RESUMO
Em “As ideias fora do lugar”, Roberto Schwarzusa a ideia de reconhecimento em passagensdefinidoras do texto, mas o conceito nuncarecebe um tratamento formal e acabado.Cu r iosa mente, por vezes o empr ego seaproxima daquele feito por Axel Honneth.O artigo propõe, então, uma aproximaçãoentre os usos do reconhecimento em Schwarze Honnet h. Para isso, são considerados,em primeiro lugar, usos que Schwarz fazdessa categoria também em outros textos. Aseguir, é buscada uma aproximação com ouso recente dado por Honneth à categoria. Por fim, retomando a ênfase na sociedadebrasileira, é sugerida uma leitura do conceitode reconhecimento como categoria analítica dasociedade brasileira,devido à sua capacidade dearticular certas continuidades sociais própriasà estrutura de arbítrio e dominação de classe nopaís.
PALAVRAS-CHAVE Reconhecimento; favor; crítica; Roberto Schwarz; Axel Honneth
ABSTRACT
In “The ideas out of place”, RobertoSchwarz uses the idea of recognition at definingmoments. Yet, this category is never fullyworked out. Curiously, some of the usages hegives to that concept are similar to those givenby Axel Honneth. So, this paper proposes aconnection between both authors. In order to dothat, first, Schwarz’s essay and some other onesare where he discusses recognition are exposed.After that, a connection between his ideasand Honneth’s recent theory of recognition isposed. Finally, with the eyes turned to Braziliansociety, a reading of the concept of recognitionis proposed, one that accounts for arbitrarinessand class stratification in this country.
KEYWORDS Recognition; arbitrariness; critique; Roberto Schwarz; Axel Honneth
A recepção da assim chamada teoria crítica da Escola de Frankfurt no Brasil tem uma história já bastante consolidada. Seja no que diz respeito à apropriação das ideias de autores como Theodor W. Adorno e Walter Benjamin na crítica da cultura, seja no que se refere à teoria democrática de Jürgen Habermas no âmbito da ciência política ou ainda que se trate da discussão dos modelos críticos de Max Horkheimer ou Herbert Marcuse. Recentemente, a continuidade da tradição de pensamento associada à Escola de Frankfurt tem sido levada a cabo por Axel Honneth, inicialmente sob a forma de uma teoria do reconhecimento (2003) e posteriormente como uma teoria da eticidade democrática (2011). Contudo, o projeto de uma teoria crítica da sociedade desenvolvido por Honneth nesses termos de uma teoria do reconhecimento se constitui ao mesmo tempo em um afastamento das intenções crítico-descritivas primeiro formuladas por Horkheimer na década de 1930 e em uma revalidação – atualizada, é óbvio – das premissas analíticas então expostas. De acordo com Honneth, o que caracteriza a teoria crítica da sociedade nesse sentido restrito ao grupo de pensadores reunidos ao redor de Horkheimer é a intenção de realizar um tipo específico de crítica normativa em que não apenas se observe criticamente a realidade social com a qual o teórico se defronta, mas que, ao fazê-lo, ele possa identificar uma instância pré-científica de ancoramento prático para a crítica. A essa dimensão, Honneth (2018b, p. 22) chama de “interesse empírico ou experiência moral”. Ora, essa dimensão de um interesse prático, que fora inicialmente identificada por Horkheimer com a experiência de opressão vivenciada pelas classes proletárias e, posteriormente, por Habermas com a constituição de regras sociolinguísticas de interação, é identificada por Honneth em um nível ainda mais fundamental do que o da comunicação: para ele, se a utilização deste último conceito como paradigma da teoria crítica oferece a vantagem de acessar uma dimensão de experiência formativa de modo mais seguro do que o paradigma do trabalho, ela sofre com o problema de ser regulada antes por padrões externos aos indivíduos envolvidos e, logo, não pode ser caracterizada como uma esfera de ação cujo conteúdo é intrinsecamente moral. Daí que o apoio para uma crítica normativa deve ser buscado não no momento formativo em que os indivíduos estabelecem um procedimento de reciprocidade, mas naquele em que eles criam expectativas quanto à sua identidade. Na medida, porém, em que essas expectativas assim desenvolvidas quanto à própria personalidade necessitam ser confirmadas por outras pessoas envolvidas na interação social, é a expressão de demandas pelo reconhecimento das características associadas por uma pessoa à sua individualidade que fornece o tal interesse empírico de que Honneth fala. Essa demandas, de acordo com ele, são demandas por reconhecimento (HONNETH, 2018b, p. 32 e ss.), e a maneira como se expressam é uma tentativa de dar feição prático-institucional a um princípio de reconhecimento recíproco.
