Resumos
OBJETIVO: no presente trabalho, visamos abordar o tema infecção do trato urinário à luz da evidência clínica atual. FONTE DE DADOS: realizamos revisão bibliográfica no período de 1996 a 2002, utilizando os bancos de dados Medline e Cochrane, por meio das seguintes palavras-chave: infecção urinária, criança, adolescente, diagnóstico, tratamento e refluxo vesicoureteral. Foram selecionados estudos de coorte e de qualidade, consensos, meta-análises, ensaios randomizados controlados e auditorias. SÍNTESE DOS DADOS: os artigos levantados foram selecionados com base em aspectos metodológicos, relevância e aplicabilidade clínica. Parte dos destaques dos artigos baseiam-se nos parâmetros propostos pela Academia Americana de Pediatria, em 1999, para o diagnóstico e tratamento da infecção urinária febril da criança entre dois meses e dois anos de idade. CONCLUSÃO: grande parte das diretrizes para diagnóstico e tratamento da infecção urinária na infância ainda está baseada em opiniões consensuais e dogmáticas. Trabalhos multicêntricos, randomizados, controlados, duplo-cegos para intervenções são necessários para melhoria da qualidade do diagnóstico e da condução da infecção urinária na infância.
infecção urinária; criança; adolescente; diagnóstico; tratamento; refluxo vesicoureteral
OBJECTIVE: to review urinary tract infection in children taking into consideration evidence-based medicine. SOURCES OF DATA: search of Medline and Cochrane databases, comprising the period between 1996 and 2002, with the following key words: urinary infection, vesicoureteral reflux, children, adolescents, diagnosis and treatment. Cohort studies, quality assurance studies, consensus, meta-analysis studies, randomized controlled trials and audits were selected. SUMMARY OF THE FINDINGS: the studies were selected according to their methodology, relevance and clinical applicability. Some studies were selected based on the parameters proposed by the American Academy of Pediatrics in 1999 for the diagnosis and treatment of urinary tract infection in children between two months and two years of age. CONCLUSIONS: consensus statements on diagnosis and treatment of urinary infection in children and adolescents are still mostly opinion-based. Randomized multicentric controlled trials, with double-blind allocation are necessary to improve quality of diagnosis and management of pediatric urinary tract infection.
urinary tract infection; child; adolescent; diagnosis; therapy; vesicoureteral reflux
ARTIGO DE REVISÃO
Infecção do trato urinário: em busca das evidências
Urinary tract infection: a search of evidence
Vera H. KochI; Sandra M.C. ZuccolottoII
IDoutora em Medicina; Chefe Unidade de Nefrologia Pediátrica - Instituto da Criança - HCFMUSP
IIMédica Assistente do Instituto da Criança - HCFMUSP
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dra. Vera H. Koch Rua das Mangabeiras, 91 - ap. 81 CEP 01233-010 - São Paulo, SP E-mail: vkoch@terra.com.b
RESUMO
OBJETIVO: no presente trabalho, visamos abordar o tema infecção do trato urinário à luz da evidência clínica atual.
FONTE DE DADOS: realizamos revisão bibliográfica no período de 1996 a 2002, utilizando os bancos de dados Medline e Cochrane, por meio das seguintes palavras-chave: infecção urinária, criança, adolescente, diagnóstico, tratamento e refluxo vesicoureteral. Foram selecionados estudos de coorte e de qualidade, consensos, meta-análises, ensaios randomizados controlados e auditorias.
SÍNTESE DOS DADOS: os artigos levantados foram selecionados com base em aspectos metodológicos, relevância e aplicabilidade clínica. Parte dos destaques dos artigos baseiam-se nos parâmetros propostos pela Academia Americana de Pediatria, em 1999, para o diagnóstico e tratamento da infecção urinária febril da criança entre dois meses e dois anos de idade.
CONCLUSÃO: grande parte das diretrizes para diagnóstico e tratamento da infecção urinária na infância ainda está baseada em opiniões consensuais e dogmáticas. Trabalhos multicêntricos, randomizados, controlados, duplo-cegos para intervenções são necessários para melhoria da qualidade do diagnóstico e da condução da infecção urinária na infância.
Palavras-chave: infecção urinária, criança, adolescente, diagnóstico, tratamento, refluxo vesicoureteral.
ABSTRACT
OBJECTIVE: to review urinary tract infection in children taking into consideration evidence-based medicine.
SOURCES OF DATA: search of Medline and Cochrane databases, comprising the period between 1996 and 2002, with the following key words: urinary infection, vesicoureteral reflux, children, adolescents, diagnosis and treatment. Cohort studies, quality assurance studies, consensus, meta-analysis studies, randomized controlled trials and audits were selected.
SUMMARY OF THE FINDINGS: the studies were selected according to their methodology, relevance and clinical applicability. Some studies were selected based on the parameters proposed by the American Academy of Pediatrics in 1999 for the diagnosis and treatment of urinary tract infection in children between two months and two years of age.
CONCLUSIONS: consensus statements on diagnosis and treatment of urinary infection in children and adolescents are still mostly opinion-based. Randomized multicentric controlled trials, with double-blind allocation are necessary to improve quality of diagnosis and management of pediatric urinary tract infection.
Key words: urinary tract infection, child, adolescent, diagnosis, therapy, vesicoureteral reflux.
Introdução
O trato urinário normal é estéril. Excetuando-se o período neonatal, a contaminação por via ascendente do aparelho urinário, por agentes microbianos da flora intestinal, constitui o mecanismo patogenético mais freqüente de infecção urinária.
As crianças do sexo masculino apresentam maior suscetibilidade à infecção do trato urinário (ITU) nos primeiros dois a três meses de vida, posteriormente são proporcionalmente mais acometidas aquelas do sexo feminino. Estima-se que pelo menos 8% das meninas e 2% dos meninos apresentarão, no mínimo, um episódio de ITU durante a infância1. A incidência de ITU na faixa etária pediátrica é desconhecida. Jakobsson et al.2, na Suécia, levantaram, por meio de estudo multicêntrico prospectivo, todos os diagnósticos de primoinfecção urinária em crianças abaixo de dois anos de idade (exclusão de casos de meningomielocele e malformações genitais), encontrando incidência média de 1% para ambos os sexos.
A Escherichia coli está envolvida como agente microbiano em 75% dos casos de ITU. Em crianças do sexo masculino, o Proteus sp é isolado em aproximadamente 30% dos casos. A investigação de imagem, após a primoinfecção urinária, demonstra alterações obstrutivas em até 4% dos casos e refluxo vesicoureteral (RVU) em 8% a 40% dos pacientes3.
A recorrência de ITU após a primoinfecção acontece em 50% das meninas durante o primeiro ano de seguimento, e em 75% dos casos no período de dois anos de evolução; não há dados comparativos para o sexo masculino4.
O foco de atenção no cuidado da criança com ITU tem sido não somente relacionado ao diagnóstico e tratamento precoces do episódio infeccioso agudo, como também à minimização do dano renal crônico e suas conseqüências clínicas. A presença de cicatrizes renais tem sido documentada em 5% a 15% das crianças avaliadas após a primoinfecção urinária febril5-8.
