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Trajetória profissional de Josicélia Dumêt Fernandes: contribuições para a enfermagem psiquiátrica e de saúde mental

RESUMO

Objetivos:

analisar a história de vida da enfermeira Josicélia Dumêt Fernandes, com ênfase em sua atuação na área da psiquiatria e saúde mental.

Métodos:

pesquisa histórica, do tipo qualitativa. Foram utilizadas como técnicas de coleta de dados a entrevista semiestruturada e a pesquisa documental, coletados de setembro a outubro de 2021. Para a análise dos dados, optou-se pelo método de análise de conteúdo e a confrontação com o referencial filosófico foucaultiano.

Resultados:

emergiram quatro categorias: A transformação de si e das práticas em saúde mental; A (re)significação da prática profissional; A prática de enfermagem e as relações de poder; e Os caminhos e implicações no campo da psiquiatria e da saúde mental.

Considerações Finais:

o estudo da biografada demonstra uma busca por transformação de si e das práticas de saúde mental, com ruptura de paradigmas e ressignificações da sua prática em psiquiatria e saúde mental.

Descritores:
Enfermagem; História da Enfermagem; Biografia; Enfermagem Psiquiátrica; Saúde Mental

ABSTRACT

Objectives:

to analyze nurse Josicélia Dumêt Fernandes’ life story, with emphasis on her work in the psychiatry and mental health fields.

Methods:

historical, qualitative research. Semi-structured interviews and documentary research were used as data collection techniques, collected from September to October 2021. For data analysis, we opted for the content analysis method and comparison with the Foucauldian philosophical framework.

Results:

four categories emerged: Transforming herself and mental health practices; (Re)framing professional practice; Nursing practice and power relations; and The paths and implications in the psychiatry and mental health fields.

Final Considerations:

the study of the biographer demonstrates a search for transformation of herself and mental health practices, with a rupture in paradigms and reframing of her practice in psychiatry and mental health.

Descriptors:
Nursing; History of Nursing; Biography; Psychiatric Nursing; Mental Health

RESUMEN

Objetivos:

analizar la historia de vida de la enfermera Josicélia Dumêt Fernandes, con énfasis en su trabajo en el área de psiquiatría y salud mental.

Métodos:

investigación histórica, cualitativa. Se utilizaron como técnicas de recolección de datos entrevistas semiestructuradas e investigación documental, recolectados de septiembre a octubre de 2021. Para el análisis de los datos, se optó por el método de análisis de contenido y comparación con el marco filosófico foucaultiano.

Resultados:

surgieron cuatro categorías: Transformación del yo y de las prácticas de salud mental; El (re)significado de la práctica profesional; Práctica de enfermería y relaciones de poder; y Los caminos e implicaciones en el campo de la psiquiatría y la salud mental.

Consideraciones Finales:

el estudio de la biógrafa demuestra una búsqueda de transformación de ella misma y de las prácticas de salud mental, rompiendo paradigmas y resignificando su práctica en psiquiatría y salud mental.

Descriptores:
Enfermería; Historia de la Enfermería; Biografía; Enfermería Psiquiátrica; Salud Mental

INTRODUÇÃO

Este artigo trata da história de vida da enfermeira e professora baiana Josicélia Dumêt Fernandes, na perspectiva de sua atuação nas áreas de psiquiatria e saúde mental. Sua trajetória de vida esteve ligada à defesa do ensino de qualidade, marcada pelo compromisso com a formação de enfermeiros críticos e reflexivos capazes de lidar com as demandas e os desafios da profissão, e atuou em serviços de saúde mental, buscando sempre garantir um atendimento humanizado e de qualidade aos pacientes.

Este estudo surgiu a partir da aproximação de um dos autores, ao desenvolver sua dissertação de mestrado na temática da gestão de enfermagem no serviço de saúde mental do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES) - primeiro hospital geral do Brasil a implantar o serviço de psiquiatria, quando observou uma lacuna sobre a história do local de estudo e sobre a história dos profissionais que contribuíram para o cuidado prestado pelo setor ao longo do tempo. Contudo, nos relatos informais sobre o tema, a contribuição da enfermeira e professora Josicélia Dumêt Fernandes para o fortalecimento do serviço de saúde mental no HUPES, bem como no processo da Reforma Psiquiátrica, era fato reconhecido, motivando a construção deste estudo.

Graduou-se em enfermagem em 1965 pela Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (EEUFBA). Atuou como coordenadora de enfermagem na Casa de Saúde Ana Nery como enfermeira plantonista, chefe de enfermagem da clínica psiquiátrica do HUPES, entre os anos 1960 a 1980. Concluiu o mestrado em saúde coletiva em 1984 e o doutorado em enfermagem em 1990. Em 1992, atuou como chefe de gabinete da reitoria da UFBA. Entre 1993 e 1999, manteve seu vínculo na UFBA, primeiro como professora visitante (até 1997) e depois como professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, através do Programa de Apoio ao Professor Aposentado à UFBA (PROPAP/UFBA)(11 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Currículo Lattes. Josicélia Dumêt Fernandes[Internet]. 2022 [cited 2022 Feb 05]. Available from: http://lattes.cnpq.br/6915142057548779
http://lattes.cnpq.br/6915142057548779...
).

Em janeiro de 2000, após concurso público, reassumiu o vínculo com a UFBA como Professora Titular da Escola de Enfermagem. Em 2014, aposentou-se e passou a integrar o Programa Especial de Participação de Professores Aposentados nas atividades de Ensino de Graduação e Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão na UFBA, no qual, até o momento desta pesquisa, segue em atividade. Cabe destacar que, em 2017, recebeu o título de Professora Emérita da UFBA(11 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Currículo Lattes. Josicélia Dumêt Fernandes[Internet]. 2022 [cited 2022 Feb 05]. Available from: http://lattes.cnpq.br/6915142057548779
http://lattes.cnpq.br/6915142057548779...
).

