Open-access Deficiência visual em crianças de Ensino Fundamental: extensão universitária e saúde pública

Visual impairment in scholars: extension programs and public health

RESUMO

Objetivo:  Conhecer a prevalência da deficiência visual em crianças de escolas públicas pré-selecionadas, bem como analisá-la e intervir nela.

Métodos:  O estudo foi realizado em quatro etapas. Durante a primeira e segunda etapa, houve capacitação de profissionais escolares e discentes de medicina em triagem visual para, em um terceiro momento, esses realizarem a acuidade visual de crianças dos primeiros anos do Ensino Fundamental. As crianças com alteração de acuidade receberam encaminhamento oftalmológico para diagnóstico e intervenção.

Resultados:  Das 450 crianças triadas, 64 (14,22%) foram encaminhadas para exame oftalmológico completo, das quais 52 (81,25%) compareceram à consulta. Destas, 37 (71,1%) apresentaram erros refrativos como principal causa da deficiência visual. Dezenove (51,35%) foram diagnosticadas com miopia, 9 (17,3%) com hipermetropia e 9 (17,3%) com astigmatismo, sendo encaminhadas e orientadas ao seguimento oftalmológico.

Conclusão:  A prevalência de erros refrativos na população infantil de escolas públicas municipais foi a principal causa de deficiência visual.

Descritores: Transtornos da visão; Erros de refração; Prevalência

ABSTRACT

Objective:  To know the prevalence of visual impairment in children from pre-selected public schools, as well as to analyze and intervene in it.

Methods:  The study was conducted in four stages. During the first and second ones, school professionals and medical students were trained in visual screening to perform the visual acuity of children in the first years of Elementary School. Children with altered acuity received ophthalmologic referral for diagnosis and intervention.

Results:  Of the 450 children screened, 64 (14.22%) were referred for complete ophthalmologic examination, of whom 52 (81.25%) attended the consultation. Of these, 37 (71.1%) had refractive errors as the main cause of visual impairment. Nineteen (51.35%) were diagnosed with myopia, 9 (17.3%) with hyperopia, and 9 (17.3%) with astigmatism, who were referred to ophthalmologic follow-up.

Conclusion:  The prevalence of refractive errors in the child population of municipal public schools was the main cause of visual impairment.

Keywords: Vision disorders; Refractive errors; Prevalence

INTRODUÇÃO

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 2,2 bilhões de pessoas no mundo sofrem de algum problema visual; destas, 1 bilhão por causas preveníveis ou tratáveis.(1) Em 2015, divulgou-se que 216,6 milhões de pessoas sofrem de deficiência visual moderada a grave, e 36 milhões são cegas. Mais de 82% das pessoas cegas possuem 50 anos ou mais, contudo, a cegueira infantil merece alta prioridade, devido ao número de anos a serem vividos na cegueira. Estima-se que 500 mil crianças nasçam ou se tornem cegas a cada ano. Em países em desenvolvimento, as causas de cegueira infantil evitáveis chegam a 72% dos casos, sendo o erro refrativo o problema identificado de maior frequência, reforçando a necessidade de atenção a essa faixa etária para uma atuação preventiva de sucesso.(1-4)

A deficiência visual na infância é fator etiológico importante no atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, no baixo desempenho cognitivo e na maior dificuldade de inclusão escolar e social, fazendo-se necessária a abordagem precoce e multimodal dessas crianças.(5,6)

Em 1999, a OMS e a Agência Internacional de Prevenção da Cegueira (IAPB) criaram o programa Vision 2020, em busca da erradicação da cegueira evitável do mundo. Mesmo com enormes avanços, esse objetivo ainda não foi completamente alcançado, e é necessário o esforço de diversas instituições para melhores resultados, como a implementação de projetos de saúde dentro do ambiente escolar que estimulem os professores a repararem nas deficiências visuais e incentivarem a adesão dos devidos tratamentos nesses pacientes.(7-11)

Participação e protagonismo discente

Atualmente, as consultas oftalmológicas representam 9% dos atendimentos e 5% das urgências médicas gerais.(12) A abordagem dessas doenças na Atenção Primária é realizada, muitas vezes, pelo médico clínico recém-formado, entretanto, estudos revelam que eles manifestam um enorme défice no ensino de Oftalmologia durante a graduação, comprometendo a correta abordagem e o prognóstico desses casos,(13,14) o que que se reflete na insegurança dos alunos que já cursaram a disciplina de Oftalmologia, para encaminhar ou atender pacientes com queixas oftalmológicas no pronto atendimento. Cerca de 70% dos alunos formandos não sabem caracterizar corretamente conceitos básicos sobre correção óptica.(15)

O presente artigo visou, em todas suas etapas, a participação e o protagonismo discente, propondo o aprendizado ativo aos alunos, manuseio e aplicação dos aparelhos básico oftalmológicos, para, quando formados, aplicarem esses conhecimentos com a devida maestria e confiança no dia a dia médico e, assim, garantirem o mínimo de saúde ocular à população.