Crianças portadoras de RVU podem apresentar novas cicatrizes renais ou ampliação da área afetada por cicatrizes antigas em avaliações imagenológicas seqüenciais. Este fenômeno ocorre principalmente na vigência de infecção urinária de repetição9-13.
O risco de desenvolvimento de dano renal crônico em crianças com poucos episódios de ITU (um ou dois), adequadamente diagnosticados e tratados, ainda não foi quantificado e pode ser mínimo. Em alguns estudos, foi avaliado o risco, a longo prazo, de desenvolvimento de hipertensão arterial e de insuficiência renal crônica em crianças com diagnóstico de ITU9,14-19. A análise desses estudos mostra que, apesar de não haver cifras precisas para definir o risco de instalação destes eventos mórbidos em crianças com ITU, a combinação de RVU de alto grau, infecção urinária de repetição e cicatriz renal, no momento do diagnóstico da primoinfecção, parece estar associada a um pior prognóstico.
A Academia Americana de Pediatria publicou, em 1999, um conjunto de diretrizes para diagnóstico, terapêutica e investigação da primoinfecção urinária de crianças febris de dois meses a dois anos de idade20. Neste documento, fica claro que grande parte das diretrizes recomendadas está baseada em posições de consenso, e não em evidências clínicas estabelecidas. A escolha da abordagem da faixa etária de dois meses a dois anos de idade, no documento dessa Academia, teve como justificativa a freqüência de infecção urinária nesta faixa etária, o desenvolvimento potencial de problemas clínicos a longo prazo nestes pacientes, como hipertensão arterial e déficit funcional renal, e a dificuldade diagnóstica apresentada, tanto do ponto de vista de apresentação clínica como de obtenção de amostra urinária para diagnóstico. Para crianças maiores e adolescentes, julga-se que o diagnóstico clínico e laboratorial da infecção urinária seja mais fácil, já que o paciente desses grupos etários localiza melhor a sua queixa e a amostra de urina pode ser colhida por jato médio (pois já há controle esfincteriano) e, apesar de não haver consenso, admite-se que, após infecções urinárias febris nas quais o diagnóstico de pielonefrite aguda seja considerado, as condutas diagnósticas, de tratamento e de seguimento inicial sejam semelhantes àquelas aceitas para o lactente.
No presente trabalho, visamos abordar o tema infecção do trato urinário à luz da evidência clínica. Para tanto, realizamos busca na literatura, no período 1996-2002, utilizando os bancos de dados Medline e Cochrane, por meio das palavras-chave infecção urinária, refluxo vesicoureteral, criança, adolescente, diagnóstico e tratamento, relacionadas aos termos qualidade, consenso, meta-análise, estudos de coorte, ensaios randomizados e controlados, auditoria. Os artigos levantados foram selecionados com base em aspectos metodológicos, relevância e aplicabilidade clínica, com ênfase nos aspectos polêmicos de diagnóstico e de tratamento.
Qual é o melhor método para obtenção da amostra de urina para urocultura?
A Academia Americana de Pediatria recomenda que a urina de pacientes febris de dois meses a dois anos de idade seja coletada por métodos invasivos (punção supra-púbica, cateterização uretral), em crianças do sexo feminino e naquelas do sexo masculino não circuncidadas, uma vez que nestes casos a coleta por saco coletor apresenta alto grau de contaminação 20. Após a aquisição do controle esfincteriano, a coleta por jato médio torna-se possível e apresenta resultados confiáveis.
Hansson et al.21 desenvolveram na Suécia um projeto multicêntrico, prospectivo, de dois anos de duração, para avaliação da qualidade do diagnóstico e seguimento da primoinfecção urinária em pacientes abaixo de dois anos de idade. Foram avaliadas 2.309 crianças. A punção suprapúbica foi utilizada para coleta de 39% das amostras de urina, tendo sido realizada predominantemente durante o primeiro ano de vida (63% de 0 a três meses; 46% de três a seis meses; 36% de seis a 12 meses; 12% de um a dois anos de idade). O saco coletor, utilizado para coleta de 50% das amostras de urina, foi o método de escolha em crianças maiores (30% de 0 a três meses, 43% de três a seis meses, 53% de seis a 12 meses, e 73% de um a dois anos de idade), enquanto a urina foi obtida por jato médio em 11% dos casos.
Greaves e Buckmaster22 realizaram uma auditoria a partir da base de dados de um laboratório de microbiologia, avaliando, por três meses, métodos de coleta de amostras de urina e resultados de urocultura de crianças febris. Em seguida, analisando os dados obtidos e comparando-os com as recomendações da literatura, os autores instituíram um programa educacional, visando a racionalização da coleta urinária para otimização do diagnóstico de ITU. Após a fase de capacitação, o número de amostras colhidas por saco coletor cai de 60% para 14%, com redução significativa dos diagnósticos falso-positivos e inconclusivos de ITU.
Dentre os métodos de coleta de urina, a punção suprapúbica apresenta a melhor sensibilidade, sendo a cateterização uretral o segundo melhor método. A alta freqüência de utilização de saco coletor no estudo sueco mostra a dificuldade para implementação de algum método invasivo de coleta de urina, mesmo em um país desenvolvido e com alto nível de alerta para o diagnóstico da ITU na infância. Por outro lado, o estudo de Greaves & Buckmaster22 aponta para a possibilidade de sucesso com programas locais de conscientização.
A cultura de urina obtida por saco coletor, de grande valor quando negativa por afastar o diagnóstico de ITU, apresenta alta freqüência de resultados falso-positivos e, portanto, não deve ser utilizada em situação que exija início imediato de antibioticoterapia.
Qual parâmetro da análise de urina deve ser valorizado na suspeita de infecção urinária na criança?
A análise de urina para avaliação de leucocitúria e bacteriúria pode ser realizada por técnicas convencionais, com urina centrifugada, ou pelo uso do hemocitômetro, uma câmara graduada na qual se introduz 1 ml de urina não centrifugada. Kass23 definiu piúria como a presença de pelo menos cinco leucócitos/campo em urina centrifugada. A sensibilidade, a especificidade e o valor preditivo positivo deste tipo de análise de urina mostraram-se inaceitavelmente baixos, identificando corretamente apenas 30-50% dos casos de ITU23-25. Essa constatação motivou a pesquisa de novos métodos. Dukes26,27 introduziu a técnica de contagem de elementos figurados urinários em urina não centrifugada colocada em hemocitômetro, e Stamm28 definiu piúria, por esta técnica, como a presença de pelo menos 10 leucócitos/mm3, encontrando sensibilidade de 96% em adultos sintomáticos com ITU. Achado semelhante foi verificado por Hoberman et al.29 em crianças febris, com urina obtida por cateterização uretral, encontrando sensibilidade de 91,2% e especificidade de 96,5% para o diagnóstico de ITU confirmado por urocultura.