Nesse sentido, o estudo se justifica no desvelar da sua vida, das contribuições para a história do HUPES, da EEUFBA, na perspectiva de análises da história institucional, além das suas implicações para a saúde, na produção de cuidado e conhecimento na área temática da psiquiatria e saúde mental. Além disso, também está relacionado ao ineditismo do estudo, na expressão da atuação de Josicélia Dumêt para a enfermagem psiquiátrica e de saúde mental, e à ciência da enfermagem brasileira, uma vez que foi pesquisadora de destaque.

OBJETIVOS

Analisar a história de vida da enfermeira Josicélia Dumêt Fernandes, com ênfase em sua atuação na área da psiquiatria e saúde mental.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Esta pesquisa integra um projeto matriz intitulado “Modelos de Gestão em Enfermagem: memórias de enfermeiros”, aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa. Os aspectos éticos contidos na Resolução no 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, que trata das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, e no Ofício Circular nº 2/2021 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), com relação às orientações para procedimentos em pesquisas com qualquer etapa em ambiente virtual, foram respeitados. A entrevista só aconteceu com a autorização da entrevistada e assinatura, de forma escrita, do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por todos os participantes, sendo, após a sua transcrição, validada pela mesma, e só depois transcrita para produção e análise de resultados. O processo foi guiado pelo COnsolidated criteria for REporting Qualitative research (COREQ), na versão em português do Brasil, composto por critérios para relatar a pesquisa qualitativa(22 Ministério da Saúde (BR). Resolução n°. 466 de 12 de dezembro de 2012. Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas em Seres Humanos [Internet]. Brasília, DF: DOU; 2012 [cited 2022 Dec 05]. Available from: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes...

3 Ministério da Saúde (BR). Ofício circular Nº 2/2021/CONEP/SECNS/MS. Orientações para procedimentos em pesquisas com qualquer etapa em ambiente virtual [Internet]. Brasília, DF: MS; 2021[cited 2023 Feb 25]. Available from: http://conselho.saude.gov.br/images/SEI_25000.081014_2021_80.pdf
http://conselho.saude.gov.br/images/SEI_...
-44 Souza VRS, Marziale MHP, Silva GTR, Nascimento PL. Tradução e validação para a língua portuguesa e avaliação do guia COREQ. Acta Paul Enferm. 2021;34:eAE02631. https://doi.org/10.37689/acta-ape/2021AO02631
https://doi.org/10.37689/acta-ape/2021AO...
).

Referencial teórico-metodológico

Foi utilizado o referencial filosófico foucaultiano, que aborda sobre a constituição de sujeitos, apontando para os aspectos teóricos das técnicas de si, divididas em quatro grupos principais: (1) técnicas de produção, que permitem produzir, transformar ou manipular as coisas; (2) técnicas dos sistemas de signos, que permitem utilizar signos, sentidos, símbolos ou significação; (3) técnicas de poder, que determinam a conduta dos indivíduos e os submetem a certos fins ou dominação, objetivando o sujeito; (4) técnicas de si, que permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um certo número de operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a transformá-los com o objetivo de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade(55 Foucault M. Tecnologias de si, 1982. Tradução por Andre Degenszajn; Verve [Internet]. 2004 [cited 2022 Feb 25];6:321-60. Available from: https://revistas.pucsp.br/index.php/verve/article/view/5017/3559
https://revistas.pucsp.br/index.php/verv...
).

Tipo de estudo

Trata-se de pesquisa histórica, do tipo qualitativa, com enfoque biográfico na vida profissional da enfermeira e professora Josicélia Dumêt Fernandes, no campo da psiquiatria e saúde mental. No âmbito da pesquisa qualitativa, esse tipo de abordagem, a história de vida, permite explorar, descobrir e avaliar como as pessoas, através de suas experiências, compreendem seu passado, o vinculam no contexto social e o significam no momento presente(66 Minayo MCS. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 29ª ed. Petrópolis: Vozes; 2016.).

Coleta e organização dos dados

No intuito de realizar reconstrução histórica da biografada, foram utilizadas como técnicas de coleta de dados a entrevista semiestruturada, para a produção de fonte oral, e a pesquisa documental. Foi realizado uma entrevista de forma virtual por meio da plataforma online, Google Meet®, com duração de cerca de 46 minutos, conduzida por duas pesquisadoras autoras deste manuscrito. O contato inicial com a participante se deu por telefone e e-mail.

Os dados foram coletados de setembro a outubro de 2021. Também foram coletadas informações do Memorial de Titular, cedido pela própria professora, e do Curriculum Lattes.

As falas oriundas da entrevista estão identificadas pelas letras “ENT”, seguidas pelas iniciais do nome da professora “JDF”. No que concerne aos trechos extraídos da coleta documental, estão representados pelas letras “DOC”, seguidas pelas iniciais “JDF”.

Análise dos dados

Para a análise dos dados, optou-se pelo método de análise de conteúdo(77 Bardin L. Análise de conteúdo. 70ª ed. São Paulo: Edições; 2016.), que contemplou as seguintes etapas: recorte das unidades de registro; enumeração com base na frequência; tratamento dos resultados; e as interpretações. A categorização dos dados sustentou-se nas unidades de registro e no conteúdo manifesto, possibilitando identificar, ao longo da vida da entrevistada, momentos que se conectam com sua trajetória no campo da psiquiatria e da saúde mental. Nessa fase, as possibilidades de categorias foram confrontadas com o referencial filosófico foucaultiano, em um quadro de análise, permitindo a finalização das categorias. Na etapa de organização dos dados, foi utilizado, para apoio na análise de dados, o software de análise qualitativa de dados (WebQDA®).

