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AUTOGOVERNO INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E BOLÍVIA

Resumo

O objetivo deste trabalho é investigar se a Constituição de 1988 garante a prerrogativa do autogoverno às comunidades indígenas, segundo os cânones do novo constitucionalismo latino-americano presentes na Constituição da Bolívia. A investigação foi conduzida por método dedutivo e comparativo, análise documental e bibliográfica, estatística descritiva para análises comparativas. Os resultados mostram que, na comparação entre os modelos constitucionais do Brasil e da Bolívia, é possível notar que, naquele, o paradigma ocidental eurocentrista afirma a soberania constitucional e um sistema mono jurídico (hegemônico) do Direito. Já o arquétipo boliviano se propõe a efetivar o autogoverno e a autodeterminação dos povos originários campesinos. O paradigma brasileiro promove uma política anti-indígena, em prol de um modelo econômico capitalista, a exigir formas alternativas de interpretar a Constituição e identificar instrumentos que garantam a autodeterminação e autonomia dos povos originários no Brasil.

Palavras-chave:
autogoverno; constitucionalismos; povos indígenas

Resumen

El objetivo de este trabajo es investigar si la Constitución de 1988 garantiza a las comunidades indígenas la prerrogativa de autogobierno, según los cánones del nuevo constitucionalismo latinoamericano presentes en la Constitución de Bolivia. La investigación se llevó a cabo utilizando un método deductivo y comparativo, análisis documental y bibliográfico, estadística descriptiva para los análisis comparativos. Los resultados muestran que, al comparar los modelos constitucionales de Brasil y Bolivia, es posible observar que, en el primero, el paradigma occidental eurocentrista afirma la soberanía constitucional y un sistema de derecho mono-jurídico (hegemónico). Por su parte, el arquetipo boliviano se ha propuesto hacer realidad el autogobierno y la autodeterminación de los pueblos originarios campesinos. El paradigma brasileño promueve una política anti-indígena, en favor de un modelo económico capitalista, que exige formas alternativas de interpretar la Constitución y de identificar instrumentos que garanticen la autodeterminación y la autonomía de los pueblos originarios de Brasil.

Palabras clave:
autogobierno; constitucionalismos; pueblos indígenas

Abstract

This article aims to investigate if the Brazilian Constitution of 1988 guarantees the prerogative of self-government to Indigenous communities, according to the canons of the new Latin American constitutionalism present in the Constitution of Bolivia. A deductive and comparative study is carried out with documental and bibliographical analysis, using descriptive statistics to perform comparative analyses. The results show that, when comparing the constitutional models of Brazil and Bolivia, it is possible to notice that in the Brazilian Constitution, the Western Eurocentric paradigm affirms constitutional sovereignty and a monistic (hegemonic) system of Law. By contrast, the Bolivian archetype proposes to implement the self-government and self-determination of the Indigenous communities. The Brazilian paradigm promotes an anti-Indigenous policy, in favor of a capitalist economic model, demanding alternative ways of interpreting the Constitution to identify instruments that ensure the self-determination and autonomy of the native peoples in Brazil.

Keywords:
constitutionalism; indigenous communities; self-government

Introdução

Constitucionalismos são os diversos movimentos teórico-práticos ou prático-teóricos geradores de Constituição, ou seja, o arcabouço normativo definidor da organização do Estado, do exercício e dos limites do poder político, bem como o que estabelece os direitos e as garantias fundamentais das pessoas. Esses movimentos ocorrem no contexto revolucionário europeu do século XVIII, desafiando o absolutismo político e limitando o poder, mas também se fazem presentes na efervescente América Latina do final do século XX e início do XXI, em contextos insurgentes, a exemplo do caso boliviano.

De fato, em alguns países do Sul, outrora integrados ao regime colonial-explorador, ocorreram mobilizações populares em busca de mudanças estruturais. Lideradas pelos povos originários, essas movimentações questionavam o modelo econômico exploratório persistente e hegemônico, ao mesmo tempo que reivindicavam a preservação de terras, culturas e valores ancestrais desses povos.

Sobretudo em função dessas lutas, alguns países, ao invés de seguirem o modelo constitucional europeu (democracia representativa, economia neoliberal e unicidade jurídica), adotaram novos parâmetros axiológicos para a composição de sua Constituição, ao priorizarem, entre outros fatores, os ideais de ascensão popular, democracia comunitária, Estado plurinacional e autonomia indígena. Por essa razão, tal movimento tem sido chamado de novo constitucionalismo latino-americano, por ser concebido a partir dos valores e das realidades autóctones, dissociando-se da tradicional concepção euro-estadunidense e valorizando os povos que já habitavam o continente antes da colonização.

Este artigo faz, então, um corte temático e histórico-geográfico, a fim de identificar os princípios desse constitucionalismo, em especial aqueles presentes na Constituição boliviana de 2009 BOLÍVIA. [Constituição (2009)]. Constitución Política del Estado (CPE), de 7 Febrero 2009. La Paz, 2009. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2022.
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e articulá-los à Constituição do Brasil de 1988 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 31 ago. 2021.
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, com ênfase na forma de tratar a população indígena em termos de reconhecimento da autonomia no campo político, ou seja, autogoverno para assuntos internos à comunidade.

Por certo, a Constituição de 1988 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 31 ago. 2021.
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reserva um capítulo específico com dois artigos (231 e 232) para a questão indígena, prevendo que devem ser reconhecidos a esses povos sua organização social, seus costumes, suas línguas, suas crenças e tradições, além dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Ademais, essas terras são propriedade não deles, mas da União, a quem compete demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Não prevê, de modo expresso, a jurisdição indígena autônoma, tampouco reserva assento dessa população nos parlamentos.

No país vizinho, os indígenas originários campesinos, categoria correspondente ao indígena brasileiro, representam a maior parte da população. É reconhecido o domínio ancestral que essas nações e povos têm sobre seus territórios e a Constituição lhes garante a livre determinação, consistente no direito à autonomia e ao autogoverno. Além disso, há, para eles, a previsão constitucional de participação nos órgãos e nas instituições estatais, tanto que nas eleições deve ser observada a proporcionalidade dessa população no conjunto do eleitorado.

Assim, o objetivo principal deste trabalho consiste em examinar se a Constituição brasileira de 1988 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 31 ago. 2021.
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garante ou não o autogoverno às comunidades indígenas, segundo os cânones do novo constitucionalismo latino-americano, em especial o modelo desenhado na Constituição boliviana de 2009 BOLÍVIA. [Constituição (2009)]. Constitución Política del Estado (CPE), de 7 Febrero 2009. La Paz, 2009. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2022.
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. Na construção deste artigo, a opção pela Constituição da Bolívia como parâmetro de verificação deve-se ao fato de que ela se traduz em um marco do denominado novo constitucionalismo latino-americano, ao romper com o padrão de Estado moderno ocidental europeu quando incorpora novas instituições, a exemplo do pluralismo jurídico.

Já os objetivos específicos consistem em investigar aspectos da Constituição do Brasil sobre essa temática, Constituição e pluralismo, compreender o sentido do novo constitucionalismo latino-americano, analisar a materialização dele na Constituição da Bolívia e os modelos constitucionais, fazendo um quadro comparativo entre Brasil e Bolívia com relação ao aspecto do autogoverno indígena.

Para a obtenção desses intentos, a investigação se conduziu pelos métodos dedutivo e comparativo, com análise documental e bibliográfica, abordagem exploratória e quanti-qualitativa, estatística descritiva para análises comparativas, resultando em um texto estruturado em três partes centrais, articuladas entre si. Na primeira, é esquadrinhada a contribuição do novo constitucionalismo latino-americano para a produção de Constituições e Estados plurais. Na segunda, é examinado o modo como essa proposta se materializa na Constituição da Bolívia. Por fim, na terceira seção, ocorre o comparativo entre ambas no que se refere ao tema objeto de pesquisa, quando são revelados os resultados fundamentais da investigação.

1 Constituição e pluralismo: a contribuição do novo constitucionalismo latino-americano

De acordo com Canotilho ( 2003CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. ), constitucionalismos são movimentos que levam às Constituições, em seu sentido moderno, ou seja, como instrumento de organização do Estado, de limitação do poder político, bem como da previsão dos direitos e das garantias fundamentais. Para Canotilho ( 2003CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. ), constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado, que se revela uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos centrada no contexto revolucionário europeu do século XVIII, quando, nos planos político, filosófico e jurídico, questionava-se o absolutismo.

