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Síndrome de Wolfram - Diagnóstico clínico de condição rara multissistêmica

Resumo

A Síndrome de Wolfram consiste em uma patologia neurodegenerativa de caráter genético, também conhecida pela sigla DIDMOAD que traduz os principais achados dessa doença, Diabetes Insipidus, Diabetes Mellitus, Atrofia Óptica e Surdez. O artigo visa relatar ocaso de um paciente diagnosticado clinicamente com essa síndrome em um ambulatório geral de oftalmologia. Tendo em vistaque os pacientes portadores dessa alteração genética apresentam mais de um par craniano afetado e quadro clínico sem históricode meningite ou outras alterações neurológicas, tem-se que pensar em alterações raras, como é o caso dessa síndrome. A partir dodiagnóstico, aplicou-se o questionário WRUS em consulta, o qual permitiu a comparação do paciente abordado com dados obtidosinternacionalmente disponíveis na literatura.

Descritores:
Síndrome de Wolfram/diagnóstico; Atrofia óptica; Diabetes mellitus; Acuidade visual

Abstract

Wolfram Syndrome consists of a neurodegenerative pathology of genetic character, also known by the acronym DIDMOAD that translates the main findings of this disease, Diabetes Insipidus, Diabetes Mellitus, Optic Atrophy and Deafness. The article report the case of a patient diagnosed clinically with this syndrome in a general ophthalmology out patient clinic. Considering that patients with this genetic alteration have more than one cranial nerve affected by the disease and clinical history without meningitis or other neurological alterations, one has to think about rare alterations, as is the case with this syndrome. From the diagnosis, the WRUS questionnaire was applied in consultation, which all owed the comparation of the patient with concepts obtained internationally available in the literature.

Keywords:
Wolfram syndrome/diagnosis; Optic atrophy; Diabetes mellitus; Visual acuity

Introdução

A Síndrome de Wolfram (SW) foi descrita em 1938 pela primeira vez por Wolfram e Wagener. Os pesquisadores a classificaram como uma síndrome de caráter hereditário caracterizada pela presença de diabetes mellitus e atrofia óptica, ambas adquiridas no início da vida. As descrições subsequentes adicionaram diabetes insipidus e surdez à síndrome, as quais se desenvolvem em aproximadamente 73 e 62% dos doentes, respectivamente.(11 Hilson JB, Merchant SN, Adams JC, Joseph JT. Wolfram syndrome: a clinicopathologic correlation. Acta Neuropathol. 2009;118(3):415-28.)

Diante disso, patologia também foi nomeada DIDMOAD, iniciais dos principais achados clínicos, sendo eles diabetes insipidus, diabetes mellitus, atrofia óptica e surdez.(22 Li M, Liu J, Yi H, Xu L, Zhong X, Peng F. A novel mutation of WFS1 gene in a Chinese patient with Wolfram syndrome: a case report. BMC Pediatr. 2018 ;18(1):116.) A atrofia óptica e diabetes mellitus são considerados critérios diagnósticos mínimos.(33 Karzon R, Narayanan A, Chen L, Lieu JE, Hershey T. Longitudinal hearing loss in Wolfram syndrome. Orphanet J Rare Dis. 2018 ;13(1):102.)

Na Síndrome, a perda da acuidade visual corriqueiramente se define como uma perda simétrica de alta frequência, com uma progressão degenerativa relativamente lenta que surge na segunda ou terceira década de vida.(22 Li M, Liu J, Yi H, Xu L, Zhong X, Peng F. A novel mutation of WFS1 gene in a Chinese patient with Wolfram syndrome: a case report. BMC Pediatr. 2018 ;18(1):116.) Já o diabetes mellitus evolui lentamente com menor número de complicações, como alterações microvasculares, cetoacidose diabética e oscilação da glicemia, quando comparado a pacientes portadores de diabetes tipo 1 por outra etiologia. A perda auditiva tende a ser lentamente progressiva e afeta principalmente as altas frequências, entre 250 e 2000 Hz, resultando em diagnósticos tardios.(44 Rivas-Gómez B, Reza-Albarrean A. Diabetes mellitus y atrofia? ptica: est?dio del s?ndrome de Wolfram. Gac Med Mex. 2017;153(4):466-72.)