O ensino enriquece o processo ao abranger e instigar a aprendizagem em contínua empatia. Alves(16) escreveu que de nada adianta uma visão perfeita se os olhos da alma forem míopes; assim, evidencia-se, mais uma vez, a necessidade da interação intensa com a população, uma forma de, além da exercitação de diversas habilidades acadêmicas, fomentar nos alunos, por meio do voluntariado, o censo de pertencimento à comunidade, necessitada e, às vezes, esquecida, que financia com louvor os estudos desses futuros profissionais.

Ao egressar do ambiente universitário ao atendimento comunitário, reconhece-se a população no seu ambiente de viver próprio. A percepção do processo do adoecer é algo que extrapola o biológico e permeia todos os aspectos, abstratos e físicos, do universo em que o paciente se insere, fatos esses que exercerão função demasiadamente importante na abordagem, no diagnóstico e no tratamento desses mesmos seres humanos, pertencentes ao coletivo, entretanto, únicos e cheios de individualidades.

Diante desses desafios, oftalmológicos e acadêmicos, o presente estudo objetiva conhecer a prevalência da deficiência visual em crianças de escolas públicas municipais pré-selecionadas, bem como analisá-la e intervir nela.

MÉTODOS

Estudo descritivo transversal com abordagem quantitativa realizada em duas escolas municipais de Bauru e uma escola de Boraceia, ambas no estado de São Paulo, após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (USP).

Buscando alcançar os objetivos, a metodologia foi desenvolvida em quatro etapas.

Etapa 1: Capacitação dos discentes

Essa etapa foi realizada no Centro de Ensino e Capacitação em Saúde (CECS) da Faculdade de Odontologia de Bauru. Esse ambiente conta com inúmeros equipamentos de simulação para desenvolvimento das habilidades necessárias antes da inserção do aluno em campo.

O corpo discente participou de quatro aulas teóricas, ministradas pela docente coordenadora, de forma virtual na plataforma Google Meet, com os seguintes temas: importância da visão para o desenvolvimento neuropsicossocial da criança; abordagem da criança com deficiência visual; epidemiologia das deficiências visuais no escolar; e técnicas para identificação de deficiências visuais no escolar.

Após as aulas, os discentes foram encaminhados para a capacitação prática, na qual foram divididos em grupos de cinco pessoas e receberam treinamento em semiologia e exame físico oftalmológicos; testes de acuidade visual (AV) e manuseio dos equipamentos oftalmológicos básicos. Os alunos treinaram um nos outros em ambiente controlado e sob supervisão docente para validação e aperfeiçoamento das técnicas ministradas.

Etapa 2: Capacitação dos professores

Essa etapa foi realizada no espaço físico das escolas citadas, com a participação de todos os profissionais disponíveis envolvidos com os alunos do primeiro e do segundo ano da escola, como professores, diretores, coordenadores e agentes escolares.

A capacitação foi realizada nas escolas, com todos os profissionais disponíveis e envolvidos com os alunos do primeiro e segundo ano (professores, diretores, coordenadores e agentes escolares) por meio de:

  • Uma aula/palestra de esclarecimento e treinamento das técnicas de triagem ocular, ministrada pelos membros da Liga Acadêmica de Oftalmologia (LAOB), com auxílio de material didático previamente validado pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO).

  • Quatro aulas previamente gravadas e disponibilizada em plataforma de ensino, com os temas: importância da visão no desenvolvimento neuropsicossocial da criança, abordagem ao deficiente visual no ambiente escolar, epidemiologia das deficiências visuais no escolar e técnicas para identificação de deficiências visuais no escolar.

  • Apresentação e discussão de casos clínicos, suas características e conduta esperada dos professores.

