serviram para a compreensão da organização cultural dos modos de viver das pessoas em situação de rua, que são apresentados com quatro domínios estruturantes: Caracterização do tempo e dos viventes e sobreviventes da rua; O descortinamento da pandemia e sua chegada à população de rua; Modos de viver e táticas de rua para minimizar a fome em tempos de pandemia; Sem água, sem sabão, sem álcool em gel: quais táticas lançam mão os sem-isolamento?

RESULTADOS

Caracterização do tempo e dos viventes e sobreviventes da rua

O período era pós Carnaval no Rio de Janeiro; precisamente, alguns dias tinham passado e a população estava em processo de retorno às aulas, nos diferentes níveis de ensino. As notícias veiculadas nos principais jornais falavam de uma epidemia de gripe provocada por um vírus ainda desconhecido e originário da China, que se disseminava por muitos países, principalmente europeus.

O jornal O Globo, de circulação no Rio de Janeiro, noticia em 06 de março em sua primeira página "Coronavírus: País chega a 8 casos, incluindo registros no RJ e ES"(1111 Souza A. Coronavírus: país chega a 8 casos, incluindo registros no RJ e ES [Internet]. O Globo. 2020 Mar. 06 2020 [cited 2020 Apr 15]. Available from: https://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=202020200306
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). A princípio, a configuração era de uma emergência em saúde pública mundial que, rapidamente, passaria a ser classificada como pandemia pela OMS. Assim, seis dias depois, em 12 de março, o mesmo jornal destacava como manchete: "OMS decreta pandemia mundial pelo Coronavírus e a limitação de recursos do SUS causa muita preocupação"(1212 Souza A, Macedo I. OMS decreta pandemia mundial pelo Coronavírus e a limitação de recursos do SUS causa muita preocupação [Internet]. O Globo. 2020 Mar. 12 mar 2020 [cited 2020 Apr 15].Available from: https://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=202020200312
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).

Em dois meses, fevereiro e março de 2020, o mundo passou a acompanhar e se alarmar com cenas de caminhões frigoríficos com vários corpos armazenando vítimas da COVID-19 e muitos sepultamentos coletivos. A sociedade foi silenciada por meio de decretos, impondo o isolamento social. Assim, chegava no Rio de Janeiro, a pandemia de COVID-19.

Andando em direção ao trabalho e no decorrer da coleta de dados da tese, observa-se um grupo de pessoas em situação de rua solitárias, vagando em meio a um vazio e a um silêncio. Poucos transeuntes e ruas quase desertas são características desse momento. As pessoas que circulavam pareciam assustadas e tentavam entender o que estava acontecendo. Lojas e bancas de jornais fechadas e a ausência de camelôs pelas ruas passaram a ser fatos diários e que despertavam a sensação de medo e insegurança. O comércio fechado mostra indícios de que cresceria o desemprego e, consequentemente, a pobreza.

Foi um grupo de sete homens, que vivem em situação de rua que participou da pesquisa, com idade variando de 25 a 44 anos, de etnia negra. Em um dos primeiros diálogos, foi dito que os motivos relacionados a buscarem a rua foram os contínuos conflitos familiares, o desemprego, o uso de álcool e outras drogas ilícitas.

O descortinamento da pandemia e a sua chegada à população de rua

A pandemia chegou e a decretação do isolamento social horizontal chegaram ao Rio de Janeiro(44 Estado do Rio de Janeiro. Decreto nº 47006, de 27/03/2020. Dispõe sobre as medidas de enfrentamento da propagação decorrente do novo Coronavírus (Covid-19), em decorrência da situação de emergência em saúde, e dá outras providências. [Internet]. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro; 2020 [cited 2020 Apr 15]. Mar 30. Available from: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=391908
https://www.legisweb.com.br/legislacao/?...
). O domicílio passou a representar segurança. Ficar em isolamento domiciliar ou quarentena era a solicitação prioritáriados gestores da saúde para interromper a disseminação do vírus.

Assim, sem eleger grau de instrução, classe social e econômica, a COVID-19 se dissemina e atinge, também, os moradores de rua. Mas, como indicar o isolamento nos domicílios para os residentes da rua? Onde se alojariam, se a rua é sua casa? A rua faz parte da vida e da sobrevivência deste grupo. A PSR utiliza a rua para viver na rua e da rua. Passaram a representar, assim, os sem-isolamento.

