RESUMO
Objetivo: apreender as concepções de coordenadores e professores da graduação em enfermagem de universidades públicas da Região Norte do Brasil sobre saúde coletiva e conhecer as competências necessárias para atuação na área.
Método: os dados foram coletados por entrevistas semiestruturadas e submetidos à análise temática.
Resultados: os sujeitos consideram a saúde coletiva uma área essencial da atuação profissional do enfermeiro, na qual têm autonomia e segurança. É um campo interdisciplinar, intersetorial e multiprofissional, de grande abrangência e de estudo do Sistema Único de Saúde (SUS). As competências para atuar na área de saúde coletiva identificadas foram: atuar no SUS, compreender o processo saúde-doença e seus determinantes, desenvolver ações visando à integralidade, realizar educação em saúde e desenvolver pesquisas e sistematização da assistência da enfermagem.
Conclusão: a variedade de concepções sobre saúde coletiva entre os participantes pode refletir na formação de enfermeiros e na atuação na área.
Descritores: Saúde Coletiva; Bacharelado em Enfermagem; Competência Profissional
RESUMEN
Objetivo: captar concepciones de coordinadores y profesores de cursos de enfermería de universidades públicas de la Región Norte de Brasil sobre salud colectiva y conocer competencias necesarias para la actuación en el área.
Método: los datos fueron recolectados mediante entrevistas semiestructuradas, sometidos a análisis temático.
Resultados: los sujetos consideran la salud colectiva un área esencial de la actuación profesional del enfermero, donde tienen autonomía y seguridad. Es un campo interdisciplinar, intersectorial y multiprofesional, de gran cobertura y de estudio del Sistema Único de Salud (SUS). Las competencias identificadas para actuar en esta área fueron: actuar en el SUS, comprender el proceso salud-enfermedad y sus determinantes, desarrollar acciones teniendo como objetivo la integralidad, realizar educación en salud, desarrollar investigaciones y sistematización de la asistencia de enfermería.
Conclusión: la variedad de concepciones sobre salud colectiva entre los participantes puede reflejar en la formación de los enfermeros y su actuación en el área.
Palabras clave: Salud Pública; Bachillerato en Enfermería; Competencia Profesional
ABSTRACT
Objective: to learn coordinators and professors’ conceptions from undergraduate Nursing courses of public universities in northern Brazil regarding collective health and to know the necessary competencies to work in the area.
Method: data were collected through semi-structured interviews and subjected to thematic analysis.
Results: the participants consider population health as an essential area for the training of nurses, where professionals have autonomy and confidence. It is an interdisciplinary, intersectoral and multidisciplinary field, with extensive scope, that studies the Unified Health System (SUS). The competencies to work in collective health identified were: to work at the SUS, to understand the health and disease process and its determinants and to develop actions towards integrality, to conduct health education, researches and systematization of the nursing care.
Conclusion: the variety of conceptions about collective health among participants might reflect in training of nurses and their working area.
Key words: Public Health; Bachelor of Nursing; Professional Competence
INTRODUÇÃO
A saúde coletiva é um campo estruturado e estruturante de práticas e conhecimentos teóricos, práticos e políticos que critica o universalismo naturalista do saber médico e o monopólio do discurso biológico(1). Tendo como marco teórico o materialismo histórico e dialético, compreende a saúde como fenômeno social e considera a existência de inúmeros determinantes que interferem na mesma, tornando dinâmico o processo saúde-doença(2-3).
O termo saúde coletiva é recente. Surgiu no Brasil, na década de 1970, mas é fruto de discussões e atitudes iniciadas no século XIX que se intensificaram na segunda metade do século XX. Tem suas origens na medicina social, na medicina preventiva e na saúde pública. Entretanto, busca se conceitu-alizar por meio de estudos e discussões sobre a evidência de suas fronteiras, de seu alcance e de sua identidade(1).
A interação entre diferentes saberes e práticas, o fortalecimento de laços entre população e profissionais de saúde e a valorização do social e da subjetividade são marcos conceituais importantes da saúde coletiva. Além desses, podemos citar a superação do modelo hegemônico biomédico centrado na doença, nos procedimentos, na especialização e na instituição hospitalar e a atenção à saúde organizada em linhas do cuidado (não em doenças) com ênfase na integralidade e na equidade(4).
