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Entrevista: Matuzza Sankofa

Matuzza Sankofa é redutora de danos, presidenta do Centro de Convivência “É de Lei”, com sede em São Paulo, capital, pioneiro no Brasil desde 1998 na promoção da redução de riscos e danos, sociais e à saúde, associados à política de drogas. É também coordenadora do projeto Respire, fundadora e presidenta da Casa Chama, que atua com mulheres trans que vivem em situação de rua.

“Redução de danos para mim é uma tecnologia. É uma tecnologia de afeto, cuidado, pertencente ao Sistema Único de Saúde” (Matuzza Sankofa)

Nessa entrevista, realizada por ocasião da aula inaugural do Curso de Atualização Profissional de Redutores de Danos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), ministrada por Mattuza em março de 2023, ela nos fala sobre a redução de danos na relação com a saúde e como ela conflui para a sua trajetória de vida.

Entrevista

TES: Na aula inaugural do Curso de Atualização em Redução de Danos1 1 O curso teve como objetivo proporcionar aos trabalhadores das áreas da saúde, assistência social, educação e movimentos sociais o acesso aos debates mais recentes de temas ligados à Redução de Danos e políticas de drogas. O curso formou 35 redutores de danos e qualificou a promoção de saúde dirigida a pessoas que usam álcool e outras drogas no estado do Rio de Janeiro. A aula inaugural do curso, realizada em 16/03/2023, está disponível em: https://www.youtube.com/live/IMk_29FA1w4?si=o9cmQYdXbIVXbaKZ , na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV-Fiocruz), você falou sobre várias estratégias de cuidado, para além do uso de substâncias. No contexto brasileiro há diversos ataques conservadores, que limitam essa tecnologia da redução de danos a uma simples apologia às drogas. Como você vê a Redução de Danos sob um ponto de vista que ultrapassa o uso de substâncias?

Matuzza Sankofa: A primeira coisa a se pensar é que a substância é um objeto que não tem poder em nossa vida, a menos que a gente se locomova ou seja empurrada para ele. Uma pilha de cocaína no meio dessa sala não faz diferença nenhuma em nossa vida, a não ser que a gente seja empurrada com o nariz para cima dela. Mesmo que alguém caia com o nariz em cima dela, esse efeito passa. Quando se trata de Redução de Danos, a droga é a última coisa que a gente fala, porque tem muitas outras vulnerabilizações para se cuidar. Temos que ter, inclusive, muito cuidado porque pode ser que a substância esteja mantendo uma pessoa viva. E, com essa oferta de cuidado baseada em abstinência, tiramos a única ferramenta de existência para a pessoa.

A Redução de Danos vem para cuidar de outras questões. Surgiu no Brasil, mais especificamente em Santos, com a prevenção ao HIV [sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana]. É um caminho que cuida com base em questões de saúde física e psicológica. A partir do momento em que se criam outras ocupações, o uso fica em segundo plano e deixa de ser o mais importante. Quando tenho outra possibilidade de trabalho que não me exige ficar acordada a noite toda, obviamente vou usar menos de uma substância para me manter acordada. Baseada na minha perspectiva mais recente, vejo que o trabalho de redução de danos começa também com Brenda Lee, uma travesti que abriu uma casa de acolhimento em São Paulo para pessoas trans que estavam com HIV, e muitas dessas pessoas trans estavam na prostituição e tinham questões com álcool e drogas. A Redução de Danos cuida de três tipos de pessoas: a que quer parar de usar droga; a que não consegue parar; e a que não quer parar de usar substâncias.

Na história e na nossa existência ancestral, temos muito mais tempo de liberdade para usos do que tempo de política de drogas. As pessoas que [querem parar, mas] não conseguem parar de usar substâncias podem acessar o CAPSad [Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas] e a Redução de Danos. Quanto às que não conseguem, essas estratégias também estão postas para elas. Assim como para aquelas que não querem parar de fazer uso, a Redução de Danos também está dada para elas. As que fazem uso problemático são minoria em relação às que não fazem, e pude perceber isso atuando em um CAPS, já que os profissionais brancos faziam uso durante o final de semana e, na segunda-feira, chegavam para trabalhar no horário. Isso porque, após os usos, voltaram para casa, tiveram como se hidratar, tomar banho, trocar de roupa e descansar e, ao contrário, quem está na rua precisa continuar fazendo uso, como a pessoa que está na prostituição.