Lin et al.30 avaliaram amostras de urina de 230 crianças febris, colhidas por punção suprapúbica, por meio da análise convencional, da análise por hemocitômetro e da urocultura quantitativa. Para a análise convencional, uma amostra de urina foi centrifugada a 2.000 rpm por 10 minutos e depois examinada por microscopia; na análise por hemocitômetro, foi utilizado 1 ml de urina não centrifugada. Os autores encontraram, na análise por hemocitômetro, sensibilidade de 83,8%, valor preditivo positivo de 60,8% e especificidade de 89,6%, enquanto, na análise convencional, obtiveram sensibilidade de 64,9%, valor preditivo positivo de 51,1% e especificidade de 88,1%.
A análise convencional de urina, além de apresentar resultados inferiores ao hemocitômetro, é realizada com pouca homogeneidade metodológica para padronização do volume a ser analisado, da duração e intensidade da centrifugação, do volume para resuspensão do material centrifugado e do número de campos analisados à microscopia. A técnica do hemocitômetro elimina a heterogeneidade causada pela centrifugação e resuspensão da amostra, pois utiliza volume fixo de urina e contagem de elementos em campo graduado.
Gorelick & Shaw31, por meio de revisão sistemática da literatura e meta-análise, estudaram a utilidade dos testes rápidos de fita diagnóstica (leucocitoesterase e nitrito), da análise microscópica e do Gram em urina centrifugada e não centrifugada, para o diagnóstico de ITU no paciente abaixo de 12 anos de idade. Foram levantados 1.489 títulos de artigos, 26 dos quais apresentaram critérios para análise. A presença de qualquer contagem bacteriana ao Gram de urina não centrifugada obteve a melhor combinação de sensibilidade (93%) e especificidade (95%). Testes rápidos apresentaram sensibilidade de 88% para leucocitoesterase ou nitrito e especificidade de 96% para a concomitância de positividade de ambos. A presença de piúria mostrou os piores índices de sensibilidade e especificidade, com variações dependendo do tipo de amostra avaliada, isto é, a sensibilidade e especificidade foram de 67% e 79% para leucócitos > 5 /campo em urina centrifugada, e de 77% e 89% para leucócitos > 10 mm3 em urina não centrifugada.
A análise das porções inicial e final da amostra urinária obtida por cateterização uretral também foi motivo de estudo, no qual foi demonstrado que a porção inicial apresenta maior possibilidade de detecção de leucocitúria (p < 0,01) e bacteriúria (p < 0,05), ou seja, de contaminação, do que a porção final. Portanto, na coleta de amostras obtidas por cateterização, deve-se desprezar os primeiros 2-3 ml para evitar resultados falso-positivos32.
A avaliação ampliada da amostra urinária, que engloba testes para leucocitoesterase e nitrito e microscopia para determinação de leucocitúria e bacteriúria, apresenta 99,8% de sensibilidade e 70% de especificidade para o diagnóstico de ITU, quando qualquer um destes exames, de maneira isolada ou em conjunto, se mostra alterado19. Sugere-se que em crianças febris e sem controle esfincteriano, quando não houver necessidade imediata de início de antibioticoterapia, a amostra inicial de urina seja obtida por saco coletor. Se pelo menos um dos itens estudados na avaliação ampliada da amostra de urina se apresentar alterado, deve-se proceder à coleta de urina por método invasivo. Por outro lado, no caso da avaliação ampliada da amostra urinária mostrar-se normal, a criança pode ser observada, sem necessidade de obtenção de urocultura19. No nosso meio, esta recomendação pode ser implementada pela realização de exame qualitativo de urina, em amostra de urina colhida com assepsia, utilizando fita-teste para nitrito e leucocitoesterase e microscopia urinária para quantificação de leucocitúria e bacteriúria.
O prepúcio deve ser considerado um fator de risco para infecção urinária
Schoen et al.33 avaliaram retrospectivamente a ocorrência de ITU em uma coorte de recém-nascidos, atendidos em um serviço americano de medicina pré-paga. Dentre os episódios de ITU diagnosticados no primeiro ano de vida, 86% ocorreram em meninos não circuncidados. A incidência de ITU no primeiro ano de vida foi de 2,15% em meninos não circuncidados, 2,05% em meninas e 0,22% em meninos circuncidados, concluindo-se que a circuncisão neonatal resulta na redução da incidência de ITU, no primeiro ano de vida, de 9,1 vezes, especialmente nos três primeiros meses. Em uma meta-análise publicada em 199334 e em outros estudos35-36 , foram encontrados resultados semelhantes aos de Schoen et al., estimando-se que a presença de prepúcio íntegro eleva o risco de ITU entre 3,7 e 11 vezes.
Quais outros fatores de risco devem ser considerados na criança com infecção do trato urinário?
Risco de recorrência
Panaretto et al.37 avaliaram o risco de recorrência de ITU em uma população de 261 crianças, com idade inferior a 5 anos, com seguimento de um ano após o diagnóstico da primoinfecção. Encontraram 46 episódios de recorrência em 34 crianças, e recorrência múltipla em 14/34 crianças. A recorrência de ITU mostrou-se mais freqüente em crianças com primoinfecção abaixo de seis meses de idade, presença de RVU > grau III e confirmação de cicatrizes renais quando do diagnóstico da primoinfecção urinária.
Risco de malformação urinária e dano renal
Honkinen et al.38, em estudo retrospectivo de coorte, em um período de 14 anos, avaliaram a associação entre a espécie bacteriana isolada na primoinfecção urinária na infância, em urina obtida por punção suprapúbica ou cateterização uretral, e a presença de anormalidades em estudos subseqüentes de imagem. E.coli foi responsável por 80% (982/1.237) das infecções, RVU foi diagnosticado em 30% das infecções causadas por E.coli. Nos pacientes com primoinfecção urinária causada por Klebsiella sp ou Enterococcus sp, a freqüência de diagnóstico de RVU foi praticamente o dobro, e a necessidade de procedimentos cirúrgicos foi quatro vezes maior do que no grupo com infecções causadas por E.coli. A identificação de E.coli com ausência de fatores pielonefritogênicos (adesinas galactose alfa e galactose beta Gal-Gal específicas e pap DNA homólogo39 ) foi freqüente em pacientes portadores de pielonefrite aguda associada a RVU. O desenvolvimento de cicatriz renal ocorreu mais freqüentemente em pacientes com infecção urinária por organismos não E.coli ou por cepas de E.coli menos virulentas. Conclui-se que as bactérias não necessitam de fatores especiais de virulência quando o hospedeiro apresenta fatores facilitadores de pielonefrite, como RVU.
Como programar a investigação de imagem da criança após a primoinfecção urinária?