Segundo Bonavides ( 2007BONAVIDES, P. Do estado liberal ao estado social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. ), a formação do Estado moderno na Europa é acompanhada pelos movimentos constitucionais. Nos quais ergue-se a ideologia de organização político-social do Estado hegemônico e hierarquizado por meio da Constituição ( Magalhães; Rabelo; Teixeira, 2019 MAGALHÃES, J. L. Q.; RABELO, S. M.; TEIXEIRA, S. G. O buen vivir como projeto de mundo contra hegemônico. Revista Culturas Jurídicas, Niterói, v. 6, n. 15, p. 248-270, 31 mar. 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/45240/28859 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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), promovendo, assim, as dimensões estruturantes de poder e estabelecendo seus limites jurídicos, com fins de garantias sociais ( Canotilho, 2002CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002. ).

Conforme análise de Lassalle ( 1998LASSALLE, F. A essência da Constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1998. ), houve a atuação dos fatores reais de poder levando à formação da Constituição, cuja essência representa a estruturação desses fatores que regem o Estado. O fato é que, de acordo com Magalhães, Rabelo e Teixeira ( 2019 MAGALHÃES, J. L. Q.; RABELO, S. M.; TEIXEIRA, S. G. O buen vivir como projeto de mundo contra hegemônico. Revista Culturas Jurídicas, Niterói, v. 6, n. 15, p. 248-270, 31 mar. 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/45240/28859 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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), o movimento contratualista liberal europeu representou uma ruptura da estrutura político-social feudal, tendo estabelecido o padrão hegemônico da Constituição moderna europeia colonial.

O constitucionalismo euro-estadunidense é, portanto, um movimento de caráter liberal burguês cuja finalidade era garantir a formação do Estado unitário, com liberdade comercial e a propriedade privada, além da proteção contra o abuso de poder ( Bonavides, 2007BONAVIDES, P. Do estado liberal ao estado social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. ; Silva, 2022 SILVA, H. A. Incorporando os valores e direitos fundamentais à Constituição: uma análise da efetividade na conservação da Amazônia legal no Brasil. Revista Jurídica da Ufersa, Mossoró, v. 5, n. 10, p. 213-228, 23 fev. 2022. Disponível em: http://dx.doi.org/10.21708/issn2526-9488.v5.n10.p213-228.2021 . Acesso em: 8 jan. 2024.
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).

O modelo constitucionalista liberal europeu afirma a soberania constitucional e um sistema mono jurídico (hegemônico) do Direito, em vez de um modelo coordenado e pluralista ( Magalhães, 2018 MAGALHÃES, J. L. Q. Direito à diversidade individual e coletiva e a superação da modernidade colonial. Virtuajus, Belo Horizonte, v. 3, n. 4, p. 37-59, jul. 2018. Disponível em: https://periodicos.pucminas.br/index.php/virtuajus/article/view/18153 . Acesso em: 7 jan. 2024.
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). Assim, o Estado apresenta um modelo onipotente de concentrar o poder político e de governo no território, não afirmando uma coordenação de ordens ( Costa, 2017COSTA, A. A. Teoria Dialética do Direito: a filosofia jurídica de Roberto Lyra Filho. Brasília: UnB, 2017. ). Adicionalmente, o Estado moderno é caracterizado por uma especificidade jurídica que privilegiou as relações do comércio amparadas de liberdade, individualidade do sujeito de direito, promovidas pela classe burguesa ( Mascaro, 2013MASCARO, A. L. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013. ).

Entretanto, o constitucionalismo não se restringiu à Europa oitocentista. Em verdade, ele pode se manifestar em qualquer tempo e lugar. É o caso da América Latina, em especial nos países andinos no final do século XX e início do XXI. De acordo com Bello ( 2018BELLO, E. A cidadania no constitucionalismo latino-americano. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. ), o constitucionalismo daqui apresenta características inovadoras em relação ao paradigma do hemisfério norte. Enquanto na visão europeia a centralidade das constituições reside na dignidade da pessoa humana, no pensamento antropocêntrico e racionalista iluminista, no arquétipo andino a centralidade se localiza no referencial epistemológico ancestral da Pachamama , no princípio do Buen Vivir , no biocentrismo e na relação íntima entre humano e natureza.

Por esse novo paradigma, as constituições resultam de intensa mobilização popular, e em seus textos são inseridas as pautas históricas dos movimentos sociais, além do reconhecimento do pluralismo jurídico, dos sujeitos coletivos e da incorporação dos diversos grupos que compõem as sociedades ( Nóbrega, 2019 NÓBREGA, L. N. Estado e autonomias indígenas na nova constituição da Bolívia. Tensões Mundiais, Fortaleza, v. 14, n. 26, p. 157-181, 5 jan. 2019. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/article/view/261/768 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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). Em outras palavras, o constitucionalismo da América Latina é fruto de mobilizações políticas e sociais conforme explica Bello ( 2016 BELLO, E. Breve roteiro sobre estudos do constitucionalismo latino-americano: a importância da pesquisa empírica. Empório do Direito, 22 jul. 2016. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/breve-roteiro-sobre-estudos-do-constitucionalismo-latino-americano-a-importancia-da-pesquisa-empirica . Acesso em: 10 jan. 2024.
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, adaptado):

[…] assembleias constituintes, projetos de refundação e concepção do Estado em termos de Estado Pluricultural e Multinacional, organização institucional, catálogos de direitos fundamentais, referenciais epistemológicos e axiológicos ( Pachamama e Bien Vivir ), jurisdição especial indígena, autonomia dos povos tradicionais, proteção aos territórios indígenas e recursos naturais.

No caso da Bolívia, há previsão de um “Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, libre, independiente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado y con autonomias 1 1 Em tradução livre: “Estado Social Unitário de Direito Comunitário Plurinacional, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomia”. ”, fundado “[…] en la pluralidad y el pluralismo político, económico, jurídico, cultural y lingüístico, dentro del proceso integrador del país 2 2 Em tradução livre: “Na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e linguístico, no âmbito do processo de integração do país”. ” ( Bolívia, 2009 BOLÍVIA. [Constituição (2009)]. Constitución Política del Estado (CPE), de 7 Febrero 2009. La Paz, 2009. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2022.
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).

Ocorre que a América Latina foi colonizada por um projeto bem-sucedido da Europa, processo por meio do qual houve intensa extração dos recursos naturais, ocupação territorial e uso do solo, além de mortalidade e escravização em massa dos povos originários. Para legitimar sua conquista, o modelo de colonização eurocêntrico e capitalista mercantil foi calcado em uma falsa premissa evolucionista social de superioridade, com base em conceitos de raça, religião e civilização ( Quijano, 2005 QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: QUIJANO, A. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 117-142. Disponível em: https://biblioteca-repositorio.clacso.edu.ar/bitstream/CLACSO/14084/1/colonialidade.pdf . Acesso em: 8 jan. 2024.
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; Ribeiro, 2015RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3. ed. São Paulo: Global, 2015. ). Essa postura política e jurídica produziu uma invisibilização dos povos latino-americanos, como a diversidade dos povos originários, na participação política e na aquisição de direitos. Assim, uma vez prevalecendo o modelo europeu, o processo de independência e o estabelecimento das constituições na América Latina foram concretizados por instituições de padrão unitário, que afastavam os povos originários da participação democrática e republicana ( Nóbrega, 2019 NÓBREGA, L. N. Estado e autonomias indígenas na nova constituição da Bolívia. Tensões Mundiais, Fortaleza, v. 14, n. 26, p. 157-181, 5 jan. 2019. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/article/view/261/768 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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).

