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Distorcionismo: uma nova categoria de análise para o campo de batalha da história no século XXI

Distorcionism: a new category of analysis for the battlefield of history in the 21st century

Resumo:

Entre os maiores desafios ético-políticos da historiografia no século XXI estão as práticas de falsificação e manipulação do passado. Este artigo propõe a categoria distorcionismo, assinalando sua particularidade em relação ao revisionismo e negacionismo e oferecendo exemplos de sua aplicabilidade, tendo a ditadura militar brasileira como campo de análise. Problematiza e sugere um remanejamento dos significados atribuídos a esses conceitos, buscando precisar as fronteiras entre operações legítimas e abusivas no exame do passado. Justifica a pertinência da categoria distorcionismo argumentando que ela permite dar maior precisão conceitual na tarefa de caracterizar e historicizar as estratégias retóricas utilizadas para deturpar a história, as quais não se reduzem a operações de negação de eventos e processos históricos consolidados ou de revisão interpretativa do passado.

Palavras-chave:
Negacionismo; Usos do passado; Manipulação histórica

Abstract:

Among the major ethical-political challenges of historiography in the 21st century are the practices of falsifying and manipulating the past. This article proposes the category of distortionism, pointing out its particularity in relation to revisionism and negationism and offering examples of its applicability, taking the Brazilian military dictatorship as a field of analysis. The article discusses and suggests a rearrangement of the contents attributed to those concepts, seeking to specify the boundaries between legitimate operations and abusive ones in the examination of the past. It justifies the pertinence of the category distortionism by arguing that it allows for greater conceptual precision in the task of characterizing and historicizing the rhetorical strategies used to misrepresent history, which are not reduced neither to operations of denying consolidated historical events and processes nor revising interpretations of the past.

Keywords:
Negationism; Uses of the past; Historical manipulation

A entrada do Brasil no século XXI foi seguida de crescente preocupação dos historiadores com usos manipulatórios e falseadores do passado, derivada de três fenômenos que vêm produzindo impactos significativos nas inquietações historiográficas recentes: a reação conservadora aos governos progressistas do Partido dos Trabalhadores; a resposta mercadológica a uma ampliação da demanda do público pelo passado; e a ascensão de uma nova direita. Em decorrência, é notável o aumento, nos últimos anos, de publicações e eventos acadêmicos que têm por tema o negacionismo e/ou revisionismo. A discussão, anteriormente centrada nos desdobramentos do pós-guerra europeu, ganhou terreno no Brasil em resposta a empreendimentos mercadológicos (Malerba, 2014MALERBA, Jurandir. Acadêmicos na berlinda ou como cada um escreve a história?: uma reflexão sobre o embate entre historiadores acadêmicos e não acadêmicos no Brasil à luz dos debates sobre “public history”. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 15, p. 27-50, 2014. ; Venâncio, 2021VENÂNCIO, Renato. O incorreto no “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”. Editora do Autor, 2021. (Kindle)) ou à “historiografia midiática” (Meneses, 2019MENESES, Sônia. Negacionismos e histórias públicas reacionárias: os usos abusivos do passado em tempos de pós-verdade. Opsis, v. 19, n. 2, p. 1-9, 2019.) e ampliou-se significativamente após a aprovação da Lei de Cotas e o advento da Comissão Nacional da Verdade (CNV), como reação, respectivamente, à democratização do acesso às universidades públicas e à constituição de uma memória institucionalizada de rechaço à ditadura militar. A eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República em 2018 e seu governo, por sua vez, contribuíram para consolidar uma direita radicalizada, engajada no que se convencionou chamar de “guerra cultural” (Rocha, 2021ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Caminhos, 2021.), ou seja, a disputa pela hegemonia na interpretação de passados sensíveis, com forte presença no debate público (Bauer, 2020BAUER, Caroline Silveira. Usos do passado da ditadura brasileira em manifestações públicas de Jair Bolsonaro. In: KLEM, Bruna Stutz; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; ARAÚJO, Valdei Lopes de (orgs.). Do fake ao fato: (des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Milfontes, 2020. p. 183-204.; Valim, Avelar, Bevernage, 2021VALIM, Patrícia; AVELAR, Alexandre de Sã; BEVERNAGE, Berber. Negacionismo: história, historiografia e perspectivas de pesquisa. Revista Brasileira de História, v. 41, n. 87, p. 13-36, 2021.; Avila, 2021AVILA, Arthur Lima de. Qual passado escolher? Uma discussão sobre o negacionismo histórico e o pluralismo historiográfico. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 41, n. 87, p. 161-184, 2021.).

Esses fenômenos não estão isolados nas fronteiras nacionais, pois articulam-se a um processo muito mais amplo de consolidação de movimentos de extrema-direita, de variados matizes. Consequentemente, a ocorrência da negação ou relativização de acontecimentos históricos traumáticos do século XX vêm se expandindo nas últimas décadas, sendo complexificada pela capacidade de amplificação de vozes e discursos oferecida pelas redes sociais:

A internet permitiu o florescimento de mentiras históricas porque virtualmente qualquer pessoa pode postar qualquer coisa sob qualquer nome, sem análise prévia e sem qualquer sanção. As afirmações mais bizarras circulam amplamente e adquirem alguma credibilidade pela simples razão de estarem circulando (Hunt, 2018HUNT, Lynn. History: why it matters. Cambridge: Med­ford-MA, 2018., p. 4; tradução nossa).

Há certo consenso de que essas práticas, embora não sejam recentes, tiveram desdobramentos muito significativos na virada do século XXI, transformando-se num fenômeno global (Valim, Avelar, Bevernage, 2021VALIM, Patrícia; AVELAR, Alexandre de Sã; BEVERNAGE, Berber. Negacionismo: história, historiografia e perspectivas de pesquisa. Revista Brasileira de História, v. 41, n. 87, p. 13-36, 2021.), com um ameaçador e exponencial potencial de crescimento com o advento da inteligência artificial e ferramentas como o ChatGPT (Harris, 2023HARRIS, Sam. What do we know about our minds? Com Paul Bloom. Making Sense, episódio 317. 20 abr. 2023. (podcast)). Esse quadro se agrava quando se nota que as narrativas falseadoras sobre o passado, orientadas para a luta pelo poder no presente, frequentemente emulam os procedimentos narrativos que caracterizam a escrita da história feita por historiadores profissionais, no intuito de sustentar sua pretensão de legitimidade perante o público. Compreender as estratégias retóricas que motivam essas iniciativas é uma questão que se coloca, portanto, na ordem do dia.

Nesse quadro desafiador à delimitação de fronteiras entre a construção de conhecimento histórico, de um lado, e empreendimentos relacionados ao passado impelidos por móbiles diversos, de outro, a terminologia corrente para nomear derivas ou falseamentos nos parece insuficiente e problemática, por frequentemente resultar em uma confusão terminológica entre procedimentos historiográficos de natureza muito diversa e até contraditória. Neste artigo propomos uma nova categoria, distorcionismo, para nomear práticas manipulatórias na reconstrução do passado que simulam procedimentos metodológicos da historiografia acadêmica, porém desprovidas de compromisso ético e epistêmico com a produção do conhecimento. Argumentamos que essa categoria é útil na medida em que confere maior precisão a uma modalidade de deturpação do passado que se distingue de outras operações, que podem ser tanto falseadoras, como o negacionismo, ou legítimas do ponto de vista historiográfico, como o revisionismo.

