Resumo
Apresentamos um caso de neurosífilis em um homem jovem, com queixa de baixa acuidade visual (BAV) em olho esquerdo. Cursou com lesões eritemato-descamativas nas palmas das mãos, plantas dos pés e úlceras orais, sem lesões genitais. O exame oftalmológico revelou arterite em arcada nasal superior no olho afetado. Apresentou VDRL (1:4096) e FTA-Abs positivos. O exame do líquor cefalorraquidiano foi negativo. O tratamento foi realizado com ceftriaxona 2g/ dia por 14 dias, associado à prednisona 0,5mg/kg oral 48h após início do antibiótico. Após 15 dias de tratamento, houve melhora da AV, regressão da vasculite e redução da titulação do VDRL para 1:128.
Descritores: Vasculite; Sífilis; Neurosifilis; Uveíte; Treponema pallidum; Ceftriaxona
Abstract
We present a case of neurosyphilis in a young man with a complaint of low visual acuity in the left eye. He had erythematous-scaly lesions on the palms of the hands, soles of the feet and oral ulcers, without genital lesions. The ophthalmic examination revealed arteritis in the upper nasal arcade in the affected eye. He presented VDRL (1: 4096) and FTA-Abs positive. The cerebrospinal fluid cerebrospinal fluid test was negative. The treatment was performed with ceftriaxone 2g / day for 14 days, associated with prednisone 0.5mg / kg oral 48h after antibiotic onset. After 15 days of treatment, there was improvement of AV, regression of vasculitis and reduction of VDRL titration to 1: 128.
Keywords: Vasculitis; Syphilis; Neurosyphilis; Uveitis; Treponema pallidum; Ceftriaxone
Introdução
A sífilis é uma importante doença de transmissão sexual, causada pela infecção pelo Treponema pallidum. (1-3) Pode ser classificada em precoce, que inclui a sífilis primária, secundária e latente precoce ou em tardia, também conhecida como sífilis terciária ou neurossífilis. A maioria dos casos de sífilis ocular ocorre no contexto da sífilis terciária. (3-5)
A sífilis ocular é responsável por aproximadamente 0,1% dos atendimentos gerais na oftalmologia e 2,5% de todos os casos de uveíte relatados em serviço de referência para inflamação ocular. (6) Com a ascendência do número de casos desde 2010, é possível que estes dados estejam subestimados. (7) A uveíte é observada em 0,6%-2,0% pacientes com sífilis em qualquer estágio e até 9% em pacientes co-infectado com sífilis e HIV.(4)
As principais manifestações oculares da sífilis, em ordem de prevalência incluem: retinite, vitreíte, uveíte anterior, neuropatia óptica, vasculite, edema macular, hemorragia retiniana, descolamento de retina e esclerite. (2,3,6,8) A uveíte causada pela sífilis pode se manifestar como uveíte anterior, posterior ou panuveíte.(4) Para alguns autores, a vasculite tem alta incidência.(7)
Não havendo apresentação ocular típica, a sífilis pode ser incluída no diagnóstico diferencial de qualquer forma de inflamação ocular,(6) sendo importante incluir a pesquisa de sífilis nos testes laboratoriais de rotina em todos pacientes com inflamação ocular (4).
A sífilis ocular associada à vasculite, vitreíte ou uveíte anterior parece ser um fenômeno reversível que responde bem ao tratamento antibiótico apropriado, resultando em melhora na acuidade visual.(6) Portanto, o tratamento precoce garante um bom prognóstico visual, enquanto o atraso na terapia aumenta o risco de recaída subsequente. (4,6)
Em 2015 houve um desabastecimento de penicilinas, em especial a penicilina benzatina, em decorrência da falta de matéria-prima específica para sua produção no mercado global. Por esta razão, o Ministério da Saúde recomendou como tratamento alternativo para sífilis terciária a ceftriaxona intravenosa ou intramuscular. (9) Este artigo descreve um caso de arterite sifilítica ocular tratada com ceftriaxiona com boa resposta clínica.
Relato de caso
DCS, masculino, 38 anos, branco, previamente hígido, encaminhado ao setor de uveíte do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com queixa de baixa acuidade visual (BAV) em olho direito (OD) há 1 semana. O paciente estava em uso de acetato de prednisolona 1% e tropicamida 1% tópico e anti-inflamatório não esteroidal oral sem melhora do quadro. Ao exame físico geral, apresentava lesões eritemato-descamativas em palma das mãos e planta dos pés, lesões ulceradas em mucosa oral (Figura 1) e negava lesões genitais.
Lesões eritemato-descamativas em palma de mãos e planta de pés, e lesões ulceradas em mucosa oral, respectivamente.
Ao exame oftalmológico, apresentou acuidade visual (AV) igual a 20/30, biomicroscopia do segmento anterior com celularidade 3+/4+ e células em vítreo anterior, e fundoscopia com vitreíte 1+/4+ e vasculite em arcada nasal superior em OD. O exame do olho esquerdo (OE) não apresentou alterações ao exame oftalmológico. (Figuras 2 e 3) A tonometria de aplanação foi igual a 08 mmhg em OD e 12 mmhg em OE.
Retinografia demonstrando vitreíte e arterite em arcada nasal superior em olho direito (A e B) e olho esquerdo sem alterações (C).
Angiografia fluoresceínica: Olho direito (A e B) corroborando com achado de vasculite na retinografia. Olho esquerdo (C) sem alterações.