RESULTADOS

Apresentamos e discutimos os resultados do estudo, ancorados no referencial teórico-filosófico foucaultiano, emergindo quatro categorias que estão dispostas a seguir.

A transformação de si e das práticas em saúde mental

A enfermeira e professora Josicélia Dumêt Fernandes conduziu sua prática profissional através de transformações de pensamentos e condutas diante da constante reflexão da realidade que a cercava, o que possibilitou a superação de estereótipos, a adoção de referenciais teóricos e novas abordagens na prática assistencial e da docência em saúde mental:

Contida nas fronteiras da minha formação, olhava com simpatia os movimentos transformadores no campo profissional. Procurei quebrar as amarras e superar certas contradições, percebendo os estreitos limites impostos pelo ensino e práticas de enfermagem dominantes e, particularmente, pelas práticas de saúde mental. (DOC-JDF)

Aos poucos, fui acompanhando os movimentos reformadores e renovadores no campo da saúde mental na Bahia e, paulatinamente, fui estabelecendo identidade com eles, mesmo na área universitária e, particularmente, no campo da psiquiatria. Participei de processos de discussão crítica na enfermagem baiana. Busquei uma nova concepção para a minha prática. Senti a necessidade de questioná-la para (re)construí-la, através de rupturas no instituído. Para isso, era necessário entrar num processo de construção de um novo referencial que tinha como eixo o movimento dialético da vida, buscando uma nova concepção sobre as práticas de saúde e, mais especificamente, da enfermagem. (DOC-JDF)

Comecei a perceber, com um pouco mais de clareza, que a minha prática estava circunscrita e limitada, além de revestida pelas características repressivas e custodiais da psiquiatria. Essa percepção me fez adotar uma postura conscientizadora, isto é, ao tempo em que eu cuidava de um doente, eu procurava esclarecer para ele e sua família o porquê daquela situação em que se encontravam e o que eles poderiam fazer para superá-la. Igualmente, junto aos alunos, eu procurava clarear para eles a necessidade de uma prática mais humana e mais justa. (DOC-JDF)

Esse processo de transformações de si e das suas práticas mostra-se de modo contínuo na história da enfermeira e professora.

Em 1988, eu deixei a direção da escola e, em 1990, eu me aposentei. Eu me aposentei, mas continuei desenvolvendo; eu não parei minhas atividades. (ENT-JDF)

No ano 2014, me aposentei. Eu fiz 70 anos; no serviço público, quem faz 70 anos tem que sair. Apesar de eu estar no auge da minha produtividade, na época, eu era a professora da pós-graduação que tinha maior produção científica. Tive que sair, sair fisicamente, não tinha vínculo, mas passei a desenvolver atividade nesse programa de cooperação do professor aposentado com a universidade. Como até hoje eu estou, até hoje eu sou professora da pós-graduação, sou coordenadora de projetos do CNPq. Desde os anos de 2000 que eu coordeno pesquisas no CNPq. Eu sou pesquisadora 1. Continuo com atividades de orientação e colaborando com a Escola de Enfermagem. (ENT-JDF)

A (re)significação da prática profissional

Em sua atuação como enfermeira psiquiátrica no HUPES, Josicélia Fernandes vivenciou momentos de ressignificação de sua prática, frente às mudanças que estavam ocorrendo no campo da psiquiatria. Essas transformações tiveram início com a fragilização das concepções de cuidado, a partir do isolamento e repressão, que fundamentavam as práticas da enfermagem, conforme observa-se na fala:

Com a implantação desses movimentos da psiquiatria comunitária, nós começamos a deixar de lado aquela psiquiatria de custódia, de isolamento, de repressão, e passamos a ter algumas diretrizes modernizadas, ou seja, passamos a funcionar de portas abertas. [...] foi um movimento muito difícil a gente deixar de ter grades, mas o hospital não permitiu que não tivesse grades; as varandas eram todas com grades. Mas, por outro lado, a gente deixava a porta aberta, mas era uma porta aberta controlada, tinha uma funcionária de enfermagem na porta aberta, era uma porta aberta para dizer que estava aberta. (ENT-JDF)

Ainda, utilizou a coragem como um símbolo importante na construção de um objetivo: a seleção do concurso de professor assistente da EEUFBA.

[...] fez com que eu me decidisse a realizar o concurso da Escola de Enfermagem para a vaga de professor assistente da matéria Enfermagem Psiquiátrica. O meu primeiro trabalho de pesquisa já seria uma tese. Quanta coragem! [...] adentrei por um campo que me era familiar [a assistência ao paciente psiquiátrico], entretanto o método para caminhar nesse campo [o método científico e a metodologia da pesquisa] era, até então, para mim, desconhecido. Mas, como já disse, a coragem era muita [...] e passei a desvendar o que não me era familiar - o método da pesquisa. Nesse caminhar, elaborei a tese “Assistência de enfermagem face à ansiedade desencadeada pela terapêutica neuroléptica”, apresentada à Escola de Enfermagem e aprovada para concurso de Professor Assistente dessa unidade de ensino. (DOC-JDF)

A prática de enfermagem e as relações de poder

A vivência de Josicélia Fernandes também permitiu apontar o direcionamento do cuidado de enfermagem da época, o qual era centrado no tratamento tradicional, com foco na abordagem medicamentosa, na insulinoterapia e no eletrochoque. Vale destacar as dificuldades por ela enfrentadas na gerência do serviço de enfermagem para as mudanças necessárias no cuidado de enfermagem, já que a organização estava estruturada em um modelo de cuidado controlador e punitivo, conforme apresentam as falas a seguir:

Foi muito difícil a gestão nessa época, porque o hospital ainda era projetado num entendimento da psiquiatria repressora. A psiquiatria do eletrochoque, da insulinoterapia. Então, foi muito difícil a gente romper com esse paradigma e iniciar uma atenção psiquiátrica mais modernizada, de acordo com a época. Eu me lembro que tiveram episódios, assim, muito estressantes, foi muito difícil. Hoje não, hoje as coisas estão bem mais [...] eu diria bem mais leves, hoje o entendimento do atendimento psiquiátrico é bem diferente do que era há 10, 20 anos atrás. (ENT-JDF)

[...] a enfermaria funcionava de acordo com as características da atenção psiquiátrica da época. Era tratamento medicamentoso, não havia terapia ocupacional, nenhuma atividade a não ser as pacientes ficarem no leito. E passavam as 24 horas ali dentro da enfermaria recebendo medicamento. As terapêuticas na época, além da quimioterapia, eram feitos também o eletrochoque - eletrochoqueterapia e insulinoterapia. Esse era o esquema terapêutico da época. (ENT-JDF)

Os resultados também mostram que a enfermeira se destacava, a demonstrar pelo convite que recebeu da gestão do HUPES para ser enfermeira e chefe de enfermagem na ala de psiquiatria.

[...] já não era mais enfermeira plantonista, passei a ser convidada para ser a chefe de enfermagem da unidade psiquiátrica do chamado na época Hospital Edgard Santos. E aí, como eu já tinha essa bagagem já de trabalhar numa área de psiquiatria, eu fui chefiar a unidade psiquiátrica. (ENT-JDF)

Por fim, essa categoria também indica a relação da enfermeira e professora com profissionais influentes na área da saúde e do ensino, que auxiliaram na sua prática profissional:

No enfrentamento desse desafio, contei com a marcante colaboração das Professoras Maria Hélia de Almeida e Therezinha Teixeira Vieira para o suporte nas atividades relativas à administração de serviços de enfermagem e à assistência de enfermagem a pacientes clínico-cirúrgicos. Esse suporte foi de muita valia, considerando que muitos dos pacientes ali internados apresentavam não apenas problemas psiquiátricos, mas problemas de ordem geral [...]. (DOC-JDF)

O incentivo da Professora Stela Santos Sena fez com que eu me decidisse a realizar o concurso da Escola de Enfermagem para a vaga de professor assistente da matéria Enfermagem Psiquiátrica. Com a ajuda dessa professora e das Professoras Maria Hélia de Almeida e Maria Ivete Ribeiro de Oliveira, enfrentei o desafio. (DOC-JDF)

Os caminhos e as implicações no campo da psiquiatria e da saúde mental

Josicélia Dumêt Fernandes, antes de iniciar sua vida profissional acadêmica, atuou em um hospital psiquiátrico da Bahia, na época, considerado, para o momento histórico, uma organização inovadora, conforme evidenciado em falas a seguir:

No ano seguinte [1966], já graduada em enfermagem, participei da elaboração do anteprojeto do regimento desse hospital e passei a ocupar o cargo de Chefe do Serviço de Enfermagem. Para mim, foi um grande desafio ocupar um cargo de chefia sendo uma profissional recém-formada. (DOC-JDF)

A vivência na Casa de Saúde Ana Nery foi um desafio gratificante. Através de uma relação técnica e social com os demais membros da equipe de trabalho, consegui implementar uma experiência, até então, inédita em Salvador, a da “secretária de enfermagem”. Essa experiência favoreceu a possibilidade da enfermeira não se prender às atividades burocráticas, podendo exercer a assistência direta ao paciente, o que não era comum à época. (DOC-JDF)

Atuou, também, no Hospital Professor Edgard Santos, conhecido como Hospital das Clínicas, atualmente denominado HUPES, no qual foi convidada a ocupar o cargo de enfermeira plantonista na enfermaria de psiquiatria. Na mesma época, passou a participar do Programa de Integração de Docente Assistencial, em que desenvolvia atividades de ensino da EEUFBA, e assumiu a coordenação da enfermaria de psiquiatria.

Quando a direção do hospital me convidou para ser enfermeira de hospital, eu aceitei de imediato, porque já não estava com o mesmo encanto que eu tinha inicialmente com o hospital que estava trabalhando. Aceitei e comecei as minhas atividades, comecei a desenvolver as atividades como enfermeira do período da tarde e noite; na época, se chamava enfermeira plantonista. (ENT-JDF)

Como eu já tinha uma atividade na área de psiquiatria e a Escola de Enfermagem na época tinha, desenvolvia um Programa de Integração Docente Assistencial [IDA]. As enfermeiras que desenvolviam atividade numa determinada área de atuação colaboravam com o ensino da Escola de Enfermagem nessa determinada área. Então, eu fui convidada, já não era mais enfermeira plantonista, passei a ser convidada para ser a chefe de enfermagem da unidade psiquiátrica do chamado, na época, Hospital Edgard Santos. (ENT-JDF)

Entre suas atividades, no período em que atuou na chefia da enfermaria psiquiátrica, Josicélia Dumêt Fernandes ressaltou sua participação na implantação do serviço de Hospital Dia e na coordenação de atividades terapêuticas com usuários e familiares.