É a partir dessas considerações que Honneth irá desdobrar uma teoria segundo a qual o movimento de expressar publicamente demandas sociais e políticas pode ser compreendido como uma maneira de lutar por reconhecimento. Nas sociedades modernas, segundo essa concepção, vige uma separação entre esferas de ação social nas quais o princípio do reconhecimento recíproco assume diferentes feições. Não interessa para o presente artigo explorar o desenvolvimento da teoria do reconhecimento e nem suas modificações ao longo da trajetória de Honneth2, mas sim notar que o mencionado princípio de reconhecimento recíproco, que é pensado como o núcleo estruturante das lutas sociais em seu livro Luta por reconhecimento (2003), originalmente publicado em 1992, gradualmente deixa de ocupar esse lugar em seus trabalhos posteriores e, em sua próxima grande dissertação, o livro O direito da liberdade, publicado em 2011, se transforma em uma condição implícita para a legitimação das sociedades modernas porque dá origem a uma forma social de liberdade. Essa nova feição será defendida, além da mencionada monografia, em dois outros livros: em um Honneth procura associar o potencial crítico da liberdade social às premissas normativas de uma doutrina socialista (2015); em outro, fazendo um exercício de história das ideias, o autor pretende demonstrar “como certa ideia, a saber aquela do reconhecimento, por, de certa forma, ‘estar no ar’, foi desenvolvida em diferentes direções e nos respectivos caminhos percorridos assumiu novos significados” (HONNETH, 2018a, p. 16-17)3. E é justamente esse o ponto que interessa aqui.
Na sequência de seu argumento, Honneth afirma desejar, nesse estudo, investigar com especial atenção a possibilidade de que as condições socioculturais de um país tenham contribuído para “a coloração específica” (2018a, p. 17) assumida pela ideia de reconhecimento naquele local. Essa questão, que é melhor tomada como uma questão da cultura política local, é a que pretendo responder com relação ao Brasil. Para isso, evidentemente, seria necessário que o tema do reconhecimento tivesse sido tratado como um elemento da cultura política local – como Honneth identifica nas tradições de pensamento da França, da Grã-Bretanha e da Alemanha. E curiosamente esse foi, sim, um tema de relevo em um clássico ensaio a respeito da cultura política nacional: “As ideias fora do lugar”, de Roberto Schwarz. Ainda que esse seja um elemento que não recebe atenção permanente em sua obra, nesse ensaio o conceito de reconhecimento desempenha, para Schwarz, um papel central em um momento central do argumento: o das relações de compensação simbólica presentes no favor (SCHWARZ, 2000, p. 20)4. Mais do que mera coincidência vocabular, o reconhecimento aparece ali – e também em outros trabalhos de Schwarz – de forma categorialmente similar à que Honneth utiliza n’O direito da liberdade, isto é, a de um princípio implícito de organização das relações práticas. Mais ainda: na medida em que em seu trabalho mais recente de história das ideias a respeito do conceito de reconhecimento Honneth procura demonstrar as especificidades socioculturais por trás do uso dessa categoria como discurso filosófico, a questão da cultura política nacional ganha proeminência. Finalmente, e este é o interesse específico do presente artigo, no uso que Schwarz faz da categoria de reconhecimento, é possível encontrar um nexo entre a organização da vida ideológica brasileira dos finais do século XIX e sua conformação em práticas e rotinas institucionalizadas naquela sociedade. Ou, colocado de outro modo, é possível escavar um significado conceitual próprio não apenas à categoria analítica do reconhecimento, mas às próprias práticas organizadas a partir desse princípio no Brasil.
A fim de realizar essa tentativa de aproximação entre as ideias de Schwarz e Honneth, o artigo inicia por uma exposição de alguns textos do austro-brasileiro em que essa categoria é utilizada como elemento da cultura política nacional. Na seção seguinte, será retomada a discussão feita por Honneth sobre os diferentes caracteres nacionais do conceito de reconhecimento, com o que se espera pavimentar o caminho para que na terceira parte do artigo se realize a aproximação entre a cultura política da qual o reconhecimento é elemento central e o princípio normativo do reconhecimento. Finalmente, nesse último passo, serão discutidas algumas possibilidades abertas pela obra de Roberto Schwarz para que se pense em um entendimento especificamente brasileiro do conceito de reconhecimento.
Reconhecimento como categoria analítica em Roberto Schwarz
O tema central do ensaio “As ideias fora do lugar” não é, evidentemente, o reconhecimento, mas o favor, “nossa mediação quase universal” (SCHWARZ, 2000, p. 16). Esse tema, o da mediação das relações práticas e simbólicas como relações de compensação recíproca, o autor trata como expressão daquilo que, seguindo a socióloga Teresa Sales (1994, p. 26), aqui se irá chamar de cultura política, ou seja, “uma espécie de cimento das relações de mando e subserviência”. Não somente porque Sales procura incluir o tratamento que Schwarz dá ao tema do favor em sua própria descrição da cultura política da desigualdade, mas porque é disso que se trata quando este último autor descreve em seus termos as relações entre as classes sociais no Brasil do século XIX: uma justificação para as relações de dominação.