As práticas em saúde coletiva são práticas sociais, construídas em diferentes processos de trabalho e estão estreitamente articuladas à estrutura da sociedade e à dinâmica das forças de seus grupos sociais(2). Há assim uma variedade de cenários em que essas práticas ocorrem, mas têm espaço privilegiado de atuação na atenção básica em saúde (ABS).
No Brasil, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) demandou a utilização do termo ABS para diferenciar-se da atenção primária em saúde, até então relacionada a serviços mínimos e em geral de má qualidade em toda a América Latina. A ABS passou a ser definida como conjunto de ações individuais e coletivas situadas no primeiro nível, voltadas à promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento e reabilitação(5). Atualmente, os dois termos são considerados sinônimos pela Política Nacional de Atenção Básica, que imputa à saúde da família sua estratégia prioritária para expansão e consolidação(6).
O trabalho em saúde coletiva, em especial na Estratégia Saúde da Família (ESF), redefiniu a identidade e a valorização do profissional enfermeiro, cuja prática vinha sendo relacionada apenas ao trabalho médico e a ações estritamente técnicas. Entre as inúmeras atribuições exercidas com autonomia pelo enfermeiro na ESF estão planejar e executar ações no âmbito da saúde coletiva, supervisionar a assistência direta à população, realizar ações de promoção, prevenção, cura e reabilitação, mediar ações intersetoriais, gerenciar os serviços de saúde, desenvolver educação em saúde e educação permanente(7).
É importante ressaltar que a atuação do enfermeiro no contexto da ABS e da ESF por si só não garante que ele desenvolva uma prática apoiada no marco teórico da saúde coletiva. Quando não assume a saúde como fenômeno social e não compreende o processo saúde-doença e seus determinantes, continua a reproduzir o modelo biomédico e medicalizante, ainda propagado pelas escolas formadoras, ao qual a saúde coletiva se opõe.
Neste contexto, as instituições de ensino têm buscado formas de abranger em seus currículos os conteúdos e as práticas necessários para a formação dos profissionais que irão atuar no SUS. Entretanto, observa-se que as mudanças promovidas no ensino não correspondem suficientemente às exigências do mercado de trabalho. Também não são capazes de preparar profissionais totalmente centrados no cuidado humanizado, planejado e contextualizado(8-10).
A partir do seu projeto pedagógico, cada instituição de ensino planeja o percurso que seus estudantes trilharão para a formação profissional tornando cada currículo único. No momento de planejamento curricular, são envolvidos as leis e as diretrizes para a formação profissional, o contexto institucional, a experiência e a intenção docente, a realidade na qual o curso está inserido e as características dos discentes.
Durante a graduação, espera-se que o estudante desenvolva competências para o trabalho em saúde coletiva. Entretanto, o não entendimento de conceitos-chave e do marco teórico da saúde coletiva pelos atores envolvidos na formação pode prejudicar o processo ensino-aprendizagem e privilegiar o aprendizado de procedimentos.
Existe uma pluralidade de abordagens para a compreensão do termo competência, que vai desde a grafia do termo em outras línguas até o entendimento das teorias, culturas e abordagens nas quais os conceitos nasceram(10). Neste estudo, partimos da premissa de que "competência é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos (saberes, capacidades, informações, etc.) para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações"(11).
Destaca-se que as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) de 2001, documento direcionador da formação em enfermagem, não definem um rol de competências em saúde coletiva. Esta tarefa foi realizada por pesquisadores(12-14)da área ao identificarem essa lacuna. Dessa forma, compreende-se que para os atores responsáveis pela formação, as competências que devem e podem ser desenvolvidas para o trabalho do enfermeiro em saúde coletiva, nem sempre são claras. Isto dificulta o seu alinhamento com o projeto pedagógico dos cursos, com as necessidades e com os objetivos da formação em enfermagem(15).
Os objetivos do presente artigo foram apreender as concepções de coordenadores e professores sobre a área da saúde coletiva e conhecer as competências que eles julgam necessárias para a atuação na área.