Nosso intuito é contribuir para o rico debate teórico que vem sendo construído em torno dos abusos do passado, oferecendo um instrumento que permita distinguir, de modo mais objetivo, revisões analíticas da história - método que, ao desafiar perspectivas consolidadas, concorre para seu aperfeiçoamento e consistência, ao mesmo tempo em que propõe novos olhares e possibilidades interpretativas - e manipulação orientada por razões ideológicas e/ou mercadológicas - nas quais não é o conhecimento do passado, com suas contradições e complexidades, que interessa, mas seu uso imediato e instrumental.

A exposição de nosso argumento enfrenta uma questão que o chamado giro linguístico legou para o campo historiográfico, baseada na premissa filosófica da descontinuidade ontológica entre vida e narrativa: a tese de que o significado construído sobre as vivências do passado não é imanente à própria vivência, mas emerge de uma elaboração da inteligência narrativa do historiador. “Histórias não são vividas, mas contadas. A vida não possui inícios, meios ou fins” (Mink, 1987MINK, Louis. Historical understanding. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1987., p. 60). Nesse sentido, a narrativa não pode pretender que o significado produzido pela representação tenha alguma “correspondência” com a vivência do passado à qual o texto faz “referência”, já que esse significado é produzido por um ato poético (a elaboração do enredo).

Dando consequência e desenvolvimento às teses do chamado giro linguístico, Hayden White (1992WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EdUSP, 1992., p. 14) extraiu como uma das conclusões gerais do clássico Meta-história: a imaginação histórica do século XIX que “os melhores fundamentos para escolher uma perspectiva da história em lugar de outra são em última análise antes estéticos ou morais que epistemológicos”. É importante ressaltar desde logo que essa afirmação não implica que o historiador deveria abdicar de qualquer pretensão de verdade na reconstrução do passado. O que White tinha em mente era, em linhas gerais, defender que não há uma única maneira de enredar os eventos históricos, de modo que a pluralidade de narrativas é menos um prejuízo do que algo salutar para a compreensão do passado.

As teses de White ensejaram um longo e precioso debate que ainda hoje está em andamento (Cezar, 2015CEZAR, Temístocles. Hamlet brasileiro: ensaio sobre o giro linguístico e a indeterminação historiográfica (1970-1980). História da Historiografia, Ouro Preto, n. 17, p. 440-461, 2015.; Kukkannen, 2015KUUKKANEN, Jouni-Matti. Postnarrativist philosophy of historiography. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2015.). No que diz respeito ao tema deste artigo, sua perspectiva leva a pensar que o melhor antídoto contra as manipulações ideológicas da história consiste não em afirmar uma única narrativa “certa” ou “objetiva”, mas em apostar na pluralidade das narrativas históricas possíveis. Trata-se, conforme a formulação de Arthur Avila (2021)AVILA, Arthur Lima de. Qual passado escolher? Uma discussão sobre o negacionismo histórico e o pluralismo historiográfico. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 41, n. 87, p. 161-184, 2021., do princípio do “pluralismo historiográfico” para orientar a confrontação com a retórica típica dos empreendimentos negacionistas de que “a verdade” da história (no singular) foi “roubada”, “sufocada” ou “sequestrada” do grande público pela ação “perversa” dos… historiadores profissionais!

Também consideramos ser importante assinalar que as teses de White sobre a escrita da história foram formuladas, grosso modo, em um contexto anterior à “era digital” e à enorme proliferação de narrativas concorrentes, dissonantes e, no mais das vezes, fragmentárias e descontextualizadas. Tendo em vista esse cenário, a questão de saber quais critérios epistemológicos possibilitam discernir histórias mais verdadeiras que outras não teria adquirido, nesta atual quadra histórica, uma nova dimensão e relevância? Ao levantar essa pergunta, não estamos propondo um retorno a um “realismo ingênuo”, como bem adverte Avila (2021AVILA, Arthur Lima de. Qual passado escolher? Uma discussão sobre o negacionismo histórico e o pluralismo historiográfico. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 41, n. 87, p. 161-184, 2021., p. 173). Em vez disso, gostaríamos de oferecer uma contribuição para uma das tarefas propostas aos historiadores neste milênio (Meneses, 2019MENESES, Sônia. Negacionismos e histórias públicas reacionárias: os usos abusivos do passado em tempos de pós-verdade. Opsis, v. 19, n. 2, p. 1-9, 2019.), que consiste em desvendar e historicizar os móbiles que caracterizam os empreendimentos manipuladores do passado e esmiuçar suas estratégias. Cremos que a categoria distorcionismo pode contribuir com essa importante tarefa.

Dimensão ético-política e engajamento na produção histórica

Ao falar de memória manipulada, Paul Ricoeur (2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007., p. 455) reconhece que

antes do abuso, há o uso, a saber, o caráter inelutavelmente seletivo da narrativa [...] As estratégias do esquecimento enxertam-se diretamente nesse trabalho de configuração: pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as ênfases, refigurando diferentemente os protagonistas da ação assim como os contornos dela.

Por envolver possibilidades muito variadas de composição dos elementos que constituem a narrativa histórica, o ofício do historiador efetivamente abre margem para um nível não desprezível de variabilidade. Porém, o risco para qual o filósofo adverte, considerando-o como o “perigo maior”, é o “manejo da história autorizada, imposta, celebrada, comemorada - da história oficial” (Ricoeur, 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007., p. 455).

Nossa aposta, porém, é de que na “era digital” o desafio maior talvez seja, antes, a grande fragmentação de narrativas que circulam sem passar pelas instâncias regulatórias que caracterizavam a escrita da história moderna - tais como o Estado e a universidade. Dessa forma, a distinção entre histórias críticas e manipulatórias tende a ser cada vez mais dissolvida para o público não especializado. A esse respeito, vale a pena lembrar do diagnóstico elaborado ainda em 1979 por Jean-François Lyotard (2009)LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. sobre as mudanças nos critérios de legitimação do saber: enquanto na modernidade essa legitimação era conferida a partir da avaliação dos especialistas, na condição epistemológica pós-moderna o critério básico é o do “desempenho” que, no caso aqui em debate, se expressa, por exemplo, pela quantidade de visualizações e/ou seguidores nos canais e perfis em redes sociais. Neste contexto, o critério de legitimação pública das histórias tem se deslocado: situa-se cada vez menos nas balizas epistemológicas e éticas que constituem a produção historiográfica especializada, e mais em sua capacidade e força de repetição e circulação - ainda que, muitas vezes, às custas de falsificações abertas ou mascaradas.

Diante disso, alguns autores (Rangel, Araujo, 2015RANGEL, Marcelo de Mello; ARAUJO, Valdei Lopes de. Apresentação: teoria e história da historiografia: do giro linguístico ao giro ético-político. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 17, p. 318-332, 2015.) têm apontado que a tematização historiográfica do passado encontra no chamado giro ético-político uma justificação adequada e promissora. Defendem que a historiografia se legitima como um empreendimento intelectual válido e importante para o tempo presente na medida em que tem uma determinação específica, a saber: tematizar o passado no intuito de pensar (ética) e/ou intervir (política) no mundo. Entre os desdobramentos do giro ético-político, o mais significativo para a nossa discussão reside no “esgotamento da autonomia e do poder de persuasão da justificativa de que a historiografia produz conhecimentos privilegiados sobre os passados” (Rangel, Araujo, 2015RANGEL, Marcelo de Mello; ARAUJO, Valdei Lopes de. Apresentação: teoria e história da historiografia: do giro linguístico ao giro ético-político. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 17, p. 318-332, 2015., p. 330). A ênfase na dimensão ético-política não significa que as bases epistemológicas da historiografia - o compromisso com o conhecimento e a busca pela verdade histórica - tenham sido suprimidas. Muito pelo contrário: ética, política e epistemologia devem ser pensadas juntas, e não apartadas uma da outra. Desse modo, gostaríamos de enfatizar que nem o giro linguístico nem o ético-político implicam assumir que a brecha está aberta para que discursos “alternativos” sobre a história possam pleitear ser tão válidos quanto as narrativas elaboradas segundo os protocolos que definem a produção historiográfica profissional.