Dessa forma, o movimento de modernidade promovido pelo europeu colonizador é arrojado na negação da diversidade, com a valorização da superioridade e do indivíduo, em detrimento da igualdade e da coletividade ( Quijano, 2005 QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: QUIJANO, A. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 117-142. Disponível em: https://biblioteca-repositorio.clacso.edu.ar/bitstream/CLACSO/14084/1/colonialidade.pdf . Acesso em: 8 jan. 2024.
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; Ribeiro, 2015RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3. ed. São Paulo: Global, 2015. ). Com efeito, a narrativa dentro do sistema binário do dominador é a da uniformização dos valores, dos padrões, da religião e do comportamento para viabilizar a difusão de um projeto de colonização hegemônico e centralizador. Em síntese, é possível destacar alguns pontos nucleares do projeto do Estado moderno colonizador: (i) a figura de um grupo hegemônico em detrimento dos subalternizados e excluídos; (ii) a dicotomia moderna é uniformizadora, assim os diferentes são perseguidos, expulsos, presos, escravizados e mortos; e (iii) a narrativa binária do “nós” (superiores, modernos e civilizados) contra “eles” (índios, selvagens, bárbaros e pagãos), que se assenta na lógica narcisista “sou superior porque não sou inferior, sou europeu (civilizado) porque não sou selvagem, índio, bárbaro” ( Magalhães, 2018 MAGALHÃES, J. L. Q. Direito à diversidade individual e coletiva e a superação da modernidade colonial. Virtuajus, Belo Horizonte, v. 3, n. 4, p. 37-59, jul. 2018. Disponível em: https://periodicos.pucminas.br/index.php/virtuajus/article/view/18153 . Acesso em: 7 jan. 2024.
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, p. 40-41, adaptado).

O entendimento da lógica da dicotomia moderna (hegemônica), representada na narrativa opressora do “nós” contra “eles”, é fundamental para superar a herança colonial normalizada, que separa, oculta e exclui os desiguais ( Magalhães, 2018 MAGALHÃES, J. L. Q. Direito à diversidade individual e coletiva e a superação da modernidade colonial. Virtuajus, Belo Horizonte, v. 3, n. 4, p. 37-59, jul. 2018. Disponível em: https://periodicos.pucminas.br/index.php/virtuajus/article/view/18153 . Acesso em: 7 jan. 2024.
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). De acordo com Costa ( 2017COSTA, A. A. Teoria Dialética do Direito: a filosofia jurídica de Roberto Lyra Filho. Brasília: UnB, 2017. ), a legitimidade dessa lógica foi criada por intermédio das suas instituições jurídicas, religiosas e científicas do Estado moderno. Com efeito, os primeiros movimentos constitucionais do século XIX na América Latina, liderados pela burguesia local, privilegiaram a manutenção de um Estado derivado do modelo Europeu de estruturação do poder. Nessa toada, o Estado é reprodutor de uma política eurocêntrica, que privilegia as relações do capital estabelecidas pelos colonizadores ( Gargarella, 2010GARGARELLA, R. Frontmatter. In: GARGARELLA, R. The Legal Foundations of Inequality: Constitutionalism in the Americas. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. i-vi. ; Valença, 2018VALENÇA, D. A. De costas para o Império: o estado plurinacional da Bolívia e a luta pelo socialismo comunitário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. ).

Sob esse prisma, pode-se entender o novo Constitucionalismo latino-americano como um movimento jurídico, filosófico e social que busca romper com os valores do Estado moderno hegemônico, calcado na superioridade e hierarquização da lógica binária colonizadora ( Gargarella, 2010GARGARELLA, R. Frontmatter. In: GARGARELLA, R. The Legal Foundations of Inequality: Constitutionalism in the Americas. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. i-vi. ; González, 2015 GONZÁLEZ, M. Indigenous Territorial Autonomy in Latin America: an overview. Latin American And Caribbean Ethnic Studies, Londres, v. 10, n. 1, p. 10-36, 2 jan. 2015. Informa UK Limited. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/17442222.2015.1034438 . Acesso em: 7 jan. 2024.
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; Bello, 2018BELLO, E. A cidadania no constitucionalismo latino-americano. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. ; Magalhães, 2018 MAGALHÃES, J. L. Q. Direito à diversidade individual e coletiva e a superação da modernidade colonial. Virtuajus, Belo Horizonte, v. 3, n. 4, p. 37-59, jul. 2018. Disponível em: https://periodicos.pucminas.br/index.php/virtuajus/article/view/18153 . Acesso em: 7 jan. 2024.
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; Nóbrega, 2019 NÓBREGA, L. N. Estado e autonomias indígenas na nova constituição da Bolívia. Tensões Mundiais, Fortaleza, v. 14, n. 26, p. 157-181, 5 jan. 2019. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/article/view/261/768 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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). Dessa maneira, proclamar um Estado pluralista não é apenas reconhecer a diversidade, mas afirmar que não existe um padrão hegemônico e superior ( Magalhães; Rabelo; Teixeira, 2019 MAGALHÃES, J. L. Q.; RABELO, S. M.; TEIXEIRA, S. G. O buen vivir como projeto de mundo contra hegemônico. Revista Culturas Jurídicas, Niterói, v. 6, n. 15, p. 248-270, 31 mar. 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/45240/28859 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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). Com efeito, pode-se pensar efetivamente em afastar as invisibilidades que o direito ocidental instalou, uma vez que ao tratar, apenas, simbolicamente os povos diferentes como iguais, esse direito perpetua a herança colonial de exploração ( Lyra Filho, 1982LYRA FILHO, R. O que é Direito. 11. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. ). O constitucionalismo latino-americano opera por uma perspectiva de ordem jurídica e política que apresenta uma coordenação de ordens autônomas e não uma ordem hierarquicamente superior, como apresenta o modelo euro-estadunidense ( González, 2015 GONZÁLEZ, M. Indigenous Territorial Autonomy in Latin America: an overview. Latin American And Caribbean Ethnic Studies, Londres, v. 10, n. 1, p. 10-36, 2 jan. 2015. Informa UK Limited. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/17442222.2015.1034438 . Acesso em: 7 jan. 2024.
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).

O novo constitucionalismo latino-americano apresenta sua singularidade na arrojada mobilização popular vinculada aos movimentos sociais que buscam desvincular a marginalização de herança colonial causada aos povos originários. Em essência, o arquétipo andino visa ao bem-estar social, com o reconhecimento axiológico ancestral de Pachamama e dos princípios do Bien Vivir e da valorização da relação humana local (latino-americana) com a natureza ( Bello, 2018BELLO, E. A cidadania no constitucionalismo latino-americano. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. ).

Esses princípios, atualmente defendidos pelos povos andinos nos Estados plurinacionais da Bolívia e do Equador, como a ética do Bien Vivir , erguem-se ao nível de uma filosofia baseada na lógica epistemológica do Sul, de resistência à concepção hegemônica moderna de desenvolvimento. Enquanto o pensamento colonial do Estado moderno, que atribui o desenvolvimento econômico acelerado em uma perspectiva individualista e hierarquizada de colocar a natureza como recurso a extrair, a lógica andina decolonial critica o modelo capitalista e reconhece que o ser humano é parte da natureza e não apartado dela. Assim, uma vez que o homem degrada o meio ambiente, ocorre a autodegradação da pessoa humana ( Magalhães; Rabelo; Teixeira, 2019 MAGALHÃES, J. L. Q.; RABELO, S. M.; TEIXEIRA, S. G. O buen vivir como projeto de mundo contra hegemônico. Revista Culturas Jurídicas, Niterói, v. 6, n. 15, p. 248-270, 31 mar. 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/45240/28859 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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).

A decolonialidade e a desconstrução do pensamento de superioridade colonial se materializam ao questionarem os instrumentos que dão legalidade para tais ações na sociedade, como o próprio Direito ( Lyra Filho, 1982LYRA FILHO, R. O que é Direito. 11. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. ). O novo constitucionalismo latino-americano, ao reconhecer a diversidade e a autonomia dos povos, declara não haver um padrão hegemônico a ser adotado pelo Estado, o que resulta em uma perspectiva de assumir a autonomia dos povos e o pluralismo jurídico ( González, 2015 GONZÁLEZ, M. Indigenous Territorial Autonomy in Latin America: an overview. Latin American And Caribbean Ethnic Studies, Londres, v. 10, n. 1, p. 10-36, 2 jan. 2015. Informa UK Limited. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/17442222.2015.1034438 . Acesso em: 7 jan. 2024.
http://dx.doi.org/10.1080/17442222.2015....
).