MÉTODO
Neste artigo, apresentamos parte de uma pesquisa predominantemente qualitativa de caráter exploratório-descritivo sobre o ensino de saúde coletiva nos cursos de graduação em enfermagem das universidades públicas da Região Norte do Brasil. Na primeira fase da pesquisa, estudantes em final de graduação responderam a um questionário sobre seus cursos, em especial sobre as competências desenvolvidas. Na segunda fase, foram entrevistados coordenadores de curso juntamente com professores sobre as propostas curriculares de seus cursos. Além desses aspectos, coordenadores e docentes tiveram oportunidade de comentar as respostas dadas pelos discentes sobre as competências do enfermeiro na área da saúde coletiva e também expressaram suas concepções sobre a mesma.
Foram incluídos todos os cursos de enfermagem ofertados por universidades públicas nas capitais dos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima, totalizando oito cursos. A ausência de turmas formadas excluiu da pesquisa o curso de enfermagem do estado do Tocantins.
Os dados foram produzidos entre os meses de janeiro e maio de 2012 por meio de entrevistas com os oito coordenadores e dois professores de saúde coletiva, que voluntariamente concordaram em participar da pesquisa mediante assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Utilizou-se um roteiro semiestruturado com perguntas distribuídas em quatro núcleos direcionadores: (a) currículo, (b) corpo docente, (c) articulação ensino-serviço e (d) dificuldades enfrentadas. Durante as entrevistas, foram apresentadas as respostas dos estudantes ao questionário sobre o ensino de saúde coletiva em seus cursos, em formato de gráficos. Assim, os sujeitos também puderam discorrer sobre as percepções dos estudantes.
As concepções dos sujeitos da pesquisa sobre a área da saúde coletiva e a identificação de competências necessárias para atuação na área emergiram espontaneamente durante as entrevistas e constituíram o objeto deste estudo.
As entrevistas foram gravadas em formato de áudio e transcritas na íntegra para análise. Utilizou-se a técnica de análise de conteúdo, modalidade temática, com leitura flutuante de todo o material (pré-análise) seguida de leitura aprofundada e exaustiva. Foram identificadas unidades de contexto (UC), que deram origem a unidades de registro (UR) e, por fim, às categorias(16).
Esta pesquisa recebeu autorização para ser desenvolvida pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, sob parecer n.° 873878.
RESULTADOS
Na análise temática das entrevistas, identificamos 55 UC contendo 112 UR a respeito das concepções dos coordenadores de curso e dos professores de enfermagem sobre saúde coletiva e as competências necessárias para a atuação nesse campo. Especificamente no tocante às concepções, primeira dimensão do estudo, identificamos 69 UR das quais emergiram seis categorias e cinco subcategorias, apresentadas no quadro a seguir.
Categorias que representam as concepções de coordenadores e professores dos cursos de enfermagem das universidades públicas da Região Norte sobre saúde coletiva
Os coordenadores de curso e os professores da área expressaram diferentes conceitos sobre a saúde coletiva. Enquanto alguns referiram-se à saúde coletiva utilizando o termo saúde pública e vice-versa, levando ao entendimento de que as duas são iguais, ou pelo menos semelhantes. Outros deixaram claro que são diferentes.
A primeira categoria, Área essencial da atuação profissional do enfermeiro, emergiu do entendimento dos coordenadores e dos professores de que a saúde coletiva é uma área nuclear para a prática do enfermeiro, sendo parte essencial de sua formação. A mudança que a saúde coletiva trouxe para o trabalho em enfermagem, tradicionalmente marcado pela dependência do enfermeiro em relação a outros profissionais, vem promovendo o empoderamento dos agentes da profissão.