Antes de tratar da categoria do reconhecimento, então, é preciso voltar à questão do favor a fim de entender por que o primeiro é um instante-chave do segundo. E, de fato, é preciso compreender que o problema tratado por Schwarz sob o signo do favor possui duas dimensões: por um lado, a da organização da vida ideológica nacional, exemplarmente tratada na primeira metade de “As ideias fora do lugar” e, por outro, a da inserção do país na ordem mundial de produção, como tratada na conclusão daquele ensaio, mas também de modo exemplar no ensaio chamado “Nacional por subtração” (SCHWARZ, 2009). Esses dois polos, o da organização interna e o da inserção externa, seriam os limites do quadro dentro do qual se estabelece a topografia social específica da integração social no Brasil. Assim, de acordo com Schwarz, se na relação do favor, por um lado, o capitalismo assume uma forma específica ao relevo social do país, por outro lado, o faz justamente para corresponder à entrada do Brasil como nação autônoma na história contemporânea (SCHWARZ, 2009, p. 132). O ponto de partida de Schwarz, portanto, é o de um situar duplo e integrado, uma vez que à necessidade de inserção externa corresponde a demanda por uma forma de organização interna que não ataque diretamente a fisionomia capitalista própria do lugar5. Essa fisionomia capitalista, por sua vez, já é em si tributária de uma má-formação, já que o país era agrário, assentado sobre latifúndios nos quais a mão de obra escravizada era a força de trabalho (e a relação de produção) fundamental, e independente, devendo direcionar sua economia para o mercado internacional onde vigiam os corolários “do raciocínio econômico burguês” (SCHWARZ, 2000, p. 13). Ainda que o autor enfatize exatamente o estabelecimento da tensão formativa entre princípios científicos e relevo social, o objeto de análise aqui ainda não é a inadequação, mas seu resultante, o favor. Daí a importância de notar que há uma descontinuidade histórica entre a posição do Brasil e a da Europa: “não estávamos para a Europa como o feudalismo para o capitalismo, pelo contrário, éramos seus tributários em toda linha” (SCHWARZ, 2000, p. 17). Ou seja, o favor não é uma etapa prévia da racionalização capitalista – aliás, pelo contrário: a ordem social brasileira depende de sua conexão com o capitalismo europeu na fase em que esse se encontra – e, por isso mesmo, não pode ser superado por meio do combate entre universalismo e privilégio que marcou a vitória dos ideais burgueses sobre os da nobreza feudal no outro continente. Ocorre, porém, que, ao contrário do escravismo, que nega as ideias liberais, o favor “as absorve e desloca, originando um padrão particular” (SCHWARZ, 2000, p. 17). Novamente, então, nos deparamos com uma análise dos efeitos que práticos (o favor) de uma causa material (as relações de produção nacionais e internacionais) para os quais a linguagem das ideias (os corolários científicos) deveria servir como mediador. Desse modo, as referências à constituição científica de ao menos um dos polos da tensão constitutiva do situar-se brasileiro no século XIX – como também o é a frase de abertura do ensaio, aliás: “Toda ciência tem princípios, de que deriva seu sistema” (SCHWARZ, 2000, p. 11) – estão longe de ser artifício retórico; antes, ressaltam exatamente aquele movimento de conexão entre princípios normativos e práticas sociais.
Nosso leitor já terá notado que Schwarz se ocupa aqui dos princípios da economia política, e não das normas e ideais que organizam a vida social. E justamente aqui repousa uma diferença metodológica central para com o projeto de Axel Honneth: para esse último, o motivo pelo qual um procedimento de reconstrução normativa6 deve se orientar pelo valor ético da liberdade enquanto autonomia é que esse ideal é o único capaz de articular demandas por justiça de nível individual e coletivo (HONNETH, 2011, p. 38). Ora, evidentemente esse é um ponto de partida na dimensão normativa das práticas sociais, e é esse ponto de partida que Schwarz muito explicitamente afasta ao afirmar “a disparidade entre a sociedade brasileira, escravista, e as ideias do liberalismo europeu” (SCHWARZ, 2000, p. 12). Atente-se, porém, ao fato de que a oposição aqui não é principalmente de caráter normativo, mas metodológico. Isso porque Schwarz não aponta seu aparato crítico para a falsidade do liberalismo, mas para o fato de que seu funcionamento no Brasil se deve a circunstâncias próprias do lugar, como explicado em um recente texto de esclarecimento a respeito do ensaio original (SCHWARZ, 2012b, p. 165)7. Mais especificamente, diz o autor, a importação do liberalismo pelas elites nacionais que desejavam se inserir no concerto das nações chocava-se com a reprodução das antigas formas de exploração do trabalho. Se, porém, essa era a causa de um mal-estar ideológico próprio do país, isso não era tudo: “Noutro plano, a dissonância vexatória integrava-se ao contexto mais abrangente, dizendo respeito à nova divisão do trabalho ou à própria ordem mundial que se estava implantando, de que era uma verdade” (SCHWARZ, 2012b, p. 168). Consequentemente, o traço de mal-estar identificado não se deixa entender pela história e pela ideia de evolução, mas pela economia política da “atualidade periférica” (SCHWARZ, 2012b, p. 169), que, no mais não dizia respeito apenas ao Brasil. Retomando, então: o ponto de partida no modo de produção próprio da sociedade brasileira do século XIX não é contraposto formalmente ao ideário liberal; antes, a relação possível entre ambos os polos, o da ciência (ou das normas) e o das práticas (as relações de produção), é escrutinada tendo como mediador a vida ideológica do país. Desse modo, ao invés de assumir ideias como valores e ideais, Schwarz as toma como mediadoras de relações sociais. É esse papel que ele dará à ideia de reconhecimento, ainda que aparentemente – e apenas aparentemente – não desconfiado da riqueza de implicações daí derivadas.