Tem muitas pessoas que não querem parar de fazer uso, mas estão dentro do armário. Ouso dizer que a maior parte da sociedade é de pessoas que fazem uso de substâncias, que, inclusive, são legalizadas: para conseguir dormir, para ficar acordado, para estudar. A diferença é que algumas têm acesso a médicos para conseguir receita; e outras, ao tráfico, sem controle de qualidade daquela substância. Assim, a Redução de Danos vem para ofertar cuidado a esses três tipos de pessoas e, principalmente, cuidar das que estão mais vulnerabilizadas, atuando no que não tem oferta pelo Estado: com pessoas que não querem ou não podem parar.

TES: Pensando um pouco mais sobre como os diferentes usos são vistos, uns considerados abusivos e outros adequados, independente da substância escolhida, como você enxerga esse cenário e sua influência na política de drogas e no campo da saúde pública?

Matuzza Sankofa: A gente tem diferentes formas de uso e de ofertas das drogas. As ofertas de drogas vendidas no comércio legal são direcionadas a dar conta dessa humanidade que sempre fez uso de substância para conseguir suportar as mesmas coisas que as pessoas que estão na rua. Essas drogas que são legalizadas protegem essas pessoas, criam expectativa de vida e qualidade de vida. Comparando quem toma uma substância para dormir e quem busca o mesmo estando na rua, ambas querem a mesma coisa. Não existe guerra às drogas, existe uma guerra a pessoas pobres, pretas, LGBTQIAPN+, periféricas e mulheridades, permitindo que matemos pessoas todos os dias sob a justificativa de uso de substâncias.

É estratégico empurrar pessoas para a vulnerabilização, transmitindo para a sociedade que todos que fizerem uso daquela substância ficarão da mesma forma, já que isso causa um medo. Se experimentarmos dar casa e sala de uso para essas pessoas, a problemática em torno do uso acaba: essas pessoas vão continuar fazendo o seu uso, mas também cuidar da saúde e acessar cultura. Lembro de um passeio que fizemos a um museu, e uma pessoa, que era usuária de substância, dormia ali em frente durante anos de sua vida sem saber que tinha o direito de entrar naquele lugar e acessar cultura. Quando teve a possiblidade de acesso, passou a aproveitar a cultura de diversas formas: indo a museus, produzindo quadros...

Trata-se disso, então: algumas pessoas só têm essa possibilidade de uso, e outras, mais possibilidades, como ir ao museu, ao clube, viajar, ir a peças de teatro. Mesmo assim, fazemos uso ao comemorar o aniversário de um amigo no bar, no frio, no pagode. A diferença é que temos onde dormir e comer, inclusive durante o uso. O Estado escolhe quais drogas criminalizar, quais controlar e quem vai ser vulnerabilizado: pessoas pobres e pretas do país. Foi assim com a maconha e com todas as outras substâncias.

TES: É interessante pensar o modo como as políticas de Estado interferem nas adolescências e atuam na proteção de jovens até 18 anos. Após essa fase, pela lógica da criminalização, buscam encarcerar. Mediante essa constatação, como você vê o papel da Redução de Danos nessas juventudes?

Matuzza Sankofa: Acredito que quanto mais cedo a Redução de Danos chegar para as pessoas que são vulnerabilizadas, mais condições terão de se instrumentalizar para a vida, para o cuidado, incluindo a saúde e a garantia de acessos, o que permite expandir a expectativa de vida dessas pessoas. Não sou positivada para o HIV, por exemplo, mesmo com todas as violências que passei, porque na minha adolescência encontrei uma travesti que me ensinou sobre educação sexual e, no abrigo pelo qual passei, uma trabalhadora disponibilizava preservativos, diferente do prescrito, já que na prática era impedida de fazer isso.

Inclusive, hoje, no Brasil, diversas drogas são criminalizadas e, ao mesmo tempo que a polícia faz repressão, outras pessoas fazem uso de substâncias à vista de quem quiser ver, o tempo inteiro. A Redução de Danos, quanto mais precocemente chegar ao usuário, melhor. É um conjunto de possibilidades, não uma tecnologia engessada, porque se movimenta e aprende com o território. Não se cria uma estratégia única, mas se constrói uma para cada pessoa. Hoje, eu ouço relatos maravilhosos: os redutores de danos do ‘É de Lei’ indo para a rua e adolescentes falando, por meio de uma disputa de rap, de suas questões, vulnerabilidades e caminhos para acesso de cada pessoa. Isso exige deslocamento em direção ao outro e para onde as pessoas estão.