O enfermeiro tem muito mais autonomia na saúde coletiva. Então, eles acabam tendo mais segurança dentro desse espaço da saúde coletiva.(E4)
Foram identificadas características da saúde coletiva que a diferenciam de outras áreas, gerando a categoria Área de conhecimento com especificidades, sendo uma de suas subcategorias o Estímulo à visão crítica. As subcategorias Subjetividade e abstração, Exigência de muita leitura e Conteúdo muitas vezes maçante retratam especificidades apontadas como dificultadoras do ensino de saúde coletiva nos cursos, devido aos comentários negativos de alguns estudantes. A subcategoria Relação com ideologias pessoais representa a identificação de profissionais de saúde que atuam na área com os ideais da reforma sanitária brasileira e com o pressuposto da saúde como fenômeno social.
A saúde coletiva é também apontada pelos sujeitos como uma Área de estudo do SUS, sua história, políticas e estratégias, gerando a terceira categoria desta dimensão. Nesse contexto, o ensino de políticas públicas de saúde está intimamente ligado ao ensino de saúde coletiva.
Quando você vai trabalhar com programas ou mesmo alguma coisa na área hospitalar, a gente sempre vai estar falando de políticas públicas de saúde. (E4)
Para os participantes da pesquisa, a prática em saúde coletiva, direcionada a indivíduos, famílias e coletividades, busca a compreensão de seus problemas e agravos à saúde para o planejamento de intervenções. Assim se configura a quarta categoria deste estudo: área de estudo dos problemas da coletividade.
Eu acho que atender a comunidade, conseguir identificar os problemas, conseguir fazer um diagnóstico situacional da comunidade [...]. (E1)
A quinta categoria a emergir foi Campo interdisciplinar, intersetorial e multiprofissional, que retrata o caráter plural da saúde coletiva, identificado pela inter-relação das inúmeras áreas que a compõem. O caráter interdisciplinar sugere uma relação íntima entre as áreas e as disciplinas que constituem a saúde coletiva. Dessa forma, não falam apenas de uma área formada por outras, mas de uma área composta por relações fortes entre diversas áreas de conhecimento que dialogam entre si e produzem novos conhecimentos e práticas transformadoras.
Se você trabalha com saúde coletiva, você trabalha de forma interdisciplinar, [...] com equipes multiprofissionais. (E3)
Os professores e coordenadores de curso entendem a saúde coletiva como uma Área de grande abrangência, sexta e última categoria desta dimensão. Sua abrangência se dá tanto em relação aos níveis de atenção à saúde quanto aos cenários de prática e à multiplicidade de ações. Afirmam que, como campo teórico e prático, a saúde coletiva não se restringe às ações e aos loci de cuidado da ABS.
[...] pensam que a saúde coletiva só se dá lá [na unidade básica de saúde], mas ela se dá aqui também dentro do hospital quando você orienta, quando você encaminha. (E2)
Quanto à segunda dimensão deste estudo, competências necessárias para a atuação na área da saúde coletiva, foram identificadas 56 UR que resultaram em seis categorias e dez subcategorias, apresentadas no quadro seguinte. Nesta, categorias e subcategorias representam as competências identificadas pelos participantes da pesquisa.
Categorias que representam as competências necessárias para o trabalho do enfermeiro na área da saúde coletiva, segundo coordenadores e professores dos cursos de enfermagem das universidades públicas da Região Norte
Atuar no SUS é uma importante competência na área da saúde coletiva identificada pelos coordenadores de curso e professores. Especificamente, veem como necessário Compreender e fomentar políticas públicas de saúde para que se entenda a proposta e a dinâmica do sistema de saúde para a garantia dos direitos sociais. Gerenciar serviços de saúde também é uma competência do enfermeiro para a atuação no SUS, para a qual deve Trabalhar numa perspectiva interdisci-plinar, intersetorial e multiprofissional.
[... ] ele trabalha com organização do serviço, muito forte na área da saúde coletiva, e trabalha com gestão dos serviços de saúde. (E7)
Ainda no contexto da competência Atuar no SUS, os sujeitos acreditam que é competência do enfermeiro Contribuir para a consolidação da ESF,entendendo-a como importante política de assistência em saúde e estratégia principal de reorganização da ABS.
Uma segunda competência identificada pelos sujeitos é Compreender o processo saúde-doença e seus determinantes. Essa competência é imprescindível para o trabalho em saúde coletiva em qualquer âmbito ou nível do sistema de saúde.