A capacitação contemplou aspectos que possam influenciar na saúde ocular da criança, estimulando os professores a buscarem em seus alunos, no cotidiano, comportamentos que indicam dificuldades visuais, a aplicarem teste de avaliação visual, a orientarem os pais e a estimularem o uso de óculos e outras medidas recomendadas pelo oftalmologista, para promover maior adesão ao tratamento e inclusão social da criança com necessidade de tratamento oftalmológico.

Etapa 3: Triagem escolar

A triagem foi realizada no ambiente escolar, seguindo as Diretrizes de Atenção à Saúde Ocular na Infância,(17) de modo individual, em todas as crianças de o primeiro e segundo ano do Ensino Fundamental, cujo consentimento tenha sido fornecido pelos pais ou responsáveis, por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram excluídas da realização do exame apenas as crianças que não apresentaram o TCLE assinado pelos pais ou responsáveis.

A equipe de examinadores foi composta de membros da LAOB da USP após cumprirem a etapa 2, pelos profissionais responsáveis pelas crianças após cumprirem a etapa 1 e pela docente coordenadora do estudo.

Cada aluno foi triado por dois ou mais examinadores, um deles sendo responsável pelo apontamento dos optotipos da tabela de Snellen (ou de figuras, de acordo com a capacidade e alfabetização da criança) fixada na frente da face da criança sentada, à uma distância de 5m e outro examinador responsável pela oclusão ocular. Em sala silenciosa e clara, a avaliação ocorreu inicialmente com ambos os olhos livres, seguido da avaliação de cada olho separadamente, por oclusão. Foi registrada a AV, além de sinais e sintomas que indicassem deficiência visual, por meio da inspeção discreta do olho e seus anexos, para eventual identificação de alterações visíveis. Todos os resultados foram anotados em ficha individual para cada criança e, depois, transcritos no Microsoft Excel®.

Os alunos triados na escola como suspeitos de deficiência visual (quando apresentavam qualquer medida de AV com valor ≤0,7 e/ou outros sinais de possível acometimento visual como estrabismo, ptose, nistagmo, entre outros) compuseram a lista de triados positivos,(18) tiveram seus pais comunicados e o exame oftalmológico agendado, e seguiram para a próxima etapa.

Etapa 4: Exame oftalmológico e vínculo

Essa etapa foi realizada na presença do pai ou responsável, em consultório oftalmológico devidamente equipado no Centro de Especialidades Médicas Municipal (Policlínica) de Bauru e em consultório particular pelo mesmo médico oftalmologista no período de junho de 2022 a junho de 2023, com a realização de exame oftalmológico completo. Além disso, seguiram-se todos os protocolos e as recomendações de biossegurança para assegurar a boa manutenção do local e a saúde dos pacientes e profissionais.

As crianças diagnosticadas com erro refrativo receberam prescrição da correção óptica indicada. Todos receberam encaminhamento para rede de Saúde Pública Municipal, seguindo o fluxo preconizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – encaminhamento para Unidade Básica de Saúde mais próxima de suas moradias, para, então, serem devidamente direcionados – para o acompanhamento para rotina oftalmológica ou para tratamento específico, em casos como estrabismo, alterações palpebrais, malformação ocular e/ou outras patologias oftalmológicas.

A LAOB da USP realizou campanha social para o recebimento de doações de armações de óculos e lentes para as crianças que receberam prescrição óptica. Também realizou orientação e esclarecimento aos pais sobre cuidados visuais, necessidade e uso correto dos óculos, periodicidade de reavaliação e as perspectivas visuais da criança.

Aspectos éticos

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Odontologia de Bauru da USP, parecer 4.791.250, respeitando os fundamentos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 466/2012, que trata dos aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos. A formalização do aceite em participar do estudo foi realizada por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e do Termo de Assentimento.

Cálculo amostral

Para obter um intervalo de confiança de 95% com erro amostral de 5% e uma prevalência de 15%, o estudo presente necessitaria avaliar um grupo mínimo de 196 crianças.

Análise estatística

A proposta para análise estatística será apresentar, de forma descritiva, as medidas de tendência central e dispersão [média ± desvio-padrão e mediana (intervalo interquartílico)]. O método usado para calcular um intervalo de confiança para uma proporção é o método do escore de Wilson sem correção de continuidade.

RESULTADOS

O estudo contou com a atuação de 14 alunos de graduação em Medicina diretamente envolvidos com a execução de todas as etapas.

