ARTIGOS
Política de blocos, segurança e desenvolvimento uma perspectiva brasileira* * Este artigo baseia-se num trabalho apresentado ao I Colóquio Franco-Brasiléiro de Relações Internacionais, promovido pelo Instituto Brasileiro de Relações Internacionais em colaboração com o Centre d'Estudes de Politique Etrangère e o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, e realizado entre 18 e 19 de outubro de 1971, no auditório da sede da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.
Celso Lafer
Antigo professor contratado do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas; M.A., Ph. D. (Government) pela Universidade de Cornell, EUA
Na análise das relações internacionais, convém caracterizar, para fins de clarificação e organização de uma realidade empírica extremamente complexa, os diversos sistemas nelas incidentes, procurando simultaneamente apontar o que têm de comum e aquilo que lhes é específico. Nesta tentativa de construção teórica, cabe lembrar que um dos pontos importantes é o estudo das modalidades pelas quais estes diversos sistemas se interpenetram, pois é a partir deste estudo que podemos distinguir os graus de autonomia desses diversos sistemas. Numa primeira colocação, poderíamos inicialmente distinguir um sistema internacional, instituído pela interação de certos sistemas nacionais. O sistema internacional estabelece o parâmetro dentro do qual funcionam, com maior ou menor autonomia, diversos sistemas regionais constituídos, por sua vez, pela interação específica, a este nível, de diversos sistemas nacionais. Conforme se verifica, os sistemas nacionais - os estados - estão sendo utilizados, para os fins desta exposição, como a menor unidade de análise, se bem que isto, evidentemente, não exclua do âmbito de clarificação nem o impacto das influências externas no funcionamento interno dos sistemas nacionais, nem o impacto externo nos sistemas regionais ou no sistema internacional do funcionamento interno dos diversos sistemas nacionais.1 1 Sobre a noção de sistemas, cf. Easton, David. A systems analysis of political life. N. York, Wiley, 1965. Sobre alguns dos problemas mencionados neste parágrafo, cf. Rosenau, James N., ed. International politics and foreign policy. N. York, Free Press, 1961; Rosenau, James N., ed. Linkage politics, N. York, Free Press, 1969; Farrell, R. Barry, ed. Approaches to comparative and international politics. Evanston, Northwestern University Press, 1966. Minha primeira tentativa de usar este esquema de análise para o estudo das relações internacionais encontra-se, em português, em Lafer, Celso. Uma interpretação do sistema das relações internacionais do Brasil. Revisto Brasileira de Politica Internacional, v. 10, n. 39/40, p. 81-100, set./dez. 1967; e em espanhol, em Lafer, Celso. Una interpretación del sistema de relaciones internacionales del Brasil. Foro Internacional, v. 11, n. 35, p. 298-318, jan./mar. 1969.
O sistema internacional na atualidade, segundo Liska, apresenta três notas fundamentais: 1. Tratase de um sistema bipolar na ordem estratégica militar por causa da concentração de poder militar, notadamente nuclear, nas mãos da União Soviética e dos Estados Unidos. 2. Trata-se de um sistema unifocal, na ordem de estratificação dos sistemas nacionais, pois apenas os Estados Unidos adquiriram o status de primeira potência em escala internacional. Isto, vale a pena salientar, não quer dizer que os EUA tenham poder hegemônico a nível internacional, mas apenas que a definição da relação dos demais sistemas nacionais com os EUA é operacionalmente a mais importante para o funcionamento do sistema internacional, ainda que existam tanto importantes sistemas regionais onde outros estados tenham primazia (como por exemplo, a União Soviética na Europa Oriental), quanto sistemas regionais onde a primazia dos EUA esteja sendo posta em cheque (como por exemplo, no Sudoeste da Ásia). 3. Finalmente, trata-se de um sistema bissegmentado na ordem da distribuição dos recursos econômicos por causa das brechas entre desenvolvidos e subdesenvolvidos, responsável pela fissura do sistema internacional entre Norte e Sul.2 2 Liska, George. Imperial America. Baltimore, John Hopkins Press, 1967, p. 27, 36 e passim; Liska, George. Alliances and the third world. Baltimore, John Hopkins Press, 1968. p. 3-22. A incidência destas três notas, nos diversos sistemas regionais, é bastante variada porque o sistema internacional é muito fluído, e isto, somado à dinâmica interna dos sistemas nacionais que os compõem, explica a diversidade dos sistemas regionais.