Atuar no processo saúde-doença, na saúde das comunidades, das populações, não só urbanas, mas rurais e indígenas. (E5)
A competência Desenvolver ações visando o cuidado integral foi identificada assumindo que, na Região Norte, o enfermeiro é formado para o
[... ] manejo com a família, a sociedade, o indivíduo como um todo. (E6)
Essa competência requer a habilidade de atender as demandas regionais e locais de saúde, considerando suas diferenças e peculiaridades.
[... ] o enfermeiro tem que ter um viés cultural, porque a gente tá numa área, na região amazônica, que é um mosaico cultural muito grande.(E10)
A competência de Realizar atividades de educação em saúde se materializa no encontro com indivíduos, famílias e coletividades em que há troca e aprendizado mútuo, compreensão sobre a realidade do outro e conhecimento das responsabilidades e direitos à saúde.
Embora reconhecida como pouco desenvolvida por enfermeiros na área da saúde coletiva, os sujeitos também identificam a competência de Desenvolver pesquisas e sistematização da assistência da enfermagem (SAE). Relatam a importância da pesquisa para produção de conhecimento e para evidenciar o trabalho da enfermagem na área e entendem a SAE como uma atividade privativa do enfermeiro que organiza cientificamente sua prática.
O estudante tem que unir as funções do enfermeiro: gerenciamento, assistência, pesquisa ... não fazemos muito pesquisa, não[...]. Trabalhar a parte da sistematização da assistência da enfermagem em saúde coletiva, que tem o seu diferencial. (E1)
A última competência, Desenvolver habilidades específicas, emergiu do entendimento de que a atuação em saúde coletiva requer do enfermeiro: Visão crítica e reflexiva, Liderança, Capacidade organizativa, Capacidade de educação permanente, Envolvimento político e Comprometimento social.
DISCUSSÃO
A análise das concepções de docentes e, especialmente, de coordenadores de cursos de enfermagem sobre a saúde coletiva, bem como das competências identificadas para a atuação do enfermeiro neste campo, é importante para o avanço do conhecimento sobre a formação de futuros profissionais para atuação na área. Um primeiro aspecto detectado foi uma confusão em relação aos termos saúde coletiva e saúde pública: alguns os consideram sinônimos, outros os veem como semelhantes e, para outros ainda, são diferentes.
Considera-se compreensível tal divergência visto que a saúde coletiva tem sua origem na saúde pública, na medicina preventiva e na medicina social e, portanto, guarda aspectos dessas áreas. Por ser um termo criado no Brasil, comumente é traduzido como saúde pública em línguas estrangeiras para se adequar a realidade de outros países.
O surgimento da saúde coletiva permitiu a identificação de pontos de convergência com os movimentos de renovação e reestruturação da saúde pública pela ênfase que atribui à dimensão histórica e aos valores investidos nos discursos sobre o normal, o anormal, o patológico, a vida e a morte(17-18).
A saúde coletiva preocupa-se com a saúde pública enquanto saúde do público, sejam indivíduos, grupos, classes sociais e po-pulações(18). Por outro lado, a concepção de saúde coletiva representa uma ruptura com a concepção de saúde pública, ao negar que os discursos biológicos detenham o monopólio do campo da saúde entendendo que a problemática da saúde é mais abrangente e complexa que a leitura naturalista do saber biomédico(17).
A saúde coletiva compreende a saúde pública, a epidemio-logia e a medicina preventiva e social, além de guardar relações de interconexão com outras subáreas(4). Nesse sentido, pode ser vista como o campo mais abrangente, com subcam-pos que reúne, entre eles a saúde pública, com um sentido mais forte, tanto temático quanto histórico.
A crescente importância da saúde coletiva para o trabalho da enfermagem é corroborado pelos coordenadores e professores ao considerarem-na área constituinte de atuação profissional do enfermeiro. Nela, a enfermagem encontra um amplo espectro de atuação que lhe permite maior liberdade no uso dos espaços para transformação das realidades locais. O enfermeiro propõe ações, estabelece a maneira como será constituído seu trabalho e mantém considerável autonomia em suas práticas(19).