A SW se traduz em uma desregulação na homeostasia do cálcio no Retículo Endoplasmático (RE), o qual realiza o armazenamento desse íon e é capaz de identificar conformações proteicas anormais e encaminhá-las para a degradação. Entretanto, por mutações genéticas autossômicas recessivas, o RE perde essa capacidade e passa a acumular proteínas aberrantes, o que desencadeia uma resposta ao estresse, levando à apoptose de células neuronais e células beta pancreáticas, sendo responsável pelas alterações clínicas vistas nessa síndrome. Portanto, a SW acaba integrando um aspecto mitocondrial secundário.(55 Delprat B, Maurice T, Delettre C. Wolfram syndrome: MAMs' connection? Cell Death Dis. 2018;9(3):364.)

Sendo essa uma síndrome de raridade considerável, com diversidade fenotípica associada a sintomas que por si só fecham diagnósticos de patologias específicas, o objetivo deste presente relato é ilustrar uma apresentação clínica da SW, a fim de aprimorar seu diagnóstico.

Caso Clínico

Paciente K.Z.C., sexo masculino, 13 anos, relata baixa acuidade visual há cinco anos com piora progressiva, intensificando-se há um ano, fazendo com que o mesmo chegasse a fazer uso de lupa em ambiente escolar, apesar da correção óptica no início dos sintomas através do uso de lentes corretoras. Como história pregressa relatou diabetes mellitus insulinodependente há cerca de quatro anos, assim como hipoacusia e daltonismo. K.Z.C. não apresentou intercorrências durante o nascimento que ocorreu por meio de parto cesárea com 38 semanas, assim como, não possui antecedentes familiares positivos. Não apresenta, até então, retardo no desenvolvimento neuropsicomotor ou história prévia de doenças neurológicas.

Em exames laboratoriais solicitados: Hemoglobina glicada: 7,6%, os demais - Vitamina B12, Cobre Sérico e Magnésio, se encontravam dentro dos limites da normalidade, descartando outros possíveis distúrbios metabólicos.

Ao exame oftalmológico notou-se acuidade visual: 20/80 em ambos os olhos (AO) com correção. Tonometria 13/12 mmHg. Fundo de olho: raros microaneurismas e palidez do nervo óptico AO (Figura 1). Ectoscopia e motilidade ocular sem alterações.

Figura 1
Fundoscopia demonstrando palidez do nervo óptico AO e microaneurismas

Exame físico neurológico: ramo coclear do VIII par craniano (Vestibulococlear) comprometido. Coordenação, equilíbrio, sensibilidade, força, marcha e reflexos superficiais e profundos sem alterações.

O paciente havia sido submetido em outro serviço ao exame de Angiografia Ocular e de Tomografia de Coerência Óptica (OCT) há dois anos, os quais se mostraram sem alterações.

Diante disso, na primeira impressão diagnóstica, inferiu-se o quadro de distrofia retiniana e distúrbio metabólico. A conduta foi solicitação de uma nova OCT (Figura 2), compatível com perdas na camada de fibras ópticas (NFL).

Figura 2
OCT comprovando perdas na camada de fibras nervosas AO.

Ainda, solicitou-se nova OCT realizada através do aparelho Spectralis Heidelberg® com protocolo de escaneamento para a camada de fibras nervosas (NFL), que demonstrou camada de células ganglionares preservada e perda da camada de fibras nervosas nos quatro quadrantes em AO, com escavação normal (Figura 3).

Figura 3
OCT representando escavação normal em AO.

A conduta final adotada foi a solicitação de exame genético visando a pesquisa de mutações no gene WFS1 pela técnica de sequenciamento. As análises realizadas no referido teste identificaram duas variantes possivelmente patogênicas para a SW, em heterozigose, no éxon 8 do gene WFS1. O paciente segue em acompanhamento em ambulatório especializado em visão subnormal.

Discussão

Dentro das atrofias ópticas hereditárias há um grupo heterogêneo de doenças descritas por atrofia óptica bilateral, sendo que as principais são: Atrofia Óptica do tipo Kjer, Síndrome de Behr e SW. Esta última, apresenta hereditariedade autossômica recessiva, apresentação entre 5 e 21 anos de idade, atrofia óptica difusa e grave e anormalidades sistêmicas além de DIDMOAD, como baixa estatura,(66 Kanski JJ, Bowling B. Oftalmologia clínica. 8a ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2016.) sendo todos esses itens encontrados no paciente em questão.