Na chefia de enfermagem da unidade psiquiátrica, implantei e coordenei a modalidade de assistência “Hospital Dia” - modalidade assistencial intermediária entre a atenção ambulatorial e a hospitalização integral - além de participar intensamente das atividades da “Comunidade Terapêutica”, onde coordenei grupos de pacientes hospitalizados, de pacientes egressos e de familiares. (DOC-JDF)

Em 1970, a enfermeira e professora prestou concurso para ingresso na UFBA e, em 1971, passou a fazer parte do quadro permanente da Escola de Enfermagem, mantendo suas atividades no hospital universitário até 1984.

Em outubro de 1970, fui habilitada, através desse concurso, a ocupar a vaga de professora assistente para a matéria Enfermagem Psiquiátrica. Em fevereiro de 1971, passei a fazer parte do quadro único de pessoal permanente da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia [...]. (DOC-JDF)

Além de professora, eu chefiava a unidade de enfermagem psiquiátrica. Pela manhã, desenvolvia as atividades no hospital, as atividades de psiquiatria, e de tarde, eu estava na Escola de Enfermagem dando aula, elaborando orientação de alunos, pesquisa, participação em atividade administrativa. (ENT-JDF)

[...] em 1984, eu deixei de chefiar a unidade para ser diretora da Escola de Enfermagem. Fui a primeira diretora eleita pela comunidade [...]. (ENT-JDF)

Contudo, é importante demarcar que, durante sua trajetória, sempre esteve atenta aos aspectos políticos e suas implicações. Ainda na academia, como estudante de enfermagem, esteve atenta às discussões do novo currículo e participou dos movimentos da UFBA e da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn).

Estava no segundo ano do curso quando eu percebi a movimentação da Escola de Enfermagem e da Associação Brasileira de Enfermagem/Seção Bahia [ABEn/Ba] que, de imediato, se mostraram insatisfeitas com o novo currículo, onde predominava a visão do homem como ser biológico, mascarando o aspecto social do processo saúde/enfermidade. Como estudante, comecei, então, a participar dos movimentos da escola e da ABEn/Ba, contrários ao currículo aprovado. Engajei-me nas discussões, no sentido de explicitar para minhas colegas as contradições contidas no Parecer 271/62, a fim de que pudéssemos encontrar, coletivamente, estratégias para soluções adequadas e consentâneas aos interesses da categoria. (DOC-JDF)

Em sua atuação como professora e pesquisadora na EEUFBA, em 1994, contribuiu para a criação do Grupo de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental (GESAM):

Em 1994, juntamente com a Professora Maria Rita Oliveira, demos os primeiros passos para a implementação do Grupo de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental [GESAM]. Esse grupo, vinculado à disciplina Enfermagem Psiquiátrica e Saúde Mental do Curso de Graduação da EEUFBA, revestia-se de características multi e interdisciplinares, favorecendo o desenvolvimento de pesquisas integradas, superando, assim, o fracionamento do saber em ramos isolados [...]. (DOC-JDF)

Também desenvolveu atividades na pós-graduação da EEUFBA. Iniciou com aulas na temática de psiquiatria e, ao longo de sua carreira no programa, desenvolveu dezenas de orientações de alunos de mestrado e doutorado.

Iniciei minhas atividades junto à pós-graduação da escola, ministrando aulas sobre aspectos de enfermagem nas terapêuticas psiquiátricas no Curso de Especialização em Enfermagem Médico-Cirúrgica, sob a forma de residência, atendendo à temática da disciplina Enfermagem Médico-Cirúrgica III. No que diz respeito à minha participação como professora em cursos de extensão, atualização e treinamento, destacam-se as aulas sobre orientação sexual na gravidez: aspectos psicológicos, aplicação dos princípios científicos da enfermagem psiquiátrica na realidade assistencial de Salvador, emergências psiquiátricas e relação enfermeiro/paciente. Desses cursos, fui professora e coordenadora dos três últimos. (DOC-JDF)

[...] exerci atividades de orientação acadêmica, participação em bancas examinadoras de cursos de doutorado, de mestrado e em processos seletivos. (DOC-JDF)

As experiências da Dra. Josicélia Dumêt Fernandes, tanto como enfermeira no hospital universitário quanto como professora e pesquisadora na universidade, impulsionaram seu nome como referência estadual e nacional na área da saúde mental, marcadamente pela realização de assessorias para organizações de saúde, universidades, revistas científicas, além de inúmeras palestras em eventos científicos nacionais e internacionais.

Até hoje, eu sou consultora, parecerista de artigos das revistas, de várias revistas brasileiras, nacionais e internacionais, sempre na área da enfermagem em saúde mental e também na área da educação [...]. (ENT-JDF)

Devido ao trabalho desenvolvido na equipe técnica da Comunidade Terapêutica da Clínica Psiquiátrica do Hospital Professor Edgard Santos, passei a ser convidada, principalmente, pela Associação Brasileira de Enfermagem/Seção Bahia, para proferir palestras e conferências sobre temas relativos à enfermagem na comunidade terapêutica e enfermagem em clínica psiquiátrica de Hospital Geral. (DOC-JDF)

A nível nacional, fui convidada a participar de diversos eventos científicos, proferindo palestras e conferências sobre temas ligados à formação de recursos humanos em enfermagem e à enfermagem psiquiátrica. (DOC-JDF)

DISCUSSÃO

A transformação de si e das práticas de saúde mental está imbricada na história de Josicélia Dumêt Fernandes. As questões construtivas da professora e enfermeira perpassaram por transformações vivenciadas em sua trajetória pessoal e profissional, sempre em busca da quebra de paradigmas que envolvessem a formação, a assistência e a gestão de enfermagem no campo da psiquiatria e saúde mental.