O sistema regional do Oriente Médio, por exemplo, albergou antes mesmo da criação do Estado de Israel, como resultado inclusive da hegemonia inglesa, um conflito interno entre árabes e judeus. Este conflito, no entanto, foi contido dentro de certos limites enquanto a Inglaterra manteve sua primazia na região. No momento em que tanto Inglaterra quanto França foram efetivamente substituídas pelos Estados Unidos, e a União Soviética obteve acesso a esta região, o conflito regional e sua dinâmica passaram a servir também como pretexto para contestação da hegemonia americana. Daí a política de polarização do conflito levada a efeito pela União Soviética, com vistas a alargar e afirmar a esfera de sua influência, e os esforços dos Estados Unidos para despolarizar o conflito e manter sua hegemonia. Conforme se verifica, este é um caso onde o sistema regional tende, no momento, a coincidir com uma das notas do sistema internacional, a saber, a bipolaridade estratégico-militar, e, como ademais, a nível do sistema internacional o problema é um, de primazia na região, envolvendo também controle sobre recursos econômicos, o conflito adquire uma intensidade toda especial.3 3 Sobre o problema teórico da coincidência entre sistema internacional e sistemas regionais, cf. Liska, George. Nations in alliance. Baltimore, John Hopkins Press, 1962. p. 261. Sobre o problema específico da região, cf. Monroe, Elizabeth. Britain's moment in the Middle East - 1974-1956. Baltimore, John Hopkins Press, 1963; Williams, Ann. Britain and France in the Middle East and North Africa. Londres, Mac-Millan, 1968; Hurewitz, J. C. Middle-East politics: the military dimension. N. York, 1969; Hurewitz, J. C, ed. Soviet-american rivalry in the Middle-East. N. York, Proceedings XXIX-3, The Academy of Political Science, Columbia University, 1969; Safran, Nadav. From war towar - the Arab-Israeli confrontation 1948-1967. N. York, Pegasus, 1969. No sistema regional da Europa Ocidental, por outro lado, a França, a partir de De Gaulle, procurou maximizar sua autonomia, tendo como objetivo tanto minimizar o impacto da presença hegemônica dos Estados Unidos quanto diluir a importância da bipolaridade estratégico-militar na região. Isto tem levado por sua vez a tentativas de reintegração da Europa Oriental num sistema regional mais amplo - dos Pireneus aos Urais - que poderá ou não vir a ser bem sucedida, dependendo da atitude da União Soviética em face do impacto da Europa Ocidental na Europa Oriental e da posição hierárquica que vier a assumir neste contexto. De qualquer maneira, o que se pode no momento observar é que as notas de bipolaridade e do caráter unifocal do sistema internacional se justapõem muito menos sobre este sistema regional do que sobre o sistema do Oriente Médio, e a nota de bissegmentação é praticamente inexistente, pois não há, no caso, uma brecha comparável à existente entre desenvolvidos e subdesenvolvidos.4 4 Cf. Club Jean Moulin. Pour une politique étrangère de VEurope, Paris, Seuil 1966; Vernant, Jacques. El mundo, Europa y Francia. Estúdios Internacionales, v. 1, n. 2, p. 123-136, jul. 1967; Liska, George. Imperial America, cit. p. 61-80; Beaufre, General. L'enjeu du désordre. Paris, Grasset, 1969. Não é preciso caracterizar outros sistemas regionais para demonstrar sua variedade, mas convém apontar, antes de entrar na análise da América Latina, a importância da bissegmentação tanto para a persistência do sistema internacional, tal como ele hoje se constitui, quanto para o estudo das modalidades de sua interpenetração com os diversos sistemas regionais.
