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Leite de vaca integral, fórmula para lactentes e anemia por deficiência de ferro

CARTAS AO EDITOR

Leite de vaca integral, fórmula para lactentes e anemia por deficiência de ferro

Prezado Editor,

Quanto ao artigo de revisão1 publicado no Jornal de Pediatria relacionando leite de vaca e anemia ferropriva, acreditamos que não foi feita de maneira plena a devida diferenciação entre o leite de vaca integral e as fórmulas para lactentes, incluindo seu papel na prevenção da anemia por deficiência de ferro. Neste texto, será utilizado o termo fórmula para lactentes, ao invés de "fórmula infantil", tradução inadequada para o expressão infant formula em inglês.

Com base na referência 20 (Hadler, Colugnati e Sigulem), afirmou-se que1"o leite modificado enriquecido de ferro, por outro lado, reduziria a chance de anemia pelo aumento na densidade de ferro"1. Deve ser ressaltado que o mencionado estudo mostrou, também, que a fórmula para lactentes como primeiro complemento ou substituto do leite humano reduziu em 5,1 vezes a chance de anemia em relação à introdução do leite de vaca no momento do desmame. Outro estudo brasileiro2 confirmou esse achado (odds ratio = 1,9). Assim, a utilização inicial de fórmula para lactentes, ao invés de leite de vaca integral, associa-se com menor probabilidade de desenvolvimento de anemia.

Ao tratar das perdas de sangue pelo tubo digestivo "pela exposição ao leite de vaca", afirma-se que essas perdas não determinam repercussões clínicas1. Tal afirmativa baseia-se nas referências 57, 58 e 60, que permitem outras considerações. O estado nutricional em ferro das crianças incluídas naqueles estudos era adequado. Assim, é possível que, mesmo nos lactentes com perda de sangue nas fezes, o período de acompanhamento não tenha sido suficientemente longo para que ocorressem "repercussões clínicas". Neste contexto, deve ser lembrado que repercussões clínicas identificáveis pelo exame físico ocorrem apenas nas formas mais graves de anemia ferropriva3. Os próprios autores resumem os achados de um daqueles três artigos afirmando que "a perda de sangue apresentada por lactentes com 9,5 meses é de baixa intensidade, sendo questionável sua significância clínica. No entanto, lactentes sem perda de sangue nas fezes apresentaram melhor estado nutricional em ferro do que aqueles com perda fecal de sangue". Afirmam ainda que, apesar da perda de sangue ser relativamente pequena, o consumo de leite de vaca antes dos 12 meses é indesejável (as fórmulas para lactente devem ser preferidas), conforme recomendado pela Academia Americana de Pediatria. Além disso, comentam que o método utilizado para a pesquisa de sangue nas fezes poderia sofrer interferência de derivados porfirínicos da carne da dieta das crianças estudadas, o que pode ter dificultado a interpretação dos resultados obtidos. Para evitar esse problema, um estudo4 brasileiro empregou o método imunocromatográfico específico para a pesquisa de hemoglobina humana nas fezes de lactentes com idade entre 10 e 12 meses. A prevalência de anemia (72,4%) foi muito elevada. Constatou-se que, dentre os 64 lactentes que eram alimentados com leite de vaca integral, 46,9% apresentou pesquisa positiva de sangue oculto nas fezes e mediana de ferritina no soro estatisticamente inferior à dos lactentes com pesquisa negativa de sangue nas fezes. Concluiu-se que a perda fecal de sangue era um fator agravante da deficiência de ferro4. Esse resultado é concordante com estudos prévios da literatura, os quais mostraram que a perda fecal de sangue associada ao consumo do leite de vaca integral pode repercutir negativamente no estado nutricional em ferro de lactentes.

Na conclusão do artigo de revisão1, afirma-se que "o estímulo à prática do aleitamento materno exclusivo até os 6 meses e sua continuidade até os 24 meses, juntamente com a oferta de uma dieta complementar rica em ferro e facilitadores da sua absorção, bem como a fortificação de alimentos infantis com ferro são medidas de grande importância para a prevenção da anemia e suas conseqüências na infância". No entanto, não são apresentadas referências comprobatórias da eficácia e efetividade dessas práticas alimentares.

Para lactentes que são amamentados até os 24 meses de vida, a suplementação medicamentosa individual de ferro representa a única opção para prevenção da deficiência de ferro. A própria Organização Mundial da Saúde reconhece que a suplementação marcial individual deve ser adotada para prevenir a deficiência de ferro em lactentes. A dose profilática de ferro elementar deve ser diária (2 mg/quilo) e utilizada entre 6 e 24 meses.