Em nenhum outro lugar a impropriedade resultante da relação possível entre os polos da ciência e das práticas aparece de modo mais marcante do que na ideia de “nacional por subtração”, pois ali Schwarz parte da “generalidade social de uma certa experiência”, que seria “o sentimento da contradição entre a realidade nacional e o prestígio ideológico dos países que nos servem de modelo” (SCHWARZ, 2009, p. 110) para demonstrar que, ao longo da história da cultura brasileira, diversas interpretações afirmam que a vida cultural do país tem sido experimentada como caráter inautêntico, postiço ou imitado. Ao mesmo tempo, porém, em que esse espelho ideológico “determina a direção do movimento”, numa citação de Machado de Assis, a construção de problemas na esfera da cultura é repetidamente derrubada e reiniciada de outro ponto, rompendo assim a retomada de trabalhos predecessores. Em oposição a essa tendência, o afastamento do “influxo externo”, seja em sua forma de direita ou de esquerda, busca revelar a descaracterização da cultura nacional e resgatá-la, mas essa operação era realizada como mera subtração (SCHWARZ, 2009, p. 114). Uma vez que é mera subtração, então, a desconstrução das influências não seria a resposta à comédia ideológica exatamente por responder à questão errada (SCHWARZ, 2009, p. 123); de fato, ao final do ensaio, Schwarz (2009, p. 134) enumera os inconvenientes da crítica ingênua que, entre outras coisas, dá ao mal-estar da classe dominante uma feição nacional e, desse modo, “impede de notar o que importa, a saber, a dimensão organizada e cumulativa do processo, a força potenciadora da tradição, mesmo ruim, as relações de poder em jogo, internacionais inclusive” (SCHWARZ, 2009, p. 136). Curiosamente, nesse movimento, “o argumento oculta o essencial, pois concentra a crítica na relação entre elite e modelo” (2009, p. 133) e assim parece revelar que lhe falta alguma medida capaz de expressar categorialmente a transformação do modelo naquele padrão particular mencionado antes.
De novo: Schwarz se interessa pelo mecanismo que, utilizado pelas elites, as coloca em posição de organizar o modo de produção em seu proveito, ainda que para isso tenham sido obrigadas a reorganizar também a vida cultural: na tarefa de atribuir “independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio” (SCHWARZ, 2000, p. 19), o método utilizado deixa implícita a atribuição de riqueza aos já ricos8. Trata-se, afinal, antes do relevo social do que da “intenção cognitiva e de sistema” (SCHWARZ, 2000, p. 19). E no relevo social se encontravam inscritas a relação fundamental da escravidão e também a dos homens livres com os patrões. Daí que o mecanismo do favor deve ser aquele “através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também a outra, a dos que possuem” (SCHWARZ, 2000, p. 16). É nesse ponto que, apesar de todos os riscos, talvez seja possível dar um passo em direção a uma interpretação normativa do argumento de Schwarz9. A descrição que o autor faz do mecanismo do favor continua marcada por sua função prática – é uma “justificação, nominalmente “objetiva”, para o momento do arbítrio” (SCHWARZ, 2000, p. 18) – mas seu resultado é uma “coexistência estabilizada” na qual os envolvidos das diferentes classes antagônicas, ao invés de encontrar “motivo para desmerecer” o arbítrio, legitimam-no e, assim, estabelecem uma “compensação simbólica” sustentada em que “todos reconheciam – e isso sim era importante – a intenção louvável, seja do agradecimento, seja do favor” (SCHWARZ, 2000, p. 18). No Brasil do final do século XIX, pois, o liberalismo se torna um mecanismo de compensação simbólica do arbítrio, já que à prática personalizada do favor se adiciona o penhor do reconhecimento do prestígio individual, de modo que se cria uma relação na qual o favorecido (ou o reconhecido) justifica o favor recebido com argumentos racionais, dado que mediados pela ideologia do universalismo burguês. Nessa relação, em primeiro lugar, a compensação simbólica permite que todos reconheçam a intenção louvável que há no favor e também no agradecimento, tornando-a um ornato; mas até esse ponto o reconhecimento pouco difere do que se poderia depois apresentar como um paradigma da dádiva – como, aliás, o faz Teresa Sales. Seria preciso, portanto, para sustentar o argumento deste artigo, demonstrar se o reconhecimento de que fala Schwarz tem a mesma característica de reciprocidade que nele vê Honneth.
Reconhecimento como categoria analítica em Honneth
Que o mecanismo do favor é, para a sociedade brasileira do século XIX, uma mediação necessária entre o liberalismo e o arbítrio já se tornou visível; que esse mecanismo depende de uma força legitimadora, também; que essa força é o reconhecimento é onde paramos no final da última seção. E que esse reconhecimento pode ser entendido nos termos que Honneth posteriormente viria a usar é o que a presente seção pretende demonstrar. Para isso, é preciso notar que, logo após afirmar que, para a legitimação do arbítrio, era preciso que se reconhecessem as intenções louváveis deste último, Schwarz utiliza o termo de modo aparentemente menos coloquial – e, logo, mais carregado de implicações categoriais. De acordo com ele, além da coexistência estável, a prática do favor propicia o surgimento de uma “cumplicidade permanente” entre os envolvidos que contribui para o acochambramento do conflito social: “No momento da prestação e da contraprestação – particularmente no instante-chave do reconhecimento recíproco – a nenhuma das partes interessa denunciar a outra, tendo embora a todo instante os elementos necessários para fazê-lo” (SCHWARZ, 2000, p. 20 – grifos meus). Notável! De resultado das relações de produção, a necessidade de compensação se torna o pendor da reprodução social! Assim como o capitalista de Marx encontrara na esfera da circulação o segredo da produção, Schwarz parece ter encontrado na vida ideológica um mecanismo mais profundo de reprodução social, pois esse segundo uso do reconhecimento não é mais o mesmo que uma dádiva – por exemplo, o batismo de uma criança camponesa com o nome e sob os auspícios do senhor de terras que depois lhe servirá de patrono e protetor. O que está em jogo aqui é o aspecto normativo segundo o qual a sociedade, ou essa ordem social em questão, somente poderia se reproduzir na medida em que as partes envolvidas a legitimassem a partir de baixo.