Organski, examinando o problema das relações internacionais, distingue um período anterior a 1750, no qual nenhum estado era industrializado, e o período em que hoje vivemos, onde existem estados industrializados, estados em fase de industrialização e estados pré-industriais. Prevê ele, também, a possibilidade de um período onde todos os países serão industrializados. De acordo com este autor, os determinantes do poder de um sistema nacional no período atual são o tamanho de sua população, sua eficiência política e seu desenvolvimento econômico, variáveis que têm entre si alguma espécie de correlação. O desnível entre o grau de industrialização, entenuido como a somatória destas três variáveis dos diversos sistemas, c responsável pelo fato de existirem sistemas nacionais na etapa de poder potencial, na etapa de transição onde ocorre acréscimo de poder e na etapa de maturidade de poder. Os países industrializados estão na etapa de maturidade de poder, mas os países subdesenvolvidos se encontram ou na etapa de poder potencia, ou na de transição onde ocorre acréscimo de poder. De acordo com a viabilidade nacional, para recorrer a uma categoria de Jaguaribe,5 5 Jaguaribe, Hélio. Desenvolvimento econômico e desenvolvimento politico. 2. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969. p. 47-56; cf. também Aragão, José Maria. Algunos aspectos estratégicos del proceso de integración econômica de América Latina. Revisto de Ia Integración, n. 8, p. 6-35, maio 1971. dos sistemas dos países subdesenvolvidos, estes podem vir a experimentar um acréscimo substancial de poder à medida que se industrializem, da mesma maneira que no século XIX a experimentaram os Estados Unidos e a Alemanha, ou no século XX o Japão e a União Soviética. Este fenômeno de acréscimo de poder que resulta do funcionamento interno de um sistema nacional pode implicar um impacto externo nos sistemas regionais e no internacional. De fato, o fenômeno de acréscimo de poder num país subdesenvolvido, quando ocorre, processa-se num ritmo diferente daquele que pode conhecer um país na etapa de maturidade de poder, pois desenvolve potencialidades latentes eventualmente maiores do que aquelas que um país industrializado já otimizou. O fenômeno, conseqüentemente, acarreta uma mudança na distribuição internacional do poder e eventualmente uma alteração do sistema internacional ou dos sistemas regionais, conforme se verificou historicamente, por exemplo, pela didiminuição da importância da Inglaterra ou pela ascensão dos Estados Unidos e da União Soviética.6 6 Organskí, A.F.K. World politics. 2. ed. N. York, Knopf, 1968, p. 338-376. Estas observações permitem algumas conclusões. A persistência da bissegmentação é interessante para a manutenção do statu quo, pois a brecha entre desenvolvidos e subdesenvolvidos impede que o acréscimo de poder dos países subdesenvolvidos ameace a atual distribuição internacional do poder e, conseqüentemente, produza um remanejamento do sistema internacional. Destarte, a indagação fundamental, na perspectiva do Brasil e da América Latina, encaminha-se logicamente para o exame da condição de possibilidade de se romper esta tendência inerente ao sistema internacional dos nossos dias.
O estudo desta condição - convém ressalvar antes de começar a examiná-la - comporta várias perspectivas, mesmo porque o campo do possível, num dado momento, é sempre maior do que aquilo que afinal historicamente se efetiva como realidade.
Lasswell e McDougal definem segurança como demandas para a manutenção de uma ordem pública que ofereça plena oportunidade para preservar e acrescentar valores de todos os tipos, por meio de procedimentos pacíficos onde se tolera apenas um nível mínimo de coerção. Segundo estes autores, em termos de uma análise de poder, as indagações agrupadas sob a rubrica de segurança enfatizam o modo, isto é, as regras mais do que a substância, pelo qual funciona o processo social.7 7 McDougal, Myres S. & Lasswell, Harold. The identification and appraisal of diverse systems of public order (1959). In: Falk, Richard A. & Mendlowitz, Saul H. ed. The strategy of world order - 2 - international law. N. York, World Law Fund, 1966. p. 67. Se for aceita esta definição de segurança como hipótese de trabalho, e se a partir dela se tentar examinar o problema do desenvolvimento, é evidente que a perspectiva resultante será a do reformismo, pois por definição ficam excluídos tanto o conflito total que explodiria a ordem pública, quanto a manutenção do statu quo, cuja intransitividade exclui do processo social valores relevantes. Evidentemente, a opção metodológica por esta perspectiva, que será a nota distintiva deste trabalho, não implica desconhecimento do peso específico dos demais. Apenas exprime o desejo de explorar sua viabilidade.
O sistema regional mais amplo, no qual se insere a América Latina, é o interamericano. Este sistema coincide com duas notas do sistema internacional. É um sistema dividido em dois segmentos: um desenvolvido e outro subdesenvolvido. É também um sistema que tem como foco principal os Estados Unidos, cujo predomínio na região é indiscutível. O predomínio americano tem conseguido excluir a nota de bipolaridade, pois o acesso da União Soviética à região é extremamente limitado, uma vez que sua presença em Cuba foi balizada pelo acordo tácito resultante da crise dos mísseis nucleares de 1962.8 8 Liska, George. Imperial America, cit. p. 38. Por outro lado, e também como conseqüência do fato de os Estados Unidos serem a potência preponderante na região, os outros países do sistema necessariamente com ela têm mantido um volume intenso de transações e dela dependem em alto grau. Nas palavras do relatório Rockefeller: "Assim como as outras repúblicas americanas dependem dos Estados Unidos para suas necessidades de bens de capital, também os Estados Unidos delas dependem para prover um vasto mercado para seus produtos manufaturados. E assim como estes países vêem nos Estados Unidos um mercado para seus produtos primários, cuja venda lhes permite comprar equipamentos para seu próprio desenvolvimento, também os Estados Unidos neles buscam as matérias-primas para suas próprias indústrias, das quais dependem os empregos de muitos de seus cidadãos".9 9 The Rockefeller Report on the Americas. Chicago, Quadrangle Books, 1969. p. 38. (a tradução é minha).