Há, portanto, o modelo euro-estadunidense, alicerçado em um padrão normativo que uniformiza o sujeito de direito e reprime as reais diferenças sociais, étnicas, culturais, raciais e de gênero. Assim, impactando a construção de um Estado modelo ocidental, a perspectiva de uma só língua, um território e um povo ( Nóbrega, 2019 NÓBREGA, L. N. Estado e autonomias indígenas na nova constituição da Bolívia. Tensões Mundiais, Fortaleza, v. 14, n. 26, p. 157-181, 5 jan. 2019. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/article/view/261/768 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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). Sob outro prisma, manifesta-se o novo constitucionalismo latino-americano, pautado no reconhecimento dos sujeitos coletivos e na diversidade dos grupos. Em outras palavras, na inclusão da diversidade dos povos na máquina política do Estado ( Gargarella, 2010GARGARELLA, R. Frontmatter. In: GARGARELLA, R. The Legal Foundations of Inequality: Constitutionalism in the Americas. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. i-vi. ). Nisso reside sua maior contribuição.

2 Um caminho a ser percorrido: a materialização do novo constitucionalismo latino-americano na Constituição da Bolívia

No século XXI, a política neoliberal hegemônica dos Estados de matriz euro-estadunidense tem produzido efeitos sociais danosos ao bem-estar de parcelas significativas dos povos sul-americanos e, em resposta, emergem os discursos e as ações progressistas no continente. Vale salientar que a terminologia “progressista” alude aos governantes de oposição ao padrão hegemônico, identificados com a esquerda, que ascenderam na política visando conter os efeitos deletérios que a globalização da política neoliberal provocou em seus países ( Santos, 2016SANTOS, F. L. B. Uma história da onda progressista sul-americana. São Paulo, 2016. ).

Ainda de acordo com Santos ( 2016SANTOS, F. L. B. Uma história da onda progressista sul-americana. São Paulo, 2016. ), é possível identificar dentro desses governos as figuras de Hugo Chávez, na Venezuela (1998); Evo Morales, na Bolívia (2005); Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil (2002); Néstor Kirchner, na Argentina (2003); Rafael Correa, no Equador (2006); e Fernando Lugo, no Paraguai (2008).

Na América Latina, o modelo neoliberal de desenvolvimento econômico é insustentável ao equilíbrio ecológico, com políticas extrativistas de exportação dos recursos naturais e manutenção da marginalização dos povos originários, o que contribui para uma crise civilizatória ( Escrivão Filho, 2016ESCRIVÃO FILHO, A. S. J. Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. ; Silva, 2022 SILVA, H. A. Incorporando os valores e direitos fundamentais à Constituição: uma análise da efetividade na conservação da Amazônia legal no Brasil. Revista Jurídica da Ufersa, Mossoró, v. 5, n. 10, p. 213-228, 23 fev. 2022. Disponível em: http://dx.doi.org/10.21708/issn2526-9488.v5.n10.p213-228.2021 . Acesso em: 8 jan. 2024.
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). Nesse contexto, a não emancipação política indígena, bem como a insatisfação econômica e social na história da Bolívia, assemelha-se aos demais países da América Latina.

Contudo, cabe ressaltar que grande parte dos habitantes da Bolívia é descendente de populações aborígenes ( Cunha, 2012CUNHA, M. C. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. ) e compõe a classe econômica popular subalternizada formadora do Estado. No século XIX, desde a independência do país, a população indígena foi lançada à marginalização e à desvalorização da sua cultura, o que, de acordo com Valença ( 2018VALENÇA, D. A. De costas para o Império: o estado plurinacional da Bolívia e a luta pelo socialismo comunitário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. ), levou a constantes insatisfações populares.

No século XX, com a troca das elites conservadoras para as de política liberal, o Estado boliviano conseguiu alcançar certa estabilidade, que perdura há algumas décadas. Segundo Valença ( 2018VALENÇA, D. A. De costas para o Império: o estado plurinacional da Bolívia e a luta pelo socialismo comunitário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. ), o cenário somente apresentou uma mudança econômica e social a partir do conflito armado entre Bolívia e Paraguai. Esses são momentos constitutivos que revelam o descompromisso das elites com o Estado, estando estas mais preocupadas em atender aos interesses do mercado capitalista ( Zavatela, 2008ZAVATELA, M. R. Lo nacional-popular en Bolivia. La Paz: Plural, 2008. ).

Adicionalmente, dissolvem-se os partidos tradicionais e surgem os partidos ideológicos contrários, como o Movimento Nacionalista Revolucionário ( Valença, 2018VALENÇA, D. A. De costas para o Império: o estado plurinacional da Bolívia e a luta pelo socialismo comunitário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. ). Em 1952, a Bolívia passa pela chamada Revolução Nacional, responsável por mobilizar uma grande massa popular que se encontrava fragmentada, culminando com a tomada do Estado e sendo referência marcante em sua Constituição até hoje. Tal insurreição popular foi dissipada com o golpe militar de 1964, no qual houve a instauração de uma ditadura. Para Santos ( 2016SANTOS, F. L. B. Uma história da onda progressista sul-americana. São Paulo, 2016. ), a volta de um governo democrata ocorreu somente em 1982.

A crise econômica que assolava os países da América Latina gerou intensas insatisfações populares e desencadeou diversos movimentos que, após 1980, levaram à dissolução dos modelos ditatoriais. Com efeito, os Estados passaram a adotar regimes políticos democráticos, além do reconhecimento da pluralidade e do combate às desigualdades sociais. Nesse sentido, é possível citar, de acordo com Nóbrega ( 2019 NÓBREGA, L. N. Estado e autonomias indígenas na nova constituição da Bolívia. Tensões Mundiais, Fortaleza, v. 14, n. 26, p. 157-181, 5 jan. 2019. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/article/view/261/768 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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), as constituições do Brasil (1988), da Colômbia (1991), do México (1992), do Peru (1993), da Bolívia (1994), da Argentina (1994), do Equador (1998) e da Venezuela (1999).

Na Bolívia, o legado do projeto nacionalista instalado no governo militar, eivado de problemas econômicos, sociais e ambientais, deixava a população em espoliação crescente. A inflação, a depreciação cambial e o aumento da dívida externa são problemas característicos de administrações centralizadoras na América Latina. Assim, herdadas por Siles Zuazo (1982-1985) e Paz Estenssoro (1985-1989), esses governos foram estabelecidos, paralelamente, com a utilização de políticas neoliberais ( Valença, 2018VALENÇA, D. A. De costas para o Império: o estado plurinacional da Bolívia e a luta pelo socialismo comunitário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. ).

A derrocada da política neoliberal na Bolívia foi atingida quando o ditador Hugo Banzer foi eleito em 1997. Seu governo foi marcado por influência política estadunidense de combate à coca, provocando forte reação das classes subalternas e projetando a figura de Evo Morales na liderança popular, em defesa das práticas ancestrais, de autodeterminação cultural e nacionalistas ( Ayma, 2014AYMA, E. M. Mi vida: de Orinoca al Palacio Quemado. La Paz: Artes Graficas Sagitario, 2014. ). Na chamada Guerra da Água (2000), em Cochabamba, ocorreu um dos momentos de maior insatisfação popular. Após o governo boliviano assumir um compromisso de privatização do sistema hídrico de Cochabamba, em acordo junto ao Banco Mundial de um perdão de 600 milhões, a revolta popular ganhou maior dimensão. Ademais, pagar pelo uso da água rompe com o modo de vida comunitário dos andinos com a natureza, ferindo a concepção ancestral da Pachamama e do Bien Vivir ( Santos, 2016SANTOS, F. L. B. Uma história da onda progressista sul-americana. São Paulo, 2016. ).

Nesse contexto de mobilização popular, ocorre a ascensão de Evo Morales e do Movimento Al Socialismo (MAS), com as crescentes insatisfações populares que ocupavam a Bolívia. Muito em razão disso, Evo Morales foi eleito presidente em 2005, com 54% dos votos. Ao assumir a Presidência, Morales iniciou a luta política por uma nova Constituição, o que se materializou em 2009. Dessa forma, a Bolívia proclamou um Estado Unitário de Direito Plurinacional Comunitário, livre, independente, soberano, intercultural, descentralizado e dotado de autonomia 3 3 “Art. 1. A Bolívia constitui-se como um Estado Social Unitário de Direito Comunitário Plurinacional, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomia. A Bolívia assenta na pluralidade e nos pluralismos político, econômico, jurídico, cultural e linguístico, no âmbito do processo de integração do país” ( Bolívia, 2009 , tradução livre). .