É isso o que a Redução de Danos faz: os adolescentes estão nas periferias e no tráfico, com bisavós que vieram da Escravização e com mães que limpam apartamentos no asfalto por um salário-mínimo. A Redução de Danos dialoga com isso, tendo como exemplo o Espaço Normal na Maré, que faz um trabalho incrível: dentro da quebrada, com a Redução de Danos e com a juventude, empoderando a juventude e usando sua voz como denúncia. Quanto mais cedo a Redução de Danos chega, melhor.

TES: Voltando à aula inaugural do Curso de Atualização em Redução de Danos, você afirmou que, com muito amor, através da Redução de Danos conseguiu ressignificar as suas experiências de dor e transformá-las em acolhimento para outras pessoas. Com base nessa afirmação, como profissional que atua há 11 anos reduzindo danos, o que significa para você a Redução de Danos?

Matuzza Sankofa: Redução de Danos para mim é uma tecnologia. É uma tecnologia de afeto, cuidado, pertencente ao Sistema Único de Saúde (SUS), que alcança as pessoas que estão vulnerabilizadas pelo Estado com um trabalho daquelas que conseguem encontrar um lugar de ecoempatia, que é quando trabalhamos entre pessoas que não vão ser capazes de se colocar no lugar das outras, como seria a empatia. A Redução de Danos consegue superar esse lugar entre pares e reconhecer as vivências de pessoas que passaram por situações de vulnerabilidade, já que é pautada no protagonismo de pessoas que são afetadas pelo Estado, pela política de drogas ou pelas questões de HIV/AIDS no Brasil. Através disso, conseguimos juntar essas experiências a uma oferta de cuidado, transformar e replicar isso, ampliando para outras pessoas.

Desse modo, a Redução de Danos parte de uma perspectiva de colocar pessoas em lugar de igualdade: uma pessoa que tem trajetória acadêmica e outra que tem trajetória de exclusão e vulnerabilização. Quando nos encontramos na perspectiva da Redução de Danos, estamos no mesmo lugar e conseguimos nos olhar de igual para igual, ofertando cuidado e construindo mudanças sociais. O primeiro lugar na minha vivência que me remete a contato com uma profissional de Redução de Danos, e que tem uma atuação pautada na vivência, foi durante a minha adolescência nos primeiros dias de rua, quando encontrei uma travesti na prostituição que me orientou sobre Redução de Danos, talvez sem nem saber disso. Ela me orientou sobre os perigos da rua, sobre segurança alimentar e sobre prevenção de IST [Infecções Sexualmente Transmissíveis] e HIV, temas que até os meus 13 anos eu nunca tinha ouvido. Tudo isso me tocou em um lugar para além do medo: de cuidado, com escuta e entendimento da realidade.

A Redução de Danos é algo em que hoje a sociedade civil tem feito mais que o Estado, em um trabalho que consiste em facilitar o acesso às ações de saúde e de assistência, já que chega às pessoas que, frequentemente, não conseguem adentrar os serviços de saúde. Assim, o cuidado chega nesses lugares: nas esquinas, nos adolescentes que estão nas ruas, nas pessoas que estão em situação de rua dormindo embaixo de marquises e que estão nas cenas de uso. Redução de Danos é uma das tecnologias mais fortes que conheço, que atravessou a minha vivência em relação ao SUS e ao cuidado em saúde.

TES: Sobre esse conceito de ecoempatia, você poderia nos explicar melhor o significado?

Matuzza Sankofa:Ecoempatia é tentar achar os pontos e lugares em comum. Nós três, por exemplo, não aceitaríamos ocupar um lugar de trabalho em que ganhássemos menos que homens. Esse é meu ponto em comum como uma mulher preta travesti e que morou na rua com uma mulher branca, cis e acadêmica. Conseguimos ter nossos pontos comuns, em que entendemos nossas dores e vulnerabilizações e, por meio delas, nos entendemos como iguais em alguns lugares, diferentes em outros e podemos pensar em lutas e caminhos para percorrer juntas.

Com um homem preto, tenho alguns lugares em comum: quando entramos em mercados, ambos somos pretos e lidos como ameaças em comum. É esse lugar da ecoempatia que entendo como possiblidade de furar as bolhas e levar a Redução de Danos. Quem me ensinou muito sobre isso foi Malcolm, meu filho, com quem aprendo esse lugar de sermos pretos com todas as diferenças. Ele me ensina e me acolhe com amor em tantos outros lugares que a substância fica em segundo plano. Abrir aquela garrafa de vinho em um dia frio ou tomar uma dose de uísque se torna mais raro quando ele está presente, porque aquele abraço assistindo desenho animado aquece mais.

