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Meio século de convivência com Aluízio Prata: um depoimento em homenagem aos seus 90 anos

EDITORIAL

Meio século de convivência com Aluízio Prata. Um depoimento em homenagem aos seus 90 anos

Conheci Aluízio Prata no início de 1960, ele Professor Catedrático de Medicina Tropical da Universidade da Bahia e eu um recém-nomeado Instrutor de Ensino da Cadeira de Doenças Tropicais e Infectuosas, liderada pelo, também, Catedrático Professor José Rodrigues da Silva, na Faculdade de Medicina da então Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entrei no gabinete do Professor Rodrigues, como assim o chamávamos, para lhe falar de um caso de doença de Chagas que tinha um clássico bloqueio de ramo direito com hemibloqueio anterior esquerdo, megaesôfago, xenodiagnóstico positivo, mas a sorologia (fixação do complemento) era repetidamente negativa. Antes de falar com o professor, vi aquele jovem, moreno, cabelos e bigode pretos, muito bem vestido, como sempre, com o seu terno escuro, falando com familiaridade com o Professor Rodrigues que, como de costume, não nos apresentava de início aos visitantes, mas com frequência falava para eles sobre o nosso desempenho. Prata virou-se para mim e, como se fosse meu velho conhecido, disse "como vai Coura?". Certamente, o Rodrigues já havia falado para ele do jovem, e petulante cardiologista, que estava desenvolvendo o pomposo projeto "Coração Infeccioso", mas que ainda precisava aprender muito sobre as doenças infecciosas. Ao relatar o caso, o Prata me deu uma aula sobre sorologia na doença de Chagas, quando me disse: "isso pode ocorrer; a reação pode ser anticomplementar, ter um baixo título ou ser mesmo um falso negativo".

A minha amizade com Aluízio Prata começou a se fortalecer, em novembro de 1962, quando o Professor Rodrigues e ele, respectivamente, Presidente e Vice-Presidente da primeira diretoria da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, fundada em Ribeirão Preto, me colocaram como Secretário da Sociedade. Amizade, guardadas as devidas distâncias da época: eles eram Catedráticos e eu Instrutor de ensino. Quando fui para a Inglaterra, em 1963, O Professor Garnham me convidou para dar um seminário sobre doença de Chagas na London School of Tropical Medicine and Hygiene. Escrevi ao Professor Prata pedindo slides de patologia do que chamávamos na época de forma subaguda. Ele me escreveu perguntando "você já falou isso para o Rodrigues?". Quando eu respondi que sim, ele me mandou os slides. Eram as regras da época para evitar o ciúme profissional entre os catedráticos. Após a minha Livre Docência, em dezembro de 1965, quando fui bem sucedido, começou a minha alforria. Deixava de ser o menino do Rodrigues para ser um candidato a professor. Prata me convida pela primeira vez para falar em um simpósio sobre esquistossomose que ele organizou em Salvador, com apoio da Diretoria de Saúde da Marinha. Foi o meu debut, quando apresentei os resultados de um estudo clínico e experimental sobre esquistossomose pulmonar, mostrando que os macacos e coelhos, previamente sensibilizados com extrato de Schistosoma mansoni, faziam formas pulmonares mais graves quando embolizados com ovo de parasito e, um outro, com os resultados de 300 biópsias hepáticas em portadores de esquistossomose, mostrando que essa doença agravava e prolongava os quadros clínicos das hepatites. Desde então, tenho recebido numerosos convites do Prof. Prata, inclusive para escrever um capítulo com ele sobre "Formas Clínicas da Esquistossomose" no excelente livro editado por Omar Carvalho, Paulo Zech Coelho e Henrique Lenzi, em 2008.

A morte do Professor José Rodrigues da Silva, em maio de 1968, grande amigo do Professor Prata, foi uma enorme perda para ele, para mim e, porque não dizer, para o Brasil inteiro. Prata assume a Presidência da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, quando muito nos aproximamos; de um lado, pelas nossas relações na diretoria da SBMT e de outro, porque, como Professor Adjunto e único Livre-Docente, assumi interinamente o serviço e a cátedra deixada pelo Professor Rodrigues e adotei o Professor Prata como meu tutor e conselheiro. Talvez ele mesmo não tivesse se apercebido disso, mas estreitamos muito a nossa amizade. Em 22 de dezembro, daquele ano, data do aniversário do Professor Rodrigues, promovi no Pavilhão Carlos Chagas (sede do nosso serviço) uma grande homenagem ao meu mestre, quando estiveram presentes numerosos dos seus amigos e discípulos. Naquela cerimônia, falamos eu, sobre "um mestre, um amigo", Luiz Fernando Ferreira, um dos seus primeiros discípulos, Manoel José Ferreira, seu mestre, sobre "o despertar de uma vocação" e o Professor Aluízio Prata, seu íntimo amigo que falou sobre "uma vida dedicada à pesquisa científica", terminando a sua alocução dizendo: "Feliz da terra que tem filhos como José Rodrigues da Silva".

O Professor Aluízio Prata foi membro da Comissão Examinadora para o concurso de Professor Titular para a Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense, que fiz em 1970, quando fui aprovado, benevolentemente, com a nota máxima. Aquele concurso foi uma porta para que eu assumisse o cargo de Professor Titular, no ano seguinte, na UFRJ, que há 10 anos não abria concurso público para Professor Titular. Em 1973, Prata me pediu para que a sua discípula maior, Vanize de Oliveira Macedo, fizesse o concurso para Livre-Docente na minha disciplina no Rio de Janeiro, quem, após brilhante concurso, obteve naquele título, um passaporte para a sua titularidade na Universidade de Brasília, onde o substituiu. Uma das grandes honras da minha vida foi ter sido escolhido para receber Aluízio Prata, como membro titular da Academia Nacional de Medicina, em 25 de junho de 1996.

Entre os numerosos feitos da brilhante carreira do Professor Aluízio Prata, destaco: as três "Escolas de Medicina Tropical" que ele criou na Bahia, em Brasília e em Uberaba, povoando o Brasil inteiro de líderes de pesquisa nessa importante área e, ainda, o seu pioneirismo na criação das áreas de estudo de campo em Caatinga do Moura, São Felipe, Três Braços, Catolândia e Brejo do Espírito Santo, na Bahia, Mambaí, em Goiás, Água Cumprida, em Minas Gerais, Lábrea e Costa Marques, no Amazonas, entre outras em vários estados brasileiros.

Tive poucas colaborações científicas formais com o Professor Aluízio Prata, embora tivéssemos trabalhado em áreas semelhantes como doença de Chagas e esquistossomose, cujas áreas de campo que instalei em Minas Gerais, Paraíba, Piauí, Mato Grosso do Sul e Amazonas foram todas baseadas em seus trabalhos de campo; portanto, também, me considero um dos seus discípulos.

José Rodrigues Coura

Editor Convidado da RSBMT

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    Ago 2010
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