Esses acontecimentos exprimem a governabilidade de si, que implica a relação de si consigo mesmo, em um conjunto de práticas pelas quais é possível constituir, definir, organizar e instrumentalizar as estratégias dos indivíduos em sua liberdade. Os indivíduos tentam controlar, determinar e delimitar a liberdade dos outros e, para fazê-lo, dispõem de certos instrumentos para governar os outros. Isso se fundamenta, então, na liberdade, na relação de si consigo mesmo e na relação com o outro(88 Foucault M. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: Ditos & Escritos V: Ética, Sexualidade, Política[Internet]. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2004 [cited 2022 Jul 05]. Available from: https://aedmoodle.ufpa.br/pluginfile.php/405406/mod_resource/content/2/foucault_%20etica_cuidado_si.pdf
https://aedmoodle.ufpa.br/pluginfile.php...
).

Evidencia-se que ela é um sujeito político, cuja prática remete à esfera da liberdade, do pensamento e da ação humana, inerente ao encontro, que se expressa na vida privada e social do ser, permitindo adotar uma postura crítica, reflexiva e consciente da realidade, com implicações marcantes na sua categoria profissional(99 Santos NVC, Almeida DB, Silva GTR, Freitas GF, Almeida IFB, Silva DO. Contribuições de Stella Barros à enfermagem. Rev Enferm UERJ. 2019;27:e39003. https://doi.org/10.12957/reuerj.2019.39003
https://doi.org/10.12957/reuerj.2019.390...
).

A década de 1960 é marcada por mudanças na forma de pensar e praticar a psiquiatria, além do avanço na instituição de políticas públicas na área da saúde mental. Em 1966, a estratégia utilizada foram as Campanhas de Saúde, que deslocaram a centralidade da clínica médica para o sentido da atuação comunitária em saúde pública. Ainda com resquícios do cuidado asilar, essa experiência sofreu influência das inovações da psiquiatria europeia que foram disseminadas no Brasil(1010 Ribeiro GG, Silva GB, Holanda AF. Legislação em saúde mental no Brasil (1966-2001): trajeto das campanhas de saúde às reformas na assistência. Rev Psico FAE [Internet]. 2017 [cited 2022 Jul 28];6(1):13-30. Available from: https://revistapsicofae.fae.edu/psico/article/download/99/60
https://revistapsicofae.fae.edu/psico/ar...
).

Demonstrou vivências da prática em saúde mental condizentes com o início do processo de transformações de saberes na área. Utilizaram-se ressignificações e simbologias de persistência e coragem diante do processo de fragilização das concepções de cuidado, a partir do isolamento e repressão que fundamentavam as práticas da enfermagem até então(1111 Brolese DF, Lessa G, Santos JLG, Mendes JS, Cunha KS, Rodrigues J. Resiliência da equipe de saúde no cuidado a pessoas com transtornos mentais em um hospital psiquiátrico. Rev Esc Enferm USP. 2017;51:e03230. https://doi.org/10.1590/S1980-220X2016026003230
https://doi.org/10.1590/S1980-220X201602...
). Mesmo em um ambiente psiquiátrico, no qual estava mais exposta a desgastes físicos e psíquicos, o que tornava a capacidade de resiliência um constante desafio, ressignificou as vivências e continuou contribuindo para a qualidade do cuidado em saúde mental.

Em outro ponto desta análise, é necessário discutir o poder como dispositivo de (re)produção de sujeitos, este aqui compreendido como uma prática social e, como tal, constituído historicamente, expresso em um conjunto de relações que se exercem permanentemente, irradiando-se de baixo para cima, como uma rede que permeia todo o corpo social(1212 Machado R. Por uma genealogia do poder. In: Foucalt M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal; 1979.).

Para Foucault, o poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade que tem como alvo o corpo humano, visando aprimorá-lo e adestrá-lo. O que interessa é gerir a vida das pessoas, controlá-las em suas ações para que seja possível e viável utilizá-las ao máximo, aumentando a sua utilidade econômica, diminuindo os inconvenientes, os perigos políticos, aumentando a força econômica e diminuindo a força política. Não há saber neutro; todo saber é político porque tem sua gênese nas relações de poder(1212 Machado R. Por uma genealogia do poder. In: Foucalt M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal; 1979.).

Essas ressignificações vão se situar com as relações de poder encontradas na prática da enfermagem. Vale destacar que os resultados apontam que as práticas de Josicélia Dumêt, embora se encontrassem em um contexto de psiquiatria tradicional, tinham elementos que se aproximavam das discussões da Reforma Psiquiátrica que estava acontecendo no mundo, mas a organização estava estruturada em modelo de cuidado ainda controlador.

Nessa tônica, é preciso demarcar que, historicamente, o hospital psiquiátrico é um local de diagnóstico, classificação e vigilância. Ainda exercia o poder psiquiátrico sobre os doentes na medida em que direcionava, exclusivamente, as práticas com os adoecidos. A partir do século XIX, muito dos procedimentos praticados nos hospícios se caracterizavam como instrumentos de coerção voltados para isolamento e disciplina. Apesar de o hospital em que a enfermeira atuava não ser psiquiátrico, estava sob a égide de um modelo de cuidado dominante na época(1313 Muhl C. A conversa sobre a instituição psiquiátrica com Goffman e Foucalt. Rev Psico FAE [Internet]. 2019 [cited 2022 Aug 25];8(2):143-155. Available from: https://revistapsicofae.fae.edu/psico/article/view/249
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).