TES: Partindo dessa situação que você trouxe de ‘vulnerabilidade’ de pessoas em situação de rua, um elemento citado na aula inaugural - e nesta entrevista - foi sobre quanto o uso de substâncias por pessoas em situação de rua pode ser a diferença entre permanecer vivo ou não, não se tratando de escolha. Com fundamento nesse elemento e entendendo as diversas violências e marginalizações que uma pessoa em situação de rua pode passar, como você enxerga a Redução de Danos como transformação dessas vulnerabilidades?

Matuzza Sankofa: A primeira coisa é que, com a trajetória de vida que tenho, não considero que eu ou os meus pares sejamos pessoas vulneráveis, mas sim que todas as pessoas são vulnerabilizadas pela presença ou ausência do Estado. Quando passei por todas as situações de vulnerabilidade, nos cinco anos e meio em que fiquei no Abrigo Institucional para Menores de Idade, não me recordo de ter passado por ali uma criança branca. Todas as crianças com as quais convivi nesse tempo eram pretas, na sua grande maioria crianças LGBTQIAPN+.

No abrigo, comecei a perceber que só reconhecia naquele espaço pessoas iguais a mim. Na rua, a grande maioria é de pessoas pretas, que têm como marca em suas histórias muito sofrimento. Estando em situação de rua, as únicas oportunidades que tive diferentes da vulnerabilização eram mediante o acesso à criminalidade. Quando se passa por muitas vulnerabilidades, às vezes a única possibilidade de permanecer viva é pelo uso de substâncias, já que, para 90% das pessoas trans como eu, a oferta no mercado de trabalho é a prostituição. Isso leva a lugares de vulnerabilização, já que para enfrentar a rua todos os dias em uma cidade fria como São Paulo, às vezes a única possibilidade é o álcool. Quando se tem que fazer essa escolha constantemente, é óbvio que se cria um uso abusivo quando não há outra estratégia.

Nesse cenário, há inclusive o Estado tirando os seus pertences, porque em São Paulo precisamos acionar a Justiça para que outros seres humanos não tirem os pertences das pessoas. Precisamos barrar essas violências, ao invés de avançarmos nessas políticas públicas. Temos a Lei Padre Júlio Lancellotti, por exemplo, que barra o Estado de se utilizar de arquiteturas hostis, que impossibilitam pessoas de ocuparem espaços embaixo dos viadutos. Quem quer morar embaixo do viaduto? Em Belo Horizonte, eu dormia em um ponto de prostituição porque me sentia segura, mas os comerciantes colocaram canos nas marquises e, à noite, ligavam o registro que pingava água das marquises. Até alguém conseguir mudar isso, não tínhamos onde dormir.

Aí entra a Redução de Danos, porque vamos aprendendo a lidar com a ausência do Estado e a presença constante da violência, criando estratégias para permanecermos vivos. A Redução de Danos, para mim, também é muito sobre criar o mínimo de dignidade dentro dessas poucas possibilidades que se tem, de forma que para algumas pessoas o uso de substâncias é a única estratégia. Vivemos no país que mais consome pornografia trans e travesti e mais mata pessoas trans, ao mesmo tempo em que a nossa expectativa de vida é de 35 anos de idade e a única possibilidade para conseguirmos pagar o aluguel no fim do mês é permanecermos boa parte do mês acordadas por horas, por todas as madrugadas. A única possibilidade para ficarmos acordadas, tendo o corpo como ferramenta de trabalho, é o uso de uma substância que nos mantenha assim.

As mulheres na rua são violentadas e, em contraponto a isso, nos espaços de trabalho que tenho ocupado, desconheço qualquer caso de pessoa que morreu em consequência do uso de substância. Várias pessoas que moraram comigo no abrigo, que conheci na rua e na minha trajetória como redutora de danos, morreram em virtude da violência policial e das ruas, nunca do uso de substância. Só não morreram antes, porque a Redução de Danos estava ali presente, trazendo outras alternativas de vida para essas pessoas, inclusive para elaborar esse uso, entender que a vulnerabilização leva ao uso e que talvez essa possa ser a única forma de se manter viva.

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    O curso teve como objetivo proporcionar aos trabalhadores das áreas da saúde, assistência social, educação e movimentos sociais o acesso aos debates mais recentes de temas ligados à Redução de Danos e políticas de drogas. O curso formou 35 redutores de danos e qualificou a promoção de saúde dirigida a pessoas que usam álcool e outras drogas no estado do Rio de Janeiro. A aula inaugural do curso, realizada em 16/03/2023, está disponível em: https://www.youtube.com/live/IMk_29FA1w4?si=o9cmQYdXbIVXbaKZ

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024
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