RESUMO
Os autores relatam dois casos de ceratite fúngica, que apresentam em comum no exame histopatológico: a ausência de epitélio, sem ulceração e a integridade da camada de Bowman com a presença de formas fúngicas no seu interior. São sugeridos prováveis mecanismos de recidiva das ceratites fúngicas, ressaltando uma possível "via externa não usual", por meio da penetração do fungo através da camada de Bowman íntegra. A existência desta infecção oportunista não está relatada na literatura oftalmológica e são necessárias mais evidências para que seja considerada como tal.
Descritores: Ceratite; Infecções oculares fúngicas, Córnea/histopatologia, Córnea/microbiologia; Infecções oportunistas; Relatos de casos
ABSTRACT
The authors describe two cases of fungal keratitis which, upon histopathological examination, are found to have in common the absence of epithelium, without ulceration and the lack of integrity of the Bowman's layer with the presence of fungal forms in their interior. Through them the authors suggest probable mechanisms of recurrence of fungal keratitis, highlighting the possible existence of an "unusual external route" that would occur by the fungus penetration through the full Bowman layer. Although these findings appear not yet reported or recovered in the ophthalmic literature, the authors suggest that they could be possible opportunistic infection signals which, however, require more evidence to be considered as such.
Keywords: keratitis; Eye infections, fungal; Cornea/histopathology, Cornea/microbiology; Opportunistic infections; Case reports
INTRODUÇÃO
Os fungos são microorganismos que podem provocar diversas doenças no organismo humano, podendo as infecções micóticas ocorrer em todas as estruturas do olho(1). Infecções fúngicas do olho têm sido observadas e relatadas com maior frequência durante as últimas décadas(4-6).. Isso parece ser o resultado de melhores métodos diagnósticos e o reconhecimento de algumas espécies de fungo, que tem habilidade de infectar o olho e são geralmente consideradas como não patogênicas ou saprófitas, denominados oportunistas patogênicos. De fato, à medida que o olho está em interesse, fungos oportunistas patogênicos têm um papel bem mais importante que patógenos normais e a infecção mais comumente causada pelos fungos oportunistas é a ceratite micótica(2).
As ceratomicoses foram descritas pela primeira vez por Leber em 1879(3) e ainda são um desafio para oftalmologistas em termos de diagnóstico e tratamento(7-9). A maioria dos estudos que falam sobre etiologia das ceratites fúngicas no Brasil é baseada na análise do material proveniente de raspado corneano através de pesquisa direta e/ ou cultura(7,10,11). Mesmo ao sair do Brasil, poucos são os trabalhos que falam sobre características histopatológicas das ceratites micóticas(12). É importante, porém, submeter amostras cirúrgicas de casos de ceratite microbiana ao exame histopatológico, especialmente se o diagnóstico microbiológico for desconhecido(13). O exame histopatológico de botões corneanos pode revelar a presença de elementos fúngicos em 75% dos pacientes(5). Sato et al. demonstraram que entre 63 pacientes submetidos à ceratoplastia penetrante à quente por úlcera corneana micótica, cujas córneas foram recebidas no Registro Brasileiro de Transplantes entre 1982 e 1988, em 24 (38,1%), o diagnóstico de ceratite micótica só foi possível pelo exame histopatológico, devido a exames microbiológicos negativos(14). Estudos histopatológicos oferecem ainda algumas vantagens sobre a cultura no diagnóstico de ceratite micótica, uma vez que a contaminação é evitada, a penetração do tecido pode ser avaliada e os resultados de procedimentos cirúrgicos podem ser antecipados(15).
Assim, descrevemos dois casos de ceratite fúngica que recidivaram após tratamento com ceratoplastia penetrante e cujos botões corneanos haviam sido enviados ao Banco de Olhos do Hospital Geral de Fortaleza para exame histopatológico. Neles destacamos o achado de uma camada de Bowman íntegra com fungos no seu interior. Tentamos ainda correlacionar o diagnóstico clínico e resultados de exame microbiológico com o significado dos achados de exame histopatológico. Através do estudo dos possíveis significados desses achados, esperamos fornecer evidências que auxiliem no diagnóstico e tratamento das ceratites fúngicas, assim como na prevenção de recidivas dessas infecções quando tratadas com transplante de córnea com finalidade terapêutica.