Este sistema não tem contribuído para a superação da bissegmentação. A brecha entre o Norte e o Sul vem aumentando, conforme o atestam a parte analítica dos diversos relatórios que recentemente examinaram o problema, tais como o já citado relatório Rockefeller e os relatórios Pearson e Prebisch,10 10 The Rockefeller Report on the Americas, cit. passim; Comission on International Development, Pearson, Lester B. Chairman. Partners in development. N. York, Praeger 1969. passim. Sobre o relatório Prebisch, redigido para o BID e que é de 1970, e para uma análise dos três relatórios e também do Informe Petterson (1970), das declarações do Presidente Nixon (31-11-1969) e da posição latino-americana no consenso de Vina del Mar (1969), cf. Jaguaribe, Hélio. Enfoques sobre a América Latina: análise critica de recentes relatórios - aspecto político dos relatórios analisados. Comissão Pontifícia Justiça e Paz, Seção Brasileira, (mimeografado). e as discussões em torno do assunto podem ser qualificadas de debates que têm aprimorado a nossa informação e aguçado a nossa percepção do problema, mas que não se traduziram em medidas de efetividade prática. Não é difícil perceber as potencialidades de conflito inerentes à intransitividade destas interações, na ordem da distribuição dos recursos econômicos, que se assemelham a um jogo de soma zero onde um parceiro sempre ganha e os demais sempre perdem.11 11 Sobre a formulação teórica destes problemas, cf. Deutsch, Karl W. The analysis of international relations. Englewood Cliffs, N. Jersey, Prentice-Hall, 1968. p. 112-132 e 150-157. Diante desta situação, cabe perguntar quais as variáveis cuja modificação garantiria a segurança, tal como foi anteriormente definida, de uma ordem pública para este sistema regional. Neste trabalho a análise concentrar-se-á nas possíveis alterações do comportamento dos Estados Unidos e no campo de manobra dos países latino-americanos em geral e do Brasil em particular.
Os Estados Unidos atravessam no momento um período de crise, no que de resto estão em companhia, como aponta com lucidez o General Beaufre, tanto da Europa Ocidental, cujos sistemas tiveram suas inadequações reveladas pela crise de 1968, quanto da União Soviética, onde o marxismoleninismo pós-stalinista não encontrou uma nova forma e continua a comprimir as aspirações de liberdade de sua população, conforme nos testemunham seus intelectuais dissidentes.12 12 Beaufre, Général. L'enjeu du désordre, cit. A crise interna dos Estados Unidos atinge seu sistema político e o sobrecarrega, em parte porque também é responsável pela situação. De fato, a solução política americana, o pluralismo, procurou conciliar uma sociologia conservadora (dificuldade da relação direta do cidadão com o Estado) com princípios liberais (importância da representação) numa sosociedade de massas. De acordo com a ótica pluralista, os membros de uma sociedade buscam e conseguem salvaguardar seus diversos interesses por intermédio de associações privadas que, por sua vez, são coordenadas e reguladas, contidas e estimuladas pelo aparato federal do sistema americano que assim desvenda o interesse geral. A canalização das reivindicações faz-se por meio destes grupos de interesse que suprem as deficiências da representação formal. O pluralismo americano, tal como descrito, atingiu sua maturidade com o New Deal, quando o Partido Democrátcio conseguiu formar uma coligação majoritária de grupos minoritários.
O pluralismo americano, no entanto, não deixa de apresentar dificuldades e imperfeições. Uma delas, como observa Robert Paul Wolff, reside no fato de que nem todos os membros da sociedade conseguem organizar-se em grupos de interesse e, conseqüentemente, atingir o planalto político onde as demandas se tornam objeto de consideração e execução. Outra está na semelhança entre o feudalismo e o pluralismo, pois os grupos de interesse que ingressaram no planalto político são como os "estados" medievais, onde o peso específico de cada grupo não é proporcional do seu número; por exemplo, labor e business são tidos como equivalentes. Ambos são responsáveis, na prática, pela exclusão do sistema político de setores importantes da população cujas reivindicações não o atingem, fazendo com que o pluralismo ignore injustiças, tolere privilégios e nem sempre capte o interesse geral.13 13 Cf. Wolff, Robert Paul. The poverty of liberalism. Boston, Beacon Press, 1968. p. 122-61. Defesas inteligentes do pluralismo encontram-se, inter alia, em Dahl, Robert A. & Lindblom, Charles E. Politics, economics and welfare. N. York, Harper and Row, 1953; Braybrooke, David & Lindblom, Charles E. A strategy of decision. N. York, Free Press, 1963; Lindblom, Charles E. The intelligence of democracy. N. York, Free Press, 1965. A mobilização política destes setores ignorados, que está sendo feita à margem do pluralismo e que por ele não foi absorvida, salientou estas discriminações e revelou um dramático