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O presente como temporalidade, ação e tomada de posição

The present as temporality, action and position taking

Resenha de TAYLOR, Diana. . ¡Presente!: The politics of presence.Durham: Duke University Press, 2020.

Resumo:

Resenha da obra ¡Presente!: The politics of presence (2020), de Diana Taylor. O livro parte de um conjunto de performances das quais a autora foi testemunha/partícipe para refletir como o conceito de “presente” envolve simultaneamente um ato, uma palavra, uma temporalidade e uma atitude.

Palavras-chave:
Presente; Epistemologia; Performance

Abstract:

Book-review of ¡Presente!: The politics of presence (2020), by Diana Taylor. The book, part of a set of performances in which the author witnessed/participated, reflects on how the concept of “presente” simultaneously involves an act, a word, a temporality and an attitude.

Keywords:
Present time; Epistemology; Performance

Nos últimos anos, as discussões sobre a definição de “presente” têm se adensado na historiografia. Como uma temporalidade relacional, alguns historiadores têm defendido que a sociedade ocidental contemporânea vivencia uma forma específica de lidar com o tempo na qual o presente não é apenas central, mas hipertrofiado, o que Hartog (2013HARTOG, François.Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.) chamou de presentismo. Hans Ulrich Gumbrecht (2010GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2010.), de forma análoga, tem defendido o presente enquanto uma temporalidade alargada na qual mais do que compreendermos a dimensão temporal, é importante analisar o lugar da presença, entendida como a relação entre mundo e objetos. Apesar das diferenças entre “presente” e “presença”, ambos os autores convergem em uma hipótese central: nosso tempo vivido é não somente permeado de presenças, mas é um instante de manifestação destes passados-presentes.

É dentro desse debate que Diana Taylor insere sua nova obra, intitulada ¡Presente!: The politics of presence. Publicada pela Duke University Press, em 2020, o livro reúne um conjunto de trabalhos, em perspectiva monográfica, de uma das principais referências no campo de estudos da performance, em especial na interface entre artes, memória e história. Professora do Departamento de Estudos da Performance na New York University e diretora-fundadora do Hemispheric Institute of Performance and Politics, Taylor é autora de uma série de trabalhos que debate noções como gênero, corpo, memória cultural, política e arte. Apesar da ampla bibliografia produzida, a pesquisadora ainda está em processo de expansão de suas teorias e análises no Brasil, país que conta com a tradução de apenas uma de suas obras, O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas (2013).

Em seu último projeto, publicado em inglês e espanhol, Taylor discute o conceito de “presente” para além de uma presença, definindo-o como simultaneamente um ato, uma palavra e uma atitude. Voltada aos debates políticos e aos usos sociais da memória, a autora defende que uma política da “presença”, a qual resultaria em “presentes”, depende de uma frequente reflexão sobre o “estar aí” e a subjetividade em um experimento de devir contínuo, relacional e participativo. De forma geral, a política da presença seria a oposição ao estático e à omissão, resultando em uma ação deliberada de ocupação da cena pública e combate às injustiças, ou seja, de tomada de posição.

Como pano de fundo para a construção de sua tese, Diana Taylor toma como eixos centrais a relação entre arte, performance e política, assim como a experiência e construção das identidades latinas nos Estados Unidos e latino-americanas nas Américas. Vale ressaltar, neste sentido, que sua obra, apesar de publicada em 2020, ecoa um conjunto de reflexões que remontam a contextos pregressos, mas que se acentuam a partir dos anos 2010, momento em que setores da comunidade latina, por exemplo, se deparam com a chamada “desilusão” com o governo Obama, contrastado com uma série de iniciativas midiáticas voltadas a esses setores.

É o diálogo com o período vivido por Taylor que impulsiona e potencializa sua elaboração teórica. Como acadêmica, a autora analisa e elabora reflexões epistêmicas e teórico-metodológicas a partir de processos dos quais é contemporânea, de forma a constantemente tecer análises que vão dos recursos analíticos ao tensionamento das dimensões éticas e morais. Enquanto sujeito inserido no contexto de análise que tenta historicizar e interpretar os processos, Taylor se percebe em uma situação de tomada de posição necessária, que não renuncia aos princípios analíticos. Ao contrário, recorre a eles para construir uma visão singular e potente de articulação entre academia e sociedade. Dessa forma, sua contribuição, que em certos campos já é bastante consolidada (como o campo das artes e linguagens), se torna singular diante da expansão de duas áreas de investigação em constante expansão no Brasil: a história pública e a história do tempo presente.

Conforme destacam Rodrigues e Borges (2021RODRIGUES, Rogério Rosa; BORGES, Viviane(eds.). História pública e história do tempo presente. São Paulo: Letra e Voz, 2021., p. 8), em obra voltada ao debate sobre a interface dos dois referidos campos, história pública e história do tempo presente se interseccionam ao abordarem passados que não passam, o “presente que ora parece estacionar, ora parece escapar rumo ao futuro incerto”. Para os autores, esse tempo vivido latente por análises das múltiplas camadas que permeiam o presente, demandaria um rigor teórico-metodológico central para que o momento de análise, que é o próprio momento analisado, não seja enganoso, seduzente ou mesmo fugidio. A interface entre história pública e história do tempo presente tem servido como campo profícuo para esse debate, para a composição de um quadro de análises que destaque a centralidade da tomada de posição e a mediação do historiador, sem a descaracterização da operação historiográfica ou o esvaziamento dos sentidos a ele atribuído.