Para Foucault(1414 Foucalt M. Microfísica do poder. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2017.), nas instituições psiquiátricas, a micromecânica do poder, a partir de mecanismos de exclusão, estratégias de vigilância e medicalização da loucura, foi constituída e exercida em mecanismos sutis que organizam e conformam um determinado saber que se põe em deslocamento social(1414 Foucalt M. Microfísica do poder. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2017.).

Portanto, as relações de poder permeavam e permeiam os processos de saúde e, mais especificamente, o tratamento dos usuários de saúde mental. De modo evidente, a padronização da saúde mental pode ser percebida pelas várias intervenções e abordagens utilizadas com esses usuários ao longo da história e apontadas nos resultados, na tentativa desafiadora da enfermeira Josicélia de coadunar com a prática de superar paradigmas de cuidado estabelecidos na psiquiatria(1515 Henrique RLSP. A automutilação nas políticas de saúde mental: um olhar através do biopoder e sociedade disciplinar foucaultiana. Pretextos [Internet]. 2018 [cited 2022 Aug 8];3(6). Available from: http://periodicos.pucminas.br/index.php/pretextos/article/view/16023/13616
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).

Os resultados também apontaram que Josicélia Fernandes possuía saberes específicos que a conduziram a cargos de gestão, assim como relação com pessoas influentes. Em vista disso, é necessário apontar que as décadas dessas conquistas estavam impregnadas por relações de poder que se fundamentavam no machismo, com predomínio de profissionais homens, e na hegemonia da categoria médica nos cargos de gestão nas organizações de saúde(1616 Portes VM, Dallegrave D. Cargos de Gestão em Saúde: a (in)visibilidade de Gênero, Raça e Profissão. Saúde Redes. 2020;6(2):137-51. https://doi.org/10.18310/2446-4813.2020v6n2p137-151
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).

Ao situar uma análise arqueológica, pode-se compreender que tanto os discursos quanto as práticas expressam saberes. Ao analisar a trajetória de vida da professora, podem-se escavar, verticalmente, as camadas descontínuas do discurso, a fim de trazer à luz fragmentos de ideias, conceitos e discursos talvez esquecidos. A análise arqueológica é uma descrição do discurso em busca das regularidades que funcionam, tal como leis que governam as dispersões dos enunciados que compõem esse discurso(55 Foucault M. Tecnologias de si, 1982. Tradução por Andre Degenszajn; Verve [Internet]. 2004 [cited 2022 Feb 25];6:321-60. Available from: https://revistas.pucsp.br/index.php/verve/article/view/5017/3559
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).

Portanto, mesmo não explícitas nos resultados, devem-se considerar as estratégias utilizadas pela enfermeira e professora na aquisição de conhecimentos técnicos, nas concessões e desafios que enfrentou nesses espaços de poder. Mas, ao mesmo tempo, sua relação com profissionais enfermeiras influentes da época demonstra auxílio na carreira profissional, também se constituindo como relações de poder.

Ainda cabe destacar sobre as técnicas de produção e transformação dos sujeitos, expressas nos enunciados discursivos, permeadas de características da persona da Professora Josicélia Dumêt, como coragem, compromisso ético-político com a enfermagem e com a Reforma Sanitária e Psiquiátrica, disposição para mudanças e liderança. O que cabe destacar, mesmo não sendo foco deste estudo, para além dos espaços abordados aqui de sua atuação em espaços de liderança, Josicélia também foi coordenadora adjunta da área de enfermagem da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no período 2008-2011 e teve uma atuação notória na ABEn.

Outrossim, esses aspectos conformam uma história de vida potente, a partir da representação para as enfermeiras, e, por sua vez, das implicações nas trajetórias coletivas e individuais nesse campo de conhecimento, dando visibilidade a elementos da história e lugar de participação às enfermeiras na construção de novas perspectivas de atenção à saúde.

A vida da Professora Josicélia revela uma trajetória de produções e contribuições na área da psiquiatria e saúde mental. Ainda na década de 1960, iniciou sua vida profissional em um hospital psiquiátrico; atuou por quase três décadas na enfermaria de psiquiatria do HUPES como enfermeira plantonista e chefe do serviço; foi habilitada como professora de psiquiatria da EEUFBA; junto a outras colegas da área, fundou um grupo de estudo e pesquisa na área de saúde mental; participou de assessorias para diversas organizações da área; proferiu inúmeras conferências; atuou na CAPES, ABEn e teve diversas publicações científicas na área de psiquiatria e saúde mental.

Deve-se destacar, ainda, a implantação e coordenação de serviços inéditos no campo. Essa trajetória permite apontar que dedicou boa parte de sua vida a contribuições no campo da saúde mental, o que assegurou ser uma referência nesse campo temático. Nesse sentido, destaca-se que os conhecimentos produzidos fomentaram construções acerca da formação e assistência de enfermagem no campo da psiquiatria e saúde mental, o que fortaleceu sua identidade profissional como enfermeira e pesquisadora.

A trajetória de Josicélia Fernandes é atravessada pelas questões políticas, sociais e culturais que interferiram no cuidado em saúde mental no Brasil. Estudo refere que a enfermagem brasileira teve papel importante na transformação de modelos de cuidado no campo da psiquiatria, colaborando com a Reforma Psiquiátrica brasileira na mudança do estilo assistencial às pessoas em sofrimento mental(1717 Peres MAA, Martins GCS, Manfrini GC, Cardoso L, Fonseca PIMN, Shatell M. Vinte anos da lei da reforma psiquiátrica brasileira: significados para a enfermagem psiquiátrica e em saúde mental. Texto Contexto Enferm. 2022;31:e20220045. https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
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).