Por outro lado, não existem evidências indicando que alimentos complementares não-lácteos possam atender às necessidades de ferro do lactente. Estudo5 realizado no entorno da cidade de São Paulo mostra que a densidade de ferro em alimentos complementares para lactentes preparados no domicílio é muito baixa, mesmo quando a carne de vaca é um dos ingredientes5. Além disso, exercícios teóricos para elaborar cardápios que atendam à necessidade de ferro de lactentes não são compatíveis com a quantidade de alimentos normalmente consumidos nessa faixa etária, em função da pequena capacidade gástrica própria da idade.

No Brasil, nas últimas décadas, vem ocorrendo aumento na duração do aleitamento natural. No entanto, infelizmente, expressiva parcela dos lactentes ainda é vítima de desmame precoce, inclusive no primeiro semestre de vida. Esses lactentes não estão contemplados nas medidas preventivas para deficiência de ferro preconizadas no comentado artigo de revisão1. Portanto, são penalizados duplamente: primeiro, por não serem amamentados por tempo prolongado e segundo, por permanecerem em situação de alto risco para o desenvolvimento de deficiência de ferro sem serem alvos de esquema preventivo alternativo.

Esses lactentes desmamados podem se beneficiar da suplementação individual de ferro, conforme mencionado acima. Aliás, a Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda, desde 1995, suplementação com ferro a partir do quarto ou sexto mês de vida, independentemente do tipo de leite que o lactente venha recebendo.

Uma alternativa adicional para esses lactentes desmamados é a utilização de uma fórmula para lactente fortificada com ferro. Estudos clássicos, realizados na Europa e no Chile, mostram que o estado nutricional em ferro de lactentes no final do primeiro ano de vida é melhor naqueles que receberam fórmula ou leite fortificados com ferro do que aqueles alimentados previamente com leite humano ou com leite de vaca ou fórmula não fortificados com ferro. A Organização Mundial da Saúde reconhece que a utilização de leite de vaca ou fórmula fortificada com sulfato ferroso é uma alternativa adequada, além de considerar como opções a fortificação de outros alimentos, como a farinha de trigo, milho e arroz, já experimentados em alguns países, mas que podem ter impacto satisfatório em grupos etários de maior idade, não em lactentes.

Para finalizar, deve ser ressaltado que a silenciosa deficiência de ferro, nas suas fases pré-anêmica e anêmica, pode provocar déficit intelectual, talvez irreversível, indicando que a suplementação de ferro, ou o emprego de fórmula fortificada com ferro para lactentes, deve ser priorizada enquanto não se identificam medidas preventivas mais adequadas.

Deve ser lembrado, ainda, que a prevalência de anemia por deficiência de ferro em lactentes está aumentando desde a década de 19706, sendo, no presente, a principal carência nutricional em saúde pública. A decisão de publicar uma revisão1 sobre tema de tal relevância mostra o esforço que o Jornal de Pediatria tem feito para melhorar e atualizar o conhecimento do pediatra, figura central no combate da anemia ferropriva em lactentes. Assim, esperamos que nossas considerações contribuam nessa mesma direção.

Referências

1. Oliveira MAA, Osorio MM. Consumo de leite de vaca e anemia ferropriva na infância. J Pediatr (Rio J). 2005;81:361-7.

2. Neves MBP, Silva EMK, Morais MB. Prevalência e fatores associados à deficiência de ferro em lactentes atendidos em um centro de saúde-escola em Belém, Pará, Brasil. Cad Saude Publica. 2005;21:1911-8.

3. Morais MB, Sdepanian VL. Sinais clínicos de anemia no diagnóstico de anemia: uma ação tardia e ineficiente no combate à deficiência de ferro. Rev Saude Publica. 2004;38:329-30.

4. Fernandes S, Morais MB, Amancio OMS. Perda de sangue oculto nas fezes como fator agravante da deficiência de ferro em lactentes. Anais do Congresso Brasileiro de Gastroenterologia Pediátrica; 2004; Salvador.

5. Ribeiro P, Sigulem DM, Morais TB. Determinação laboratorial de macronutrientes, ferro e sódio em diferentes tipos de refeições de sal preparadas no domicílio, destinadas a crianças menores de 18 meses - resultados preliminares [ Resumo] . Rev Paul Pediatr. 2004;22:49.

6. Sigulem DM, Tudisco ES, Goldenberg P, Athaide MM, Vaisman E. Anemia ferropriva em crianças do município de São Paulo. Rev Saude Publica. 1978;12:168-78.