DESCRIÇÃO DOS CASOS
CASO 1
Paciente de 55 anos, sexo masculino, encaminhado ao ambulatório de doenças externas oculares da Fundação de Ciência e Pesquisa Maria Ione Xerez Vasconcelos (Fortaleza - Ceará). O paciente apresentava histórico de ceratite infecciosa de provável etiologia clínica fúngica com queixa de dor, baixa acuidade visual (BAV) e hiperemia em olho direito (OD) há cerca de 30 dias. A pacente relatou o uso de moxifloxacina colírio (5mg/ml) de 2/2 horas, natamicina colírio à 5% de 2/2 horas e cetoconazol oral 400mg/dia.
Na primeira consulta, foi realizada a coleta do raspado da lesão; e, devido à evolução clínica mais arrastada, foi mantida a hipótese de infecção fúngica, tendo sido prescrito moxifloxacina colírio (5mg/ml) de 3/3 horas, anfotericina B colírio 0,15% 1/1 hora e cetoconazol oral 400mg/dia. O paciente evoluiu com piora progressiva (Figura 1a), e foi submetido à ceratoplastia penetrante terapêutica. Na cirurgia, foi retirado todo o tecido visivelmente infectado (Figura 1b) e realizada lavagem de câmara anterior com iodopovidona 0,5%. Como todo transplante de urgência, o tecido retirado foi enviado ao Banco de Olhos do Hospital Geral de Fortaleza para exame histopatológico e submissão ao preparo de rotina. Os botões corneanos, uma vez já fixados em formol neutro a 10% no centro cirúrgico, foram encaminhados para o setor de Anatomia Patológica e recortados. A inclusão foi feita em parafina, com cortes subsequentes de 2µm, e a coloração realizada com Hematoxilina-eosina. Para afastar dúvidas sobre a confirmação do diagnóstico de ceratite fúngica, foram realizadas as colorações PAS (Periodic Acid of Schiff reaction), prata metanamina e reação de Gomori. Após o preparo, os tecidos foram examinados em microscópio óptico pelos autores.
Evolução clínica da ceratite fúngica inicial e da sua recorrência após ceratoplastia penetrante terapêutica no caso 1. a: Aspecto clínico de ceratite fúngica que evoluiu com piora progressiva apesar de tratamento clínico; b: Aspecto em pós-operatório imediato de ceratoplastia penetrante terapêutica demonstrando que todo tecido visivelmente infectado havia sido retirado; c: Recidiva da infecção em pós-operatório, após deterioração progressiva do quadro clínico; d: Enxerto transparente e sem sinais de recidiva da infecção em cerca de dois meses de acompanhamento após a segunda ceratoplastia penetrante terapêutica
No pós-operatório imediato foi prescrito gatifloxacina colírio 0,3% de 2/2 horas, anfotericina B 0,15% de 1/1 hora, acetato de prednisolona colírio 1% de 3/3 horas, cetoconazol oral 400mg/dia e prednisona oral 40mg/dia. No primeiro dia de pós-operatório (1º DPO), paciente estava bem e sem sinais de recidiva. Neste intervalo, havia trazido o resultado da pesquisa direta que evidenciava hifas septadas. No 3o DPO, no entanto, observamos à biomicroscopia de olho direito, um infiltrado em região temporal superior de enxerto envolvendo também a córnea receptora. Nesse momento, foi suspenso o corticóide oral e reduzido o acetato de prednisolona colírio 1% para 2 vezes/dia. Piorando progressivamente, no 10º DPO (Figura 1c), foi realizada lavagem de câmara anterior com iodopovidona 0,5%. Neste momento, já estava disponível o resultado da cultura, que demonstrou o crescimento de Fusarium sp. Apesar da lavagem de câmara anterior, o quadro clínico continuou piorando, e o paciente foi submetido à nova ceratoplastia terapêutica de urgência, dezesseis dias após a primeira. Mais uma vez, o tecido infectado retirado foi enviado para exame histopatológico. Durante aproximadamente dois meses de acompanhamento, o enxerto manteve-se transparente e sem sinais de recidiva de infecção, apesar de visíveis corectopia e catarata (Figura 1d).