O curso de capacitação on-line da etapa 2 contou com a matrícula de 67 profissionais das escolas, dos quais 44% completaram todas as etapas do curso. Acredita-se que a baixa adesão deles se deveu à dificuldade de uso da plataforma on-line.

Foram triadas 453 crianças de duas escolas municipais de Bauru e uma escola de Boraceia. Da amostra, três crianças foram excluídas (e encaminhadas para atendimento especializado) por apresentarem deficiência cognitiva, restando, como amostra final, 450 alunos, representando, dessa forma, dois grupos de populações distintas: um de Bauru e outro de Boraceia. O panorama dos municípios está descrito na tabela 1.

Tabela 1
Comparação panorâmica entre os municípios de Bauru e Boraceia

A triagem aconteceu em 11 períodos, sendo quatro vezes em duas das escolas e três vezes em uma das escolas. A média de idade da amostra foi de 9,38±2,43 anos, sendo 51,1% do sexo masculino. Foram triados positivos 14,22%, sendo a média de AV sem correção (AVSC) no olho direito (OD) de 0,92±0,17 (intervalo de confiança de 95% [IC95%] 0,9034-0,9357) e no olho esquerdo (OE) 0,93±0,17 (IC95% 0,9143-0,9457), variando entre 0,10 e 1,00 tanto em OD e OE. Já usavam óculos 4,22% das crianças. A descrição desses dados está detalhada na tabela 2.

Tabela 2
Descrição da amostra das escolas municipais pré selecionadas para o estudo

Das 450 crianças triadas, 64 (14,2%; IC95% 11,3%-17,7%) tiveram resultado positivo para alguma alteração ocular. Desse total, 16 (25%; IC95% 16%-36,82%) apresentavam outras patologias, incluindo estrabismo, calázio, ptose congênita e conjuntivite crônica, acompanhadas ou não de erros refrativos. Dezenove crianças já usavam correção óptica, cinco (1,11%) necessitavam de nova avaliação e foram encaminhadas para o atendimento oftalmológico, enquanto as outras 14 (3,11%) foram consideradas negativas para a triagem, uma vez que a correção estava adequada. Foram agendadas para atendimento especializado e reagendadas por até cinco vezes, nos casos de não comparecimento, 64 crianças. Doze crianças (18,75%; IC95% 11,06-29,97%) não compareceram aos agendamentos.

Das 52 (81,25%; IC95% 70,03%-88,94%) que compareceram ao exame oftalmológico, 15 (28,85%; IC95% 18,33-42,27%) eram emetropes e com boa visão, e 37 (71,15%; IC95% 57,73%-81,67%) foram diagnosticados com alguma ametropia. Em relação a essas crianças com ametropias, observaram-se 22 (59,45%) míopes, 12 (32,43%) hipermétropes e 9 (24,32%) com astigmatismo.

A caracterização dos resultados encontra-se na tabela 3 e o fluxograma do atendimento na figura 1.

Figura 1
Fluxograma do atendimento.
Tabela 3
Resultados do atendimento especializado das crianças triadas

DISCUSSÃO

A escola é um ambiente de grande importância para o diagnóstico precoce e a triagem de alterações visuais, uma vez que, durante a fase escolar, evidencia-se a importância do autocuidado, da convivência e da saúde ocular. Por esse motivo, existem projetos, como o Programa Saúde na Escola (PSE),(21,22) que visa à formação integral do estudante por meio de ações que buscam a promoção, a prevenção e a atenção à saúde do sujeito. Nesse cenário, o estudo presente buscou triar alunos de três escolas municipais de Bauru e Boraceia, a fim de promover tanto a capacitação de profissionais, quanto investigar alterações oculares presentes nos estudantes.

Projetos semelhantes, como o programa Visão do Futuro, em 2019, também realizaram testes de AV em sala de aulas nas regiões do Estado de São Paulo, incluindo Bauru, observando que 20 a 30% das crianças apresentaram alguma alteração visual, principalmente erros refrativos não corrigidos.(23) Em relação aos dados obtidos pela triagem da pesquisa, a incidência de alterações visuais entre as crianças na fase escolar é de 14,22%, sendo que 71,15% apresentam erro refrativo. Quando os presentes dados são comparados aos de outras regiões de estudos semelhantes, como o realizado no estado do Paraíba, observa-se que 18,1% de 154 alunos triados apresentaram baixa AV.(24) Outros estados, como Mato Grosso e Rio Grande do Sul, também apresentam dados semelhantes, com baixa AV em, respectivamente, 17,4 e 15,1% das crianças triadas.(25,26)

Ao analisar a divisão por sexo, estudo recente(27) realizado no município de Curitiba (PR) verificou que 23,3% das crianças triadas do sexo masculino em comparação aos 20,2% das crianças do sexo feminino apresentaram alterações visuais. O presente estudo evidenciou maior prevalência de alterações visuais no sexo feminino, sendo que 15,45% das crianças triadas do sexo feminino foram encaminhadas para atendimento especializado, em comparação com os 13,04% do sexo masculino.