Para Valença ( 2018VALENÇA, D. A. De costas para o Império: o estado plurinacional da Bolívia e a luta pelo socialismo comunitário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. ), a realidade boliviana foi encarada, em parte, como fruto de uma herança colonialista, promovida pelo capitalismo neoliberal, por meio da política hegemônica de hierarquização e superioridade ( Magalhães; Rabelo; Teixeira, 2019 MAGALHÃES, J. L. Q.; RABELO, S. M.; TEIXEIRA, S. G. O buen vivir como projeto de mundo contra hegemônico. Revista Culturas Jurídicas, Niterói, v. 6, n. 15, p. 248-270, 31 mar. 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/45240/28859 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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). Esse arquétipo promoveu a marginalização e a exploração dos povos originários ( Nóbrega, 2019 NÓBREGA, L. N. Estado e autonomias indígenas na nova constituição da Bolívia. Tensões Mundiais, Fortaleza, v. 14, n. 26, p. 157-181, 5 jan. 2019. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/article/view/261/768 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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). Nesse sentido, a nova Constituição boliviana tem uma proposta de romper com a herança colonial de violências 4 4 “Preâmbulo. […] Deixamos o Estado colonial, republicano e neoliberal no passado. Assumimos o desafio histórico de construir coletivamente o Estado Social Unitário de Direito Comunitário Plurinacional, que integre e articule os propósitos de caminhar em direção a uma Bolívia democrática, produtiva, portadora e inspiradora de paz, comprometida com o desenvolvimento integral e com a autodeterminação do povo. Nós, mulheres e homens, através da Assembleia Constituinte e com o poder originário do povo, expressamos o nosso compromisso com a unidade e integridade do país. Cumprindo o mandato do nosso povo, com a força da nossa Pachamama e graças a Deus, refundamos a Bolívia […]” ( Bolívia, 2009 , tradução livre). , de modo que o MAS não buscava equalizar a Bolívia a uma Europa, e sim implementar uma singularidade latino-americana, garantindo os direitos sociais contra o padrão hegemônico ocidental, por meio do reconhecimento e da dignidade dos povos andinos, sendo esta representada na filosofia andina do bem-estar, como o Bien Vivir e com relação à Pachamama.

De acordo com Magalhães, Rabelo e Teixeira ( 2019 MAGALHÃES, J. L. Q.; RABELO, S. M.; TEIXEIRA, S. G. O buen vivir como projeto de mundo contra hegemônico. Revista Culturas Jurídicas, Niterói, v. 6, n. 15, p. 248-270, 31 mar. 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/45240/28859 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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), o novo constitucionalismo boliviano rompe com o padrão hegemônico unitário, hierarquizado e mono jurídico. A nova Constituição se assenta na pluralidade etnocultural e no pluralismo jurídico, reconhecendo a existência dos povos pré-coloniais e originários campesinos 5 5 “Art. 2. Dada a existência pré-colonial das nações e dos povos indígenas camponeses indígenas e o seu domínio ancestral sobre os seus territórios, a sua autodeterminação é garantida no âmbito da unidade do Estado, que consiste no seu direito à autonomia, à autodeterminação. O governo, a sua cultura, o reconhecimento das suas instituições e a consolidação das suas entidades territoriais, nos termos desta Constituição e da lei” ( Bolívia, 2009 , tradução livre). . Essa inclusão das diferenças culturais e linguísticas representava uma fissura do entendimento unificador de cultura hegemônica e civilizatória ocidental, implementada pelo colonizador, de acordo com a qual deveria haver uma só língua, um só povo ( Nóbrega, 2019 NÓBREGA, L. N. Estado e autonomias indígenas na nova constituição da Bolívia. Tensões Mundiais, Fortaleza, v. 14, n. 26, p. 157-181, 5 jan. 2019. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/article/view/261/768 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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). Assim, a Bolívia passa a reconhecer o direito de autonomia e autodeterminação dos povos campesinos, bem como os conceitos de autogoverno e instituições jurídicas próprias.

A autonomia originária indígena consiste em um autogoverno no território local, com liberdades política e jurídica (arts. 289 a 296). Assim, há um sistema de coordenação de autonomias política e jurídica, com a autonomia regional (arts. 280 a 292) 6 6 “Art. 281. O governo de cada autonomia regional será constituído por uma Assembleia Regional com poderes deliberativos, normativo-administrativo e de fiscalização, no âmbito das suas competências, e por um órgão executivo. [...] Art. 289. A autonomia camponesa indígena consiste no autogoverno como exercício de autodeterminação das nações e dos povos camponeses indígenas, cuja população compartilha território, cultura, história, línguas e organizações ou instituições jurídicas, políticas, sociais e econômicas. [...] Art. 292. Cada autonomia camponesa indígena elaborará seu Estatuto, segundo normas e procedimentos próprios, nos termos da Constituição e da Lei” ( Bolívia, 2009 , tradução livre). e a autonomia originária campesina. A autonomia regional é constituída por meio de uma assembleia com competência deliberativa, normativa-administradora e fiscalizadora. Os membros desta assembleia são representantes eleitos pelos municípios. Os povos originários campesinos, por sua vez, serão responsáveis por elaborar seus próprios estatutos, normas e procedimentos, seguindo a respectiva lei constitucional.

A nova forma de governo e estrutura do Estado rompe com o modelo hierarquizado e mono jurídico, e é reconhecida, na nova Constituição, a jurisdição ordinária e a originária campesina dos povos indígenas, em igual hierarquia (art. 179, I e II) 7 7 “Art. 179. I. A função judicial é única. A jurisdição ordinária é exercida pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelos tribunais de justiça departamentais, pelos tribunais de condenação e pelos juízes; jurisdição agroambiental pelo Tribunal e juízes agroambientais; a jurisdição camponesa originária é exercida por autoridades próprias; haverá jurisdições especializadas reguladas por lei. II. A jurisdição ordinária e a jurisdição camponesa indígena gozarão da mesma hierarquia” ( Bolívia, 2009 , tradução livre). , sendo a última exercida pelas suas próprias autoridades, garantindo assim autonomia jurídica (art. 190) 8 8 “Art. 190. I. As nações e os povos indígenas camponeses exercerão suas funções jurisdicionais e competitivas por meio de suas autoridades e aplicarão seus próprios princípios, valores culturais, normas e procedimentos” ( Bolívia, 2009 , tradução livre). .

A Bolívia se organiza institucional e juridicamente por meio da valoração de sociedades diversas dentro do Estado, para tanto a magistratura é eleita com base em critérios de pluralidade, com representação do sistema ordinário e originário campesino (art. 197) 9 9 “Art. 197. I – O Tribunal Constitucional Plurinacional será composto por Magistrados escolhidos com critérios de plurinacionalidade, com representação do sistema ordinário e do sistema camponês originário indígena” ( Bolívia, 2009 , tradução livre). . Na perspectiva de garantir, assim, a autonomia e a pluralidade jurídica dos povos, e redefinindo a concepção constitucional vigente. Por fim, é possível praticar o chamado autogoverno jurídico, que acolhe as características de deslocamento da competência de decisão administrativa local e criação de estruturas políticas e jurídicas de autogoverno ( González, 2015 GONZÁLEZ, M. Indigenous Territorial Autonomy in Latin America: an overview. Latin American And Caribbean Ethnic Studies, Londres, v. 10, n. 1, p. 10-36, 2 jan. 2015. Informa UK Limited. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/17442222.2015.1034438 . Acesso em: 7 jan. 2024.
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). Esse é, portanto, o arcabouço do constitucionalismo latino-americano na Bolívia.

3 Modelos constitucionais: um comparativo entre Brasil e Bolívia e o papel do autogoverno

As constituições do Brasil e da Bolívia apresentam, em seus respectivos preâmbulos, um conjunto de princípios considerados indispensáveis para uma vida digna, a exemplo dos direitos fundamentais de igualdade, solidariedade, liberdade e equidade. Sobre isso, vale ressaltar que o modelo euro-estadunidense é arrojado nos direitos fundamentais centrados na dignidade da pessoa humana. Já o modelo latino-americano é ousado nas epistemologias do Sul: Bien Vivir e Pachamama , ambos com similaridades para garantir o bem-estar das pessoas. As perspectivas axiológicas e as estratégias na busca por essa missão é que divergem bastante.