Deshpande e Jones 40, por meio de estudo retrospectivo de crianças de 0-12 anos com diagnóstico de ITU no período de 1 ano, verificaram a prevalência de alterações encontradas nos exames de imagem requisitados segundo o protocolo localmente aceito41. Foram avaliadas 164 crianças, 51 do sexo masculino e 113 do sexo feminino. A ITU foi diagnosticada e tratada ambulatorialmente em 23% dos lactentes e em 76% das crianças maiores, sendo as demais infecções urinárias diagnosticadas durante internação hospitalar. Nesta população, a prevalência de dilatação de rins ou vias urinárias à ultra-sonografia, de cicatriz renal à cintilografia renal com 99mTc DMSA e de RVU à uretrocistografia miccional foi de 8%, 11% e 34%, respectivamente. A prevalência de cicatriz renal diferiu na população ambulatorial e internada, sendo encontradas alterações em 2% e 33% dos casos, respectivamente, sugerindo que os casos internados fossem eventualmente mais graves e mais suscetíveis ao desenvolvimento de cicatrizes renais.
Apesar de a investigação rotineira por imagem da criança com ITU febril ainda não ter demonstrado benefício convincente, os resultados de uma meta-análise recente 3 mostraram que parece que ela pode ser útil para alguns grupos de crianças de maior risco. Sugere-se que, por não haver como detectar clinicamente com certeza quais os grupos de risco para o achado de malformações urinárias ao estudo de imagem, ainda se deve proceder à investigação completa em todos os casos, inicialmente com ultra-sonografia de rins e vias urinárias e uretrocistografia miccional após a resolução da primoinfecção urinária, e avaliação por cintilografia renal com 99mTc DMSA posteriormente, isto é, distante da fase aguda, como será discutido a seguir.
A indicação de outros métodos de avaliação de imagem na ITU permanece polêmica. A utilização da ultra-sonografia com power Doppler mostrou-se inferior ao 99mTc DMSA para detecção de cicatrizes renais42, o mesmo ocorrendo com a ressonância magnética43. A urografia excretora mostrou-se inadequada para avaliação rotineira da infecção urinária na infância44. A avaliação inicial de imagem deve ser feita pela ultra-sonografia de rins e de vias urinárias, que é menos invasiva, deixando-se a urografia excretora para casos selecionados como, por exemplo, imagens ultra-sonográficas que necessitem de elucidação morfológica.
A cintilografia com 99mTc DMSA deve ser realizada na fase aguda da infecção urinária, ou somente para detecção de cicatriz renal?
Um consenso recente de especialistas em Medicina Nuclear45 estabeleceu que a cintilografia renal com 99mTc DMSA deve ser utilizada para detecção de cicatriz renal, apesar de a sua indicação para avaliação da fase aguda da ITU ser controversa.
Ainda não há consenso quanto ao intervalo de tempo necessário, posteriormente ao episódio agudo, para realização da cintilografia renal com 99mTc DMSA, visando a detecção de cicatriz renal. Jakobsson e Svensson46 avaliaram prospectivamente 185 crianças, entre 0,1 e 9,8 anos de idade, com ITU na fase aguda, utilizando cintilografia renal com 99mTc DMSA, que foi repetida em média 9,2, 20 semanas e 1,5-3,9 anos após o exame inicial, com o objetivo de estudar, por este método, o desenvolvimento de cicatriz renal a partir de alterações agudas. A positividade das alterações neste exame foi de 85% na fase aguda, 58% no segundo exame e 36% após 20 semanas. A avaliação realizada 1,5-3,9 anos após a fase aguda ainda mostrou desaparecimento de 10% das alterações documentadas 20 semanas após o processo infeccioso agudo. Os autores concluíram que, para avaliação do dano renal crônico, a cintilografia renal com 99mTc DMSA deve ser realizada com intervalo maior de cinco meses em relação ao episódio infeccioso agudo.
A uretrocistografia miccional é obrigatória na investigação de crianças com infecção urinária quando a ultra-sonografia de rins e de vias urinárias e a cintilografia renal com 99mTc DMSA são normais?
Kass et al.47 avaliaram 453 cintilografias renais com 99mTc DMSA obtidas como parte de avaliação de crianças com ITU, sendo que 157 foram normais, 101 das quais apresentavam ultra-sonografia normal de rins e de vias urinárias. Dos 101 pacientes com avaliação normal na cintilografia renal e na ultra-sonografia de vias urinárias, 23 (23%) apresentaram RVU, sendo que em 14/23 pacientes foi detectado RVU bilateral, e em 13/23 RVU > grau III. Conclui-se que a uretrocistografia miccional é obrigatória na avaliação da ITU febril da infância.
O tratamento da infecção urinária aguda deve ser feito com esquema curto (< 5 dias) ou convencional de antimicrobianos (de 7 a 14 dias)?
Nas mulheres, tratamento de ITU baixa (cistite não-complicada) com esquema curto de antimicrobianos, cuja duração pode variar desde uma única dose até três dias, mostrou-se eficaz e encontra-se padronizado na literatura48. As vantagens do esquema curto em relação ao convencional são: (1) redução dos custos, (2) melhora na aderência, (3) diminuição dos efeitos colaterais. Além disso, encontra-se em estudo a hipótese de que o curso curto de antimicrobiano reduz o desenvolvimento de resistência bacteriana na flora intestinal e periuretral, quando comparado ao curso convencional. Com todas essas vantagens, tem-se buscado verificar se a eficácia demonstrada no tratamento de ITU baixa em mulheres acontece também na infância, pois se sabe que são grupos etários que se comportam de modo diferente em relação à ITU. Nas crianças, até o momento, não é possível identificar com exatidão a localização da infecção no trato urinário - alto ou baixo - seja pela sintomatologia, seja por exames laboratoriais de rotina; quando comparadas aos adultos, as crianças têm maior possibilidade de apresentar malformações anatômicas/funcionais e refluxo vesicoureteral, os quais podem favorecer a instalação de pielonefrite e, conseqüentemente, de cicatrizes renais e suas possíveis repercussões ao longo da vida - hipertensão arterial e/ou dano renal crônico.
Encontramos três meta-análises na literatura sobre tratamento de ITU baixa (cistite não-complicada) comparando esquema curto com esquema longo em crianças e adolescentes até 18 anos de idade.
Na primeira meta-análise, publicada em 2001, Tran et al.49 selecionaram 22 estudos randomizados e controlados, totalizando 1.279 crianças de zero a 18 anos de idade, para avaliar a taxa de cura dos seguintes esquemas de terapia antimicrobiana para cistite não-complicada: dose única, curso curto (< 4 dias) e curso convencional ( > 5 dias). Com base no tempo de duração do curso curto e no antimicrobiano utilizado para as terapias de curso curto e convencional, os autores identificaram cinco subgrupos: (1) 17 ensaios clínicos, nos quais foi utilizado o mesmo agente antimicrobiano para os cursos curtos e convencional; (2) 9 estudos, nos quais dose única de antibiótico foi comparada com curso convencional; (3) 13 ensaios clínicos em que curso curto, com mais de uma dose do antimicrobiano, foi comparado com o curso convencional; (4) cinco estudos nos quais amoxicilina foi utilizada nos cursos curtos e convencional; (5) seis estudos em que sulfametoxazol-trimetoprima foi utilizado nos cursos curtos e convencional. Quando os 22 estudos foram submetidos a um teste estatístico de heterogeneidade, este se mostrou significante, sugerindo que as diferentes definições de curso curto e o uso de diversos agentes antimicrobianos poderiam afetar os resultados. A taxa de cura foi definida como 1- [(número de falhas terapêuticas/número de pacientes que completaram o protocolo)] e falha terapêutica como a presença de bacteriúria com a mesma espécie de bactéria da infecção inicial, após término do tratamento. Os autores chegaram às seguintes conclusões: (1) curso curto de terapia antimicrobiana apresenta menor taxa de cura do que o curso convencional; (2) dose única de amoxicilina é inadequada para tratar cistite na infância; (3) esquema de três dias de sulfametoxazol-trimetoprima parece ser tão efetivo quanto o esquema convencional para tratar cistite não-complicada.
