EDITORIAL
Ética na pesquisa científica e na publicação de artigos em revistas biomédicas
O debate acerca de questões éticas e bioéticas na pesquisa científica com seres humanos está na ordem do dia. Muito em parte pela celeuma criada em torno do artigo 5º da Lei de Biossegurança, envolvendo a utilização de células tronco embrionárias para fins de pesquisa, fato que agitou não só a comunidade científica, mas também a própria sociedade como um todo.
O assunto foi resolvido, afinal, com a chancela do Supremo Tribunal Federal, que considerou, por seis votos contra cinco, não haver impedimentos constitucionais a tal tipo de experimento.
Por conta disso, é importante retomar o tema da Ética na pesquisa, em particular naquela realizada com seres humanos. A própria sociedade, a quem em última análise devemos satisfações, espera e cobra dos cientistas e pesquisadores que eles tenham sempre em mente os limites que podem e devem ser impostos às suas ações e experimentos.
A evolução das ciências em geral, e das biológicas em particular, no século passado, assumiu proporções tamanhas, que hoje se acredita haver no mundo um número maior de cientistas que o total daqueles que o mundo já teve e morreram.
Baseado apenas nesse número astronômico é lícito supor que há e haverá uma produção cada vez maior de conhecimentos e formas novas de tecnologia, as quais, em última análise fazem do homem seu "objeto-fim", pois são a ele direcionadas.
Por outro lado, também é mais que óbvia a conclusão de que a cada dia que passa aumentam as pesquisas, principalmente na área da saúde, que têm o homem como seu "objeto-meio". Ou seja: que fazem uso do ser humano como objeto de estudo, ainda que estes estudos sejam, em sua maioria, com a perspectiva de descoberta de novas possibilidades de cura ou tratamento para as mais diversas doenças.
A pesquisa científica com seres humanos, ou seja, aquelas que têm o homem como seu "objeto-meio", somente passou a ser motivo de preocupação no mundo ocidental a partir da descoberta e revelação das atrocidades cometidas pelos nazistas na 2ª Guerra Mundial, inclusive com a realização de experimentação "científica" com seres humanos.
Mais aterrador ainda foi saber que muitos desses experimentos foram realizados ou tiveram a participação de pesquisadores adeptos do regime nazista, mas com grande prestígio no mundo científico da época. E mais: com o suporte de entidades de apoio à pesquisa ou outros órgãos cuja função deveria ser a promoção de cuidados à saúde da população.
Somente então, a partir do reconhecimento dos chamados "crimes contra a humanidade", em 1947, surgiu o Código de Nuremberg, com o estabelecimento das primeiras normas para regular a pesquisa realizada com seres humanos.
Entre essas regras, estabelecia-se a necessidade do consentimento voluntário do participante, a prévia realização de estudos em laboratórios e com animais, a análise de riscos e benefícios que a investigação poderia trazer, a liberdade do indivíduo de se retirar a qualquer tempo do projeto e a demonstrada qualificação do pesquisador para executá-lo, entre outros pontos.
Já se encontrava evidente nessa primeira (e tardia, diga-se) norma reguladora, um dos princípios basilares da Bioética, qual seja o da autonomia do participante, ou como dissemos anteriormente, do "objeto-meio" da pesquisa.
Ainda assim, abusos continuaram a ocorrer. Em 1996, em Ethics and clinical research, artigo publicado no New England Journal of Medicine, Beecker alertava para inúmeras pesquisas realizadas com experimentação humana, as quais eram executadas sem o rigor ético adequado, e mesmo assim publicadas em jornais de renome entre a comunidade científica.
Nestes termos, a revisão do Código de Nuremberg em 1964, durante a 18ª Assembléia da Associação Médica Mundial, se tornou outro marco importante na história da pesquisa com seres humanos. A denominada Declaração de Helsinque apresentava então de forma pioneira a necessidade de revisão destes protocolos por um comitê independente.
Nas décadas subseqüentes, as normas foram sendo revistas e atualizadas, culminando com aquelas dirigidas à pesquisa médica sem fins terapêuticos, estabelecida pela 48ª Assembléia em 1996 na África do Sul.