A PSR busca os centros das cidades para viver porque estes espaços oferecem facilidades, como as áreas comerciais ou com maior concentração de serviços, a grande circulação de pessoas e as poucas residências(1313 Carneiro-Jr NC, Jesus CH, Crevelim MA. The family health strategy focused on access equity and targeted at the homeless population living in large urban centers. Saúde Soc [Internet]. 2010 [cited 2020 April 15];19(3):709-16. Available from: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v19n3/21.pdf
http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v19n3/21...
).

Passa-sea observar e a constatar, pelos depoimentos, que todos os residentes da rua, ora invisíveis pela sua dispersão nas multidões, passam a ser mais visíveis pelo esvaziamento e, assim, se destacam nos vazios das ruas, praças e becos. Apesar das orientações para que se evitasse aglomerações, os indivíduos deste grupo social não as alcançam e não dominam estratégias para efetivarem as orientações de isolamento. Continuam a circular em grupos, sem compreenderem o porquê do crescente esvaziamento na cidade. Ao encontrá-los na rua, perguntou-se: sabem o que está acontecendo na cidade e no país? Ouviram falar da doença COVID-19? E assim se posicionaram:

Vi o comércio fechando e diminuindo a quantidade de pessoas na rua, achei pra lá de estranho. Foi uma sensação ruim, de medo até... e eu não sabia o que estava acontecendo. (Jonas)

[...] achei assustador, coisas que eu só via em filme, tudo fechando. Fiquei assustado com a situação [...] doença radioativa, se a pessoa morre, tem que queimar o corpo. (Felipe)

Alguns narraram que descobriram a tal "pandemia" por meio de jornais impressos que se encontravam expostos em bancas de jornal ou por meios de notícias jornalísticas, quando ainda havia lojas abertas que comercializam aparelhos de televisão:

Eu descobri essa doença lendo jornais nas bancas de jornal e vendo TV na loja, quando tinha loja aberta ainda. (Francisco)

Pelo jornal, com divulgação pelos jornais [...] mas acho que as pessoas demoraram a entender, demoraram a usar máscaras. (Ronaldo)

Pela imprensa, o prefeito da cidade afirmava que a melhor estratégia seria recolher os moradores de rua, compulsoriamente. Em uma entrevista, disse que no agravamento da epidemia, poderia retirar os moradores de rua da cidade, direcionando-os para abrigos, hotéis populares e outras instituições. Na mesma reportagem, dizia que a prioridade no momento era a compra e distribuição de kits de higiene, e, nas abordagens presenciais, seria explicado o risco que a doença representa(1414 Magalhães LE. Coronavírus: Crivella afirma que pode recolher moradores de rua compulsoriamente [Internet]. O Globo. 2020 Mar. 17 [cited 2020 May 05].Available from: https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-crivella-afirma-que-pode-recolher-moradores-de-rua-compulsoriamente-24310212
https://oglobo.globo.com/sociedade/coron...
). Entretanto, em nossas entrevistas e observações junto aos moradores na rua, nenhum deles se dizia conhecedor dessas estratégias e continuavam vagando pelas ruas a procura de alimentos, mendigando dinheiro e tentando biscates.

Ao mesmo tempo em que o gestor municipal traz a questão do recolhimento compulsório, tramita na Câmara dos Deputados, um Projeto de Lei, nº 707/2020, que destaca que o isolamento para a PSR só pode ocorrer se a pessoa apresentar os sintomas e testar positivo para a doença. Esse projeto proíbe o isolamento compulsório de moradores de rua durante a vigência de epidemias e pandemias(1515 Presidência da República (BR). Câmara dos Deputados. Projeto de lei nº707/2020,Dispõe direitos e deveres de pessoas em situação de rua em situações de pandemias e epidemias que exijam isolamento temporário [Internet]. 2020 [cited 2020 Apr 21]; Agência Câmara de Notícias. Apresentado em 18 de março de 2020. Available from: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1867179&filename=Tramitacao-PL+707/2020
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb...
). Com o passar dos dias, as propostas para se tentar abrigar a população de rua foram chegando e uma delas foi a estratégia de equipar o Sambódromo, um dos espaços destinados ao Carnaval do Rio de Janeiro, como uma das possibilidades de abrigamento(1616 Galdo R. Sambódromo pode virar abrigo: com ruas vazias, população de rua teme doença e fome [Internet]. O Globo. 2020 Mar. 20 [cited 2020 May 05].Available from: https://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=202020200320
https://acervo.oglobo.globo.com/consulta...
).