No exame histopatológico do tecido proveniente da primeira ceratoplastia, foram visualizados fungos apenas na forma de leveduras (Figura 2a). A ulceração foi visualizada com uma grande quantidade de fungos na superfície. Ainda nesse mesmo tecido, foram vistas leveduras no interior da Descemet, e leveduras, esporos e células inflamatórias na câmara anterior (Figura 2b).
Achados do exame histopatológico no tecido proveniente da primeira ceratoplastia do caso 1. a. Presença de fungos apenas na forma de leveduras. Leveduras (setas pretas). Esporos (setas vermelhas). (parafina, H.E. – 400x). b. Leveduras no interior da membrana de Descemet (setas pretas). Levedura translúcida (seta verde) e esporos (setas vermelhas) em câmara anterior. (parafina, H.E. – 400x).
No exame histopatológico do tecido proveniente da segunda ceratoplastia, foram evidenciados fungos tanto na forma de hifas quanto de leveduras, em uma quantidade bem maior do que aquela encontrada no tecido da primeira cirurgia (Figura 3a). Nesse segundo tecido, observamos ainda ausência quase total do epitélio, a camada de Bowman e membrana de Descemet íntegras com leveduras e esporos em seu interior (Figuras 3b e 3c).
Achados do exame histopatológico no tecido proveniente da segunda ceratoplastia do caso 1. a. Presença de fungos na forma de hifas e leveduras. Leveduras (setas pretas). Esporos (setas vermelhas). Hifas (setas azuis). Pseudo-hifa (seta laranja). (parafina, H.E. – 500x). b. Camada de Bowman íntegra com leveduras (setas pretas) e esporos (setas vermelhas) em seu interior. (parafina, H.E. – 500x). c. Membrana de Descemet íntegra com leveduras em seu interior (setas pretas). Esporos no interior da Descemet não estão marcados. Em estroma profundo, há uma pseudo-hifa (seta laranja). Em câmara anterior, são visualizadas leveduras (setas pretas). (parafina, H.E. – 500x).
CASO 2
Paciente de 44 anos, sexo masculino, encaminhado ao ambulatório de doenças externas oculares da Fundação de Ciência e Pesquisa Maria Ione Xerez Vasconcelos (Fortaleza - Ceará), com história de ceratite infecciosa de provável etiologia clínica fúngica há cerca de 20 dias. O paciente relatou o uso de natamicina colírio 5% de 3/3h e moxifloxacina colírio (5mg/ml) de 3/3h, sem melhoras. Devido à ausência de resposta ao tratamento clínico, foi encaminhado para ceratoplastia penetrante terapêutica. Na cirurgia, assim como no caso anterior, foi retirado todo o tecido visivelmente infectado e realizada a lavagem de câmara anterior com iodopovidona 0,5%. Como todo transplante de urgência, o tecido infectado retirado foi enviado ao Banco de Olhos do Hospital Geral de Fortaleza para exame histopatológico e submissão ao preparo de rotina. No pós-operatório imediato, foi prescrito natamicina colírio 5% de 1/1 hora, moxifloxacina colírio (5mg/ml) de 2/2 horas e cetoconazol oral 400mg/dia.
No 7º DPO, no entanto, o paciente já apresentava sinais de recidiva da infecção com piora progressiva, apesar da manutenção das medicações. O paciente foi encaminhado para nova ceratoplastia penetrante terapêutica, realizada vinte e oito dias após a primeira. O botão corneano infectado retirado durante a cirurgia foi enviado para o exame histopatológico. No exame histopatológico do tecido proveniente da primeira ceratoplastia, foram evidenciados esporos e leveduras que predominavam principalmente em estroma anterior (Figuras 4a, 4b e 4c). O epitélio estava quase totalmente ausente, e a camada de Bowman encontrava-se íntegra em toda sua extensão (Figuras 4a e 4b). Na câmara anterior, não foi encontrada reação inflamatória nem fungos (Figura 4a). No exame histopatológico do tecido proveniente da segunda ceratoplastia, também foram visualizados esporos e leveduras, predominantes no estroma anterior da córnea (Figura 5a). A camada de Bowman estava íntegra em toda sua extensão; e esporos puderam ser vistos em seu interior (Figura 5b).