Ao falarmos sobre esses preceitos, esbarramos no tema do engajamento, problematizado por Eric Hobsbawm (19981964: o Brasil entre armas e livros. Porto Alegre: Brasil Paralelo, 2019. On-line (127’19”). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yTenWQHRPIg . Acesso em: 10 maio 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=yTenWQHR...
, p. 138) nos seguintes termos:

“Engajamento” é uma dessas palavras, como “violência” ou “nação”, que escondem uma variedade de significados sob uma superfície aparentemente simples e homogênea. [...] Em seu sentido mais amplo pode ser meramente outro modo de negar a possibilidade de uma ciência puramente objetiva e livre de valoração, uma proposição da qual poucos historiadores, cientistas sociais e filósofos hoje discordariam inteiramente. No extremo oposto encontra-se a disposição de subordinar os processos e descobertas da pesquisa às exigências do compromisso ideológico ou político do pesquisador e tudo que isso implica, inclusive a subordinação dos mesmos às autoridades ideológicas ou políticas por ele aceitas: porém, muitas dessas exigências podem conflitar com o que seriam aqueles processos e descobertas sem tal ditame.

Hobsbawm distingue entre o engajamento “legítimo” - escolher temáticas que possam servir às causas políticas defendidas, ao ampliar o conhecimento sobre elas, ou dar visibilidade a questões que julga importantes e são normalmente escanteadas - e o “ilegítimo” - aquele que submete o compromisso científico a uma causa, a ponto de confundir a advocacia com a discussão acadêmica. O limite traçado não está nas escolhas sobre o que investigar - no mais impulsionadas na grande maioria das vezes pelas convicções pessoais do pesquisador -, mas na disposição de revisar as próprias certezas, diante de refutações cientificamente comprovadas: “Por mais que na prática relute em fazer isso, na teoria todo participante do debate científico deve acatar a possiblidade de se permitir ser publicamente persuadido por argumento ou evidência contrários” (Hobsbawm, 1998HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., p. 146). Os engajamentos, porque são plurais e advém de fontes diversas, podem contribuir para o avanço da ciência. Exemplo observável no Brasil é o dos estudantes cotistas nas universidades públicas, que desafiam concepções assentadas, aportam problemas novos e apresentam abordagens e propostas de soluções que acrescentam prismas diferenciados à pesquisa acadêmica (Carreira, Heringer, 2022CARREIRA, Denise; HERINGER, Rosana (orgs.). 10 Anos da Lei de Cotas: conquistas e perspectivas. E-book. Rio de Janeiro: Faculdade de Educação/UFRJ: Ação Educativa, 2022. Disponível em: Disponível em: https://pesquisaleidecotas.org.br/wp-content/uploads/2022/11/Livro_Lei_de_Cotas.pdf . Acesso em: 4 set. 2023.
https://pesquisaleidecotas.org.br/wp-con...
, p. 113, 114, 266, 509).

Outra questão que constitui um desafio produtivo para a história acadêmica é a demanda social por história, muitas vezes traduzida em uma ânsia por produções simplificadas e asseguradoras, que confirmem ideias preconcebidas, ou que ofereçam verdades seguras e estáveis, ainda que sob o manto de novidades, mais do que espaços de reflexão: “Como o rápido crescimento de museus históricos mostra, vivemos em um momento obcecado pela história, mas também em uma época de profunda ansiedade em relação à verdade histórica” (Hunt, 2018 p. 1; tradução nossa). O campo tem respondido produtivamente a essa expansão do interesse pelo passado: o desenvolvimento da história do tempo presente (Allier Montaño, Ortega, Ovalle, 2020ALLIER MONTAÑO, Eugenia; ORTEGA, César; OVALLE, Camilo. En la cresta de la ola: debates y definiciones en torno a la historia del tiempo presente. México: Unam; Bonilla Artiga, 2020.) e da história pública (Santhiago, 2018SANTHIAGO, Ricardo. História pública e autorreflexividade: da prescrição ao processo. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 286-309, 2018.; Rodrigues, Borges, 2021RODRIGUES, Rogério Rosa; BORGES, Viviane (org.). História pública e história do tempo presente. São Paulo: Letra e Voz, 2021.) constitui exemplo disso. A emergência e o rápido crescimento dessas áreas de pesquisa podem ser compreendidas como um reflexo e uma resposta do campo historiográfico profissional à necessidade de estabelecer um diálogo com o público mais amplo que a comunidade dos experts. Tais iniciativas apontam para uma salutar democratização do fazer histórico, dialogando com as demandas sociais sem se entregar completamente a elas e, simultaneamente, sem descuidar dos compromissos éticos e epistemológicos que caracterizam a historiografia profissional.

Há, portanto, apreciável distância entre uma pesquisa metodologicamente orientada, movida em maior ou menor medida por engajamentos pessoais e coletivos, e os usos que se podem fazer dela com fins de propaganda política. Os campos da pesquisa histórica e da atuação política, embora possam coincidir em mais de um ponto, sobretudo na crítica que fazem a determinado sistema, não se confundem inteiramente, na medida em que cumprem funções muito diferenciadas, igualmente legítimas. De modo esquemático, podemos dizer que a militância política visa ao convencimento da justeza de uma causa, ao passo que a pesquisa histórica, ao conhecimento de um determinado processo passado. Isso não impede que um faça uso do outro: que a investigação utilize a atuação política como objeto de reflexão, ou que a ação política se baseie em descobertas e análises produzidas pela pesquisa histórica. O problemático reside em dissimular a militância política como se fosse pesquisa histórica científica e ocultar suas operações de propaganda sob o manto da objetividade (Ylä-Antila, 2018YLÄ-ANTILA, Tukka. Populist knowledge: ‘Post-truth’ repertoires of contesting epistemic authorities. European Journal of Cultural and Political Sociology, v. 5, n. 4, p. 356-388, 2018. ). Caso uma pesquisa séria conduza a resultados que um historiador engajado julgue prejudicial à sua causa, ele pode, no limite, decidir-se legitimamente a não publicá-la, ou fazê-lo em um momento mais propício a não causar danos. A conduta antiética consistiria em falsear os resultados, manipulá-los para que indiquem algo distinto do que efetivamente comprovam, e/ou apresentá-los de maneira a induzir um entendimento diferente do que efetivamente expressam. Ou seja, o postulado epistemológico de compromisso com a verdade, mesmo quando esta é incômoda, é inegociável.