Mauro Batista de Morais

Professor adjunto, Livre-docente da Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica, Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (UNIFESP-EPM), São Paulo, SP. Coordenador, Programa de Pós-Graduação em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria, UNIFESP-EPM, São Paulo, SP

E-mail: mbmorais@osite.com.br

Dirce Maria Sigulem

Coordenadora, Programa de Pós-Graduação em Saúde Materno-Infantil, Universidade de Santo Amaro (UNISA), Santo Amaro, SP. Professora titular, Faculdade da Medicina, UNISA, Santo Amaro, SP

E-mail: dmsigulem@uol.com.br

Resposta dos autores

Prezado Editor,

Em resposta à carta enviada ao editor pelos leitores Mauro Batista de Morais e Dirce Maria Sigulem, a respeito do nosso artigo de revisão intitulado "Consumo de leite de vaca e anemia ferropriva na infância", publicado neste periódico, gostaríamos de tecer alguns comentários sobre as principais críticas realizadas.

Em momento algum contrariamos a idéia de que a fórmula para lactente enriquecida com ferro, como complemento ou substituto do leite materno, associa-se com menor probabilidade de desenvolvimento da anemia ferropriva, tanto que no item sobre biodisponibilidade de ferro no leite de vaca citamos três referências sobre o assunto1-3. Nas considerações finais, recomendamos a fortificação de alimentos infantis com ferro. Nesse caso, entende-se que as fórmulas para lactentes também estejam incluídas. Entretanto, salienta-se que, para a população brasileira, na qual grande parcela das crianças se encontra anêmica (como exemplo: prevalência de anemia de 40,9% em crianças menores de 5 anos e de 67,3% em menores de 1 ano, no estado de Pernambuco4) e sobrevivendo em precárias condições socioeconômicas, as fórmulas lácteas são alimentos de difícil acesso e, por conseguinte, não nos permite destacá-las como viáveis na prevenção da anemia ferropriva em nossa população infantil.

Reconhecemos a dificuldade para suprir os requerimentos de ferro das crianças menores de 2 anos de idade com a alimentação complementar5,6. Porém, o estímulo à prática do aleitamento materno exclusivo até os 6 meses e sua continuidade até os 24 meses, juntamente com a oferta de uma dieta complementar rica em ferro e facilitadores da sua absorção é recomendável pelos organismos internacionais que se preocupam com a saúde e alimentação infantil5. No Brasil, entre as ações voltadas para a prevenção e controle da anemia, o Ministério da Saúde estabeleceu a fortificação obrigatória de farinhas de trigo e milho com ferro (Resolução RDC nº 344 - DOU - 13/12/02) e criou o Programa Nacional de Suplementação de Ferro (Portaria nº 730 - DOU- 13/05/05). Este último vem sendo implementado em alguns municípios, com a distribuição de sulfato ferroso na dose semanal de 25 mg de ferro elementar para as crianças entre 6 e 18 meses7.

Gostaríamos, ainda, de enfatizar a necessidade por parte dos profissionais, especialmente daqueles que trabalham na atenção básica, de um maior cuidado em relação à alimentação e aos fatores que predispõem a anemia, para que, dessa maneira, possam realizar adequadamente ações de prevenção e assistência à saúde e nutrição das crianças.

Considerando que o Jornal de Pediatria é uma revista de grande importância na atualização não apenas dos pediatras, mas de todos os profissionais envolvidos na atenção à saúde da criança, agradecemos a contribuição dos leitores supracitados, bem como a oportunidade que nos foi dada por esta conceituada revista em ampliar a discussão do nosso trabalho.

Referências

1. De Angelis RC, Ctenas MLB. Biodisponibilidade de ferro na alimentação infantil. Temas de Pediatria. 1993;52.

2. Ziegler EE, Fomon SJ. Strategies for the prevention of iron deficiency: iron infant formulas and baby foods. Nutr Rev. 1996;54:348-54.

3. Cowin AE, Emond A, Emmett P. Association between composition of the diet and hemoglobin and ferritin levels in 18-month-old children. Eur J Clin Nutr. 2001;55:278-86.

4. Osório MM, Lira PIC, Batista-Filho M, Ashworth A. Prevalence of anemia in children 6-59 months old in the state of Pernambuco, Brazil. Rev Panam Salud Publica. 2001;10:101-7.

5. World Health Organization. Complementary feeding of young children in developing countries. A review of current scientific knowledge. Geneva: WHO/NUT; 1998.

6. Giugliani ER, Victora CG. Alimentação complementar. J Pediatr (Rio J). 2000;76(Suppl 3):S253-62.

7. Brasil, Ministério da Saúde. Manual operacional do Programa Nacional de Suplementação de Ferro. http://dtr2004.saude.gov.br/nutricao/documentos/manual_ferro.pdf. Acesso: 14/03/06.

Maria A. A. Oliveira

Doutora, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE. Professora adjunta, Departamento de Nutrição, Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL

Mônica M. Osório

Doutora, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE. Professora adjunta, Departamento de Nutrição, UFPE, Recife, PE

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Abr 2006
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