Dentro desse quadro de interconexões e virada epistêmicas fomentado pelas conexões entre história pública e história do tempo presente é que a obra de Diana Taylor - que não é historiadora, mas se aproxima do campo frequentemente; se apresenta enquanto provocativa, referencial e uma leitura urgente. Taylor aborda diversas questões que envolvem um esforço analítico de um presente que é “nosso” e “por nós composto”, sem recorrer a análises interpretativas que, no campo da arte e da memória, viriam a estabelecer lógicas demasiadamente analíticas que anulariam todo e qualquer potencial revolucionário ou político das performances, como já citado por Susan Sontag (2020SONTAG, Susan. Contra a interpretação e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.). A autora, neste sentido, defende a tomada de posição, em especial pela aproximação e imersão na linguagem e performance como elementos centrais, defendendo que o impacto/afeto dos atos performativos potencializam a ação de sujeitos no tempo e suas formas de manifestação política, ou seja, sua presença estabelece um conjunto de operações relacionais.

Neste aspecto, cabe uma atenção especial ao conceito de performance definido por Taylor. Ao menos desde O arquivo e o repertório (2013TAYLOR, Diana.O arquivo e o repertório: “performance” e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013.), a autora defende que performance, apesar de ser um conceito de difícil definição, em especial entre acadêmicos e artistas, pode ser compreendida como um “ato de transmissão de memórias” nas quais performer, público e espaço compartilham e estabelecem relações de afeto mútuo a partir de elementos físicos e subjetivos. Performance, dessa forma, implica mediação, ação consciente e inconsciente de uma comunicação que promova a presença não enquanto uma mera reprodução, mas como parte de uma narrativa mediada, frequentemente, por roteiros que articulam elementos do senso comum a vestígios do passado e intenções políticas futuras.

Para a autora, a dimensão relacional seria o que possibilitaria um compartilhamento de memórias, pois “a performance constitui o objeto/processo de análise nos estudos da performance, isto é, as muitas práticas e eventos [...] que envolvem comportamentos teatrais, ensaiados ou convencionais/apropriados para a ocasião” (Taylor, 2013TAYLOR, Diana.O arquivo e o repertório: “performance” e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013., p. 27). No entanto, como viria a adensar posteriormente, performance não é apenas um “ato”, mas demanda uma nova construção epistêmica que relacione arte, temporalidade e experiência. Neste sentido, para Taylor (2016TAYLOR, Diana.Performance. Durham: Duke University Press, 2016., p. 39; tradução nossa), performance é “uma prática e uma epistemologia, um fazer criativo, uma lente metodológica, uma forma de transmitir memória e identidade, e uma forma de compreender o mundo”.

A dimensão epistemológica e de “lente metodológica” é a principal forma como performance é assumida em ¡Presente!: The politics of presence. Em vez de propor distinções ou definições fechadas, o que a autora considerou como uma cimentação teórica, Taylor procura expandir o leque dos atos performativos e suas práticas políticas como modos de estar “presente”. Nas palavras da autora,

existem, como tenho insistido ao longo do tempo, muitas formas de estar presente! Eu uso esses termos, então, não para privilegiar entendimentos claros da dinâmica política, como alto/baixo, ruim/bom, eficaz/fracassado, populista/elitista ou real/fingido. É urgente lembrar que o desempenho é sempre instável. Mais uma razão para entender o grau em que várias formas de presente (incluindo performativos e animativos) podem perturbar e derrubar hierarquias e estruturas políticas, e seus discursos legitimadores, por interrupções decretadas a partir e no terreno (Taylor, 2020TAYLOR, Diana. ¡Presente!: The politics of presence. Durham: Duke University Press , 2020, p. 51).

Ao entender performance como um “enquadramento” epistemológico e um ato consciente de compartilhamento de memórias promovedoras de novas narrativas e representações, Taylor define o presente como uma ação de ocupar a cena pública e, principalmente, mobilizar narrativas sobre passados de forma a ancorar intencionalidades políticas para um tempo vivido e agir de maneira a construir futuros possíveis. Sua teoria do ¡Presente!, como trata em toda obra, é uma teoria sobre as políticas e estratégias de ação humana que, por meio da arte ou do ato civil, vinculam passados a tempos precários de modo a construir uma temporalidade de instabilidade, mediação e engajamento. A política da presença é, nesse entendimento, uma dupla ação baseada na atuação no tempo vivido em uma construção performática pública e na elaboração de modos de narrar uma temporalidade do “ainda aí”, demonstrando a historicidade e a problemática do presente.