Remanejando as categorias: revisionismo, negacionismo, distorcionismo

Em nossa análise, as categorias revisionismo e negacionismo vêm sendo utilizadas de forma pouco estável, o que contribui para certa confusão semântica. Isso porque a categoria revisionismo é utilizada ora para indicar um procedimento legítimo e basilar do campo historiográfico de revisar interpretações consagradas (Rollemberg, Cordeiro, 2021ROLLEMBERG, Denise; CORDEIRO, Janaina Martins. Revisionismo e negacionismo: controvérsias. História, Histórias, v. 9, n. 17, p. 58-98, 2021. ), ora para nomear falseamentos e manipulações da história (Pereira, 2015BAUER, Caroline Silveira. Usos do passado da ditadura brasileira em manifestações públicas de Jair Bolsonaro. In: KLEM, Bruna Stutz; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; ARAÚJO, Valdei Lopes de (orgs.). Do fake ao fato: (des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Milfontes, 2020. p. 183-204.; Bauer, 2018BAUER, Caroline Silveira. Enfrentando o “silêncio das sociedades perfeitas”: a história pública e o revisionismo da ditadura civil-militar brasileira. In: MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane Trindade (orgs.). Que história pública queremos?/What public history do we want? São Paulo: Letra e Voz, 2018. p. 1-10.). Há quem proponha uma distinção entre “revisionismo histórico” e “revisionismo ideológico” (Napolitano, 2022NAPOLITANO, Marcos. Negacionismo histórico. In: SZWAKO, José; RATTON, José Luiz (orgs.). Dicionário dos negacionismos no Brasil. Recife: Cepe, 2022. p. 216-220.), o que auxiliaria a traçar uma fronteira entre essas duas operações que representam polos opostos do tratamento do passado. Porém, o emprego do mesmo significante tende a aproximar indevidamente os dois significados, podendo induzir a uma falsa associação entre os contrários. Outro problema é o uso do termo “ideológico”, que tem, entre os seus sentidos mais correntes, o de “conjunto de convicções filosóficas, sociais, políticas etc. de um indivíduo ou grupo de indivíduos” (Houaiss, Villar, 2001HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001., p. 1565), o que nos remete à discussão já realizada sobre o engajamento. O posicionamento político-ideológico, inevitável, ainda que possa variar em grau e intensidade, não impede que se faça uma pesquisa epistêmica e eticamente legítima, na medida em que o historiador explicita seus pontos de vista e os caminhos metodológicos que levam às conclusões apresentadas. A qualidade da pesquisa dependerá não do posicionamento ideológico, mas dos seus procedimentos, da transparência em sua apresentação e da consistência das análises (cf. Rüsen, 1998RÜSEN, Jörn. Narratividade e objetividade na ciência histórica. Estudos Ibero-Americanos, v. XXIV, n. 2, p. 311-335, 1998.).

Há quem estabeleça a fronteira propondo que o revisionismo seja exclusivamente utilizado para operações historiográficas legítimas e o negacionismo para as demais (Rollemberg, Cordeiro, 2021ROLLEMBERG, Denise; CORDEIRO, Janaina Martins. Revisionismo e negacionismo: controvérsias. História, Histórias, v. 9, n. 17, p. 58-98, 2021. ; Valim, Avelar, Bevernage, 2021VALIM, Patrícia; AVELAR, Alexandre de Sã; BEVERNAGE, Berber. Negacionismo: história, historiografia e perspectivas de pesquisa. Revista Brasileira de História, v. 41, n. 87, p. 13-36, 2021.). Em nossa perspectiva, essa alternativa pode encobrir uma nuança que consideramos importante, pois não estabelece de imediato uma diferenciação entre negar ou banalizar um fato histórico, de um lado, e, de outro, distorcê-lo; operações que possuem em comum o falseamento do passado, porém de modos e com consequências distintas. Sinteticamente, nossa proposta consiste em empregar “revisionismo” exclusivamente para pesquisas historiográficas que se baseiem nos procedimentos teórico-metodológicos reconhecidos pelo campo; “negacionismo” para empreendimentos que neguem acontecimentos históricos consolidados; e “distorcionismo” para operações que deturpem, distorçam e falsifiquem documentos, interpretações ou narrativas sobre o passado, em vista de interesses mercadológicos, políticos e/ou ideológicos.

Revisionismo

As razões da polissemia do termo revisionismo foram exemplarmente elucidadas por Denise Rollemberg e Janaína Cordeiro (2021)ROLLEMBERG, Denise; CORDEIRO, Janaina Martins. Revisionismo e negacionismo: controvérsias. História, Histórias, v. 9, n. 17, p. 58-98, 2021. , em artigo no qual retraçam sua origem e íntima associação com um sentido pejorativo. A criação do termo situa-se na crítica formulada por Eduard Bernstein (1850-1932), político social-democrata alemão, à teoria marxista da revolução, no contexto da Segunda Internacional Socialista, criada em 1889. Embora estivesse em grande medida de acordo com as análises de Karl Marx sobre o caráter do capitalismo, Bernstein discordava de suas projeções, defendendo que seria possível superar a ordem capitalista por meio de reformas sucessivas, sem a necessidade de uma ruptura brusca e violenta: a revolução. As propostas de Bernstein foram mal recebidas pelos partidários da teoria da revolução, que o acusaram de trair as ideias de Marx, chegando a conclusões que não condiziam com o marxismo. Ao longo de acirrados debates historiográficos, políticos e ideológicos que se seguiram no século XX, o conceito de revisionismo foi aplicado - com maior ou menor carga pejorativa - para nomear correntes historiográficas que revisavam interpretações consolidadas, fossem elas de matiz marxista (caso da Revolução Francesa), liberal (Revolução Russa) ou mistificadora (França durante a Segunda Guerra Mundial).

Por outro lado, a história como um campo de saber, nascido no século XIX com a função de dotar os Estados nacionais de uma identidade própria (Guimarães, 1988GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos, n. 1, p. 5-27, 1988.), foi gradualmente se deslocando, ao longo do século XX, no sentido de desconstruir as histórias oficiais institucionalizadas como instrumento de poder e de voltar-se para grupos desfavorecidos e oprimidos (cf. entre outros Chakrabarty, 2000CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: post­colonial thought and historical difference. Princeton: Princeton University Press, 2000.; Thompson, 2001THOMPSON, Edward Palmer. A história vista de baixo. In: THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses e outros ensaios. Campinas: Editora Unicamp, 2001. p. 185-203.). O sentido ideologicamente multidimensional das revisões historiográficas, em conjunção com as novas inclinações do campo historiográfico e com o já mencionado giro linguístico foram reconfigurando a noção pejorativa do conceito de revisionismo na direção de dotá-lo de um sentido essencialmente positivo: toda corrente historiográfica seria, por princípio, revisionista, sempre que se contraponha a uma interpretação dominante. Em alguma medida, o revisionismo confundiu-se com o próprio fazer historiográfico, que, por definição, dialoga, revisa, contesta o conhecimento construído pela historiografia de cada época, propondo novas interpretações, a partir de fontes antes desconhecidas, ou nunca exploradas, ou aproximações teórico-metodológicas distintas.

As revisões historiográficas, porém, sobretudo se estamos falando de história do tempo presente, não estão isentas de consequências políticas, muito ao contrário. Em artigo publicado na ocasião dos 50 anos do golpe de 1964, o historiador Demian Bezerra de Melo (2014)MELO, Demian Bezerra de. O Golpe de 1964 e meio século de controvérsias: o estado atual da questão. In: MELO, Demian Bezerra de (org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014. p. 157-188. apresentou um importante balanço envolvendo o tema da ditadura brasileira, no qual discutiu controvérsias historiográficas e seus efeitos políticos. Ao longo do texto, fez duras críticas a reconhecidos historiadores, apontados como revisionistas por seu tratamento das fontes, teor ideológico e “fragilidade como proposição historiográfica” (Melo, 2014MELO, Demian Bezerra de. O Golpe de 1964 e meio século de controvérsias: o estado atual da questão. In: MELO, Demian Bezerra de (org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014. p. 157-188., p. 163). Aqui, revisionismo é utilizado como acusação, dentro da tradição marxista que deu sentido pejorativo ao termo.