Essa ideia, que pode ser escavada tanto em Durkheim quanto no próprio Marx, ganha em Honneth, porém, uso muito similar, ainda que em direção oposta, àquele de que Schwarz, de maneira aparentemente incidental, se vale na sua descrição do mecanismo de manutenção social e contenção do conflito. A curiosidade se torna ainda mais acentuada porque Schwarz conclui a discussão sobre o tema afirmando a respeito da dinâmica das relações pessoais que “este reconhecimento é de uma conivência sem fundo, multiplicada, ainda, pela adoção do vocabulário burguês da igualdade, do mérito, do trabalho, da razão” e que “o mais miserável dos favorecidos via reconhecida nele, no favor, sua livre pessoa” (SCHWARZ, 2000, p. 20 – grifos meus). Sendo, então, em sua forma simples, um elemento de reforço da dominação, ao assumir caráter de reciprocidade, o reconhecimento ganha em Schwarz o status de legitimador10 de arranjos sociais aceitos por todas as partes envolvidas.
Não é outra a função que Honneth atribui a essa categoria logo no início de seu extenso estudo sobre a vida democrática moderna. A introdução a O direito da liberdade é, de fato, uma exposição do método da “reconstrução normativa”, isto é, a intenção de derivar dos pressupostos institucionais da sociedade presente uma teoria da justiça, ao invés de derivá-la de princípios abstratos (HONNETH, 2011, p. 17). Para isso, é preciso, acima de qualquer outra coisa, supor que a reprodução social está ligada a uma orientação coletiva por valores e ideais institucionalizados como práticas e rotinas sociais expressas em normas éticas de conduta que, por sua vez, condensam as considerações normativas pelas quais os indivíduos se orientam (HONNETH, 2011, p. 19-20). Em outras palavras, há uma série de pressupostos éticos que são compartilhados em um nível muito básico pelos indivíduos envolvidos a respeito de quais valores são socialmente aceitáveis e perseguíveis. Quando, então, Honneth atribui ao valor ético da liberdade como autonomia o lugar central entre os valores normativos, ele apenas está assumindo conceitualmente que os acordos implícitos entre sujeitos de diferentes conflitos e momentos históricos nunca conseguiram contornar esse valor, ao contrário daqueles da igualdade ou da fraternidade, por exemplo (HONNETH, 2011, p. 35).
Isso, aliás, parece bem expresso na última citação de “As ideias fora do lugar”, segundo a qual é o ver-se como “livre pessoa” que permite legitimar uma ordem social desigual. Do mesmo modo, essa passagem também permite notar que, ao contrário da forma simples do reconhecimento como dádiva, na pressuposição da reciprocidade do reconhecimento como legitimador de um nível pressuposto de reciprocidade, o espaço de contestação dos arranjos sociais e de consolidação de demandas por rearranjo da ordem de reconhecimento fica implícito – quando não aberto; de todo modo, nunca ignorado, exceto em situações nas quais a reciprocidade é plena. Se para Schwarz, como se verá na próxima seção, essa abertura é um tanto quanto restrita, para Honneth, ela é outra premissa incontornável da reconstrução normativa. Uma vez que esse procedimento se dedique antes à crítica do que à justificação ou aceitação da sociedade presente, é preciso que os valores reconstruídos sejam tomados como critérios de avaliação das práticas realmente existentes (HONNETH, 2011, p. 28) – e, logo, como parâmetros da crítica social naquele sentido imanente da Escola de Frankfurt. Assim, para o caso da citação mencionada, por exemplo, há uma distância real entre a ideia de liberdade implicitamente aceita – e aspirada – por todos e a prática da liberdade pessoal; nesse sentido, o caráter de reciprocidade do reconhecimento faz com que ele se torne categoria de crítica mais do que de harmonização. É isso, por exemplo, que está em jogo quando ele afirma que a liberdade proposta pelo primeiros defensores do socialismo não apenas visava defender a herança dos princípios da revolução francesa de uma apropriação puramente instrumental e egoísta, como no capitalismo nascente do século XIX, mas também visava tornar a sociedade plenamente social (HONNETH, 2015, p. 86-87). Mais importante para o argumento aqui desenvolvido, porém, é retomar aquela ideia de que a separação proposta por Schwarz entre as ideias e as práticas sociais só se completa quando mediada pela linguagem das ideias. A isso que ele criticamente chamava de ideologia, Honneth poderia chamar de ideais socialmente reconstruídos.