Modos de viver e táticas de rua para minimizar a fome em tempos de pandemia

O viver e o sobreviver da PSR conecta-se diretamente com as táticas que adquirem na própria rua. Ao chegarem nas ruas, as pessoas, de forma inconsciente e subliminar, vão adquirindo hábitos peculiares àquele grupo. Esse aprendizado está presente nas narrativas.

A população de rua utiliza diversas táticas para adquirir os alimentos. Estas são nomeadas com termos específicos criados na própria rua, como garimpos (trabalhos que exercem na rua recolhendo materiais recicláveis, para vender e garantir algum dinheiro), carreatas (doações por meio de grupos de pessoas comuns, instituições religiosas ou comerciantes locais), mangueando (o ato de pedir dinheiro na rua) e bênçãos (doações com significado de salvação). Em momentos ocasionais, preparam seus próprios alimentos, queimam latas, como se referem ao preparo de alimentos em fogões e panelas improvisadas em utensílios de alumínio que recolhem:

Pra comer, a gente dá um jeito, garimpamos, tem uns irmãos da igreja que dão, e, quando o bicho pega e não tem nada, a gente faz uma "vaquinha", compra umas coisas e fazemos aqui mesmo, queimamos latas. (José)

A decretação do isolamento social e o fechamento do comércio local configurou um esvaziamento das ruas e redução de transeuntes; consequentemente, gerou a cessação de doações e dos pequenos trabalhos para os residentes de rua. Falam de dias seguidos sem se alimentarem. As instituições filantrópicas que atuam com doações também deixam as ruas e as dificuldades das pessoas se exacerbam como está presente no depoimento de Thomas:

Tenho fome. Ficou muito complicado, com essa doença, conseguir o que comer. O ser humano, para se manter vivo, precisa de muitas coisas, ficou difícil, muito difícil. A doação de comida sumiu... (Thomas)

Há relatos de que, logo no início da pandemia, a dificuldade para obter alimentos foi tão grande, que o instinto de sobrevivência os levou a buscar alimentos em lixeiras nas ruas. Mesmo assim, poucos achavam, já que os restaurantes também estavam fechados.

[...] vou te falar uma coisa... no começo, foi pior mesmo, eu fiquei com muita, muita fome mesmo. Não tinha comida pra ninguém aqui na maloca. Procurei comida nas lixeiras, mas estavam vazias e nem no lixo eu consegui comida, sofri. (Tarso)

A fome também foi relatada em manchetes de jornais e revistas, que dizia "População de rua teme fome durante a pandemia"(1717 Soares J. População de rua teme fome durante a pandemia [Internet]. Deutsche Welle Brasil. 2020 Mar. 25 [cited 2020 May 05]. Available from: https://www.dw.com/pt-br/popula%C3%A7%C3%A3o-de-rua-teme-fome-durante-pandemia/a-52888260
https://www.dw.com/pt-br/popula%C3%A7%C3...
). Essa reportagem estampava o medo dos residentes de rua de não conseguirem alimentos pelo fechamento do comércio e dos restaurantes, esses que comumente fornecem as "quentinhas". A reportagem trazia, ainda, que algumas entidades, como ONGs e instituições religiosas, que organizam a distribuição de alimentos, suspenderam as atividades a fim de repensar uma estratégia mais segura de realizarem o contato e a entrega. Somado ao isolamento social, que dificultou a obtenção de alimentos, um dos entrevistados narrou que foi visível o afastamento de muitas pessoas receosas de serem os moradores de rua os transmissores da doença. Assim, passaram a evitá-los ainda mais:

Um dia, me aproximei de uma senhora pra pedir dinheiro pra tentar comprar uma quentinha, ela se afastou de mim às pressas, correu de mim. Parecia que estava com medo de pegar a doença com a minha aproximação. Acho que pararam de trazer comida pra gente, com medo da gente passar a doença. (Joaldo)