Efetivamente, as discussões sobre o golpe e a ditadura transcendem largamente o campo acadêmico e, por suas implicações no debate público e político, influenciam e são influenciadas por diversas esferas da sociedade (Joffily, 2018JOFFILY, Mariana. Aniversários do golpe de 1964: debates historiográficos, implicações políticas. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 204-251, 2018.). Para citar dois exemplos, problematizados por Melo: a denominação da ditadura como “militar”, “civil-militar” ou “empresarial militar” revela diferentes interpretações sobre o caráter do regime autoritário, sua dinâmica política e o papel que teve a sociedade civil - em particular as elites - como pilar de sustentação do regime. O mesmo quando se fala na periodização da ditadura. Considerar que seu marco de início foi o golpe de 1964, ou que ela apenas teria se tornado uma ditadura com o decreto do Ato Institucional n. 5 em 1968; e que o marco final se situaria em 1979, com a aprovação da Lei de Anistia; ou em 1985, com a entrega do poder para o presidente civil José Sarney; ou ainda em 1988, com a nova Constituição; ou em 1989, com a primeira eleição direta para presidente após o golpe, traz importantes implicações não apenas sobre o que se entende por ditadura e autoritarismo, mas do que é aceitável ou não em termos de violência do Estado.

A crítica que Demian Bezerra de Melo dirige aos colegas, contudo, não está no fato de assumirem um posicionamento político; pelo contrário, como se pode inferir pela escolha da epígrafe que abre a obra por ele organizada, de autoria de Antonio Gramsci (apud Melo, 2014): “Se o político é historiador (não apenas no sentido de que faz a história, mas também no de que, atuando no presente, interpreta o passado), o historiador é um político”. Melo confere o epíteto de revisionista aos historiadores por ele criticados porque as interpretações deles divergem da leitura (marxista) da ditadura que professa. A publicação de um artigo sobre essas controvérsias demonstra, entretanto, que a possibilidade de diálogo entre as discordâncias - ainda que muitas vezes acerbo - não está invalidado. Ao contrário, é no campo do embate das ideias que se testam conceitos e análises, que se afinam perspectivas e argumentos, de maneira que permanecemos “no âmbito da discordância científica legítima na qual o engajamento pode entrar e de fato entra” (Hobsbawm, 1998HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., p. 140). O termo revisionismo, consequentemente, a despeito de sua marca de nascença, tende a perder seu sentido negativo para nomear tão simplesmente um procedimento basilar da historiografia desde o século XVIII: a disputa profícua de ideias e perspectivas que faz avançar o conhecimento. Conquanto - conforme aportes das discussões do século XX sobre o inevitável engajamento político do historiador - que o posicionamento esteja explicitado e que a argumentação metodológica, conceitual e teórica seja apresentada sem subterfúgios.

Negacionismo

O fenômeno do negacionismo costuma emergir como reação a um boom de memória resultante de uma ocorrência traumática. É o contraponto a uma agenda política de processamento social de um passado sensível, relacionado aos princípios da Justiça de Transição: direito à verdade, à memória e à justiça (Valim, Avelar, Bevernage, 2021VALIM, Patrícia; AVELAR, Alexandre de Sã; BEVERNAGE, Berber. Negacionismo: história, historiografia e perspectivas de pesquisa. Revista Brasileira de História, v. 41, n. 87, p. 13-36, 2021.). Como categoria, é utilizado para designar negação ou banalização de um fato histórico fartamente conhecido e historiograficamente consolidado, minando sua credibilidade e seu valor. O procedimento comporta um paradoxo fundante: essa negação - de existência, amplitude ou significado - é, no mais das vezes, uma estratégia política empregada por setores que, na realidade, reivindicam e defendem o fenômeno histórico cuja existência negam ou banalizam.

O negacionismo, portanto, é a arma possível ante a um sólido interdito social à defesa explícita de uma causa político-ideológica e tem por objetivo conduzir à normalização social de um acontecimento amplamente percebido como um crime de lesa-humanidade. Comprova-o o fato de os negacionistas frequentemente integrarem grupos que defendem atos no presente que vão na direção do fenômeno histórico que está sendo negado ou minimizado. O exemplo clássico é o de grupos antissemitas que negam a ocorrência do extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, mas também se aplica à negação, por parte de agentes repressivos, da utilização da tortura durante a ditadura militar (Joffily, Faria, Franco, 2023JOFFILY, Mariana; FARIA, Daniel; FRANCO, Paula. A tortura reivindicada: reencenando o passado em chave atualista. História da Historiografia, Ouro Preto, v. 16, n. 41, e2031, p. 1-18, 2023. ). Nesse sentido, o negacionismo explícito contém um afirmacionismo oculto. Como os militantes das causas negacionistas não têm forças para travar essa batalha frontalmente nem no campo político - sob o risco de serem judicialmente penalizados - nem no da produção do conhecimento - onde seriam academicamente desmoralizados -, o confronto passa pelo falseamento do passado, mas também pela corrosão do campo de produção de conhecimento histórico legítimo, buscando atacar sua respeitabilidade a partir de seu interior.

A nosso ver, a proposta de encerrar sob a categoria negacionismo operações de deturpação do passado tem dois inconvenientes. O primeiro consiste em inverter os fatores, ou seja, pode-se argumentar que o negacionismo seja uma modalidade específica de distorcionismo, uma vez que negar ou banalizar a importância de um fato histórico relevante distorce a leitura do passado. Porém, o caminho inverso é mais complexo, pois na raiz do conceito está a noção de negação - e nem todo distorcionismo opera por negação, embora frequentemente o faça por jogos de ocultação. Às vezes, pelo contrário, a distorção implica maximizar um acontecimento menos importante, para obscurecer outro, operando uma inversão proposital da hierarquia de relevâncias, ou entender um fato anedótico e marginal como exemplar e paradigmático.

A despeito do “caráter cada vez mais difuso do negacionismo, tanto do ponto de vista geográfico quanto de sua autoria coletiva” (Valim, Avelar, Bevernage, 2021VALIM, Patrícia; AVELAR, Alexandre de Sã; BEVERNAGE, Berber. Negacionismo: história, historiografia e perspectivas de pesquisa. Revista Brasileira de História, v. 41, n. 87, p. 13-36, 2021., p. 17), especialistas advertem para o caráter organizado desse tipo de empreendimento (Napolitano, 2022NAPOLITANO, Marcos. Negacionismo histórico. In: SZWAKO, José; RATTON, José Luiz (orgs.). Dicionário dos negacionismos no Brasil. Recife: Cepe, 2022. p. 216-220.). No Brasil, um dos exemplos que podemos oferecer é a obra Orvil: tentativas de tomada do poder (Del Nero, Maciel, Camargo, 2012DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil: tentativas de tomada do poder. São Paulo: Schoba, 2012.), escrita por agentes da Seção de Informações do Centro de Informações do Exército (CIE) como uma resposta ao livro Brasil: nunca mais, de 1985. O Orvil, porém, foi publicado apenas em 2012, ano do início dos trabalhos da CNV. Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do Destacamento de Operações de Informações de São Paulo e ex-agente do CIE, assim descreve o esforço que deu origem ao livro, em sua apresentação: “Foi um trabalho minucioso, realizado em equipe, em que, inicialmente, os documentos existentes àquela época no CIE foram analisados e debatidos, conduzindo a novas indagações e a novos interesses” (Del Nero, Maciel, Camargo, 2012DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil: tentativas de tomada do poder. São Paulo: Schoba, 2012., p. 22).