Na segunda meta-análise, publicada em 2002, Michael et al.50 selecionaram 10 estudos randomizados e controlados, envolvendo 652 crianças com idade entre três meses e 18 anos, com ITU baixa (foram excluídas as crianças com febre, vômitos, dor em flancos, toxemiadas ou com alteração conhecida do trato urinário) e que receberam antibioticoterapia por dois a quatro dias ou por sete a 14 dias. Os parâmetros para avaliar a eficácia dos esquemas, após o término do tratamento, foram a persistência da bacteriúria e a recorrência de ITU. Em relação à qualidade dos 10 estudos selecionados, apenas dois apresentavam randomização feita de modo adequado (os outros não esclareciam o modo de alocação dos casos) e apenas um foi cego para participantes e pesquisadores. Nesta meta-análise, não foi encontrada diferença significativa entre os esquemas curto e convencional quanto à persistência da bacteriúria e à recorrência de ITU no período de 10 dias a 15 meses após o término do tratamento. Porém, na discussão dos resultados encontrados, os autores referem que não é possível ter evidência inquestionável de que o esquema de curta duração seja melhor ou pior do que o de longa duração para erradicar a ITU na infância, devido à imprecisão residual estatística, especialmente para crianças com ITU recorrente.
Na terceira meta-análise, publicada em 2002, Keren et al.51 selecionaram 17 estudos randomizados e controlados de crianças com ITU baixa, de zero a 18 anos de idade, nos quais foram comparados esquemas curto ( < 3 dias) e convencional (de sete a 14 dias) de terapia antimicrobiana. Os parâmetros para avaliar a eficácia dos esquemas após o término do tratamento foram a falha terapêutica, definida como persistência da bacteriúria ou recaída (ITU com o mesmo agente após cura bacteriológica), e a reinfecção (por agente diferente do inicial). Nesta meta-análise, o curso convencional mostrou-se mais eficaz para tratamento da ITU, pois houve menos falha terapêutica e menor taxa de reinfecção do que com o curso curto. Os autores, na tentativa de explicar a diferença entre esses resultados e os encontrados em adultos, levantaram duas hipóteses: (1) a grande dificuldade para se diferenciar ITU alta ou baixa na infância; (2) na criança, a cistite requer terapia antimicrobiana mais prolongada do que no adulto. No entanto, eles questionam a qualidade dos estudos analisados e sugerem uma série de parâmetros metodológicos, que devem ser seguidos no caso de novas pesquisas serem feitas com o objetivo de esclarecer esta questão.
Concluindo, em relação ao tratamento da criança e do adolescente com ITU baixa, ainda continua em discussão se o curso curto pode ser tão efetivo quanto o convencional, pois houve divergência dos resultados encontrados nas três meta-análises referidas. Em duas, o curso convencional apresentou maior eficácia, e em uma, não se encontrou diferença significativa entre os cursos curtos e convencional. Esses resultados apontam para a necessidade de se investir em pesquisas para esclarecer definitivamente essa questão, dando ênfase na estratificação dos resultados por idade, sexo e localização da infecção no trato urinário. Em nossa prática diária, continuamos a utilizar o curso convencional, de sete a 10 dias.
Nos casos em que houver suspeita clínica de pielonefrite e naqueles em que há alterações do trato urinário, o tratamento deve ser mantido por pelo menos 10 dias.
A Academia Americana de Pediatria19, em 1999, recomendou que crianças de dois meses a dois anos de idade com ITU, inclusive aquelas cujo tratamento inicial foi feito por via parenteral, devem completar o curso convencional de antimicrobiano, de sete a 14 dias, com terapia oral. A maioria das ITU não complicadas é resolvida com terapia antimicrobiana por sete a 10 dias. Vários autores preferem manter tratamento por 14 dias, quando a criança apresenta-se com suspeita clínica de pielonefrite e em mau estado geral. Entretanto, não existem estudos comparando resultados com 10 e 14 dias de tratamento.
Pielonefrite pode ser tratada no domicílio?
A abordagem da criança com ITU requer diagnóstico e tratamento precoces de pielonefrite aguda para reduzir a possibilidade de ocorrência de cicatriz rena52,53. Alguns livros-textos recomendam que criança com pielonefrite seja tratada inicialmente com antibioticoterapia parenteral. Hoberman et al.54 realizaram um ensaio clínico multicêntrico e randomizado, com 306 crianças de um a 24 meses de idade, com febre e ITU, para avaliar a eficácia da terapia oral (por 14 dias) versus terapia intravenosa inicial (por três dias ou até a criança permanecer afebril por 24 horas, seguida de terapia oral até completar 14 dias). Foram analisadas a evolução clínica durante o tratamento, as complicações e a presença de cicatriz renal após seis meses do tratamento. As crianças com comprometimento do estado geral (três casos) e com vômitos (um caso) foram excluídas da randomização. Não foi encontrada diferença significativa entre as duas vias de administração do antimicrobiano. Os autores justificaram a duração do tratamento por 14 dias, pois quando este estudo foi iniciado, em 1992, essa era a padronização local para tratamento de pielonefrite. No entanto, eles acreditam que seja suficiente a administração da medicação por 10 dias.
A Academia Americana de Pediatria19, na sua publicação de 1999 sobre os parâmetros de qualidade para diagnóstico e tratamento de crianças de dois meses a dois anos de idade com ITU febril, indica que, na criança sem comprometimento do estado geral e sem vômitos, a terapêutica inicial pode ser feita com antibióticos por via oral ou parenteral.
Recomenda-se que a primeira dose de antimicrobiano via oral seja administrada no serviço de saúde, para testar a aceitação e a tolerância. Além disso, no nosso meio, devido às condições precárias de vida de boa parte da população e ao alto custo dos medicamentos, recomendamos que, para as crianças com condições clínicas de tratamento de ITU baixa ou alta no domicílio, a família saia do serviço de saúde com medicação suficiente para dar continuidade e completar o tratamento, ou seja referida para uma unidade de saúde de fácil acesso, em que esteja garantido o pronto fornecimento da medicação. Deve-se orientar a família para retornar ao serviço se a criança persistir com febre após 72 horas do início do tratamento, ou antes, se evoluir com piora do estado geral ou aparecimento de vômitos.