A SW é considerada uma doença rara de caráter neurodegenerativo que está intimamente ligado a alterações genéticas,(77 Bessahraoui M, Paquis V, Rouzier C, Bouziane-Nedjadi K, Naceur M, Niar S, et al. [Familial Wolfram syndrome]. Arch Pediatr. 2014;21(11):1229-32. French.) a sua incidência é de 1 caso em 770.000 avaliados da população geral.(88 Nguyen C, Foster ER, Paciorkowski AR, Viehoever A, Considine C, Bondurant A, et al.; Washington University Wolfram Study Group. Reliability and validity of the Wolfram Unified Rating Scale (WURS). Orphanet J Rare Dis. 2012;7:89.)

O diagnóstico da SW é clínico, utilizando análise mutacional através de exames genéticos para fortalecer a conclusão clínica. Os critérios mínimos para o diagnóstico são: Diabetes mellitus (DM) e atrofia óptica, ambos com início antes dos 15 anos, com valor preditivo positivo de 83% e negativo de 1%.(44 Rivas-Gómez B, Reza-Albarrean A. Diabetes mellitus y atrofia? ptica: est?dio del s?ndrome de Wolfram. Gac Med Mex. 2017;153(4):466-72.)

Os sintomas da patologia estão correlacionados com a média de idade dos pacientes, o diabetes mellitus surge aos 6 anos, enquanto a atrofia óptica é evidenciada a partir dos 11 anos de idade. A surdez surge aos 15 em sua maioria, sendo que aos 30 anos cerca de 65% dos pacientes já portarão esta deficiência.(99 Urano F. Wolfram syndrome: diagnosis, management, and treatment. Curr Diab Rep. 2016;16(1):6.)

Apesar de o paciente do estudo ser portador de diabetes mellitus, a papilite diabética não se enquadra no caso, uma vez que esta se caracteriza por telangectasias na superfície da papila ou por disfunção do nervo óptico discreta, (66 Kanski JJ, Bowling B. Oftalmologia clínica. 8a ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2016.) no entanto o paciente apresentava apenas palidez no nervo óptico.

A imagem característica em pacientes com perda da camada de fibras nervosas consiste em margens do disco óptico bem definidas, diminuição de fibras na retina que assume um padrão mosqueado, pequenos vasos indefinidos e detalhes da retina incompreensíveis. A perda difusa das fibras retiniadas são de difícil percepção, especialmente quando bilaterais, (1010 Monteiro ML. Avaliação da camada de fibras nervosas da retina nas afecções neuroftalmológicas da via óptica anterior. Rev Bras Oftalmol. 2012;71(2).) quadro compatível ao paciente abordado.

O prognóstico da síndrome é reservado em decorrência da maioria dos pacientes morrerem de forma prematura com deficiências neurológicas graves. Até o presente momento, nenhum tratamento está disponível. A expectativa de vida média para esses pacientes é de 35 anos.(55 Delprat B, Maurice T, Delettre C. Wolfram syndrome: MAMs' connection? Cell Death Dis. 2018;9(3):364.)

No paciente em questão, foi aplicado a escala WURS (Wolfram Unified Rating Scale), um método para avaliar de forma individual a gravidade e a diversidade de sintomas da SW, com foco nos distúrbios neurodegenerativos previamente conhecidos, permitindo uma medição confiável e válida da gravidade do caso. Com isso é possível avaliar a evolução da doença e estabelecer a intervenção mais adequada para cada paciente. A WURS mostra seu valor preditivo relevante ao conseguir quantificar e qualificar a qualidade de vida dos pacientes, sendo esse parâmetro considerado como o quesito mais relevante para ensaios clínicos, segundo a Food and Drug Administration (FDA).(88 Nguyen C, Foster ER, Paciorkowski AR, Viehoever A, Considine C, Bondurant A, et al.; Washington University Wolfram Study Group. Reliability and validity of the Wolfram Unified Rating Scale (WURS). Orphanet J Rare Dis. 2012;7:89.)

A escala é constituída por uma avaliação comportamental e por uma física, sendo a última composta de duas partes, uma delas requer a avaliação de um médico e a outra requer a avaliação dos próprios pais (Tabela 1).(88 Nguyen C, Foster ER, Paciorkowski AR, Viehoever A, Considine C, Bondurant A, et al.; Washington University Wolfram Study Group. Reliability and validity of the Wolfram Unified Rating Scale (WURS). Orphanet J Rare Dis. 2012;7:89.)