Ao mesmo tempo em que a doença se expande na cidade, surgem as primeiras mortes no Rio de Janeiro por COVID-19. As ruas ficam ainda mais vazias e a população que ali reside passa a ser ainda mais estigmatizada. Exemplo deste movimento foi destaque no jornal Folha UOL, que dizia "Epidemia da fome: falta grana para comida em meio a isolamento social no RJ"(1818 Souza B, Roza G, Reis S. "Epidemia da fome: falta grana para comida em meio a isolamento social no RJ" [Internet]. Folha UOL. 2020 Apr 16 [cited 2020 May 05]. Available from: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-oticias/redacao/2020/04/16/epidemia-da-fome-falta-grana-para-comida-em-meio-a-isolamento-social-no-rj.htm?cmpid=copiaecolay
https://noticias.uol.com.br/saude/ultima...
). Além da possível falta de "grana" como noticiado, o medo do contágio aparece claramente como um outro fator determinante na redução das doações: ""Panela do Bem" substituiu a tradicional sopa servida aos moradores de rua por lanches, na tentativa de tornar mais fácil a distribuição e garantir a segurança de todos"(1818 Souza B, Roza G, Reis S. "Epidemia da fome: falta grana para comida em meio a isolamento social no RJ" [Internet]. Folha UOL. 2020 Apr 16 [cited 2020 May 05]. Available from: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-oticias/redacao/2020/04/16/epidemia-da-fome-falta-grana-para-comida-em-meio-a-isolamento-social-no-rj.htm?cmpid=copiaecolay
https://noticias.uol.com.br/saude/ultima...
).

Diante das notícias veiculadas, a PSR, invisível no início da pandemia, tornava-se visível. Essa população ganha visibilidade, provavelmente pelo medo do contágio que podem trazer. Os depoimentos foram unânimes apontar que a precariedade vivida na rua foi exacerbada com a chegada da pandemia. Em especial, ficou complicado conseguir alimento. Ao noticiarem a fome, que acomete a população de rua, as doações passam a voltar.

No começo da doença, conseguir comida era muito difícil, não tinha ninguém pra doar alimentos. Quando os jornais começaram a falar da fome, que piorou pra nós, começaram a doar de novo. Um amigo disse que um colega dele viu na televisão que estavam o tempo todo falando nisso na televisão. Foi aí que as pessoas passaram a olhar pra gente. (Thiago)

As redes de solidariedade foram ressurgindo, quando as notícias sobre a falta de alimentos foram sendo noticiadas, e, assim, lentamente, as distribuições voluntárias de alimentos e lanches, doação de cestas básicas, água e produtos de higiene ganharam a cena. Entretanto, quando não se noticiava, elas sumiam.

Sem água, sem sabão, sem álcool em gel: quais táticas lançam mão os sem-isolamento?

Na medida que a pandemia se dissemina, a OMS e o Ministério da Saúde do Brasil reforçam a necessidade do isolamento social, com o uso de máscaras, lavagem das mãos e uso de álcool em gel como medidas gerais para se evitar a propagação do vírus(1919 Ministério da Saúde (BR). Vigilância a Saúde. Centro de Operações de emergências: COVID-19. Boletim epidemiológico nº 5: doença pelo Coronavírus 2019. Brasília: Ministério da Saúde; 2020. 13p.).

Como fica, neste contexto, a população residente na rua? Os depoimentos reforçam nossas observações de que, na rua, os aparatos de higiene não existem ou são limitados. Todos eles falam, repetidamente, sobre ausência de local para o banho e para realização de suas necessidades fisiológicas. Dão destaque a uma rede informal de apoio ofertada pelos comerciantes. Estes permitem o uso, em algum momento do dia, de um banheiro. Entretanto, neste momento, com o comércio todo fechado, esse serviço, que pode ser entendido um instrumento de resgate de cidadania para aquele que mora na rua, não existe mais. Com isso, a higiene das mãos e do corpo como ação de saúde também fica prejudicada, sendo levantada nos depoimentos:

[...] a gente já tem dificuldades para beber água, tomar banho e lavar as mãos. Nesses dias da doença, ficou muito mais difícil e poucos são os locais ainda abertos. Geralmente, pegamos água na garrafa de refrigerante pra usar, pelo menos para beber. (Felipe)

Em relação aos equipamentos para se protegerem, como máscaras e álcool em gel, todos descrevem que não possuem esses mecanismos para a proteção individual. Falam que isto está muito longe deles e apontam a falta de água para higienizar as mãos, gerando muito medo:

As pessoas falam que tem que usar máscara pra não pegar esta doença... a gente aqui não tem água e nem sabão, nem roupa limpa pra trocar, imagina uma máscara. Tá longe de nós. Falam também que tem que usar álcool gel e lavar muito as mãos...e na rua a gente tem isso? Não, é sonho. (Ronaldo)

A imprensa também traz à cena essa questão e assim é noticiado "Moradores de rua à margem da prevenção contra a COVID-19: Lavamos as mãos nas poças de água quando chove"(2020 Castor C, Barbosa L. Moradores de rua à margem da prevenção contra a COVID-19: Lavamos as mãos nas poças de água quando chove [Internet]. El País. 2020 Mar 20 [cited 2020 May 05]. Available from: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-03-20/moradores-de-rua-a-margem-da-prevencao-contra-a-covid-19-lavamos-as-maos-nas-pocas-quando-chove.html
https://brasil.elpais.com/sociedade/2020...
). A reportagem aponta para a ausência de água, sabonete e álcool em gel para a população de rua. Neste momento, comprova-se que há exacerbação das vulnerabilidades para o coronavírus. Os depoimentos são questionadores:

[...] reportagens falam para lavar as mãos, mas lavar aonde? [...] lavar como? Lavar com o quê? nós agradecemos que choveu e tá cheio de poça de água, e a gente vai ter como lavar as mãos. (José)

A preocupação e o medo em contrair a doença está muito presente, e foi narrada por vários participantes. Seus medos se ancoram no fato de não possuírem meios para se protegerem e, também, das dificuldades para acessarem os serviços de saúde. Destacam que as Unidades Básicas de Saúde poderiam lhes ajudar facilitando o acesso ao atendimento de saúde, mas isto não acontece. Todos têm medo de que possam carregar o coronavírus:

Ficamos preocupados, pois o morador de rua já não tem uma saúde boa e já não conseguimos atendimentos de saúde. Quando a gente vai à Clínica de Família, somos "xotados" de lá e vamos embora doentes, como chegamos ou pior. Imagina agora com essa doença..., ouvi uma senhora falar que tá tudo cheio e não conseguem atendimentos. (Evandro)

DISCUSSÃO

De maneira exponencial, a pandemia se dissemina pelo mundo como um acontecimento patológico e social assustador e que se apresenta, também, aterrorizante à PSR, fragilizando-a e estigmatizando-a ainda mais.

Em sua obra, Cidade Febril, Sidney Chalhoub narra as epidemias de varíola e febre amarela, acontecidas no final do século XIX e início do século XX. O autor toma como ponto de partida a cidade do Rio de Janeiro e a demolição dos cortiços existente naquele período. Ao analisar, comparativamente, as ações desencadeadas pelos gestores atuais frente à pandemia no que se refere ao manejo da população residente nas ruas, elas remetem ao episódio da Cabeça de Porco, "o mais célebre cortiço carioca"(2121 Chalhoub S. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2017.). Para aquela época, a destruição do cortiço Cabeça de Porco significou o marco da erradicação dos cortiços cariocas e, conjuntamente, o combate às epidemias. Esse episódio impressiona pela contemporaneidade.

O episódio Cabeça de Porco ficou marcado pelas intervenções violentas das autoridades no cotidiano dos habitantes da cidade. Essa atitude autoritária contribuiu muito com a história de combate, vigilância e controle de doenças, inibindo o direito de ir e vir pela força(2121 Chalhoub S. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2017.). O episódio da epidemia de COVID, deste século XXI, fica marcado, pelo menos, neste início de pandemia, pela forma de isolar, de forma compulsória, as pessoas em situação de rua, com justificativa de debelar o avanço da pandemia. Essa atitude remete a mesma ocorrida no passado, pois não se verifica ou analisa como isolar, sem contaminar, quem pelo próprio modus operandi vive sem isolamento.

As orientações para o isolamento social no Rio de Janeiro trouxe à cena as muitas dificuldades de isolamento para aqueles que não têm local fixo de moradia, como a população de rua.