Uma das maneiras de analisar o bem-estar social, de forma concreta em cada modelo constitucional, consiste na medição de parâmetros que relacionam saúde, educação e padrão de vida (PIB) de uma nação, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e o Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD). Nesse sentido, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) da Organização das Nações Unidas (ONU) dispõe de relatórios e banco de dados para o desenvolvimento humano.

Apesar de o IDH ser um método passível de críticas, tendo em vista que, entre outros motivos, não é indicativo do real progresso humano nem das desigualdades sociais. Além disso, o PIB, por sua vez, não corresponde à real distribuição da riqueza de uma sociedade. Nesse sentido, desde 2010, foram integrados novos índices, tais como o IDHAD, método que, além de levar em conta aspectos como saúde, educação e rendimento entre a população do país, é descontado o valor médio de cada dimensão social, de acordo com o seu nível de desigualdade econômica. Com isso, o IDHAD é um nível médio de desenvolvimento humano sensível à distribuição da desigualdade populacional. Assim, a diferença entre o IDH e o IDHAD é a medida da variação de desenvolvimento humano devido à desigualdade.

Tabela 1. Comparação do IDHAD entre Brasil e Bolívia, a partir do novo Constitucionalismo da Bolívia de 2009

Ano Brasil Bolívia
2010 0,529 0,413
2011 0,528 0,442
2012 0,535 0,444
2013 0,549 0,482
2014 0,557 0,492
2015 0,563 0,494
2016 0,572 0,515
2017 0,579 0,527
2018 0,575 0,542
2019 0,57 0,546
Fonte: adaptada de PNUD ( 2022 PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO – PNUD. Relatório de Desenvolvimento Humano 2021/2022: tempos incertos, vidas instáveis. A construir o nosso futuro num mundo em transformação. Nova York: PNUD, 2022. Disponível em: https://www.undp.org/sites/g/files/zskgke326/files/2023-05/hdr2021-22ptpdf.pdf . Acesso em: 10 jan. 2024.
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).

Em 2019, último dado fornecido pelo PNUD da ONU, é possível notar que o Brasil apresenta um valor superior de IDHAD com 0,570, enquanto a Bolívia fica com 0,546. No entanto, quando esses valores são comparados com base no novo Constitucionalismo latino-americano de 2010 a 2019, o Brasil apresenta uma taxa de crescimento de 8%, ao passo que a Bolívia chega a 32%.

A alteração para tais valores resultou também do processo constituinte e do modelo constitucional adotado pela Bolívia a partir de 2009. A nova Constituição, em importante medida, consolidou uma série de ações e comportamentos direcionados aos interesses internos do povo boliviano.

Valença ( 2018VALENÇA, D. A. De costas para o Império: o estado plurinacional da Bolívia e a luta pelo socialismo comunitário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. , p. 90) aponta essa relação ao salientar o fato de que, nesse contexto, “ocorreu uma ressignificação da matriz econômica boliviana”. Do modelo explorador de minas, gás e produtos alimentícios para exportação, houve uma guinada para atender ao mercado interno, graças ao controle governamental sobre setores estratégicos (minérios, comunicação, transportes e gêneros alimentícios), com vistas a impulsionar a economia comunitária ( Valença, 2018VALENÇA, D. A. De costas para o Império: o estado plurinacional da Bolívia e a luta pelo socialismo comunitário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. ). De acordo com Garcia-Linera (2013 apud Valença, 2018VALENÇA, D. A. De costas para o Império: o estado plurinacional da Bolívia e a luta pelo socialismo comunitário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. , p. 91), no intervalo de cinco anos, os ingressos financeiros saltaram de um bilhão e meio de dólares para mais de nove bilhões, o que possibilitou a implementação de políticas públicas na área social.

Em paralelo ao impulso econômico, o novo modelo constitucional é dirigido pela pluralidade dos povos, manifestada na autonomia e no autogoverno dos povos originários, rompendo com o modelo constitucional euro-estadunidense ( Valença, 2018VALENÇA, D. A. De costas para o Império: o estado plurinacional da Bolívia e a luta pelo socialismo comunitário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. ). O autogoverno e a autodeterminação dos povos tradicionais são formas que permitem conservar e exercer os direitos de um Estado pluralista ( González, 2015 GONZÁLEZ, M. Indigenous Territorial Autonomy in Latin America: an overview. Latin American And Caribbean Ethnic Studies, Londres, v. 10, n. 1, p. 10-36, 2 jan. 2015. Informa UK Limited. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/17442222.2015.1034438 . Acesso em: 7 jan. 2024.
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; Postero; Tockman, 2020 POSTERO, N.; TOCKMAN, J. Self-Governance in Bolivia’s First Indigenous Autonomy: charagua. Latin American Research Review, Cambridge, v. 55, n. 1, p. 1-15, 19 mar. 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.25222/larr.213 . Acesso em: 8 jan. 2024.
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).

Nessa toada, o Brasil adota um modelo constitucional ocidental, fortemente influenciado pelos padrões internacionais, como a Convenção n. 169 da OIT ( Organização Internacional do Trabalho, 2011 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Convenção n. 169 sobre povos indígenas e tribais e Resolução referente à ação da OIT. Brasília: OIT, 2011. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf . Acesso: 9 jan. 2024.
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), que dispõe sobre os povos indígenas e tribais, bem como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas ( Nações Unidas, 2008 NAÇÕES UNIDAS. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro: Nações Unidas, 2008. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf . Acesso em: 8 jan. 2024.
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) 10 10 Art. 3 Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural. Art. 4 Os povos indígenas, no exercício do seu direito à autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas ( Nações Unidas, 2008 , p. 7). . De acordo com o art. 26, cabe ao Estado, por meio desses dispositivos, reconhecer os povos indígenas, suas liberdades para manifestações culturais, políticas e o direito de posse sobre a terra que originalmente ocupavam ( Nações Unidas, 2008 NAÇÕES UNIDAS. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro: Nações Unidas, 2008. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf . Acesso em: 8 jan. 2024.
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).

Entretanto, como bem destaca a respectiva declaração da ONU, quanto à definição de autodeterminação e autogoverno (arts. 3 e 4), nenhuma dessas concepções muda a ideia hierarquizada, soberana e mono jurídica do Estado (art. 46). Assim, é dever do Estado estabelecer instituições representativas dos povos indígenas aptas a garantir a eles seus direitos 11 11 A Medida Provisória n. 1.154, de 1º de janeiro de 2023, estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios ( Brasil, 2023 ). Assim, visando à inclusão dos povos originários, o inc. XXIV do art. 17, estabelece, de forma inédita, a criação do Ministério dos Povos Indígenas, marco fundamental, uma vez que os assuntos indígenas eram representados por outros ministérios, como o da Agricultura, vinculando assim, os órgãos indigenistas, como da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) ou o antigo Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILNT). .

Na contramão do tradicional modelo constitucional ocidental, o constitucionalismo latino-americano opera por uma perspectiva de romper a ordem jurídica-política superior e soberana do Estado moderno ( Magalhães; Rabelo; Teixeira, 2019 MAGALHÃES, J. L. Q.; RABELO, S. M.; TEIXEIRA, S. G. O buen vivir como projeto de mundo contra hegemônico. Revista Culturas Jurídicas, Niterói, v. 6, n. 15, p. 248-270, 31 mar. 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/45240/28859 . Acesso em: 4 jan. 2024.
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). Assim, o Estado deve ser calcado em um sistema de coordenação de ordens autônomas ( González, 2015 GONZÁLEZ, M. Indigenous Territorial Autonomy in Latin America: an overview. Latin American And Caribbean Ethnic Studies, Londres, v. 10, n. 1, p. 10-36, 2 jan. 2015. Informa UK Limited. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/17442222.2015.1034438 . Acesso em: 7 jan. 2024.
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). Na América Latina, o movimento social não vinculou a autodeterminação dos povos originários à construção de um novo Estado. Em vez disso, o ponto de partida foi reivindicar o direito de se autodeterminar em limites jurídicos e políticos da nova Constituição.