Por resultar da inter-relação entre diversos campos disciplina-res, dentre eles as ciências sociais, a saúde coletiva busca ir além de técnicas e procedimentos. É vista pelos coordenadores como uma área que estimula a visão crítica, estando fortemente ligada a ideologias pessoais. Por outro lado, a grande carga de leitura necessária na formação inicial ou na educação permanente por vezes é entendida como dificultadora para a aproximação e o aprofundamento na área. Isto resulta no retorno a um trabalho mais técnico, focado em rotinas. Portanto, é necessário que o ensino supere o paradigma biologicista e estabeleça intercru-zamentos com a psicologia, as ciências sociais e humanas (saúde e sociedade, saúde e história) e as humanidades (psiquismo afetivo e cognitivo) para uma reforma da educação não apenas instrumental, mas de projeto político-pedagógico(4).
As políticas e o sistema de saúde brasileiro, bem como os problemas de saúde das coletividades, são enfatizados como áreas de estudo essenciais da saúde coletiva. No entanto, constata-se que muitos enfermeiros desconhecem as políticas de saúde e o SUS como eixos norteadores das ações de atenção à saúde da população. Conhecer e compreender os princípios do SUS, bem como o conceito ampliado de saúde, são competências indispensáveis para a produção de mudanças na saúde segundo a realidade local, objetivo essencial da enfermagem em saúde coletiva(20-21).
A saúde coletiva como campo interdisciplinar e intersetorial também foi evidenciada neste estudo. A abordagem interdisciplinar emerge da crítica à fragmentação do saber que costuma privilegiar o olhar sobre a doença, em detrimento da saúde como processo e expressão dos determinantes psicossociais, sociodinâmicos e institucionais(22). Reúne conhecimentos e práticas que não apenas se justapõem, mas interagem e se renovam. Criam, assim, uma demanda de um trabalho em equipe construído por profissionais de diferentes origens, áreas e níveis de formação, com diferentes perspectivas e formulações sobre as necessidades em saúde(4).
Tanto nas concepções sobre a saúde, quanto nas competências, os sujeitos enfatizam a importância da compreensão e da atuação no SUS, visto que sua implantação ampliou a atuação e a inserção dos profissionais de saúde no campo comunitário e social num processo que ressignificou o trabalho do enfermeiro. As oportunidades oferecidas pela ESF proporcionaram maior visibilidade à enfermagem, ficando evidente o papel profissional do enfermeiro nos diversos lócus de cuidado do território(23).
O enfermeiro pode contribuir para a consolidação dos princípios da ESF, com repercussões para o SUS, por meio da formação e da organização da força de trabalho da enfermagem nos serviços de saúde, da potência para o trabalho em equipe e de organização dos serviços na UBS, da diversidade de ações que desenvolve na saúde coletiva e dos espaços estratégicos que ocupa na política de saúde(24).
Na ESF, o enfermeiro, membro de uma equipe multiprofissional, é responsável por uma população inserida em um território adstrito e desenvolve atividades assistenciais, gerenciais, educativas e de pesquisa. Na assistência, o trabalho do enfermeiro compreende atividades como planejamento, consulta e procedimentos de enfermagem, visita domiciliária e territorialização, desenvolvidas dentro e fora das UBS, de forma a garantir o cuidado integral de indivíduos, famílias e coletividades.
A integralidade é um príncipio do SUS e deve nortear todas as práticas de saúde voltadas para indivíduos, famílias e coletividades, buscando atuar nos determinantes do processo saúde--doença, garantindo que as atividades de promoção, prevenção e recuperação da saúde sejam integradas numa visão interdisciplinar que incorpore na prática o conceito ampliado de saúde(12).
Além do cuidado integral, faz-se necessária a garantia do acesso integral do usuário ao sistema de saúde, ou seja, aos diversos níveis de atenção. Os meios necessários para a efetivação do cuidado, como consulta médica, consulta de enfermagem, exames, internação, atividades educativas, tratamento, entre outros, devem ser dispostos segundo o grau de complexidade da atenção para o exercício da integralidade em saúde(21).