Antes de passar à aplicação crítica que se poderia encontrar da ideia do reconhecimento em Schwarz, faz-se necessário um último passo a respeito da obra recente de Honneth. É o de expor sua “história das ideias de reconhecimento” (HONNETH, 2018). Ali, numa tentativa de tratar o conceito de reconhecimento em termos de história das ideias a partir de três diferentes tradições de pensamento (francesa, inglesa e alemã) no século XIX, ele afirma que as diferentes versões do conceito de maneira alguma se devem a disposições espirituais ou mentalidades nacionais, mas antes à corresponsabilidade das condições socioculturais sobre a maneira como pensadores de determinado local se associam a determinadas ideias ou a estas dão determinada coloração. Em seus próprios termos, o que Honneth tem diante dos olhos é a pergunta sobre se, “na tradição filosófica de um país qualquer, certos motivos, temas e estilos de pensamento predominam justamente porque ali pressupostos institucionais e sociais estão dados, que o diferenciam claramente de outro país” (HONNETH, 2018a, p. 17-18). Seu objeto de estudo, ao tratar dessas tradições nacionais da história conceitual, não tem nenhuma relação com a história da formação da sociedade (muito menos com a brasileira): ele se ocupa em demonstrar que na França a ideia de reconhecimento se orientou fundamentalmente pelo amor-próprio conceitualizado por Rousseau, na Grã-Bretanha, pelo autocontrole moral preconizado por Smith, e, na Alemanha, pela autorrealização no sentido dado por Hegel. Consequentemente, no contexto intelectual francês, o reconhecimento intersubjetivo e as demandas individuais a ele associadas aparecem fundamentalmente como tendências à perda do senso de realismo a respeito da própria personalidade, resultando em patologias do amor-próprio (cf. HONNETH, 2018a, p. 69-70; 78). No contexto intelectual inglês, por sua vez, a influência da ideia do observador interno neutro marca de tal forma o desenvolvimento do pensamento moderno que a noção de reconhecimento recíproco – como, exemplarmente, na Teoria dos sentimentos morais, de Smith – aparece frequentemente como elemento da perspectiva internalizada de um outro generalizado (cf. HONNETH, 2018a, p. 111; 114-115). Finalmente, no contexto intelectual alemão, é o sistema de Hegel que virá a dar forma a um conceito cuja tarefa é expressar a conquista da autoconsciência por meio da presença de outra pessoa (HONNETH, 2018a, p. 177). Todavia, e essa é a segunda parte de sua hipótese, Honneth quer associar o desenvolvimento presente no contexto intelectual francês e sua ênfase no risco da perda da autenticidade com as lutas por distinção simbólica e prestígio social (HONNETH, 2018a, p. 79), o desenvolvimento no contexto britânico e sua ênfase na necessidade do autocontrole com os riscos de atomização trazidos pelo desenvolvimento econômico resultante da revolução industrial (HONNETH, 2018a, p. 127) e o desenvolvimento no contexto alemão e sua ênfase na noção de reciprocidade com a necessidade de autodeterminação coletiva (HONNETH, 2018a, p. 190).
O que se deixaria perguntar aqui, em primeiro lugar, é se é possível associar os usos da ideia de reconhecimento com as condições socioculturais do Brasil. Todavia, uma primeira dificuldade emerge imediatamente: quem faz uso da categoria reconhecimento é Roberto Schwarz, e não os intelectuais do período em questão. Essa questão, porém, talvez seja contornável justamente através da referência a que este último faz aos trabalhos de literatos do período, em especial Machado de Assis. Em segundo lugar, Honneth se deixa guiar pela hipótese metodológica de que diferenças interpretativas no conceito de reconhecimento geraram diferentes efeitos tanto sobre aqueles a quem se reconhecia quanto sobre quem as reconhecia (HONNETH, 2018a, p. 188). Como conclusão deste artigo, seria possível se apropriar dessa hipótese e relacioná-la ao projeto de Schwarz em dois pontos adicionais: por um lado, identificando no uso que ele faz da noção de reconhecimento algo especificamente relacionado à sociedade brasileira e, assim, introduzindo a pergunta sobre se essa categoria pode funcionar como categoria analítica e crítica da sociedade brasileira; por outro lado, seria possível retomar aquela intenção de ler no empreendimento de Schwarz, a despeito dos arrepios, um ponto de vista normativo capaz de expressar a ordem própria da forma capitalista no Brasil, nos moldes em que Honneth mostra que conceitos normativos são rearranjados em relação a certos pressupostos institucionais e sociais. Com isso, seria possível se apoiar no trabalho de Schwarz para afirmar que há uma dinâmica específica das relações de reconhecimento no Brasil, dinâmica que se deve ao nexo particular das relações de reconhecimento e seus efeitos sobre os concernidos por aqui. Finalmente, como, no Brasil, a ideia de prestação e contraprestação – as quais geram cumplicidade permanente quanto à desigualdade ao mesmo tempo que permitem a reciprocidade na afirmação da individualidade – deriva das consequências da dinâmica do reconhecimento, Schwarz monta um tabuleiro no qual o reconhecimento pode servir tanto de acochambramento como de denúncia e crítica do caráter arbitrário (e arbitrário como caráter de classe) das relações de reciprocidade no Brasil.