Ainda sob uma perspectiva foucaultiana, podem-se observar os jogos de verdade, as curvas de visibilidade, as linhas de força e fuga desta história de vida, atravessamentos de uma lógica dominante e práticas de libertação. Destacou-se a luta simbólica entre os modos e modelos de atenção dominantes e hegemônicos e os modelos de atenção inovadores, democráticos, humanitários e participativos(1818 Marcello FA. O conceito de dispositivo em Foucault: mídia e produção afonística de sujeitos-maternos. Educ Real [Internet]. 2004 [cited 2022 Aug 02];1:199-213. Available from: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/25426
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).

Isso implica referir que Josicélia Dumêt, ao longo dos anos, contribuiu para melhorias na formação, no trabalho dos enfermeiros e na prestação de cuidados, ainda que, na época em que atuava, os princípios da Reforma Psiquiátrica e as legislações em saúde mental no Brasil não tivessem adquirido conquistas e notoriedade. Além disso, como membro da ABEn, esteve na luta por melhorias para a categoria desde sua formação. Esse é um espaço que tem seu eixo na defesa e na consolidação do trabalho da enfermagem, ou seja, a enfermeira foi uma figura estratégica no fortalecimento da profissão nesse campo(1919 Almeida DB, Silva GTR, Queiros PJP, Freitas GF, Almeida IFB. História de vida de Josicélia Dumêt Fernandes: percurso de uma professora e enfermeira. Rev Enferm UERJ. 2017;25(1):e171052017. https://doi.org/10.12957/reuerj.2017.17105
https://doi.org/10.12957/reuerj.2017.171...
).

É importante demarcar a necessidade de que a história de uma enfermeira como a de Josicélia Dumêt, com as suas contribuições para as instituições e a área em que atou, precise ser escrita para tornar evidente o seu legado na construção histórica da enfermagem como profissão, especificamente na saúde mental, assim contribuindo para a construção da identidade da enfermagem e podendo ser fonte para novas pesquisas relacionadas à história da enfermagem(2020 Pereira FDO, Dantas RB, Oliveira DRC, Padilha MI, Teodósio SSCS. Biografias de enfermeiras brasileiras: constructos da identidade da profissão. Hist Enferm Rev Eletron[Internet]. 2019 [cited 2022 Jun 24];10(2):23-34. Available from: http://here.abennacional.org.br/here/v10/n2/a2.pdf
http://here.abennacional.org.br/here/v10...
).

É possível identificar, a partir de técnicas de compreensão do sujeito: a potência das técnicas de produção, em que a professora produziu e transformou suas práticas e também de um coletivo; técnicas de sistemas de signos, que permitiram a Josicélia, através da utilização de signos, sentidos e símbolos, ressignificar as práticas; as técnicas de poder, que determinaram a sua conduta e capacidade de liderança, objetivando o sujeito; e, por fim, as técnicas de si, o que permitiu à enfermeira efetuar, sozinha ou com a ajuda de outros, um certo número de operações sobre seu corpo e sua alma, seus pensamentos, suas condutas, seus modos de ser, de transformar-se, a fim de atender um certo estado de felicidade, de pureza, de sabedoria, de perfeição, ou de imortalidade(2121 Martin LH, Gutman H, Hutton PH. Technologies of the self: a seminar with Michel Foucalt. Université du Vermont; 1982.).

Limitações do estudo

As limitações deste estudo se relacionam com o foco da pesquisa em uma área e atuação da professora, não totalizando toda a dedicação de Josicélia Dumêt Fernandes à área temática apontada ao longo desses anos, além de não terem sido entrevistadas pessoas do entorno da Professora Josicélia.

Contribuições para as áreas da enfermagem, saúde ou políticas públicas

Permitiram evidenciar a trajetória da profissional Josicélia Dumêt Fernandes na condição de enfermeira e professora da Escola de Enfermagem da UFBA na área de psiquiatria e saúde mental, mostrando seu legado, pautado na transformação e consolidação de saberes, na conquista de espaços de liderança nos serviços em que atuou, em destaque no HUPES e na EEUFBA, e na implantação de serviços considerados inovadores na época.

Desse modo, este estudo contribui para a preservação da memória de enfermeiras e seu entrelaçamento com a história da Reforma Psiquiátrica na Bahia nas várias dimensões do trabalho da enfermagem, como cuidado, gerência, ensino, pesquisa e participação política. Do mesmo modo, fortalece a construção de conhecimento da disciplina da enfermagem e da identidade profissional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo permitiu a análise da história de vida da Josicélia Dumêt Fernandes, com ênfase na temática e na sua atuação na área da psiquiatria e saúde mental, demonstrando uma trajetória delineada pela busca por transformação de si e das práticas de saúde mental de modo contínuo, procurando quebrar paradigmas na área da psiquiatria e saúde mental. Destacou-se, também, a existência das relações de poder em sua prática profissional, vivendo desafios por ter elementos em sua prática que se aproximavam das discussões da Reforma Psiquiátrica diante de um modelo de cuidado psiquiátrico repressor.

A professora vivenciou o início do processo de transformação dos cuidados de saúde mental, necessitando realizar ressignificações da sua prática, com trajetória marcada por produções e contribuições na área da psiquiatria e saúde mental. Atuou em cargos de gestão e assistência, foi docente e pesquisadora na área, implantou serviços inovadores, dedicando boa parte de sua carreira profissional à área de saúde mental.

O estudo da biografia da profissional mostra seu legado na psiquiatria e saúde mental, mas também revela a lucidez, o empenho e a persistência em fortalecer o campo da enfermagem. Ela segue viabilizando e alicerçando suas práticas na evolução e transformação da enfermagem, sendo referência na formação de várias gerações de enfermeiras.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Rosane Cardoso

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2023
  • Aceito
    02 Nov 2023
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