A realização da SAE é uma competência identificada pelos sujeitos deste estudo como necessária na área da saúde coletiva. O raciocínio diagnóstico de enfermagem, apesar de recente, tem transformado a prática por seu caráter científico e aplicabilidade nas diversas áreas de atuação do enfermeiro. A SAE relaciona-se com autonomia profissional e do usuário e com necessidades biológicas e sociais da população assistida(25).
Do ponto de vista do gerenciamento, o enfermeiro, além de líder, deve contribuir para a geração do conhecimento, o desenvolvimento de competências e a implantação de inovações. Na ESF, ainda é responsável direta e indiretamente por várias ações burocráticas e gerenciais relativas à equipe e ao funcionamento da UBS. Nem sempre tais ações estão previstas como suas funções e surgem como demandas da prática(7).
Realizar educação em saúde também foi apontada como uma competência inerente do enfermeiro em saúde coletiva sendo transversal ao seu trabalho. Em ações educativas formalmente planejadas (grupos educativos, atividades em escolas e salas de espera), durante a realização das demais atividades (consultas, procedimentos e visitas domiciliárias) e até mesmo na convivência com a população, a educação em saúde deve constituir uma prática dialogada e participativa que gera a transformação da realidade de saúde dos sujeitos e grupos sociais assistidos. Dessa forma, a prática educativa tem estreita relação com o princípio de integralidade preconizado pelo SUS(12).
Como educador, o enfermeiro elege estratégias didáticas que conduzem à transformação dos indivíduos socialmente inseridos, ampliando sua capacidade de compreensão da complexidade dos determinantes de ser saudável.
A contínua busca por conhecimentos é um traço importante e habilidade requerida para a atuação em saúde nos dias atuais. Entende-se que a formação não acaba ao término da graduação e estende-se durante a vida profissional, quando são requeridos novos conhecimentos e novas competências. Faz-se, assim, evidente a relevância de espaços de educação permanente, nos quais os profissionais possam discutir e aprofundar seus conhecimentos a fim de melhorar a assistência prestada(26).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo as concepções de coordenadores e professores da graduação em enfermagem de universidades públicas da Região Norte, a saúde coletiva é uma área essencial da formação profissional da enfermagem. Constitui campo importante da atuação de enfermeiros e tem o SUS como sua principal área de estudo.
O reconhecimento do SUS como campo de estudo e de atuação da saúde coletiva reafirma uma relação já estabelecida entre a área e a política de saúde nacional em termos de construção histórica e forma de pensar e fazer saúde.
São necessárias múltiplas competências para a atuação de enfermeiros na área da saúde coletiva. Dentre elas, coordenadores e professores acreditam que atuar no SUS é uma competência que envolve outras, como trabalhar numa perspectiva interdisciplinar, intersetorial e multiprofissional, desenvolver atividades gerenciais e contribuir com a consolidação da ESF. É competência do enfermeiro ainda promover atividades educativas e ações que garantam a integralidade do ser humano na atenção à saúde.
Evidencia-se a importante contribuição da saúde coletiva para o empoderamento de enfermeiros dentro do atual contexto brasileiro e mundial. A saúde coletiva configura-se como uma nova perspectiva de saberes e práticas: as possibilidades teóricas são ampliadas para além da enfermagem centrada em procedimentos e no corpo biológico; a autonomia e o trabalho em equipe ressignificam a prática dos enfermeiros e atributos como comprometimento social e visão crítica e reflexiva são identificados não só como características do ser humano-cidadão, mas também do ser humano-profissional enfermeiro.
No que concerne à formação acadêmica, é indubitável sua importância para o desenvolvimento do profissional enfermeiro preparado para a atuação em saúde coletiva. Acreditamos que novas pesquisas devem ser realizadas com vistas à melhoria da formação em enfermagem. Dentre elas, investigar atores como coordenadores de curso e professores da área é relevante olhar para eles, para suas concepções e, consequentemente, para suas formas de ensinar.
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Como citar este artigo:Regis CG, Batista NA. The nurse in the area of population health: concepts and competencies. Rev Bras Enferm. 2015;68(5):548-54.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Sep-Oct 2015
Histórico
-
Recebido
14 Fev 2015 -
Aceito
26 Jun 2015