Das 45 crianças encaminhadas para o atendimento oftalmológico, apenas 12 (18,75%) não compareceram, o que evidencia um ponto positivo do projeto, no que tange à conscientização da esfera familiar e do serviço educacional em dar continuidade ao acompanhamento em relação à AV. Esse dado diverge de outros estudos semelhantes, em que há um nível de 60% de desistências(27) e de outros estados, como o Mato Grosso, que apresentou índice de falta de 25,9%.(25) Dentre os motivos da melhor adesão em nosso projeto são o acesso ao consultório oftalmológico, que disponibilizou ampla agenda de horários para que os pais pudessem levar os filhos; o apoio da equipe da rede pública de saúde, que auxiliou para contado com os pais e também realizou alguns dos atendimentos, além das palestras de conscientização, tanto para os pais quanto funcionários das escolas municipais, que evidenciaram o alerta quanto à importância da saúde ocular na infância.

A hipermetropia foi encontrada em 32,43% das crianças triadas com ametropia, o que está de acordo com estudo retrospectivo de dados coletados da campanha Visão do Futuro, o qual apresentou 38,8% das crianças com hipermetropia(28) e com estudos de outros estados, que apresentam 44,45% das crianças com indicação de correção visual.(25) Os dados divergentes aparecem na miopia (59,45%) e no astigmatismo (24,33%), visto que estudos apresentam uma média entre 10,9% e 33,5%(28,29) das crianças com miopia e, em relação ao astigmatismo, variando entre 42,2% e 67,4%.(28,29) Essa divergência apresenta algumas possíveis causas. Dentre as 19 (4,2%) crianças que já utilizavam óculos, 14 não foram triadas como positivas pelo teste de AV, por apresentarem boa AV e estarem regularmente em acompanhamento oftalmológico. Destas, não foi possível registrar seu erro refrativo e contabilizá-lo nas estatísticas. Além disso, há uma divergência de idade entre os dois estudos comparados. No presente estudo, a média de idade foi de 9,38±2,43 anos; nos estudos comparados, foi de 6 anos, o que pode influenciar na diferença de resultados, visto que há uma alteração da prevalência dos distúrbios visuais de acordo com a idade analisada.

Ao analisar a prevalência de erros refrativos em nossa triagem, observamos 4,22% de incidência de miopia, 2,66% de hipermetropia e 2% de astigmatismo. Faltam mais estudos que apresentem tais análises, mas os dados também mostraram divergências na prevalência da miopia, se comparado a um estudo no estado do Rio de Janeiro, o qual apresentou incidência de 0,5%.(30) Tal diferença pode ser decorrente da heterogeneidade nas populações analisadas, uma vez que, nesse último, há presença de crianças do ambiente rural e urbano, enquanto no presente estudo, os escolares são urbanos, além da não inclusão de alguns pacientes que já estavam com a AV corrigida. A hipermetropia e o astigmatismo apresentaram resultados semelhantes quando comparados ao mesmo estudo, que mostrou incidência de, respectivamente, 1 e 2%.(30)

Um aspecto diferencial da pesquisa foi a capacitação dos discentes dentro de um contexto teórico e prático, por meio do treinamento da semiologia e exame físico oftalmológico, habilidades fundamentais a serem desenvolvidas no ambiente acadêmico. O treinamento em conhecimentos básicos de oftalmologia durante a graduação costuma não ser suficiente, encarecendo o cuidado com os olhos dos pacientes. Além disso, o projeto trouxe maior relevância aos aspectos da saúde ocular, principalmente na infância.