impasse de participação em relação aos negros, aos "chicanos", aos bolsões de pobreza, etc. Simultaneamente a este impasse e como decorrência, surgiu uma crise de legitimidade. Esta crise exprime-se pela agudização dos surtos de violência que denunciam uma desconfiança profunda em relação ao sistema pluralista cuja hipocrisia de clube de freqüência discriminada - na percepção de muitos setores marginalizados - vem transformando, como aponta Hannah Arendt, os "engajes" em "enragés".14 14 Arendt, Hannah. On violence. N. York, Harcourt, Brace and World, 1970. p. 65-66. Esta crise de legitimidade também se expressa pelos dropouts da sociedade de consumo, entre os quais se incluem os hippies e os drogados, e pela crítica incisiva que ao sistema americano tem feito parcela considerável da universidade e da intelligentsia americana, inclusive, recentemente, setores da grande imprensa liberal. Não seria exagero dizer que tanto desencontro entre a cultura dos Estados Unidos e seu sistema político vem trazendo dúvidas quanto ao manifest destiny americano. Estas dúvidas andam minando as raízes da crença hegemônica dos Estados Unidos e, conseqüentemente dificultando, pela dissensão interna, sua presença preponderante no sistema internacional cuja atuação tem evidenciado, como aponta Andrew Hacker registrando, aliás, uma opinião corrente entre os americanos, um poder sem lições morais.15 15 Hacker, Andrew. The end of the american era. N. York, Atheneum, 1970. p. 220-1.
Este rápido e incompleto apanhado do momento americano, se por um lado impressiona pela dignidade com que um sistema aberto é capaz de reavaliar-se criticamente, por outro lado, evidentemente, não se compatibiliza de maneira adequada com a postura de um país que, pela sua primazia no sistema internacional, vem exercendo, de fato, um poder imperial. Ora, o império americano, como apontam muitos dos seus analistas, até muito recentemente vinha sendo um império funcional np qual cultura e política, economia e participação estavam satisfatoriamente sincronizados. Trata-se de um império sem fronteiras1 6 16 Cf. Julien, Claude. L'empire américain. Paris, Grasset, 1968. que resultou naturalmente do desenvolvimento interno da economia americana conjugado com sua expansão externa em busca de matérias-primas e mercados. O poder do império é exercido em boa parte de maneira indireta, mediante incentivos e desincentivos descentralizadamente oferecidos no exterior pelos grandes interesses econômicos dos Estados Unidos, cujo acesso interno ao governo americano é garantido pela solução pluralista. Aqui cabe um parêntesis para observar que o exercício do poder pelo império soviético - a satelização - se faz de maneira diferente, pois o sistema de planificação comunista requer controles econômicos centralizados aos quais se adicionaram também controles políticos centralizados sob forma de uso do partido político - os vários P.C. - como instrumento de manutenção de domínio. Mas, retornando aos Estados Unidos, o que importa salientar é que o exercício externo do poder indireto sustentado internamente pelo pluralismo - que, como se viu, perdeu sua capacidade de abrangência - pode não ser, de um ponto de vista global, o mais funcional, e, talvez, o momento crítico americano coloque esta hipótese como passível de consideração pelo sistema político. De fato, teoricamente, o interesse global dos Estados Unidos seria compatível com o desenvolvimento econômico e a maximização da autonomia dos países latino-americanos mesmo porque, entre outras razões, além de atender às exigências de segurança de uma ordem pública, o volume do comércio entre países desenvolvidos é maior do que o comércio entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Entretanto, este interesse geral certamente não deixaria de prejudicar os interesses particulares de certos grandes setores econômicos dos Estados Unidos, cujas vantagens e privilégios seriam cerceados. Como na solução pluralista, o interesse geral não resulta, necessariamente, do entrechoque dos interesses particulares, aquele fica prejudicado pela força destes e, no caso, compromete a funcionalidade do sistema político americano e das suas relações exteriores.17 17 Cf. sobre os pontos tratados neste parágrafo, Organski, A.F.K. World politics. 