Ao longo das 922 páginas do Orvil, a ocorrência da palavra “tortura” está invariavelmente associada à denúncia de militantes políticos de esquerda ou de organizações internacionais de defesa de direitos humanos. O Orvil, assim como os livros de Ustra (1987USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio. Brasília: Editerra, 1987.; 2006USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada. Brasília: Ser, 2006.), diferenciam-se de outros discursos públicos de ex-agentes repressivos sobre a tortura, que minimizam - alegando casos isolados - ou banalizam - perguntando “afinal, o que é a tortura?” - o uso de sevícias contra opositores políticos (Joffily, Faria, Franco, 2023JOFFILY, Mariana; FARIA, Daniel; FRANCO, Paula. A tortura reivindicada: reencenando o passado em chave atualista. História da Historiografia, Ouro Preto, v. 16, n. 41, e2031, p. 1-18, 2023. ). Esses dois casos são emblemáticos, porque se trata do ex-comandante de um dos mais conhecidos centros de tortura do país, declarado torturador pela 23a Vara Cível do Estado de São Paulo, em 2008, e de um órgão, o CIE, central na construção da máquina repressiva, além de responsável por centros clandestinos de tortura e morte como a Casa de Petrópolis.

Distorcionismo

Propomos o uso da categoria distorcionismo para nomear operações deliberadas de abuso do passado que, aparentando servir-se de procedimentos metodológicos do campo da historiografia, são destituídos de comprometimento com o conhecimento histórico, manipulando e falseando a análise das fontes, dados de pesquisa ou interpretações historiográficas com as quais simulam dialogar. O distorcionismo é duplamente pernicioso: por suas práticas metodológicas e pelos efeitos que produz no campo disciplinar. Metodologicamente, procede por meio do que podemos chamar de “propaganda enganosa”, veiculando relatos sobre o passado com uma determinada agenda política e/ou mercadológica não explicitada, mas com a aparência de um conhecimento histórico produzido por procedimentos epistemologicamente legítimos (do ponto de vista da historiografia dos especialistas). Parte-se do resultado que se quer difundir para em seguida buscar argumentos, interpretações e fontes que o comprovem, sem engajamento com a pesquisa sistemática, o debate legítimo ou a busca pelo conhecimento histórico. Porém, como sua força de persuasão depende de uma imagem de respeitabilidade intelectual, essas empreitadas revestem-se da aparência de pesquisa científica. Apresenta-se, portanto, como construção de conhecimento, travestida de revisão de alguma interpretação corrente, o que é meramente uma peça de propaganda ideológica. Por isso, o uso da categoria revisionismo, ainda que acoplada com um adjetivo - caso da noção de “revisionismo ideológico” -, nos parece insuficiente para destacar essas operações que, longe de tensionar o conhecimento acumulado para ampliá-lo, visa confundi-lo com desvirtuamentos daquilo que supostamente pretende esclarecer. Essas versões paralelas possuem elevado potencial para ganhar a disputa da tão propalada “guerra de narrativas”, porque, ao não se empenharem com a verdade histórica, podem amoldar-se facilmente ao gosto e às expectativas do público, ao mesmo tempo submetendo-se ao lugar comum e ajudando a conformá-lo.

Ao converter a autocrítica revisionista característica do campo historiográfico em arma política de vale-tudo narrativo, colocando num mesmo plano empreendimentos historiográficos comprometidos com a verdade histórica e narrativas que instrumentalizam o passado com fins políticos e ideológicos, o distorcionismo produz efeitos corrosivos na credibilidade do campo. Neste cenário, a produção historiográfica acadêmica é reiteradamente atacada, assim como historiadores e professores de história, buscando sua desqualificação (Valim, Avelar, Bevernage, 2021VALIM, Patrícia; AVELAR, Alexandre de Sã; BEVERNAGE, Berber. Negacionismo: história, historiografia e perspectivas de pesquisa. Revista Brasileira de História, v. 41, n. 87, p. 13-36, 2021., p. 26). Assim, “tanto a autoridade do historiador, como a competência do saber histórico produzido nas últimas décadas têm sido seguidamente questionados a partir de parâmetros totalmente externos a essa produção”, como se “houvesse uma história verdadeira a ser contada, em oposição àquela produzida pela historiografia dos historiadores” (Meneses, 2019MENESES, Sônia. Negacionismos e histórias públicas reacionárias: os usos abusivos do passado em tempos de pós-verdade. Opsis, v. 19, n. 2, p. 1-9, 2019., p. 3).

Não por acaso, a retórica distorcionista adota invariavelmente uma postura de enfrentamento com algum poder instituído - o moralismo das “minorias” (uma história “politicamente incorreta”), o sistema educacional (o que “os livros de história não contam”, ou o que “o seu professor não ensinou”), uma interpretação hegemônica (a “verdade” sobre um tema polêmico) -, como a própria historiografia acadêmica havia feito, ao longo do século XX, em relação a uma história oficial que intencionava desconstruir. Narrativas distorcionistas se apropriam dos protocolos metodológicos e mimetizam o debate historiográfico especializado, no intuito de sustentar suas alegações de legitimidade e validade perante o público. Além disso, apressam-se a acusar seus oponentes intelectuais de realizar as operações de ocultamento, abuso e falsificação do passado que eles mesmos efetuam: tais narrativas falam em verdade “justamente para construir seu falso contrário” (Meneses, 2019MENESES, Sônia. Negacionismos e histórias públicas reacionárias: os usos abusivos do passado em tempos de pós-verdade. Opsis, v. 19, n. 2, p. 1-9, 2019., p. 73). Ao assim proceder, ao mesmo tempo em que legitimam suas produções, corroem as bases epistemológicas do campo acadêmico e o lançam em descrédito, como se todos os empreendimentos historiográficos carecessem igualmente de rigor metodológico e obrigações éticas. Em outras palavras, as narrativas distorcionistas buscam reconhecimento e inserção em um campo que, ao mesmo tempo, tentam destruir. Daí o conselho de Pierre Vidal-Naquet (1988VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória: um Eichmann de papel. Campinas: Papirus, 1988.), sobre o tratamento a ser dispensado aos negacionistas (e, acrescentamos, aos distorcionistas), de não os ver como interlocutores, sob o risco de validá-los como participantes do debate historiográfico - ao menos aos olhos do público não especialista - e assim conferir-lhes uma respeitabilidade que não merecem e, mais que isso, permitir que corrompam o próprio debate.

Dois empreendimentos comumente mencionados quando discutimos o uso, no Brasil, de estratégias aqui categorizadas como distorcionistas, são os Guias politicamente incorretos de história, do jornalista Leandro Narloch e as criações da produtora Brasil Paralelo. Os guias são um produto de teor mercadológico, concebidos para atender ao gosto do grande público, em detrimento da complexidade histórica, mas contêm igualmente pronunciado conteúdo ideológico. Aqui, nos ocuparemos do volume dedicado ao Brasil, que, como descreve com precisão Jurandir Malerba (2014MALERBA, Jurandir. Acadêmicos na berlinda ou como cada um escreve a história?: uma reflexão sobre o embate entre historiadores acadêmicos e não acadêmicos no Brasil à luz dos debates sobre “public history”. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 15, p. 27-50, 2014. , p. 38):

Do ponto de vista da produção da escrita histórica, o texto se apoia na historiografia disponível, ora para corroborar seus argumentos, ora para detratá-la quando dela discorda. Sob a bandeira do “politicamente incorreto”, mal se disfarça uma visão altamente conservadora, quando não reacionária, retrógrada, eurocêntrica e preconceituosa da/sobre a história do Brasil.