Essa perspectiva é fundamental, pois implica a criação de autonomia política e administrativa dos indígenas no território. Com efeito, essa autonomia só será efetiva, de acordo com González ( 2015 GONZÁLEZ, M. Indigenous Territorial Autonomy in Latin America: an overview. Latin American And Caribbean Ethnic Studies, Londres, v. 10, n. 1, p. 10-36, 2 jan. 2015. Informa UK Limited. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/17442222.2015.1034438 . Acesso em: 7 jan. 2024.
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), se o Estado for capaz de garantir dois elementos fundamentais: o direito individual – sintetizado pelo próprio exercício do poder jurisdicional no território; e o acesso ao direito institucional, para concretizar o autogoverno. Por fim, existe a combinação constitucional de direitos e instituições indígenas com políticas administrativas de competência no território.

Da comparação entre a Constituição do Brasil ( 1988 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 31 ago. 2021.
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), de modelo euro-estadunidense, e a Constituição da Bolívia ( 2009 BOLÍVIA. [Constituição (2009)]. Constitución Política del Estado (CPE), de 7 Febrero 2009. La Paz, 2009. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2022.
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), concebida com base no modelo latino-americano, ficam evidentes algumas discrepâncias. De fato, no Brasil há o princípio de autodeterminação dos povos, porém restrito ao contexto das relações com as nações estrangeiras. No que diz respeito às comunidades indígenas, apesar de a Constituição garantir o reconhecimento das comunidades, da cultura e dos direitos sobre as terras que originalmente ocupavam (arts. 231 e 232), em nada garante autonomia em institutos jurídicos, políticos ou capacidade de se autogovernar. Já na Constituição da Bolívia ( 2009 BOLÍVIA. [Constituição (2009)]. Constitución Política del Estado (CPE), de 7 Febrero 2009. La Paz, 2009. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2022.
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), a autonomia dos povos originários campesinos se dá em exercício de autogoverno e sistema de coordenação de ordens autônomas com o Estado, por meio de institutos jurídicos, políticos, sociais e econômicos próprios dos povos indígenas (arts. 289 a 296).

Sob esse prisma, quando se pensa em autonomia indígena no controle do território, incluindo utilização dos recursos naturais e do espaço aéreo, entre outros itens, é razoável presumir que, para tal direito ser conquistado, depende de representatividade na composição dos poderes do Estado ou das instituições políticas ( González, 2015 GONZÁLEZ, M. Indigenous Territorial Autonomy in Latin America: an overview. Latin American And Caribbean Ethnic Studies, Londres, v. 10, n. 1, p. 10-36, 2 jan. 2015. Informa UK Limited. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/17442222.2015.1034438 . Acesso em: 7 jan. 2024.
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). O direito de um grupo étnico se autodeterminar é garantido com a jurisdição territorial, reconhecida pelo próprio Estado. Nesse sentido, o critério fundamental que caracteriza a capacidade de autodeterminar é uma política interna territorial conduzida pelo próprio grupo étnico com autonomia jurídica e reconhecido pelo Estado ( Postero; Tockman, 2020 POSTERO, N.; TOCKMAN, J. Self-Governance in Bolivia’s First Indigenous Autonomy: charagua. Latin American Research Review, Cambridge, v. 55, n. 1, p. 1-15, 19 mar. 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.25222/larr.213 . Acesso em: 8 jan. 2024.
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). Diante dessa atmosfera, é possível praticar o chamado self-governing right , em relação ao qual é possível sintetizar os seguintes atributos: transferência de tomada da competência de decisão para administração local; e criação de estruturas políticas e jurídicas de autogoverno e território delimitado com direito garantido para o exercício da utilização dos recursos naturais ( González, 2015 GONZÁLEZ, M. Indigenous Territorial Autonomy in Latin America: an overview. Latin American And Caribbean Ethnic Studies, Londres, v. 10, n. 1, p. 10-36, 2 jan. 2015. Informa UK Limited. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/17442222.2015.1034438 . Acesso em: 7 jan. 2024.
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).

Embora a Constituição brasileira de 1988 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 31 ago. 2021.
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reconheça as comunidades, organizações e culturas indígenas, o governo é ausente em garantir a conservação e o cumprimento dos direitos dos povos originários. O aumento de conflitos e invasões em terras indígenas no Brasil põe em discussão novamente a proteção dos direitos constitucionais dessas comunidades.

A esse respeito, vale mencionar o relatório de 2021 intitulado Violência contra os povos indígenas no Brasil , realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), segundo o qual ocorreram 1.294 casos de violência contra o patrimônio dos povos indígenas. Destes, 871 estão relacionados a omissão e morosidade na regularização de terras, 118 casos de conflitos relativos a direitos territoriais e 305 de invasões possessórias de terras indígenas, com exploração ilegal dos recursos naturais e danos ao patrimônio. A quantidade é três vezes maior que em 2018, e durante o período de 2019 a 2022, nenhuma terra indígena foi demarcada. São registradas 1.393 terras no Brasil, sendo que 871 (63%) delas não foram regularizadas ( Conselho Indigenista Missionário, 2022 CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO – CIMI. Violência contra os povos indígenas no Brasil. Dados de 2021. Brasília: CIMI, 2022. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2022/08/relatorio-violencia-povos-indigenas-2021-cimi.pdf . Acesso em: 8 jan. 2024.
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).

A maior parte dos conflitos nas terras indígenas está associada a extração ilegal de madeira e recursos florestais, desmatamento, invasões de fazendeiros, garimpo ilegal e extração de minérios ( Conselho Indigenista Missionário, 2022 CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO – CIMI. Violência contra os povos indígenas no Brasil. Dados de 2021. Brasília: CIMI, 2022. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2022/08/relatorio-violencia-povos-indigenas-2021-cimi.pdf . Acesso em: 8 jan. 2024.
https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2...
; Silva, 2022 SILVA, H. A. Incorporando os valores e direitos fundamentais à Constituição: uma análise da efetividade na conservação da Amazônia legal no Brasil. Revista Jurídica da Ufersa, Mossoró, v. 5, n. 10, p. 213-228, 23 fev. 2022. Disponível em: http://dx.doi.org/10.21708/issn2526-9488.v5.n10.p213-228.2021 . Acesso em: 8 jan. 2024.
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), o que leva ao cenário de grave violação às determinações constitucionais. Nesse sentido, a realidade brasileira parece revelar uma negação até mesmo aos padrões generalistas e abstratos do remoto constitucionalismo euro-estadunidense, quanto mais do auspicioso arquétipo andino. E assim se evidencia a grande diferença entre o modelo brasileiro e o boliviano.

Considerações finais

Ao comparar os modelos constitucionais do Brasil e da Bolívia, é notável que, por aqui, sobressai-se uma ausência de autogoverno às comunidades indígenas, dada a vinculação às estruturas normativas do modelo euro-estadunidense. Já no país andino, são evidentes as instituições inerentes ao postulado do autogoverno indígena, nos moldes do novo constitucionalismo latino-americano.

De fato, o padrão constitucional clássico afirma a soberania do Estado unitário e um sistema mono jurídico (hegemônico) do Direito, enquanto a Bolívia admite um modelo de Estado pluralista, com sistema coordenado de ordens jurídico-político, promovendo uma fissura no paradigma conformado unicamente aos valores ocidentais. Por certo, a Constituição do país vizinho impõe ao Estado a tarefa de garantir a efetividade da autodeterminação dos povos originários campesinos.

Ademais, ao associar os modelos constitucionais desses dois países à questão do desenvolvimento, constata-se que os bolivianos apresentam crescimento do IDHAD superior quatro vezes em comparação ao do Brasil. Isso evidencia que a inserção de instrumentos de princípios de autodeterminação dos povos na Constituição da Bolívia tem contribuído no sentido do desenvolvimento e do bem-estar dos povos originários, sobretudo porque eles representam significativa fração da população daquele país.

É bem verdade que a Constituição do Brasil de 1988 reconhece os princípios internacionais de proteção às comunidades indígenas e a sua cultura (arts. 231 a 232), influenciada pela Convenção n. 169 sobre povos indígenas e tribais da OIT e pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas . Entretanto, o texto constitucional brasileiro não é incisivo no que se refere à autodeterminação desses povos, uma vez que não a menciona de maneira assertiva, retardando, assim, a efetivação desse importante postulado civilizacional. Nesse sentido, deixou de avançar.