Para elucidar melhor sua proposta, Taylor passa a uma série de análises de “estudos de caso” que envolveu não somente a pesquisa e a interpretação, mas a aproximação enquanto sujeito-presente das performances assistidas. Ao longo de nove capítulos, para além de um potente epílogo, somos apresentados a uma série de experimentações e movimentos políticos, artísticos e ativistas que vão do movimento zapatista às narrativas sobre identidades queer, passando por debates sobre trauma e a Villa Grimaldi no Chile, por exemplo. Cada um dos nove capítulos da obra perpassa uma situação limite ou um momento em que a “presença” desestabiliza expectativas e o próprio-passado presente, de forma a relacionar temporalidades, sujeitos e política.

De certo modo, o exercício reflexivo empreendido em ¡Presente!: The politics of presence se aproxima das discussões recentes de Ivan Jablonka (2021JABLONKA, Ivan. A história é uma literatura contemporânea. Brasília: Editora UNB, 2021.), para quem a defesa sobre uma suposta necessidade de distanciamento em prol de um cientificismo ilusório da disciplina seria parte de uma construção retórica de defesa do campo em meio à emergência das demais ciências a partir do século XIX. Desta forma, tanto Taylor quanto Jablonka defendem uma espécie de atitude indisciplinada da história, não por romper com os pressupostos ético-metodológicos, mas por lembrar que todo parâmetro é historicamente construído e que devemos constantemente rever as bases, conceitualizações e metodologias. A reflexão, de cunho epistêmico, mas também prático, é benéfica e latente para a historiografia brasileira que, nos últimos anos, tem sido desafiada por movimentos revisionistas e negacionistas enquanto, em outra ponta, tem se visto cada vez mais demandada por mobilizações em torno ao direito de memória e justiça.

Mais que uma conclusão, Taylor tenciona e ressalta que um possível caminho a ser adotado exista no reconhecimento da “presença” do pesquisador/historiador enquanto sujeito inscrito em um tempo que é seu, mas é também seu objeto de análise, abrindo-se para uma nova forma de ver a marcha do tempo. Ao término da obra, um epílogo provocativo lança a questão que perpassa toda a obra “o que fazer quando parece que nada pode ser feito e fazer nada não é uma opção?” (Taylor, 2020TAYLOR, Diana.O arquivo e o repertório: “performance” e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013., p. 245; tradução nossa). Justamente ao questionar a impossibilidade de inércia no presente é que Taylor retoma sua teoria, exposta em Arquivo e repertório (2013), sobre a centralidade da memória e do trauma para performances artísticas e políticas. Através de cada momento, que a autora chamou de “cenas de encontros”, impulsionadores dos capítulos analisados, Diana Taylor reafirma que a relação heurística existente em seu entendimento a respeito do “presente” (temporalidade e estado de ação) é o que alimenta a condição humana contemporânea e pode ser, do ponto de vista historiográfico, uma saída possível para enfrentar os tempos precários.

A centralidade do argumento de ¡Presente!: The politics of presence está no reconhecimento que todo sujeito age sob o tempo vivido a partir de seus repertórios, mesmo em movimentos considerados, por vezes, “fracassados”. Em vez de respostas conclusivas, uma espécie de análise redutora como defendem Hartog (2013HARTOG, François.Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.) ou Gumbrecht (2010GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2010.) ao debater o “presente”, Taylor destaca que precisamos perceber as formas como presenças e presentes que ultrapassam limites temporais e espaciais. Trata-se, assim, não apenas de reconhecer as múltiplas temporalidades que compõem o tempo presente (Rodrigues; Borges, 2021RODRIGUES, Rogério Rosa; BORGES, Viviane(eds.). História pública e história do tempo presente. São Paulo: Letra e Voz, 2021.), mas de compreender que aquilo que percebemos é o transbordar de temporalidades que buscam ancoragem na performance. Por isso, a autora reafirma que, para entender o tempo presente, é preciso reconhecer a dimensão de afeto e efeito que esse tempo e a nossa relação com ele desempenham na academia. Ao propor certa indisciplinarização (dialogando com autores como Frantz Fanon, Achille Mbembe, Silvia Rivera Cusicanqui), defende que a ética da pesquisa acadêmica, necessariamente, deve ser composta não apenas por métodos e teorias, mas também pelo reconhecimento de que somos sim, presentes, nesse nosso presente.

Referências

  • GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2010.
  • HARTOG, François.Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
  • JABLONKA, Ivan. A história é uma literatura contemporânea Brasília: Editora UNB, 2021.
  • RODRIGUES, Rogério Rosa; BORGES, Viviane(eds.). História pública e história do tempo presente São Paulo: Letra e Voz, 2021.
  • SONTAG, Susan. Contra a interpretação e outros ensaios São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
  • TAYLOR, Diana.O arquivo e o repertório: “performance” e memória cultural nas Américas Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013.
  • TAYLOR, Diana.Performance Durham: Duke University Press, 2016.
  • TAYLOR, Diana. ¡Presente!: The politics of presence Durham: Duke University Press , 2020

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2023
  • Aceito
    04 Set 2023
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