No Brasil, nesse mesmo ano, um grupo multidisciplinar elaborou a resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, regulando as normas para realização de pesquisas com seres humanos. Entre outros dispositivos, que incluíam a própria revisão periódica dessas normas, a resolução incorporava, além da autonomia do indivíduo, outros princípios caros à Bioética, tais como a beneficência, a não-maleficência, a justiça, assim como a equidade e o direito ao sigilo e à privacidade.
Além disso, convém lembrar outros dispositivos importantes contidos na resolução, como o conceito de risco, que incluía, além dos aspectos físicos propriamente ditos, aqueles de ordem psíquica, moral, cultural e social. Por outro lado, deixava-se bem explicitado que "todo procedimento (de qualquer natureza) cuja aceitação não esteja consagrada na literatura será tido como pesquisa em ser humano".
Obviamente, vários tópicos importantes estavam contemplados na resolução, entre outros a necessidade do consentimento livre e esclarecido, o respeito á vulnerabilidade do participante, a necessidade de justificativa para uso de placebo, a demonstração da preponderância de benefícios e, um dos mais relevantes: a possibilidade do "objeto-meio" da pesquisa de ter acesso aos dados obtidos.
Nesse sentido, a Organização Mundial de Saúde (OMS), a partir do início do século XXI, não tem medido esforços para que se concretize a formação de um banco de dados universal e de acesso aberto com os ensaios clínicos que estejam em andamento, envolvendo seres humanos.
É dentro desse contexto, da delimitação de toda experimentação científica com seres humanos por normas éticas bem definidas, que surgiu a preocupação dos editores de periódicos científicos (em última análise, o veículo de divulgação desses experimentos) com a boa norma ética das pesquisas a serem publicadas.
O raciocínio é lógico: a Ética não se restringe somente á preparação da pesquisa e às regras de participação do "objeto-meio", o homem. Ela se completa com a sua publicação em uma revista científica, sendo que seus editores não podem se furtar a agir de forma ética, inclusive verificando os procedimentos utilizados pelos pesquisadores.
Desse modo, o International Committee of Medical Journals Editors (ICMJE), em esforço conjunto com a OMS, estabeleceu que só apreciaria artigos contendo ensaios clínicos em andamento a partir de setembro de 2005, que tivessem registros validados pela própria OMS e ICMJE.
Como ensaio clínico o ICMJE define todo projeto de pesquisa prospectivo que submete seres humanos a intervenção e grupos comparativos de estudo causa-efeito entre uma intervenção médica e um resultado à saúde do indivíduo. (http://www.who.int/ictrp/faq/en/index.html).
Por "intervenção médica" define-se qualquer procedimento que produza uma alteração à saúde do indivíduo, como uso de drogas e medicações, procedimentos cirúrgicos, terapêuticas comportamentais, utilização de equipamentos entre outras.
A Revista Brasileira de Otorrinolaringologia não poderia deixar de fazer parte desse processo e reconhece a importância e validade dessas iniciativas da OMS e do ICMJE.
Por isso mesmo somente serão aceitos para publicação em nossa revista, já desde 2007, os artigos de pesquisas clínicas que tenham recebido um número de identificação em um dos Registros de Ensaios Clínicos validados pelos critérios estabelecidos pela OMS e ICMJE, cujos endereços estão disponíveis no site do ICMJE http://www.icmje.org/ no link "Frequently Asked Questions".
Para os autores, introduzimos ao final do processo de submissão uma lista de checagem contendo diversos aspectos de estrutura e formatação gerais dos textos que deverão ser cumpridos. Reiteramos que o envio do número de identificação do Registro de Ensaios Clínicos não substitui a necessidade de aprovação por comitê de ética da instituição onde o estudo foi realizado. Portanto é necessária a inclusão dos dois números no texto. O do Registro ao final do resumo e o Protocolo de Aprovação por Comitê de Ética no capítulo materiais e métodos.
Esta é mais uma forma de demonstrarmos que a Otorrinolaringologia brasileira em particular, e os cientistas brasileiros no geral, são a favor do avanço da ciência sim, mas dentro de normas éticas e de respeito à dignidade do ser humano.
Ivan D. Miziara, Editor-adjunto da RBORL
Prof. Livre docente pela Universidade de São Paulo
Prof. Titular de Medicina Legal e Deontologia Médica da FMABC.
João Ferreira de Mello Júnior
Prof. Livre docente pela Universidade de São Paulo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Jul 2008 -
Data do Fascículo
Jun 2008