2. ed. cit. p. 245-71. Tudo indica, como lembra Jaguaribe, que uma redistribuição da renda e do poder decisório na sociedade americana - conforme aventam os críticos do pluralismo - acarretaria, concomitantemente com um incremento de democracia real, uma capacidade de desenvolvimento interno da economia mais vantajoso e equilibrado que a resultante de um controle oligopolítico dos mercados internacionais.18 18 Jaguaribe, Hélio. Dependência y autonomia en América Latina. In: Joguaribe, Hélio et alli. La dependência políticoeconômica de América Latina. México, siglo XXI, 1969. p. 52; cf. também Aragão, José Maria. Algunos aspectos estratégicos dei proceso de integración econômica de América Latina. Doc. cit. p. 58-9. Esta reorientação dos Estados Unidos, cabe lembrar, não seria um caso único na história, que registra mudanças de feitio semelhante. A Inglaterra, por exemplo, que do século XIII ao século XV insistiu em ter primazia territorial na Europa, por um remanejamento interno, que os Tudor cristalizaram, passou a buscar, a partir do século XVI, uma preponderância naval, desistindo de uma hegemonia territorial na Europa. Esta reorientação foi extremamente benéfica para a Inglaterra e lhe propiciou séculos de poder, desenvolvimento e prosperidade.19 19 Deutsch, Karl W. The analysis of international relations. cit. p. 153. Mas, retornando à variável americana e encerrando-a com uma sucinta formalização de sua problemática, o que se poderia dizer é o seguinte: as exigências de funcionalidade do próprio sistema americano estão a recomendar uma nova forma de compatibilização de sua cultura, politica, economia e participação, que aumente sua capacidade interna e externa de tolerar e adjudicar conflitos e lhe permita simultaneamente buscar objetivos mais compensadores e menos perigosos. Se esta forma viesse a constituir-se como alternativa, ela implicaria, no campo das relações Internacionais com a América Latina, uma opção comunitária em detrimento da opção imperial, onde a presença americana se externaria no contexto de uma ordem pública cuja segurança seria consolidada por um regime de participação mais equitativo, graças ao qual se reduziriam os conflitos inerentes à bissegmentação.
Diante desta análise da situação americana, qual seria o campo de manobra do Brasil tendo em vista seus próprios objetivos políticos? Antes de explorar a possibilidade, cabe uma definição do que se entende por objetivos políticos. Poder-se-ia dizer, acompanhando Karl W. Deutsch, que política é o setor que guia a sociedade e diz respeito ao seu esforço organizado de modificar a probabilidade dos resultados. Neste sentido, a política é sempre o estudo do poder mas é, especificamente, o estudo do poder de uma sociedade sobre seu próprio destino.20 20 Deutsch, Karl W. On political theory and political action. American Political Science Review, v. 65, n. 1, p. 18, mar. 1971. Os objetivos políticos do Brasil, portanto, a partir desta definição, são os de maximizar sua autonomia para controlar seu futuro. Isto posto, vejamos quais são as opções do país, no campo internacional, para a materialização de seus objetivos.
Na caracterização do sistema regional interamericano mencionou-se a primazia americana e apontou-se que ela tem acarretado tanto a exclusão da bipolaridade quanto a persistência da bissegmentação. A primazia americana opera por meio de uma aliança formal e informal com a maior parte dos países latino-americanos. Esta aliança com países mais fracos, que constitui um bloco, tem dois objetivos: a) evita desvios de poder na ordem estratégica, isto é, impede o acesso militar da União Soviética à região, excluindo, portanto, a bipolaridade, e b) serve como instrumento institucional para manter o controle dos Estados Unidos sobre a região no contexto operacional de uma diplomacia de administração, típica da política exterior de um país preponderante.21 21 Cf. Liska, George. Imperial America, cit. p. 20-1, Alliances and the third world, cit. p. 23, 31-2. Ora, o primeiro objetivo, na atual distribuição internacional de poder, é compatível com os interesses latino-americanos e praticamente inevitável, dada a preponderância americana na região, mas o segundo, evidentemente, tolhe e compromete a autonomia da América Latina e não contribui para a superação da bissegmentação. Esta observação dita uma conclusão: a cooperação entre aliados no sistema internacional, no que diz respeito a aspectos estratégico-militares, não pode obscurecer o dever de auto-afirmação dentro da aliança, no que diz respeito à remoção da bissegmentação. Este dever de auto-afirmação implica uma diplomacia nacionalista, dogmaticamente insistente no desafio e na contestação à atual distribuição internacional de recursos. Friso a importância do aspecto dogmático porque só os países dominantes podem-se permitir uma diplomacia do razoável, uma vez que são eles que estabelecem as regras do jogo a partir das quais se define o que é razoável. Ora, estas regras confundem-se com um sistema internacional que os satisfez porque lhes assegura preponderância, e como são estas as regras a serem modificadas, a postura dogmática dos países mais participados do que participantes do jogo é a única atitude possível para se tentar evitar a manutenção do statu quo.22 22 Organski, A.F.K. World politics. 2 ed. cit. p. 387; Liska, George. Nations in alliance, cit. p. 64, 68-9. Evidentemente, toda diplomacia funciona dentro de um contexto que lhe estipula os limites, isto é, o que foi denominado seu campo de manobra, cujo levantamento topográfico, em relação ao Brasil, a seguir vai esboçado.