Para Renato Venâncio (2021VENÂNCIO, Renato. O incorreto no “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”. Editora do Autor, 2021. (Kindle), p. 3-4), que realizou cuidadosa análise da obra, Narloch apresenta “graves deficiências de pesquisa e interpretação”, e constrói uma “história a serviço de propaganda e preconceitos”. O afetado tom sensacionalista, adotado por Narloch, tem a função de trazer ao leitor uma novidade que o surpreenda, dentro da lógica do “furo” jornalístico, supostamente descortinando algo que a história “politicamente correta” pretenderia ocultar. Por trás de uma imagem de modernidade e arrojamento, porém, o que é apresentado traz pouquíssima ou nenhuma novidade.

Apresentaremos alguns breves exemplos para indicar como o jornalista põe em prática uma série de instrumentos do arsenal distorcionista. Um dos procedimentos típicos consiste em dispor num mesmo plano eventos completamente dissímeis. No capítulo que trata da ditadura militar brasileira, a existência da tortura é reconhecida por Narloch e teria tido duas consequências: casos de loucura e morte; e a concessão de um “escudo anticríticas” aos grupos da luta armada: “Hoje, é politicamente incorreto lembrar que os guerrilheiros comunistas estavam estupidamente errados e eram tão violentos e autoritários quanto os militares” (Narloch, 2009NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. São Paulo: LeYa, 2009., p. 314). A formulação é capciosa, pois reconhece a condição de vítima dos militantes políticos de esquerda em relação à violência do Estado, ao mesmo tempo em que os iguala aos agentes repressivos. Na sequência, todos os casos narrados de violências são protagonizados por guerrilheiros, nenhum pelo aparato repressivo.

Nova estratégia distorcionista: opor noções genéricas à descrição mais detida de episódios. Diante desse estratagema, o leitor fica com uma vaga impressão de que houve tortura por parte das forças do Estado e com a convicção, baseada em exemplos concretos, de que os guerrilheiros usavam a violência como método de luta e, mais ainda, até contra os próprios companheiros. Assim, primeiro a violência dos dois campos é igualada, sem nenhum critério de proporcionalidade, efetivos, ou poder de fogo, para depois dirigir a atenção aos males descontextualizados da violência revolucionária. Quando Narloch utiliza o recurso válido da refutação retórica ao seu argumento - “Alguém poderia dizer que a reação dos militares ao terrorismo foi exagerada” (Narloch, 2009NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. São Paulo: LeYa, 2009., p. 321) - responde com duas outras estratégias: a comparação destituída de critérios e a descontextualização. Assim, a experiência cubana - mutilada pela simplificação grosseira - seria uma advertência aos brasileiros:

A guerrilha de Fidel Castro, que derrubou Fulgêncio Batista em 1959, começou três anos antes com um grupo de 81 soldados. Em 1961, dissidentes cubanos tentaram, com o apoio dos Estados Unidos, derrubar Fidel invadindo o país pela Baía dos Porcos. Foram todos presos ou mortos pelos comunistas (Narloch, 2009NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. São Paulo: LeYa, 2009., p. 322).

Narloch não o afirma explicitamente, porém induz à conclusão de que os brasileiros deveriam ficar aliviados pelo mal ter sido cortado pela raiz, mesmo que para isso tenha sido necessário utilizar a tortura. Sob o manto da crítica a seu recurso, faz a defesa do método.

No subitem intitulado “Por que eles torturavam”, Narloch descreve dois episódios de rotundo fracasso dos militares em perseguição a guerrilheiros, chegando à seguinte conclusão: “Pouco inteligentes, os militares logo apelaram para a violência” (Narloch, 2009NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. São Paulo: LeYa, 2009., p. 326). Aqui novamente podemos distinguir os procedimentos distorcionistas de reducionismo simplificador: elevação da burrice ao patamar de categoria de explicação histórica; e de generalização: todos os militares seriam estúpidos. Assim, o livro passa ao largo de todo o processo de construção do aparato repressivo, de ampliação sem precedentes das redes de vigilância, das inspirações em doutrinas militares de outros países, de treinamento dos agentes repressivos, do refinamento de seus métodos de violência. A tortura aqui aparece reduzida a uma atitude irracional dos militares, exasperados por sua própria incompetência, e não como ferramenta sistemática de obtenção de informações que se situava no cerne da engrenagem repressiva.

O fio condutor do texto prossegue aparentemente errático, comparando um trecho de programa de uma organização marxista de origem católica, a Ação Popular Marxista-Leninista, com um trecho do “Livro de Isaías”. Propõe, em seguida, a seguinte relação de causa e efeito, um tanto disparatada, outra das ferramentas do repertório distorcionista: 1. o comunismo pode ser considerado uma religião secular; 2. existem religiosos que são radicais e “se metem em martírios”; 3. movimentos revolucionários, ao colocarem seus ideais coletivos acima dos indivíduos, adotam uma “superioridade moral que lembra a dos cristãos nas cruzadas”; 4. dessa superioridade moral, os comunistas guerrilheiros supostamente extrairiam a justificação moral “para matar e roubar em nome desse ideal sagrado”; 5. felizmente o país teria logrado “avançar livre dos perigosos profetas da salvação terrena” (Narloch, 2009NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. São Paulo: LeYa, 2009., p. 327-336). A ditadura militar, portanto, resume-se ao confronto entre fanáticos religiosos comunistas - por mais contraditório que possa parecer - e militares burros, num período de prosperidade ditado pelo “milagre econômico” que, subentende-se, teria compensado o autoritarismo do regime.

Há dois elementos que provavelmente estão na base do enorme sucesso editorial de um empreendimento como esse. O primeiro é o de apresentar, sob novas roupagens, concepções conservadoras e socialmente assentadas que circulam há bastante tempo. Ou seja, exibe como “novidade” - significante supervalorizado na sociedade contemporânea -, um esforço que visa à manutenção do status quo (Meneses, 2019MENESES, Sônia. Negacionismos e histórias públicas reacionárias: os usos abusivos do passado em tempos de pós-verdade. Opsis, v. 19, n. 2, p. 1-9, 2019., p. 70). Esse dispositivo gera no leitor simultaneamente a sensação confortável de confirmar interpretações com as quais tinha contato e concordava de modo difuso e a de se confrontar com uma “revelação” de algo que sabia, mas sem saber ao certo. O segundo elemento está em evitar discursos prescritivos ou doutrinários e adotar estratagemas para que o leitor pense estar diante de uma narrativa aberta e sinta-se livre para chegar às próprias conclusões, sem perceber o desenho previamente traçado pelo autor nos pontos que vai conectando. Tudo isso num texto escrito sob medida para uma leitura rápida e que transmite a sensação de aprendizagem sem muito esforço.

Assim como Narloch retoma algumas teses que poderiam ter sido extraídas de Orvil, no documentário 1964: o Brasil entre armas e livros, da produtora Brasil Paralelo, vemos diversas dessas práticas distorcionistas reproduzidas. Descrito por Fernando Nicolazzi (2020NICOLAZZI, Fernando. Brasil Paralelo, uma empresa colaboracionista. Sul 21, 17 jan. 2020.) como uma empresa criadora de produtos audiovisuais sobre história que “conciliam falsificação documental, distorções interpretativas, preconceito religioso, inverdades históricas e desonestidade intelectual”, o Brasil Paralelo utiliza o formato clássico de documentários, porém substitui os especialistas do tema por um time alternativo (Ylä-Antilla, 2018YLÄ-ANTILA, Tukka. Populist knowledge: ‘Post-truth’ repertoires of contesting epistemic authorities. European Journal of Cultural and Political Sociology, v. 5, n. 4, p. 356-388, 2018. ).