O uso de doses baixas de antimicrobianos a longo prazo é eficaz na prevenção de infecção do trato urinário recorrente na infância?
Como já referido, a taxa de recorrência de ITU é cerca de 50% em meninas, durante o primeiro ano após a infecção; não há dados comparativos para meninos4. Estima-se que cicatriz renal possa ocorrer em 5% a 15% das crianças após um episódio de ITU febril5-8. Como a cicatriz renal é um fator de risco para subseqüente hipertensão arterial, métodos para prevenir a ITU febril na infância estão em constante pesquisa. Uma das formas importantes de reduzir a recorrência é tratar a constipação intestinal ou a disfunção miccional, quando presente. O objetivo da quimioprofilaxia é manter dose de antimicrobiano na bexiga que impeça a multiplicação bacteriana no trato urinário e, conseqüentemente, evite a instalação de pielonefrite. O risco de efeitos colaterais com o uso prolongado de antimicrobianos é de 8% a 10%, sendo a maioria de baixa gravidade, como náuseas, vômitos e reações cutâneas55; entretanto, aumenta a possibilidade de desenvolvimento de resistência antimicrobiana da flora intestinal e orofaríngea56.
Encontramos duas revisões sistemáticas com o objetivo de determinar se a profilaxia com antimicrobianos reduz significantemente a freqüência de episódios de ITU57,58.
Na primeira, publicada em 2000, Saux et al.57 relataram que, apesar de vários livros-textos de pediatria e nefrologia considerarem a quimioprofilaxia eficaz na prevenção de ITU, conseguiram incluir na revisão apenas seis estudos que preenchiam de modo razoável alguns critérios metodológicos básicos para este tipo de pesquisa, após extenso levantamento da literatura de 1966 a 1999. Os critérios de inclusão foram os seguintes: (1) intervenção: comparação do tratamento com antimicrobianos com placebo ou com controle (sem tratamento); (2) população alvo: até 18 anos de idade; (3) episódio de ITU: definição clara e padronizada; (4) tipo de estudo: ensaio clínico randomizado e controlado.
Nos seis estudos selecionados, foi aplicada a escala de qualidade de pesquisa desenvolvida por Jadat et al.59, que varia de zero a cinco, sendo que cinco estudos tiveram escore dois, e um, escore zero.
Dos cinco estudos com escore dois, três eram de profilaxia em crianças com trato urinário normal, e dois estudos em crianças com bexiga neurogênica. Nos três estudos de crianças com trato urinário normal, foi encontrada alguma eficácia da quimioprofilaxia para evitar a ITU. Em relação aos estudos sobre quimioprofilaxia em crianças com bexiga neurogênica, enquanto em um foi demonstrada eficácia, no outro não.
Na segunda revisão sistemática, publicada em 2002, Williams et al.58 definiram os seguintes critérios de inclusão: estudos randomizados de dois ou mais antibióticos e placebo, e de dois ou mais antibióticos utilizados para prevenir ITU. Foram selecionados três estudos, totalizando 151 casos, comparando antibioticoterapia com placebo/sem tratamento. A duração da profilaxia com antimicrobianos variou de 10 semanas a 12 meses. O método de alocação foi adequado em apenas um ensaio clínico, inadequado em outro e no terceiro não estava claro. A partir destes três estudos, os autores encontraram que o risco de recorrência de ITU no grupo que utilizou antimicrobiano foi menor do que no grupo placebo/sem tratamento.
Nas duas revisões sistemáticas57,58, os autores concluíram que os resultados encontrados podem estar superestimando o efeito da quimioprofilaxia de ITU, devido ao desenho inadequado da maioria dos estudos publicados, pois, quando a qualidade do estudo é pobre, a estratégia estudada tende a ser superestimada60. A partir desses resultados, os autores ressaltaram que há necessidade de serem realizados ensaios clínicos com desenho metodológico adequado e enfoque em grupos estratificados por risco de ITU recorrente, para que se possa chegar a uma conclusão acurada sobre a eficácia dessa conduta.
Assim, como a magnitude do benefício da profilaxia antimicrobiana parece ser pequena e existe a possibilidade de desenvolvimento de bactérias resistentes com o seu uso, deve-se considerar remota a necessidade de introduzi-la em crianças com ITU recorrente e trato urinário normal. Pode-se pensar em instituir a quimioprofilaxia em casos de ITU recorrente associados a condições que predispõem à estase urinária como, por exemplo, constipação intestinal e disfunção miccional, enquanto se investe com afinco no tratamento destas condições. O uso de quimioprofilaxia nos portadores de RVU será discutido a seguir.
Em que casos deve-se instituir a quimioprofilaxia nas crianças com refluxo vesicoureteral diagnosticado após episódio de infecção do trato urinário, e até quando ela deve ser mantida?
Em estudos prospectivos, randomizados e controlados, observou-se que não houve diferença, após a cinco a 10 anos de seguimento, no prognóstico das crianças com RVU primário submetidas a tratamento conservador (uso de profilaxia com doses baixas de antimicrobiano a longo prazo) e à cirurgia de correção do RVU, quanto ao desenvolvimento de dano renal crônico e de novas cicatrizes renais61,62 .
Em 1997, a Associação Americana de Urologia61 continua a recomendar profilaxia com antimicrobiano para qualquer grau de RVU documentado após episódio de ITU. Entretanto, no guideline sueco publicado em 1999, Jodal et al.62 não recomendam profilaxia para graus I e II de RVU, e recomendam profilaxia por um ano nos altos graus de RVU.
Até que mais estudos esclareçam a melhor forma de conduzir os casos de RVU, optamos pela proposta conservadora de instituir e manter a quimioprofilaxia em toda criança com RVU primário (independente do grau), enquanto ele estiver presente.
Em que situação pode-se pensar na indicação de correção endoscópica do refluxo vesicoureteral?
Como já foi referido, a coexistência de RVU e ITU aumenta o risco de a criança ter comprometimento renal crônico.
Nas crianças com RVU primário, a maioria dos autores prefere o tratamento conservador, com uso de antimicrobiano a longo o prazo. A indicação de cirurgia restringe-se a alguns casos e depende da idade, sexo, grau do RVU ou presença de pielonefrite de repetição, devido à baixa adesão da criança ou da família ao tratamento profilático.
Em 1981, Matouschek63 descreveu, pela primeira vez, a correção do RVU por via endoscópica, pela técnica de injeção de politetrafluoretileno (pasta de Teflon) na bexiga, abaixo do orifício ureteral, de modo a impedir o refluxo da urina para o ureter.
Em 2002, Leonard64 publicou a análise de uma revisão de 20 anos da literatura (1981 a 2001), na qual selecionou 42 artigos sobre a terapia por injeção endoscópica para tratamento de RVU, com os seguintes resultados: (1) este procedimento apresentou sucesso na cura do RVU em 60% a 80% dos casos; (2) a taxa de cura foi maior com alguns materiais particulados (Teflon e Macroplastique) do que com colágeno bovino ou condrócitos autólogos; (3) estudos sobre o prognóstico da cura do RVU a longo prazo são escassos; (4) embora exista a preocupação com efeitos colaterais desses materiais no organismo, como migração das partículas para várias regiões do corpo e desenvolvimento de doença auto-imune, esses não foram descritos na experiência clínica; (5) a injeção endoscópica pode ser realizada em ambulatório, com menos morbidade do que a ureteroneocistostomia aberta.