Um dos instrumentos da diplomacia é a negociação por meio da persuasão. Para que as discussões entre os interlocutores não permaneçam apenas no nível dos debates, é preciso que haja valores e perspectivas comuns. Na medida em que os Estados Unidos se modifiquem interna e externamente, nos termos da análise e da hipótese anteriormente mencionadas, não é impossível que sejam sensíveis ao ponto de vista dos objetivos políticos do Brasil, uma vez que este ponto de vista não seria incompatível com a opção comunitária americana. Naturalmente, uma diplomacia baseada apenas na lucidez da racionalidade teria dificuldades em resistir às inevitáveis pressões que os interesses contrariados nos Estados Unidos serão capazes de organizar, de maneira que o bom senso reclama um exame da capacidade do Brasil para resistir a estas pressões que impedem uma redistribuição mais equitativa dos recursos internacionais.
A resistência à pressão implica a aferição do poder relativo do Brasil no sistema internacional e regional. Se recorrermos às categorias de Organski, é evidente que o Brasil tem experimentado, desde a década de 50, um acréscimo de poder que resulta de uma crescente utilização dos seus recursos humanos e naturais'que redundaram num desenvolvimento econômico mais intenso e rápido, eficientemente regulado, apesar de intermitencias, pelo seu sistema político. Aqui cabe parêntesis para registrar uma observação sobre a variável de eficiência política. O regime brasileiro, pós 1964, inegavelmente aumentou a capacidade administrativo-política do país de converter aspirações em programas efetivos de ação, isto é, de modernizar-se. Entretanto, não encontrou uma solução adequada para encaminhar as aspirações ao sistema político, isto é, não institucionalizou a participação política que é o outro lado da moeda do desenvolvimento político. Esta não-institucionalização da participação política traduz-se em falta de abertura para a captação de valores.e reivindicações por meio de uma pluralidade de canais. Esta situação implica uma rigidez, cujas conseqüêncüs podem afetar a criatividade do sistema político brasileiro e, conseqüentemente, a sua eficiência, pelas suas falhas no processamento de informação do ambiente e pelas suas eventuais dificuldades numa autônoma reorganização total e parcial dos problemas.23 23 Cf. Deutsch, Karl W. The nerves of government. N. York, Free Press, 1966. p. 223 e seg.; Schwartzman, Simon Desenvolvimento e abertura política. Dados, v. 6, 1969, p. 24-56; Lafer, Celso. The planning process and the political system in Brazil - a study of Kubitschek's target plan - 1956-1961. Ithaca, N. York, Cornell University Latin American Studies Program, 1970. p. 45-6, 294-5 e passim. Dissertation Series n. 16; cf. igualmente Hirschman, Albert 0. Exit, voice and loyalty. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1970. passim; Hirschman, Albert 0. A bias for hope. N. Haven, Yale University Press, 1971. p. 22-6. Feita esta ressalva sobre a eficiência política a médio prazo do Brasil, retornamos ao h/c et nunc. O acréscimo de poder do Brasil permite-lhe resistir, hoje em dia, mais satisfatoriamente às pressões internacionais do que há 10 ou 15 anos. Assim, por exemplo, o grau de industrialização recentemente atingido tem permitido uma bem sucedida política de exportação de manufaturados. Esta, por sua vez, acarreta uma diversificação da pauta de exportações que dá margem para uma posição mais sólida na discussão de assuntos como café solúvel, quotas de açúcar, duzentas milhas de mar territorial e direitos de pesca - para citar alguns temas que têm sido ultimamente objeto de controvérsias entre o Brasil e os Estados Unidos e que tratam, especificamente, da distribuição internacional de recursos. Naturalmente, esta capacidade de resistência, que é uma conseqüência externa do funcionamento interno do sistema brasileiro, é relativa, pois se insere no contexto de uma preponderância americana. Daí a lógica de se indagar em que medida pode o Brasil maximizar sua capacidade de resistência ao nível de arranjos internacionais.