A principal limitação desse estudo foi a impossibilidade de gerar conclusões com validade externa, uma vez que a amostra foi pré-selecionada, sendo a triagem escolar um viés de seleção. Observa-se um viés de prevalência, visto que 14 crianças com a AV corrigida por óculos não foram incluídas, não tendo seus dados obtidos quanto ao erro refrativo. No entanto, o estudo trouxe dados fundamentais quanto à incidência de ametropias e outras patologias oculares nas crianças escolares municipais de Bauru e Boraceia, além de reforçar a importância da triagem no ambiente escolar, o que auxilia no desenvolvimento de políticas públicas mais específicas e direcionadas para a saúde ocular dessa população. Além disso, um outro desafio é quanto a triagem de determinados acometimentos oculares, principalmente em crianças menores de 3 anos. Nesse sentido, torna-se fundamental, em estudos futuros, o uso de novas tecnologias para triagem oftalmológica, tornando-a mais rápida, fácil e com maior nível de sensibilidade e especificidade, como observado pelo uso do Spot Vision Screener, associado ao exame oftalmológico, o que se apresentou como um bom indicador para rastreio de erros refrativos e presença de fatores de risco de ambliopia.(31)

Outra limitação do nosso estudo foi em relação ao número de abstenções de profissionais da educação durante a etapa de capacitação (66%), o que pode prejudicar a conscientização e a continuidade do cuidado quanto à saúde ocular. É importante reforçar que, dentre as crianças submetidas à triagem de AV no próprio ambiente escolar, a necessidade da correção óptica pode chegar a 60%.(32) Assim, a capacitação dos profissionais da educação a realizarem triagem permanente permite que o rastreio seja efetivo e mais econômico, além de promover e esclarecer os familiares quanto à importância da consulta oftalmológica, diante da constatação de uma alteração visual o mais precocemente possível. Por fim, outro limitante é quanto ao próprio método de triagem pela tabela de Snellen, uma vez que, mesmo sendo o principal método de triagem, ele não avalia a percepção de contraste; algumas letras são mais difíceis de serem identificadas; e o método apresenta variações quanto ao fabricante e também sofre influência dependendo das condições de iluminação da sala.(31) Assim, a tabela de Snellen é inadequada para avaliar a qualidade visual, sendo importante a aplicação de outros testes no encaminhamento oftalmológico, portanto o conhecimento sobre as limitações dos testes de rastreio oftalmológico durante a capacitação de profissionais de educação é fundamental.

Apontamos a necessidade de expansão de projetos e pesquisas acerca do assunto relacionado à triagem no âmbito escolar e do direcionamento do fluxo de atendimentos oftalmológicos das crianças. Por fim, observa-se escassez de dados epidemiológicos atualizados no Brasil e no Estado de São Paulo para discussões mais detalhadas.

CONCLUSÃO

O estudo mostrou prevalência considerável de erros refrativos na população infantil em crianças com alguma deficiência visual, causa frequente de insucesso no processo de aprendizado escolar. Infere importância no desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a avaliação da acuidade visual na infância e sugere a capacitação de profissionais da escola e da saúde para o teste de acuidade visual por tabela de Snellen, exame simples e barato, para triagem permanente e precoce das crianças, e para a realização de orientação e esclarecimentos aos pais e responsáveis pela criança, além do encaminhamento para o serviço de saúde de referência, para diagnóstico e tratamento adequados.

O presente estudo também fornece dados mais recentes da prevalência e da distribuição dos erros refrativos em escolares dos municípios de Boraceia e Bauru.

  • Instituição de realização do trabalho:
    Universidade de São Paulo, Bauru, SP, Brasil.
  • Fonte de auxílio à pesquisa:
    Pró-Reitoria de Graduação da Universidade de São Paulo (PRG-USP), por meio do Programa Aprender na Comunidade.

AGRADECIMENTOS

Aos profissionais da educação das Escolas Municipais de Ensino Fundamental Nacilda de Campos, Arlindo Guedes de Azevedo e Professora Salete Maróstiga, pela atenção, disponibilidade e abertura à pesquisa; às Secretarias de Educação e de Saúde de Bauru, pela confiança no projeto; às Pró-Reitorias de Cultura e Extensão Universitária e da Graduação da Universidade de São Paulo, pelo incentivo e apoio; e aos colaboradores do curso de capacitação, Profa. Dra. Ana Tereza R. Moreira, da Universidade Federal do Paraná; Dra. Érika C.C.M. de Pinho, Profa. Dra. Lydia C. Marques e Profa. Dra. Megan E. Collins.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2024
  • Aceito
    20 Jul 2024
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