Em relação à persistência da cura do RVU a longo prazo, Chertin et al.65 publicaram, em 2002, sua experiência na Dinamarca de seguimento por 11 a 17 anos (média de 13,5 + 3,4 anos) de 258 pacientes com RVU primário tratados com injeção subureteral de politetrafluoretileno (Teflon) por via endoscópica, e encontraram cerca de 5% de recorrência.
Leonard64 conclui que a terapia endoscópica pode ser oferecida como uma opção terapêutica para pacientes com indicação cirúrgica. O material ideal para injeção subureteral ainda deve ser desenvolvido, e neste sentido, parece ser promissor o campo de pesquisa na engenharia de tecidos autólogos.
Referências bibliográficas
- 1. Stark H. Urinary tract infections in girls: the cost-effectiveness of currently recommended investigative routines. Pediatr Nephrol 1997;11:174-7.
- 2. Jakobsson B, Esbjorner E, Hansson S. Minimum incidence and diagnostic rate of first urinary tract infection. Pediatrics 1999;104:222-6.
- 3. Dick PT, Feldman W. Routine diagnostic imaging for childhood urinary tract infections: systematic overview. J Pediatr 1996:128:15-22.
- 4. Larcombe J. Clinical evidence: urinary tract infection in children. BMJ 1999,319:1173-5.
- 5. Rosenberg AR, Rossleigh MA, Brydon MP, Bass SJ, Leighton DM, Farnsworth RH. Evaluation of acute urinary tract infection in children dimercaptosuccinic acid scintigraphy: a prospective study. J Urol 1992;148:1746-9.
- 6. Tappin DM, Murphy AV, Mocan H, Shaw R, Beattie TJ, McAltister TA. A prospective study of children with first acute symptomatic E. coli urinary tract infection: early 99mtechnetium dimercaptosuccinic acid scan appearances. Acta Paediatr Scand 1989;78:923-9.
- 7. Pylkkanen J, Vilska J, Koskimies O. The value of level diagnosis of childhood urinary tract infection in predicting renal injury. Acta Paediatr Scand 1981;70:879-83.
- 8. Hellstrom M, Jacobsson B, Marild S, Jodal U. Voiding cystourethrography as a predictor of reflux nephropathy in children with urinary-tract infection [see comments]. Am J Roentgenol 1989;152:801-4.
- 9. Smellie JM, Normand ICS, Katz G. Children with urinary infection: a comparison between those with and those without vesico-ureteric reflux. Kidney Int 1981;20:717-22.
- 10. Shimada K, Matsui T, Ogino T, Ikoma F. New development and progression of renal scarring in children with primary VUR. Int Urol Nephrol 1989;21:153-8.
- 11. Goldraich N, Goldraich IH. Follow-up of conservatively treated children with high and low grade vesicoureteral reflux: a prospective study. J Urol 1992;148:1688-92.
- 12. Smellie JM, Ransley PG, Normand ICS, Prescod N, Enwards D. Development of new renal scars: a collaborative study. BMJ 1985;290:1057-60.
- 13. Winter AL, Hardy BE, Alton DJ, Arbus GS, Churchill BM. Acquired renal scars in children. J Urol 1983;129:1190-4.
- 14. South Bedfordshire Practitioners' Group. Development of renal scars in children: missed opportunities in management. BMJ 1990;301(6760):1082-4.
- 15. Beetz R, Schulte WH, Troger J, Riedmiller H, Mannhardt W, Schofer O, et al. Long-term follow-up of children with surgically treated vesicorenal reflux: postoperative incidence of urinary tract infections, renal scars and arterial hypertension. Eur Urol 1989;16:366-71
- 16. Lindblad BS, Ekengren E. The long-term prognosis of nonobstructive urinary tract infection in infancy and childhood after the advent of sulphonamides. Acta Pediatr Scand 1969;58:25-32.
- 17. Lenaghan D, Whitaker JG, Jensen F, Stephens FD. The natural history of reflux and long-term effects of reflux on the kidneys. J Urol 1976;115:728-30.
- 18. Jacobson S, Eklof O, Eriksson CG, Lins LE, Tidgren B. Development of hypertension and uraemia after pyelonephritis in childhood: 27-year follow-up. BMJ 1989;299:703-6.
- 19. Berg UB. Long-term follow-up of renal morphology and function in children with recurrent pyelonephritis. J Urol 1992;148:1715-20.
- 20. American Academy of Pediatrics. Practice parameter: The diagnosis, treatment, evaluation of the initial urinary tract infection in febrile infants and young children. Pediatrics 1999;103:843-52
- 21. Hansson S, Bollgren I, Esbjorner E, Jacobsson B, Marild S, on behalf of the Swedish Pediatric Nephrology Association. Urinary tract infections in children below two years of age: a quality assurance project in Sweden. Acta Paediatr 1999,88:270-4.
- 22. Greaves J, Buckmaster A. Abolishing the bag: a quality assurance project on urine collection J Pediatr Child Health 2001,37(5):437-8.
- 23. Kass EH. Asymptomatic infections of the urinary tract. Trans Assoc Am Physicians 1956;69:56-64.
- 24. Pryles CV, Eliot CR. Pyuria and bacteriuria in infants and children: the value of pyuria as a diagnostic criterion of urinary tract infection. Am J Dis Child 1965;110:628-35.
- 25. Crain EF, Gershel JC. Prevalence of urinary tract infection in febrile infants younger than 8 weeks of age. Pediatrics 1990;86:363-7.
- 26. Dukes C. Some observations on pyuria. Proc R Soc Med 1928;21:1179.
- 27. Dukes C. The examination of urine for pus. BMJ 1928;1:391.
- 28. Stamm WE. Measurement of pyuria and its relation to bacteriuria. Am J Med 1983;75:53-8.
- 29. Hoberman A, Wald ER, Reynolds EA, Penchansky L, Charron M. Pyuria and bacteriuria in urine specimens obtained by catheter from young children with fever. J Pediatr 1994;124:513-9
- 30. Lin DS, Huang FY, Chiu NC, Koa HA, Hung HY, Hsu CH, et al. Comparison of hemocytometer leukocyte counts and standard urinalysis for predicting urinary tract infections in febrile infants Pediatr Infect Dis J 2000;19:223-7.
- 31.Gorelick MH, Shaw KN. Screening tests for urinary tract infection in children: a meta-analysis. Pediatrics 1999;104(5):e54.
- 32. Dayan PS, Chamberlain JM, Boenning D, Adirim T, Schor JA, Klein BL. A comparison of the initial to the later stream urine in children catheterized to evaluate for a urinary tract infection. Pediatr Emerg Care 2000;16:88-90.