Todo o documentário sobre 1964 é recheado de retóricas distorcionistas. Mas, para fins de concisão, gostaríamos de nos deter apenas sobre a primeira parte da produção, que funciona como uma espécie de prólogo, intitulada sugestivamente “Tentaram nos cancelar. Veja a nossa resposta”. O filme inicia com uma série de manchetes de jornais que repercutiram a polêmica instaurada quando foi exibido em salas de cinema pelo país, somado a alguns relatos orais de “alunos e professores censurados nas universidades” (conforme legenda aposta durante o primeiro minuto do filme) ao tentarem exibir o filme. Embora nem os testemunhos nem as faculdades sejam nomeadas, os relatos atribuem a “perseguição” (1964..., 2019, 0’40”) e as “represálias” (1’04”) que sofreram à imposição de “pautas de esquerda” (0’36”). E, no meio desse bolo, são reproduzidos títulos de textos na internet de críticas ao documentário feitas por historiadores acadêmicos. Portanto, a primeira cena do filme já introduz o espectador a um cenário extremamente polarizado, de modo que as críticas ao documentário estão, de saída, circunscritas a uma questão de “perseguição política”, eliminando do campo de visão do espectador as críticas de cunho propriamente historiográfico.

Após ser bombardeado por esses relatos de perseguição e censura, o espectador ouve a seguinte fala de um dos produtores da empresa: “este é o porquê de o Brasil Paralelo existir” (1’06”). Ele afirma que as suas produções já “levaram informação” (1’10”) a milhões de brasileiros que, agora, “carregam um pouco mais de Brasil dentro de si” (1’13”). Esse gesto não apenas visa conquistar o espectador pela via do sentimentalismo cívico-moralista, como também enquadra sobre essa mesma retórica toda e qualquer crítica que o documentário recebeu e possa vir a receber - o problema não é de ordem historiográfica, mas política e moral.

Na fala seguinte, o produtor alega que o filme é o resultado de “nosso esforço para enfrentar um dos períodos mais conturbados da nossa história” (1’20”), acrescentando que “dezenas de especialistas nos ajudaram a navegar pela bibliografia e documentação, não só no Brasil, mas nos Estados Unidos, Polônia, Berlim e República Checa” (1’24”). Aqui podemos flagrar o procedimento distorcionista em ato: o produtor sugere que o filme se baseou em pesquisa documental e bibliográfica, procedimentos característicos da historiografia profissional; mas isso apenas depois de situar o espectador em um ambiente de perseguição política e moral, de modo que as críticas ao filme sejam enquadradas prévia e exclusivamente sob essa chave. Isso fica ainda mais evidente quando o produtor avisa: “nunca esqueça: nós não recebemos dinheiro público! Você é quem financia esse projeto. A busca pela verdade depende do seu engajamento” (1’40”). Como se contar com financiamento de instituições públicas invalidasse automaticamente o documentário; e como se a “busca pela verdade” dependesse do financiamento dos espectadores (por meio de assinaturas) e não dos protocolos metodológicos e da submissão ao crivo da crítica externa dos especialistas. Reencontramos aqui a crítica de Lyotard (2009)LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. já mencionada acima sobre a condição epistemológica pós-moderna: a produção do saber se legitimaria cada vez mais pelo critério do “desempenho” e não pela avaliação dos experts. Em sua defesa, ademais, a produtora utiliza o cerne da proposta neoliberal: o empreendimento individual - não estatal - estaria diretamente associado não ao interesse pessoal, mas ao conjunto dos interesses individuais atomizados, embora o que se veja na prática seja o inverso - a concentração de poder nas mãos de poucos indivíduos. O produtor finaliza sua intervenção anunciando produtos da empresa. Os procedimentos ideológicos e mercadológicos das estratégias distorcionistas se mesclam, neste ponto, para afirmar uma visão de história condizente com a posição político-ideológica da empresa.

Considerações finais

Os empreendimentos distorcionistas e negacionistas brasileiros que abordamos neste artigo têm um distintivo curioso: todos, em suas denominações, remetem à noção de desvirtuamento. Essa constatação nos leva a pensar na noção psicanalista de ato falho, que indica situações nas quais um ato acidental - que pode ser de fala - revela um desejo inconsciente que o sujeito pretendia ocultar (Roudinesco, Plon, 2000ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dictionnaire de la psychanalyse. Paris: Fayard, 2000.). O caso mais evidente é o do empreendimento do “Brasil paralelo”, cujo nome claramente faz eco à noção de um universo paralelo, portanto não coincidente com a realidade. No caso dos guias “históricos”, o título insinua a incorreção. Já “Orvil” constitui a inversão do substantivo livro. Os nomes parecem querer explicitar os desígnios de distorção da história que discutimos aqui. Essa dimensão “alternativa”, em que nada é o que parece ser, na qual se nega o que na realidade se deseja afirmar, faz pensar na sala de espelhos de um parque de diversões, que oferece ao público uma variada gama de deformações da imagem do visitante.

Dissecar as maneiras pela qual essa imagem é desfigurada ajuda a compreender os intuitos por trás dessa operação, seus protagonistas e os projetos políticos nela envolvidos. Nossa proposta neste artigo consistiu em oferecer uma contribuição para as tarefas que se impõem diante de um dos principais desafios ético-políticos da historiografia neste século XXI: historicizar, caracterizar e expor as estratégias retóricas utilizadas por narrativas que manipulam e/ou falseiam a história no intuito de alimentar batalhas políticas e culturais contemporâneas. Nosso propósito foi oferecer uma categoria que confira maior precisão teórica e conceitual e permita sofisticar nosso olhar analítico para nos perguntarmos, por exemplo, em que momentos e por que razões a escolha recai em distorcer um fato histórico, ou em negá-lo. Nem toda forma de distorção histórica é sinônima de negação (de evidências ou de enredos), conforme argumentamos neste texto. E muito menos se trata de simplesmente revisar interpretações historiográficas consolidadas. Práticas distorcionistas são diversas e complexas, conforme demonstramos na última seção, mas se singularizam por simular procedimentos da historiografia profissional sem, contudo, orientar-se pelos compromissos epistêmicos e ético-políticos com a produção de conhecimento que balizam a produção especializada.

Mapear e criticar as práticas de distorção histórica tem funções igualmente epistêmicas - distinguir histórias mais ou menos verdadeiras - e ético-políticas - desvendar e historicizar as motivações e as estratégias adotadas por esses empreendimentos. Estabelecer essa nuança não implica encastelar a historiografia especializada como se ela fosse a única forma legítima de narrar o passado. Trata-se, antes, de levar adiante a vocação crítica da historiografia academicamente orientada, expondo as manobras distorcionistas tanto para o público interno quanto para o público externo ao campo e contribuindo, desse modo, para capacitá-los para a identificação dessas manobras. A melhor maneira de proteger o conhecimento histórico não consiste em isolá-lo, mas em universalizá-lo.

Fontes

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  • 1
    Basta lembrar o sucesso de vendas dos guias politicamente incorretos de Leandro Narloch.
  • 2
    O conceito foi criado por Deborah Lipstadt.
  • 3
    Para uma descrição mais desenvolvida, remetemos à leitura do artigo citado.
  • 4
    Vários negacionistas autointitularam-se revisionistas, argumentando que estavam propondo uma revisão sobre as interpretações correntes sobre o nazismo (Rollemberg, Cordeiro, 2021, p. 76). O termo, outrora pejorativo, agora era utilizado para conferir legitimidade a um procedimento mais do que duvidoso.
  • 5
    A esse respeito, ver Blikstein, Russo (2022BLIKSTEIN, Paulo; RUSSO, Renato. Piaget explica o bolsonarismo? Folha de S. Paulo, 27 out 2022.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2023
  • Aceito
    11 Ago 2023
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