Achados do exame histopatológico no tecido proveniente da primeira ceratoplastia do caso 2. a. Camada de Bowman íntegra em toda sua extensão. Presença de leveduras e esporos que predominam em estroma anterior Ausência de reação inflamatória e fungos na câmara anterior. (parafina, H.E. – 125x). b. Camada de Bowman íntegra em toda sua extensão. Presença de leveduras e esporos que predominam em estroma anterior. (parafina, H.E. – 400x). c. Camada de Bowman íntegra em toda sua extensão. Presença de leveduras e esporos que predominam em estroma anterior. (parafina, H.E. – 500x).
Achados do exame histopatológico no tecido proveniente da segunda ceratoplastia do caso 2. a. Presença de esporos e leveduras predominando no estroma anterior da córnea. (parafina, H.E. – 600x). b. Camada de Bowman íntegra em toda sua extensão com esporos em seu interior. Esporos no interior da camada de Bowman (seta vermelha). (parafina, H.E. – 500x).
DISCUSSÃO
No caso 1, ressaltamos três pontos: (1) os resultados positivos do raspado da corneano, apesar de tratamento clínico estabelecido, (2) a discrepância entre os resultados de exames microbiológicos (pesquisa direta e cultura) a partir do raspado corneano e os achados de exame histopatológico e (3) a forma como ocorreu a recidiva da infecção fúngica. No caso 2, também questionamos a maneira como teria ocorrido a recidiva da infecção.
Assim, no caso 1, observamos resultados positivos de pesquisa direta e cultura a partir de raspado de córnea colhido antes da primeira cirurgia, quando o paciente já realizava tratamento com antifúngicos tópico e sistêmico há algum tempo. Propomos como explicação para esse fato, o achado de fungos na superfície ulcerada da lesão no tecido proveniente da primeira cirurgia no exame histopatológico. Sugerimos ainda que se o raspado de úlcera de córnea tivesse sido colhido na lesão recidivada, o resultado seria negativo, pois não encontramos fungos na superfície da lesão no exame histopatológico do tecido proveniente da segunda cirurgia. Esse fato já havia sido observado anteriormente. Monte e Stadtherr, que estudaram ceratites fúngicas por meio de achados de exame histopatológico em casos provenientes de ceratoplastia penetrante terapêutica, observaram fungos na parte superficial da peça em 45% dos casos(16). Uma vez que esses casos eram provenientes de ceratoplastia terapêutica, os mesmos eram, em sua maioria, casos tratados e refratários ao tratamento clínico. Portanto, se neles houvesse sido colhido raspado da lesão para estudos microbiológicos, quase a metade poderia ter evidenciado resultados positivos. Monte e Stadtherr, no entanto, dispunham de escassos dados clínicos dos pacientes para fornecer uma evidência mais exata sobre esse fato(16).
A discrepância entre os resultados de exames microbiológicos (pesquisa direta e cultura) a partir do raspado corneano e os achados de exame histopatológico também foi evidenciada no caso 1. Observamos que o resultado do raspado da lesão, colhido antes da primeira cirurgia, evidenciou fungos na forma filamentosa na pesquisa direta (hifas septadas) e na cultura (Fusarium sp.). O exame histopatológico do tecido da primeira ceratoplastia, no entanto, evidenciou fungos apenas na forma de levedura. Estudos anteriores já haviam sugerido possíveis discrepâncias entre exames microbiológicos e achados histopatológicos em infecções fúngicas(16,17). Monte e Stadtherr, em seu estudo histopatológico, relataram a preponderância de formas leveduriformes, a presença de diversas formas de fungos (hifas, pseudo-hifas e leveduras) bem como micélios na superfície corneana ulcerada. Os autores, então propõe que os fungos, durante a sua penetração na córnea, tomam formas variadas, de modo que as hifas estariam localizadas mais superficialmente, e as leveduras ficariam mais profundamente(16).
Guarner et al. sugerem que a discrepância entre os resultados da cultura e achados de exame histopatológico poderiam ocorrer devido a características morfológicas dos fungos que foram alteradas pelo uso de medicações antifúngicas, ou por respostas do hospedeiro, ou devido à existência de uma dupla infecção e apenas um fungo estar crescendo na cultura(17). Os fungos são classificados, conforme a sua morfologia em: dimórficos, leveduriformes e filamentosos(1). O grupo dimórfico pode apresentar forma filamentosa ou leveduriforme dependendo da temperatura a que está exposto(18). Não acreditamos, porém, estar diante de fungo dimórfico no caso 1, pois identificamos o Fusarium sp, fungo reconhecidamente filamentoso(19)no crescimento em cultura.