- 33. Schoen EJ, Colby CJ, Ray GT. Newborn circumcision decreases incidence and costs of urinary tract infections during the first year of life. Pediatrics 2000;105:789-93.
- 34. Wiswell TE, Hachey WE. Urinary tract infections and the uncircumcised state: an update. Clin Pediatr 1993;32:130-4.
- 35. Craig JC, Knight JF, Sureshkumar P, Mantz E, Roy LP. Effect of circumcision on the incidence of urinary tract infection in pre- school boys. J Pediatr 1996;128:23-7.
- 36. To T, Agha M, Dick PT, Feldman W. Cohort study on circumcision of newborn boys and subsequent risk of urinary tract infection. Lancet 1998;352:1813-6.
- 37. Panaretto K, Craig J, Knight J, Howman-Giles R, Sureshkumar P, Roy L. Risk factors for recurrent urinary tract infection in preschool children. J Paediatr Child Health 1999;35:454-9.
- 38. Honkinen O, Lehtonen O-P, Ruuskanen O, Houvinen P, Mertsola J. Cohort study of bacterial species causing urinary tract infection and urinary tract abnormalities in children. BMJ 1999;318:770-1.
- 39. de Man P, Claeson I, Johanson IM, Jodal U, Svanborg Eden C. Bacterial attachment as a predictor of renal abnormalities in boys with urinary tract infection. J Pediatr 1989;115:915-2
- 40. Deshpande PV, Jones, KV. An audit of RCP guidelines on DMSA scanning after urinary tract infection. Arch Dis Child 2001;84:324-7.
- 41 Report of a Working Group of the Research Unit Royal College of Physicians. Guidelines for the management of acute urinary tract infection in childhood. J R Coll Physicians Lond 1991:25:36-42.
- 42. Berro Y, Baratte B, Seryer D, Boulu G, Slama M, Boudailliez B, et al Comparison between scintigraphy, B Mode, and power Doppler sonography in acute pyelonephritis in children J Radiol 2000:81:523-7.
- 43. Chan YL, Chan KW, Yeung CK, Roebuck DJ, Chu WC, Lee KH, et al. Potential utility of MRI in the evaluation of children at risk of renal scarring. Pediatr Radiol 1999;29:856-62.
- 44. Little MA, Stafford Johnson DB, O'Callaghan JP, Walshe JJ. The diagnostic yield of intravenous urography. Nephrol Dial Transplant 2000;15(2):200-4.
- 45. Piepsz A, Blaufox MD, Gordon I, Granerus G, Majd M, O'Reilly P, et al. Consensus on renal cortical scintigraphy in children with urinary tract infection. Scientific Committee of Radionuclides in Nephrourology. Semin Nucl Med 1999;29:160-74.
- 46. Jakobsson B, Svensson L. Transient pyelonephritic changes on 99mTechnetium-dimercaptosuccinic acid scan for at least five months after infection. Acta Paediatr 1997;86:803-7.
- 47. Kass EJ, Kernen KM, Carey JM .Pediatric urinary tract infection and the necessity of complete urological imaging. BJU International 2000;86:94-6.
- 48. Warren JW, Abrutyn E, Hebel JR, Johnson JR, Schaeffer AJ, Stamm WE. Guidelines for antimicrobial treatment of uncomplicated acute bacterial cystitis and acute pyelonephritis in women. Infectious Diseases Society of America (IDSA). Clin Infect Dis 1999;29:745-58.
- 49. Tran D, Muchant DG, Aronoff SC. Short-course versus conventional length antimicrobial therapy for uncomplicated lower urinary tract infections in children: a meta-analysis of 1279 patients. J Pediatr 2001;139:93-9.
- 50. Michael M, Hodson EM, Craig JC, Martin S Moyer VA. Short compared with standard duration of antibiotic treatment for urinary tract infection: a systematic review of randomised controlled trials. Arch Dis Child 2002;87:118-23.
- 51. Keren R, Chan E. A meta-analysis of randomized, controlled trials comparing short-and-long-course antibiotic therapy for urinary tract infections in children. Pediatrics 2002;109(5):1-6.
- 52. Smellie JM, Ransley PG, Normand IC, Prescod N, Edwards D. Development of new renal scars: a collaborative study. BMJ 1985;290:1957-60.
- 53. Wimberg J, Bergstrom T, Jacobsson B. Morbidity, age and sex distribution, recurrence and renal scarring in symptomatic urinary tract infection in childhood. Kidney Int Suppl 1975;8:101-6.
- 54. Hoberman A, Wald ER, Hickey RW, Baskin M, Charron M, Madj M, et al. Oral versus initial intravenous therapy for urinary tract infections in young febrile children. Pediatrics 1999;104:79-86.
- 55. Uhari M, Nuutinen M, Turtinem J. Adverse reactions in children during long term antimicrobial therapy. Pediatr Infect Dis J 1999;88(431):87-9.
- 56. Abdel-Had N, Abuhammour W, Asmar B, Thomas R, Dabbagh S, Gonzales R. Nasopharyngeal colonization with Streptococcus pneumoniae in children receiving trimethoprim-sulfamethoxazole prophylaxis. Pediatr Infect Dis J 1999;18:647-8.
- 57. Le Saux N, Pham B; Moher D. Evaluating the benefits of antimicrobial prophylaxis to prevent urinary tract infections in children. CMAJ 2000;163(5):523-9.
- 58. Williams GL, Lee A, Craig JC. Long term antibiotics for preventing recurrent urinary tract infection in children. Cochrane Database Syst Rev. 2001;(4):CD001534.
- 59. Jadat AR, Moore RA, Carrloo D, Jenkinson C, Reynolds DJM; Gavaghan DJ, et al. Assessing the quality of reports of randomized clinical trials: is blinding necessary? Control Clin Trials 1996;17:1-12.
- 60. Moher D, Pham B, Jones A, Cook DJ, Jadat AR, Moher M, et al. Does quality of randomised trials affect estimates of intervention efficacy reported in meta-analyses? Lancet 1998;352:609-13.
- 61. Birmingham Reflux Study Group. Prospective trial of operative versus non-operative treatment of severe vesicoureteric reflux in children: five years observation. BMJ 1987;295:237-41.
- 62. Weiss R, Tamminen-Mobius T, Koskimies O, Olbing H, Smellie JM, Hirche H, et al. Characteristics at entry of children with severe primary vesicoureteral reflux recruited for a multicenter, international therapeutic trial comparing medical and surgical management. J Urol 1992;148:1644-9.
- 63. Matouschek E. Die behandlung des vesikorenalen refluxes durch transurethrale einspritzung von Teflon Paste. Urologe A 1981;20:263-4.
- 64. Leonard MP. Endoscopic injection therapy for treatment of vesicoureteric reflux: a 20-year perspective. Pediatr Child Health 2002;7:545-50.
- 65. Chertin B, Colhoun E, Velayudham M, Puri P. Endoscopic treatment of vesicoureteral reflux: 11 to 17 years of follow-up. Pediatr Urol 2002;163;1443-6.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Abr 2004 -
Data do Fascículo
Jun 2003