Tabela 1
Domínios e Itens do WURS para avaliações físicas e comportamentais

Cada item do domínio físico ganha uma pontuação de 0 - 4, sendo zero correspondente a ausência de sintomas e quatro, presença dos sintomas com a maior gravidade. Já no domínio comportamental a pontuação vai de 0 - 3, seguindo a mesma linha de raciocínio, sendo zero um comportamento normal e três, presença de distúrbio de maior gravidade. Assim, desenvolveu-se uma mediana, desvio padrão e intervalo de pontuação no WURS de acordo com estudo feito com 12 participantes. (88 Nguyen C, Foster ER, Paciorkowski AR, Viehoever A, Considine C, Bondurant A, et al.; Washington University Wolfram Study Group. Reliability and validity of the Wolfram Unified Rating Scale (WURS). Orphanet J Rare Dis. 2012;7:89.) Esses valores estão representados na tabela 2, juntamente com os valores encontrados para o paciente em questão.

Tabela 2
Comparativo entre valores encontrados na escala WURS para o paciente estudado e dados encontrados na literatura

A pontuação do paciente nessa escala foi calculada a partir do domínio físico, primeiramente com a baixa acuidade visual de 20/80 em AO vista em primeira consulta, sem correção óptica, representando alto impacto na vida do paciente, permitindo a soma de 3 pontos. Além disso, a hipoacusia apresentada foi considerada, sendo esta de pequena intensidade, somando apenas 1 ponto. Por fim, quanto ao domínio comportamental foi atribuído 1 ponto para comportamentos estereotipados/ repetitivos, os quais estavam presentes no paciente em mãos com movimentos circulares, porém eram esporádicos e controláveis. Sendo assim, a soma final representou 4 pontos.

Salientamos com esse relato a importância do conhecimento clínico geral ao especialista, com uma abordagem do paciente como um todo, pois o mesmo já havia sido consultado e acompanhado por outras três especialidades (pediatria, otorrinolaringologia e endocrinologia) que abordaram apenas patologias isoladas, retardando o diagnóstico definitivo.

  • Instituição onde o trabalho foi realizado: Centro Universitário Assis Gurgacz, Cascavel, PR, Brasil.

Referências

  • 1
    Hilson JB, Merchant SN, Adams JC, Joseph JT. Wolfram syndrome: a clinicopathologic correlation. Acta Neuropathol. 2009;118(3):415-28.
  • 2
    Li M, Liu J, Yi H, Xu L, Zhong X, Peng F. A novel mutation of WFS1 gene in a Chinese patient with Wolfram syndrome: a case report. BMC Pediatr. 2018 ;18(1):116.
  • 3
    Karzon R, Narayanan A, Chen L, Lieu JE, Hershey T. Longitudinal hearing loss in Wolfram syndrome. Orphanet J Rare Dis. 2018 ;13(1):102.
  • 4
    Rivas-Gómez B, Reza-Albarrean A. Diabetes mellitus y atrofia? ptica: est?dio del s?ndrome de Wolfram. Gac Med Mex. 2017;153(4):466-72.
  • 5
    Delprat B, Maurice T, Delettre C. Wolfram syndrome: MAMs' connection? Cell Death Dis. 2018;9(3):364.
  • 6
    Kanski JJ, Bowling B. Oftalmologia clínica. 8a ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2016.
  • 7
    Bessahraoui M, Paquis V, Rouzier C, Bouziane-Nedjadi K, Naceur M, Niar S, et al. [Familial Wolfram syndrome]. Arch Pediatr. 2014;21(11):1229-32. French.
  • 8
    Nguyen C, Foster ER, Paciorkowski AR, Viehoever A, Considine C, Bondurant A, et al.; Washington University Wolfram Study Group. Reliability and validity of the Wolfram Unified Rating Scale (WURS). Orphanet J Rare Dis. 2012;7:89.
  • 9
    Urano F. Wolfram syndrome: diagnosis, management, and treatment. Curr Diab Rep. 2016;16(1):6.
  • 10
    Monteiro ML. Avaliação da camada de fibras nervosas da retina nas afecções neuroftalmológicas da via óptica anterior. Rev Bras Oftalmol. 2012;71(2).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2019
  • Aceito
    28 Jun 2019
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