Ressaltamos, no entanto, que nosso objetivo no momento não seria tentar justificar essa discrepância, mas sim, demonstrar essa possibilidade. A partir dessa possibilidade, questionamos, então, o atual papel do raspado corneano como guia no tratamento das ceratites fúngicas. O raspado corneano tem sido utilizado para a confirmação laboratorial de ceratite fúngica(7,10,11), que é sugerida antes do início do seu tratamento(20). A forma fúngica encontrada no raspado também tem servido para guiar a escolha da medicação antifúngica a ser utilizada no tratamento. Se o raspado, revela a presença de hifas septadas sugerindo fungos filamentosos, há um consenso geral que natamicina 5% seja a droga de escolha. Quando leveduras ou pseudohifas estão presentes no raspado, é indicado o tratamento com anfotericina tópica 0,15%(20).
Diante da possível diferença entre a forma fúngica encontrada nos resultados de exames microbiológicos provenientes do raspado corneano, e aquela encontrada nos achados de exame histopatológico, sugerimos que o valor do raspado fosse exclusivamente para confirmação da existência de infecção fúngica, e não um guia na escolha da droga a ser utilizada.
Em ambos os casos, questionamos a maneira como pode ter ocorrido a recidiva da infecção fúngica após a ceratoplastia terapêutica. Sugerimos a existência de três vias pelas quais os fungos poderiam ter alcançado o interior da córnea e que teriam contribuído para recidiva da ceratite: (1) via interna, (2) via externa usual, (3) via externa não usual. Como via interna (1), consideramos a penetração do fungo na córnea através da membrana de Descemet, seguindo, assim, do sentido posterior para o anterior no estroma corneano. Como via externa usual (2) chamamos o caminho do fungo pela ulceração, estroma corneano, membrana de Descemet e endotélio até a câmara anterior, via esta já bem reconhecida, e, por isso, chamada, por nós, de usual. A penetração do fungo através da camada de Bowman, seguindo do sentido anterior para o posterior no estroma corneano, por sua vez, seria a via externa não usual (3), para a qual ainda não encontramos descrição na literatura e tentamos exemplificar nos dois casos em questão.
Assim, no caso 1, sugerimos a possibilidade de recidiva da infeção de três modos: via interna, via externa não usual ou associação via interna e via externa não usual. A via interna seria, então, fortalecida pela presença de leveduras e esporos na câmara anterior no exame histopatológico do tecido da primeira cirurgia. Apesar de realizada lavagem de câmara anterior com iodopovidona 0,5%, esporos poderiam ter permanecido na câmara anterior, e o fungo ter penetrado na córnea através da membrana de Descemet. A via externa não usual, por sua vez, seria fortalecida pelo achado de uma camada de Bowman íntegra com leveduras e esporos no seu interior no exame histopatológico da segunda cirurgia. Os fungos teriam penetrado pela camada de Bowman íntegra e seguido até a Descemet por esse caminho, que não é o usual. Consideramos ainda uma possível associação das duas vias nesse caso, pois seria improvável que fungos conseguissem alcançar a camada de Bowman penetrando através da membrana de Descemet, já que esse sentido de movimento contraria aqueles normalmente esperados na penetração dos fungos baseados em quimiotaxia, termotaxia e destruição da matriz extracelular por proteases fúngicas conforme cita Hua et al.(21).
No caso 2, sugerimos uma provável recidiva apenas pela via externa não usual. O achado da camada de Bowman íntegra com fungos (esporos) no seu interior, semelhante ao encontrado no caso 1, estava presente no exame histopatológico do tecido proveniente da segunda ceratoplastia do caso 2. Isto fortaleceu a possibilidade de recidiva via externa do tipo a que chamamos de não usual. A ausência de fungos no interior da câmara anterior no tecido da primeira cirurgia e a presença de fungos predominando no estroma anterior no tecido da segunda cirurgia também subsidiam a hipótese de recidiva através de via externa não usual.