As mazelas deste grupo social se tornaram mais visíveis com a pandemia, obrigando a refletir sobre a necessidade de uma política habitacional para as populações vulneráveis(2222 Mattos C. Os sem-isolamento: em meio à pandemia, países improvisam para abrigar os sem-teto [Internet]. Rev Veja. 2020 Apr 23 [cited 2020 May 05]. Available from: https://veja.abril.com.br/mundo/em-plena-pandemia-paises-improvisam-para-abrigar-os-sem-teto/
https://veja.abril.com.br/mundo/em-plena...
). Criar abrigos e albergues temporários para acolher a população de rua não resolverá a situação da habitação. Essa atitude apenas minimiza, mas não resolve. Em uma live realizada em 20 de abril pelo Observatório Nacional dos Direitos a Água e ao Saneamento, com objetivo de refletir sobre a relação da população de rua e a COVID-19, o ex-morador de rua e agora ativista dos direitos dessas pessoas, Darcy Costa, declara "é preciso aproveitar a pandemia que está dando visibilidade a questão que cerca a população de rua para se pensar em ações eficazes pós-pandemia". A pandemia jogou luz às sérias questões habitacionais do Brasil. "O que fazer no depois?", questiona Darcy Costa. Mas, também, dá indícios sobre a urgente necessidade de uma política públicana perspectiva da intersetorialidade, que possa atender às demandas e não políticas pulverizadas por cada setor, como saúde, assistência social e habitação. Conclui, salientando, que é preciso unidade em torno uma política pós-pandemia para a população de rua.

Quando são anunciadas, especificamente, para a população de rua, atitudes autoritárias dos governantes determinando isolamento e novos modos de agir frente aos hábitos destas pessoas, por vários momentos, conceituando estas diretrizes como "novo normal", subvalorizaram a cultura deste grupo, assim como os problemas gerados pelo isolamento social. As atuais ações governamentais que buscam saídas pontuais remetem às ações nas pandemias passadas(2121 Chalhoub S. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2017.), em um movimento higienista disciplinador e punitivo, como as descritas por Michel Foucault na sua obra Vigiar e Punir(2323 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1987. 288p). As ações dos gestores que estão em movimento se atualizam e reforçam o estigma e a desigualdade social. Como isolar quem culturalmente vive aglomerado e em grupos?

Nas epidemias passadas, as classes pobres e mais vulneráveis não passaram a serem vistas como "classes perigosas" apenas porque poderiam oferecer problemas para a organização do trabalho e a manutenção da ordem pública. Estes grupos representavam a figura do possível transmissor, ou seja, a figura concreta do contágio(2121 Chalhoub S. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2017.), similar ao que, nesta pandemia, a população de rua parece representar.

A pandemia se espraia, e, com isso, a fome também passou a acompanhar ainda mais a população residente na rua. Esse fato é ligado à escassez das doações, que agora passou a vigorar, somado ao comércio fechado. A fala de todos da rua é que a comida "sumiu" e a fome "domina". Os olhares de outrora de repulsa e de indiferença, aos poucos, se desvelam para um olhar mais solidário e de compaixão a estas pessoas. Mas por que só agora? O fantasma do medo de contágio retorna como outrora? Esforços estruturais de alguns gestores locais, de alguns cidadãos e de organizações filantrópicas, cada um ao seu modo, buscam sistematizar ações de doações de comida, de material de higiene, de água e de álcool, para tentar alcançá-los, de forma mais solidária. Entretanto, continuam sem isolamento.

A imprensa, principalmente em seus telejornais, dá realces à cultura da invisibilidade e dos elementos constituintes no cotidiano dos que vivem na rua. A fome traz uma das mais perversas faces da exclusão social, interligando a população de rua e a pandemia.

Desacreditados em suas identidades, o valor moral e social do morador de rua passa, agora, a possuir traços que, outrora, os afastavam da sociedade(2424 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar; 1982.). Diante dos dilemas que enfrentam com a pandemia de COVID-19, a formatação de suas personalidades impressas no estigma e preconceito traz novas reflexões.

Direitos universais, como o uso da água e a obtenção de alimento, são desafios constantes para os que habitam e sobrevivem nos logradouros públicos. Deveria ser um direito fundamental garantido a todos. No entanto, esses direitos são sublimados e agora mais agravados. O não reconhecimento dos seus direitos coloca essa população em uma situação cada vez mais vulnerável. Como os direitos são interdependentes e indivisíveis, a violação de um afeta o outro, gerando iniquidades e prejudicando a saúde, que são direitos constitucionais importantes para sobrevida humana(2525 Neves-Silva P, Martins GI, Heller L. "A gente tem acesso de favores, né?". a percepção de pessoas em situação de rua sobre os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. Cad Saúde Pública. 2018;34(3):e00024017. doi: 10.1590/0102-311x00024017
https://doi.org/10.1590/0102-311x0002401...
).