Reconhecimento como categoria analítica da sociedade brasileira
Em sua crítica às interpretações do caráter da cultura nacional, Roberto Schwarz, como há de ter visto a leitora abstrata, afirma que não se trata de discutir a cópia, pois o sentido impróprio das ideias europeias no Brasil é um traço constante da reprodução social do país. Só que esse sentido impróprio não se deve à ausência de originalidade que acompanha o pastiche cultural, e sim à imprecisão com que os mecanismos sociais aqui presentes recorrem ao sistema científico que pretendem reproduzir. Daí a comédia ideológica na combinação prática entre liberalismo e escravidão, mas daí também os efeitos que essa comédia gera sobre aqueles que a representam. Em outro ensaio, chamado “Complexo, moderno, nacional e negativo”, Schwarz (1989) procura demonstrar como as artimanhas narrativas do Machado de Assis de Memórias póstumas de Brás Cubas expõem, em sua forma, dinâmicas centrais da realidade nacional. Em um registro “fora do esquadro” do romance realista tradicional, o narrador das Memórias alterna-se rapidamente entre diversas facetas, aparentando uma volubilidade que, a respeito da personagem, destaca sua vontade de participar, seguindo sua vaidade e bel-prazer, de várias dimensões da vida burguesa, como a atividade produtiva (ao fixar-se na criação de um emplastro), a política (ao se orgulhar de um discurso no parlamento sobre o comprimento do fardamento dos guardas) ou a reflexão intelectual (ao realizar digressão a respeito da vida e da morte após presenciar uma briga de cães). No entanto, esse “feito de construção” narrativo revela, quanto ao relevo social brasileiro, que as etapas acima mencionadas são antes advindas do capricho individual do que da sistematização de um sentido da vida burguesa, como no romance realista europeu (SCHWARZ, 1989, p. 122)11. Nesse sentido, as etapas formativas ou expressões individuais próprias da vida burguesa oferecem certa satisfação imediata, porém sem aquele sentido maior.
Ao ser jogada nas circunstâncias brasileiras do final do século XIX, nas quais a camada organizadora da vida ideológica, a classe dominante, equilibra o pedido de reconhecimento dos países centrais e o desprezo por seus valores, a satisfação imediata ganha no romance o sentido de um “vaivém ideológico” ao qual a realidade brasileira e sua correspondente vida cultural estavam submetidas ao participar da história contemporânea (SCHWARZ, 1989, p. 124-125). Ao mesmo tempo, porém, que esse vaivém ideológico é um traço de caráter da classe burguesa, a busca da satisfação imediata e geniosa é o que marca a postura do sujeito dessa classe. Não por acaso, o defunto Brás revela, já no além, que a criação do emplastro, vendida ao governo como nascida de intenção cristã e aos amigos revelada como cobiça – naturalmente aceitável – pelo lucro, fora também a eles dissimulada, pois que a intenção maior era a fama. Assim, o capricho de classe ganha seu correlato nos costumes individuais, e “a busca da vantagem econômica dá cobertura ao desejo de reconhecimento pessoal, e não vice-versa” (SCHWARZ, 1989, p. 117). Novamente nos deparamos com o vocabulário do reconhecimento. Aqui, então, quero retomar a primeira parte de minha hipótese, a de que existiria uma dinâmica de reconhecimento própria às relações sociais no Brasil. Entretanto, se a dinâmica das relações pessoais assume uma forma particular no Brasil, isso se deve – e esta é a segunda parte da minha hipótese – aos pressupostos institucionais e sociais de realização dessas relações, como dizia Honneth, de modo que, mais do que diagnosticar a presença do favor e suas continuidades sociais, importa notar com Schwarz que o despropósito das ideias liberais no Brasil se deve antes ao fato de que “a ordem burguesa no seu todo não se pauta pela norma burguesa” (SCHWARZ, 1989, p. 125), ou seja, ao deslocamento de um sistema ideológico que é também científico, mas que aqui revela a volubilidade das próprias normas dessa ciência. Mais ainda: ao fazê-lo, revela que, entre a ciência (ou as normas) e as práticas mais efetivamente acochambradas e acochambradoras, há um espaço de mediação no qual os ideais normativos podem servir de contraponto às práticas, desde que deles não se derivem novos ideais deslocados da realidade em questão, mas possibilidades concretas de crítica. É nesse sentido que quero concluir alertando para a passagem em que Schwarz, aparentemente – e apenas aparentemente – de forma desavisada, sai do registro do reconhecimento simples – como uma dádiva atribuída pelos possuidores e ambicionada pelos despossuídos – para o registro do reconhecimento recíproco – agora como um critério de julgamento, justificação e reprodução social. A esse aparente caráter conservador corresponde, porém, que as continuidades sociais aqui encontradas demandam que a esse conceito seja atribuído um caráter de denúncia do arbítrio e do classismo. Ou seja, nas “continuidades sociais” dessa mesma relação de cumplicidade, o caráter de classe da sociedade brasileira aparece com todo seu peso. Portanto, quanto à segunda parte da hipótese, o que se deixaria dizer é que a forma da sociabilidade, a dinâmica mesma das relações de reconhecimento recíproco (que estão na base tanto do liberalismo europeu reconstruído por Honneth quanto da ordem brasileira do favor reconstruída por Schwarz) e a forma como elas geram efeitos sobre os envolvidos vão muito além da vida cultural: a elas corresponde uma forma própria do reconhecimento no Brasil, que, como bem sabe Schwarz, por um lado, é apenas uma forma social que dá sustento à “atualidade periférica” do país, mas é também, por outro lado, uma mediação concreta e específica entre os princípios, dos quais a vida ideológica nacional deriva seu sistema, e a legitimidade prática dessa mesma forma social. O detalhe é que essa forma já contém em si o germe da crítica.