O achado de uma camada de Bowman íntegra com fungos no seu interior no exame histopatológico das ceratites fúngicas é por nós considerado inesperado. Encontramos relatos na literatura de camada de Bowman íntegra no exame histopatológico de casos de ceratite fúngica, no entanto, não foram descritos fungos no seu interior, e detalhes não foram fornecidos sobre esses casos(12). Na verdade, achados histopatológicos normalmente esperados nas ceratites fúngicas seriam perda do epitélio, da camada de Bowman e de quantidades variáveis de estroma ou abscesso estromal profundo(20). Estamos cientes de que o epitélio pode estar cicatrizado em casos onde há proliferação ativa do fungo no estroma profundo(22), mas, mesmo nesses casos, uma camada de Bowman íntegra não seria um achado esperado. Os fungos são agentes oportunistas de infecção que se tornam patogênicos sob condições de defesas imunes prejudicadas, e infecção fúngica não é usual na ausência de fatores precipitantes.
Trauma é um fator de risco reconhecido para ceratites fúngicas(5,7,10,23), e leva a destruição do epitélio e da membrana de Bowman, prejudicando a barreira à infecção(20). Nos dois casos em questão, observamos, no entanto, recidiva de infecção fúngica com a reconhecida barreira da camada de Bowman íntegra, no interior da qual flagramos a presença de fungo. Sugerimos então, a existência de outros fatores que teriam facilitado a penetração do fungo por essa barreira. Observamos na história dos dois pacientes, que os mesmos fizeram uso de medicações tópicas e/ou sistêmicas por longo período antes e/ou depois da primeira cirurgia. No caso 1, observamos que além do uso de antibiótico tópico e antifúngico tópico e sistêmico, foi feito o uso de corticosteróides tópicos e sistêmicos após a primeira cirurgia. O caso 2 fez uso de antibiótico tópico e antifúngicos tópicos e sistêmicos após a primeira cirurgia. Propomos então que o uso de medicações poderia ter facilitado a penetração do fungo através da camada de Bowman, e o achado dessa membrana íntegra poderia significar o sinal de uma possível infecção oportunista facilitada pelo uso excessivo de medicações. A possibilidade de infecções corneanas oportunistas facilitadas pelo uso de medicações encontra respaldo na literatura. A microbiota da conjuntiva de olhos normais foi estabelecida no início do século XIX(24). Estudos sobre a microbiota da conjuntiva normal destacam a participação das bactérias Staphylococcus sp. coagulase negativa, Staphylococcus sp. coagulase positiva e Corynebacterium sp. como microorganismos mais frequentes(25). No Brasil, os isolamentos de fungos na conjuntiva sadia variam de 0%26 a 72%(27). A microbiota conjuntival pode ser fonte de processos infecciosos quando o equilíbrio entre os processos de defesa está rompido(28).
Mudanças na flora ocular normal têm sido sugeridas pelo uso de antibióticos tópicos(29-31). Os corticosteróides e alguns antibióticos(32) são os dois tipos de agentes terapêuticos mais frequentemente suspeitos de potencialização de infecções oculares micóticas. Aumentos na incidência de ceratites fúngicas também vêm sendo atribuídos ao uso indiscriminado de corticosteróides(8,33,34) e antibióticos de amplo espectro(8). Assim, diante da possibilidade, nos casos estudados, de recorrência de ceratite fúngica devido à infecção oportunista facilitada pelo uso de medicações como corticosteróides ou antibióticos, sugerimos que as mesmas sejam utilizadas com cautela nos pós-operatórios de ceratites fúngicas quando tratadas com ceratoplastia terapêutica.
Finalmente, por meio do estudo dos dois casos de ceratite fúngica relatados, que recidivaram após ceratoplastia penetrante terapêutica, descrevemos os achados histopatológicos, demonstramos que o raspado corneano para exames microbiológicos pode ser colhido mesmo após o tratamento medicamentoso estar estabelecido e que exames microbiológicos podem evidenciar fungos em formas diferentes daquelas encontradas no histopatológico. Além disso, sugerimos a possibilidade de recidiva das ceratites fúngicas após transplante de córnea terapêutico por meio de infecção oportunista facilitada pelo uso excessivo de medicações no pré e pós-operatório, o que nos leva a alertar os oftalmologistas sobre a necessidade de uso ponderado de medicações durante os tratamentos pré e pós-cirúrgicos desse tipo de infecção corneana.
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Instituição onde o trabalho foi realizado: Banco de Olhos do Hospital Geral de Fortaleza
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Mar-Apr 2016
Histórico
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Recebido
26 Dez 2014 -
Aceito
01 Dez 2015