Bem diversa é proposta da Constituição da Bolívia ( 2009 BOLÍVIA. [Constituição (2009)]. Constitución Política del Estado (CPE), de 7 Febrero 2009. La Paz, 2009. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2022.
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), quando rompe com a visão de superioridade e de hegemonia e permite um sistema coordenado entre institutos jurídicos, políticos, sociais e econômicos próprios dos povos originários campesinos, realizando, destarte, o autogoverno e a autodeterminação desses povos (arts. 289 a 296). Assim, pode-se dizer que houve um avanço. Desse modo, cabe à sociedade organizada lutar para que as instituições infraconstitucionais consigam otimizar essa conquista histórica daquela nação andina.

Isto posto, a pesquisa que subsidiou a construção deste trabalho possibilitou evidenciar que o modelo adotado pelo Brasil tem, em verdade, favorecido uma política anti-indígena. Os fatos demonstram isso. No campo econômico, não superou a matriz exploratória e de acumulação capitalista descontrolada. Já na esfera política, houve negligência em relação à autonomia e à representação política dos povos originários.

Nesse viés, tomando como referência o período de 2019 a 2022, por exemplo, as pautas dessas comunidades eram apartadas dos próprios sujeitos indígenas, ao serem conduzidas pelo Ministério da Agricultura e Pecuária, de marcante influência da agricultura exportadora, historicamente contrária à demarcação de terras e a favor da expansão do agronegócio. A essência dessa diretriz política fica evidenciada no fato de que 62% das demarcações de terras indígenas ainda estão pendentes e de que nenhum território foi demarcado no mencionado período.

A propósito disso, caso não haja alteração formal da Constituição para contemplar por aqui o paradigma boliviano de autogoverno indígena, é preciso pensar em alternativas de interpretação, a fim de identificar instrumentos que possam, a partir do fenômeno da mutação constitucional, garantir minimamente a autodeterminação e a autonomia dos povos originários no Brasil, sob pena da condução ao extermínio físico e cultural desses sujeitos.

Nesse sentido, a criação do Ministério dos Povos Indígenas, ocorrida em 2023, representa um aceno positivo à sociedade brasileira, especialmente porque agora compete a esse órgão implementar as políticas públicas voltadas aos interesses desses povos, vítimas de uma histórica exclusão sociocultural fronteiriça ao crime de genocídio.

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  • 1
    Em tradução livre: “Estado Social Unitário de Direito Comunitário Plurinacional, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomia”.
  • 2
    Em tradução livre: “Na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e linguístico, no âmbito do processo de integração do país”.
  • 3
    “Art. 1. A Bolívia constitui-se como um Estado Social Unitário de Direito Comunitário Plurinacional, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomia. A Bolívia assenta na pluralidade e nos pluralismos político, econômico, jurídico, cultural e linguístico, no âmbito do processo de integração do país” ( Bolívia, 2009 BOLÍVIA. [Constituição (2009)]. Constitución Política del Estado (CPE), de 7 Febrero 2009. La Paz, 2009. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2022.
    https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion...
    , tradução livre).
  • 4
    “Preâmbulo. […] Deixamos o Estado colonial, republicano e neoliberal no passado. Assumimos o desafio histórico de construir coletivamente o Estado Social Unitário de Direito Comunitário Plurinacional, que integre e articule os propósitos de caminhar em direção a uma Bolívia democrática, produtiva, portadora e inspiradora de paz, comprometida com o desenvolvimento integral e com a autodeterminação do povo. Nós, mulheres e homens, através da Assembleia Constituinte e com o poder originário do povo, expressamos o nosso compromisso com a unidade e integridade do país. Cumprindo o mandato do nosso povo, com a força da nossa Pachamama e graças a Deus, refundamos a Bolívia […]” ( Bolívia, 2009 BOLÍVIA. [Constituição (2009)]. Constitución Política del Estado (CPE), de 7 Febrero 2009. La Paz, 2009. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2022.
    https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion...
    , tradução livre).
  • 5
    “Art. 2. Dada a existência pré-colonial das nações e dos povos indígenas camponeses indígenas e o seu domínio ancestral sobre os seus territórios, a sua autodeterminação é garantida no âmbito da unidade do Estado, que consiste no seu direito à autonomia, à autodeterminação. O governo, a sua cultura, o reconhecimento das suas instituições e a consolidação das suas entidades territoriais, nos termos desta Constituição e da lei” ( Bolívia, 2009 BOLÍVIA. [Constituição (2009)]. Constitución Política del Estado (CPE), de 7 Febrero 2009. La Paz, 2009. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2022.
    https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion...
    , tradução livre).
  • 6
    “Art. 281. O governo de cada autonomia regional será constituído por uma Assembleia Regional com poderes deliberativos, normativo-administrativo e de fiscalização, no âmbito das suas competências, e por um órgão executivo. [...] Art. 289. A autonomia camponesa indígena consiste no autogoverno como exercício de autodeterminação das nações e dos povos camponeses indígenas, cuja população compartilha território, cultura, história, línguas e organizações ou instituições jurídicas, políticas, sociais e econômicas. [...] Art. 292. Cada autonomia camponesa indígena elaborará seu Estatuto, segundo normas e procedimentos próprios, nos termos da Constituição e da Lei” ( Bolívia, 2009 BOLÍVIA. [Constituição (2009)]. Constitución Política del Estado (CPE), de 7 Febrero 2009. La Paz, 2009. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2022.
    https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion...
    , tradução livre).
  • 7
    “Art. 179. I. A função judicial é única. A jurisdição ordinária é exercida pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelos tribunais de justiça departamentais, pelos tribunais de condenação e pelos juízes; jurisdição agroambiental pelo Tribunal e juízes agroambientais; a jurisdição camponesa originária é exercida por autoridades próprias; haverá jurisdições especializadas reguladas por lei. II. A jurisdição ordinária e a jurisdição camponesa indígena gozarão da mesma hierarquia” ( Bolívia, 2009 BOLÍVIA. [Constituição (2009)]. Constitución Política del Estado (CPE), de 7 Febrero 2009. La Paz, 2009. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2022.
    https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion...
    , tradução livre).
  • 8
    “Art. 190. I. As nações e os povos indígenas camponeses exercerão suas funções jurisdicionais e competitivas por meio de suas autoridades e aplicarão seus próprios princípios, valores culturais, normas e procedimentos” ( Bolívia, 2009 BOLÍVIA. [Constituição (2009)]. Constitución Política del Estado (CPE), de 7 Febrero 2009. La Paz, 2009. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2022.
    https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion...
    , tradução livre).
  • 9
    “Art. 197. I – O Tribunal Constitucional Plurinacional será composto por Magistrados escolhidos com critérios de plurinacionalidade, com representação do sistema ordinário e do sistema camponês originário indígena” ( Bolívia, 2009 BOLÍVIA. [Constituição (2009)]. Constitución Política del Estado (CPE), de 7 Febrero 2009. La Paz, 2009. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2022.
    https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion...
    , tradução livre).
  • 10
    Art. 3 Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural. Art. 4 Os povos indígenas, no exercício do seu direito à autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas ( Nações Unidas, 2008 NAÇÕES UNIDAS. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro: Nações Unidas, 2008. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf . Acesso em: 8 jan. 2024.
    https://www.acnur.org/fileadmin/Document...
    , p. 7).
  • 11
    A Medida Provisória n. 1.154, de 1º de janeiro de 2023, estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios ( Brasil, 2023 BRASIL. Medida Provisória n. 1.154, de 1º de janeiro de 2023. Estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Brasília, DF: Presidência da República, 2023. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/\_ato2023-2026/2023/Mpv/mpv1154.htm . Acesso: 8 jan. 2024.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/\_a...
    ). Assim, visando à inclusão dos povos originários, o inc. XXIV do art. 17, estabelece, de forma inédita, a criação do Ministério dos Povos Indígenas, marco fundamental, uma vez que os assuntos indígenas eram representados por outros ministérios, como o da Agricultura, vinculando assim, os órgãos indigenistas, como da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) ou o antigo Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILNT).
  • Como citar este artigo (ABNT):
    BRITO, L. G.; SILVA, H. A. Autogoverno indígena: um estudo comparado entre Brasil e Bolívia. Veredas do Direito , Belo Horizonte, v. 21, e212520, 2024. Disponível em: http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/2520 . Acesso em: dia mês. ano.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2023
  • Aceito
    26 Jan 2024
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