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A esse respeito também já existe considerável literatura crítica, em cujo âmbito os trabalhos mais exaustivos são, entre os estrangeiros, os de Jean-Philippe Deranty (2009) e Danielle Petherbridge (2013) e, em língua portuguesa, o livro coordenado por Rúrion Soares Melo (2013) e os trabalhos de Thiago Simim (2018) e Thor Veras (2019). Da mesma forma, a recepção e a discussão da obra de Honneth por pensadores sociais no Brasil já há muito tempo se tornaram comuns, de modo que gostaria de me referir a apenas duas coleções de artigos de dois sociólogos que se utilizam da obra de Honneth para a fundamentação de análises sobre diversos aspectos da sociedade brasileira: Josué Pereira da Silva (2008) e Emil Sobottka (2015).
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Essa e todas as outras traduções do texto foram feitas por mim.
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Afirmar que o tema do reconhecimento não recebe atenção permanente na obra de Schwarz não quer dizer que o conceito apareça acidentalmente, mas que seu uso não é central como no caso de quem, como Honneth, queira traçar linhas de uma eticidade nacional. Aliás, já em Homens livres na ordem escravocrata, Maria Sylvia de Carvalho Franco, da qual Schwarz se vale diretamente para construir sua interpretação da ordem do favor, o tema do reconhecimento recíproco pode ser identificado no tratamento dispensado aos agregados pelos proprietários como “afirmativa cordialidade” (FRANCO, 1997, p. 100) ou ainda no caso exemplar do fazendeiro que, a despeito de sua implicação no assassinato de um agregado, providencia os arranjos para seu velório, de modo que “Passada a crise, faltar aos deveres de solidariedade seria frontalmente transgredir um imperativo social” (FRANCO, 1997, p. 102). Essa estrutura de um imperativo social, por exemplo, é a mesma que se deixaria encontrar do outro lado do espectro social, segundo a interpretação de Modesto Carone (2007, p. 112-114), em um artigo de Schwarz de que o presente texto tratará adiante.
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A importância da passagem ao lugar da análise sem que com isso se perca o aparato da crítica é notável por permitir que se retome um tributo pago por Schwarz à atualidade de Adorno. Na entrevista “Sobre Adorno”, do volume Martinha versus Lucrécia (SCHWARZ, 2012a, aqui, p. 48 e ss.), quando, ao compará-lo com Antonio Candido, o autor nota que o esforço adorniano com sua teoria estética era o de sondar o destino da civilização burguesa por meio do estudo das formas efetivas assumidas pela arte. Nesse sentido, um dos temas de Adorno seria, para Schwarz, expresso de modo não dissemelhante ao de Candido: “a discussão sobre o funcionamento da forma, de sua substância sócio-histórica” (SCHWARZ, 2012a, p. 48). Esse tributo à teoria crítica é notado também por Jorge de Almeida, que, ao comentar o prefácio a Um mestre na periferia do capitalismo, nota que Schwarz é um típico representante daquela tradição, com a ressalva de que o autor se liga antes à geração de Adorno dado que as gerações de autores recentes, como Honneth, aqui tratado, “abandonaram, orgulhosas, o espírito crítico dialético” (ALMEIDA, 2007, p. 47)
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Apresentarei esse conceito com um pouco mais de atenção na próxima seção do texto.
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Aproveito essa referência para agradecer ao parecerista que me propiciou a correção e esclarecimento de algumas ideias, como essa, por exemplo.
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No mencionado ensaio de esclarecimento já mencionado, Schwarz afirma que, a despeito da “dissonância vexatória” no plano ideológico, isto é, a imprecisão descritiva de um estado de coisas, ideias sempre têm um lugar e cumprem uma função. No caso do liberalismo, essas vão desde aquelas que propiciam às elites se integrarem ao concerto das nações até aquelas outras que “menos hipocritamente (...) pode[m] ser um ideal de igualdade perante a lei, pelo qual os dependentes e os escravos lutam” (SCHWARZ, 2012b, p. 171). A questão é justamente que, em um plano, essa ideia não descreve o cotidiano de modo verossímil e no outro não o faz para patrocinar a nova ordem mundial (cf., OLIVEIRA, 2007).
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E, ao fazê-lo, necessariamente terei de deixar de lado o segundo plano constitutivo do argumento de Roberto Schwarz, o dos desdobramentos da lógica do favor para a inserção do Brasil no “concerto das nações”. Deixo de lado, assim, um provocação feita por Edson Farias, que considero que deveria (deverá) ser tratada em outro artigo, inclusive porque aqui não seria capaz de fazer jus à complexidade da pergunta.
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Legitimação, aliás, não é o mesmo que aceitação, como se verá.
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De acordo com Bernardo Ricupero, essa presença do capricho ecoa ainda um permanente conflito interior do narrador-personagem das Memórias póstumas de Brás Cubas, na medida em que este balança entre as normas burguesas com que se identifica e as regras paternalistas em que foi criado. Ao contrário do herói do realismo europeu, como em Balzac, aqui “A descontinuidade seria a outra face do capricho [...]. Ela não seria própria só dos homens livres pobres, submetidos ao arbítrio, mas também dos senhores, que o realizariam” (RICUPERO, 2013, p. 535). Conferir, ainda, Carone, 2007, p. 115.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Jan 2020 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
04 Abr 2019 -
Aceito
18 Out 2019