Foram solicitadas sorologias para herpes simples, HIV, citomegalovírus, toxoplasmose e sífilis. Foi encontrado positividade somente para VDRL com titulação de 1:4096 e para FTA-ABS IgG, com negatividade para FTA-ABS IgM. A análise do líquor cefalorraquidiano (LCR) demonstrou aspecto, citologia, nível proteico e de glicose dentro da normalidade, com VDRL, HBSAg, HBc, HBcIgM, HBsAg e HCV não reativos.
Após internação hospitalar, paciente foi tratado com ceftriaxona 2g/dia endovenosa por 14 dias, associada à prednisona 0,5mg/kg/dia oral 48h após início da antibioticoterapia..
Após 15 dias de tratamento, houve melhora da AV para 20/25 em OD, melhora da celularidade em câmara anterior, regressão da vasculite, aparecimento de leve borramento nasal em disco óptico, manutenção da vitreíte de 1+/4+ (Figuras 4 e 5) e redução da titulação de VDRL para 1:128. Após esta consulta, paciente perdeu acompanhamento clínico.
Retinografia evidenciando regressão da vasculite, aparecimento de leve borramento nasal em disco óptico, manutenção da vitreíte de 1+/4+ em olho direito (A e B) e, olho esquerdo sem alterações (C).
Angiografia fluoresceínica: Resolução do quadro de vasculite em olho direito (A e B) e, olho esquerdo sem alterações (C).
Discussão
A sífilis ocular costuma ser mais comum em homens, cursando com envolvimento bilateral (6), o que difere do presente relato, no qual houve acometimento unilateral.
Após a quase erradicação com terapia antimicrobiana específica, a incidência de sífilis aumentou em todo o mundo desde os anos 2000.(5) No entanto, 90% dos novos casos de sífilis ocorrem em países em desenvolvimento, (5) de acordo com o aumento da incidência da sífilis no Brasil e no Rio de Janeiro.(7)
Devido à grande diversidade de apresentações clínicas da sífilis ocular, (10,11) é importante reiterar a inclusão da sífilis como diagnóstico diferencial para qualquer forma de inflamação ocular, (6,5,12) especialmente uveíte posterior e neuropatia óptica.(5)
Dados epidemiológicos indicam que a sífilis e a infecção pelo HIV aumentam a mimetização com a doença de Behçet. Os pacientes que apresentam uveíte, úlceras orais e genitais podem ser facilmente diagnosticados com a doença de Behçet, como demonstrado por Wand Y et al em caso de jovens, do sexo masculino, com uveíte aguda e história de úlceras orais e genitais recorrentes, sendo equivocadamente diagnosticado com doença de Behçet.(13) Diante das uveítes infecciosas, de transmissão sexual, é importante a sorologia para outras doenças sexualmente transmissíveis, principalmente o HIV. Neste caso, a sorologia para HIV foi negativa.
A avaliação do LCR em pacientes com sífilis ocular é de extrema importância pois pode se observar frequentemente pleocitose e aumento da concentração proteica. A pleocitose, quando presente em co-infectados pelo HIV, aumentam desafios na avaliação das duas doenças, e pode estar presente na infecção por sífilis isolada.(1) No paciente relatado, foi realizado a coleta do líquor, entretanto, este encontrava-se com celularidade dentro da normalidade.
Considera-se a positividade de VDRL no LCR como padrão ouro no diagnóstico, apresentando boa especificidade com sensibilidade limitada. Outros testes do líquor podem ser realizados, e incluem ensaios sorológicos: FTA-Abs, ensaio de hemaglutinação do Treponema pallidum e ensaios moleculares como PCR.(1) No caso relatado, não houve positividade do VDRL no LCR apesar da alta titulação sanguínea. Porém, devido a alta especificidade (99,13%) e baixa sensibilidade (30-70%) do VDRL no líquido cefalorraquidiano, resultados falso-negativos são comuns, desta forma, um VDRL negativo no líquor não pode excluir o diagnóstico.(14)
A uveíte sifilítica é uma das poucas entidades oculares que podem ser curadas com terapia antimicrobiana apropriada.(5) Como o olho é uma extensão do sistema nervoso central, recomenda-se que a sífilis ocular seja tratada como neurossífilis.(5) Sendo assim, o tratamento padrão ouro é a penicilina cristalina. Entretanto, devido ao desabastecimento desta medicação no Brasil na ocasião, foi utilizada ceftriaxona, apesar deste regime terapêutico não ser considerado critério de cura.(7) A escolha da medicação ocorreu unicamente devido indisponibilidade da droga de primeira linha e não teve relação com período de contágio.
Para o controle de cura da sífilis, o VDRL deve ser negativado em 25% após tratamento com penicilina, e este deve ser acompanhado por 1 ano na sífilis primária, 2 anos na secundária, e 5 anos na terciária. No caso do paciente HIV positivo, a titulação do VDRL pode manter-se positiva mesmo com cura da infecção.(7)
Foram encontrados na literatura, estudos evidenciando a eficácia no uso da ceftriaxona como alternativa ao tratamento com penicilina G para neurossífilis, como demonstrado por Agostini et al. em um estudo com 12 pacientes. (15)
O uso associado com corticoide é controverso, porém alguns autores sugerem terapia combinada nos casos mais severos e inflamação persistente (4). Quando apropriadamente tratado, os sintomas passam a ser temporários (5,6). No presente relato, foi realizada terapia combinada com corticoide oral em dose anti-inflamatória, o que pareceu favorecer a melhora da inflamação ocular em um curto período.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Jun 2020 -
Data do Fascículo
Mar-Apr 2020
Histórico
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Recebido
17 Abr 2019 -
Aceito
24 Ago 2019