Bons exemplos de cuidado à população de rua podem ser vistos no Reino Unido. Lá a dinâmica foi unir gestores, profissionais de saúde e voluntários para trabalharem conjuntamente, criando um sistema de locais, para proteger as pessoas em situação de rua dos efeitos causados pela COVID-19. As pessoas que moram nas ruas são separadas entre sintomáticas e não sintomáticas, com grupos específicos para o acompanhamento delas, garantindo moradia e cuidado em saúde. A tentativa com essa estratégia é reduzir o risco de exposição, detectar infecção e separar os que necessitam de cuidado em saúde para, preventivamente, reduzir as fatalidades(2626 Kirby T. Efforts escalate to protect homeless people from COVID-19 in UK. Lancet Respir Med. 2020. doi: 10.1016/S2213-2600(20)30160-0
https://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30...
). A realidade é bastante diferente do Brasil, onde as populações residentes nas ruas, sem oportunidade de trabalho e renda, com déficits no estado de saúde, com hábito alimentar e instalações de moradia precárias vem apresentando sérios problemas(2727 FaridH, Mostari M. Lives and Livelihoods of Children Living In Street Situation in Dhaka City of Bangladesh. Bangladesh Res Pub J[Internet]. 2015[cited 2020 Apr 15];11(1):40-8. Available from: http://www.bdresearchpublications.com/admin/journal/upload/1410059/1410059.pdf
http://www.bdresearchpublications.com/ad...
). Em mais uma pandemia, a população residente na rua na cidade do Rio de Janeiro vive o agravamento de sua situação, deixando a ferida da desigualdade social e da pobreza à mostra.

Limitação do estudo

A possível limitação do estudo deve-se ao fato de ter sido realizado em um único cenário. Diante da situação do rápido acontecimento da pandemia e de ter um projeto de atuação especificamente em uma localidade no município do Rio de Janeiro, não foi possível ampliar a pesquisa, nesse momento, para outros bairros da cidade. Entretanto, entende-se que são apontamentos que refletem muitos outros locais que têm pessoas que vivem na rua, podendo serem generalizados.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou políticas públicas

Entende-se que este estudo possa contribuir para a área da enfermagem e da saúde, principalmente diante das práticas de cuidado a PSR, de acordo com as suas reais necessidades de saúde. Acredita-se que traga contribuições relevantes e colabore nas delimitações de propostas resolutivas de políticas públicas relacionadas as especificidades de cuidado à população de rua e para o controle e prevenção da COVID-19.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia de COVID-19 revela, ainda mais, as mazelas sociais vividas no cotidiano da PSR, no Rio de Janeiro, até então, naturalizadas e cristalizadas e, de modo geral, cobertas pelo manto da invisibilidade. Suas necessidades passam a ser urgente, por possuírem muitos fatores preditivos a doença, em consequência do seu caráter de fácil transmissibilidade, difícil controle e alta letalidade.

Se nada for feito de imediato, esse cenário poderá gerar um acontecimento devastador, talvez sem precedente, no contexto das pessoas que habitam as ruas, já que a maioria é de idosos e com comorbidades.

O isolamento social impôs novos desafios à toda população mundial, mas ainda maior para aqueles sem possibilidade de isolamento. A sociedade, por meio de movimentos individuais e de filantropia, tem tentado se organizar para debelar as necessidades básicas, como a oferta de água e de alimentos. No entanto, sublinha-se a importância imediata de efetivação de uma política pública intersetorial que os alcancem, com medidas concretas e efetivas nesses dias ainda mais difíceis.

Mediante o exposto, é possível compreender que os modos de viver e a cultura local da pessoa que mora na rua nos tempos da COVID-19 avivam ainda mais seus instintos de sobrevivência e de preservação da vida, gritam pela fome e pela falta de água. Precisa-se pensar em outros modos de isolamento social para pessoas que vivem na e da rua. Representam, assim, um grande desafioà saúde pública, invocando a capacidade de articulação entre vários setores, como a saúde e a assistência social e a habitação, que, de forma conjunta e significativa, podem propor medidas que cooperem para minimizar o impacto da doença neste grupo populacional.

REFERENCES

Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2020
  • Aceito
    22 Ago 2020
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