Uma primeira colocação indica a conveniência de se prosseguir na diversificação dos contatos com outros países do segmento desenvolvido dq sistema internacional.24 24 Esta diversificação, com este objetivo na órbita oriental, iniciou-se no fim da década de 50, no Governo Kubitschek, ao tempo da gestão de Horacio Lafer na Pasta das Relações Exteriores. Cf. Ministério das Relações Exteriores. Gestão do Ministro Lafer na Pasta das Relações Exteriores. Departamento de Imprensa Nacional, 1961. Vale dizer, tanto os da órbita ocidental, a exemplo das recentes margens de preferência para a exportação de manufaturados, concedidas pelo Mercado Comum Europeu, quanto os da órbita oriental. Esta orientação, minimizando a dependência exclusiva em relação aos Estados Unidos, naturalmente amplia o campo de manobra do Brasil e exigirá, muito provavelmente, neste momento, uma atenção toda especial em função dos eventuais novos contornos que vier a adquirir o sistema monetário internacional quando for regularizada a posição do dólar. Este impulso, no entanto, não é suficiente, pois ele apenas implica um poder de negação, isto é, uma maior capacidade de evitar que outros países atuem de uma maneira que o Brasil considere indesejável. Uma diplomacia nacionalista, dogmaticamente insistente no desafio à atual distribuição internacional de recursos, exige mais, pois também requer um mínimo de poder positivo, isto é, habilidade de conseguir de outros países um comportamento que se deseja.25 25 Organski, A.F.K. World politics. 2. ed. cit. p. 101-23. Uma das formas de se obter poder pçsitivo a nível internacional é a aliança, em cuja raiz sempre se coloca o fenômeno de agregação de poder.26 26 Liska, George. Alliances and the third world, cit. p. 50.
A aliança com a América Latina é, obviamente, o caminho do Brasil num esforço de agregação de poder, para alterar as regras do sistema internacional quanto à bissegmentação. Nos termos do consenso latino-americano de Vina dei Mar, de maio de 1969, existe a necessidade de uma "... ação coordenada e eficaz dos países latino-americanos nos distintos foros, instituições e organismos internacionais de cooperação de que fazem parte. Desta maneira, a ação solidária da América Latina terá maior gravitação mundial e conduzirá ao sucesso dos objetivos colimados".27 27 A tradução é minha, apud Suárez, Eduardo L. Nueva actitud de América Latina hacia Estados Unidos: el consenso de Viña del Mar. Foro Internacional, v. 10, n. 39, p. 256, jan. mar. 1970, em artigo que examina alguns dos problemas aquí mencionados. De fato, esta aliança, cuja formalização no contexto da CECLA é um dos aspectos, preenche alguns requisitos que lhe podem conferir estabilidade e, conseqüentemente, vigência à sua atuação no sistema internacional e nos subsistemas interamericano e latino-americano. Existem, em primeiro lugar, possibilidade de vantagens conjuntas pelo interesse comum na alteração das regras do sistema internacional e interamericano, responsáveis pela persistência da bissegmentação. Existe, em segundo lugar, receptividade mútua na percepção deste interesse comum, sustentada por uma formação histórico-cultural semelhante. Finalmente, começa a existir uma relevância mútua entre os países da América Latina, sobretudo a partir dos esforços de integração econômica que visaram deliberadamente a criar um subsistema da economia internacional para modificar a estruturo de vantagens comparativas dentro da qual se desenvolve atualmente o comércio exterior da América Latina.28 28 Cf. Ferrer, Aldo. Indústrias básicas, integración y corporaciones internacionales. In: Jaguaribe, Hélio et alii. La dependencia político-económica de América Latina, cit. p. 97; Deutsch, Karl W. The analysis of international relations, cit. p. 192-3. Evidentemente, esta relevância mútua não exclui a existência de conflito dentro da aliança latino-americana. De fato, todo subsistema, uma vez criado, abrange conflito e cooperação; e todo processo de integração, apesar de ter uma racionalidade implícita, como o demonstraram os funcionalistas, quando atinge certa etapa, enfrenta necessariamente obstáculos que só podem ser superados por uma nova vontade política.29 29 Cf. Brenner, Michel J. Technocratic politics and the functionalist theory of european integration. Ithaca, N. York, Center for International Studies, Cornell University, 1969. Esta parece ser a situação que enfrenta no momento, por exemplo, a ALALC, de maneira que convém fazer alguma referência às modalidades pelas quais se deveria articular uma nova vontade política no contexto da aliança latinoamericana. Dada a disparidade da industrialização dos diversos países latino-americanos, a articulação desta nova Vontade política deve resultar de um acordo consensualmente atingido, em cuja formulação e encaminhamento o Brasil desempenharia, essencialmente, um papel de organizador do consenso. Saliento a nota da organização do consenso porque ela dimana logicamente da definição dada sobre os objetivos políticos do Brasil, qual seja, a de maximizar sua autonomia para controlar seu destino. De fato, a alternativa de uma orientação menos consensual e mais impositiva só seria factível por meio de uma ligação mais intensa com os EUA, o que implicaria uma penetração maior de interesses americanos no sistema brasileiro, com óbvias conseqüências de minimização de autonomia e desagregação de soberania real.30 30 Cf. Deutsch, Karl W. External influences on the internal behavior of states. In: Farrell, R. Barry, ed. Approaches to comparative and international politics, cit. p. 7; Rosenau, James N. Pre-theories and theories of foreign policy. In: id. v. ibid, p. 65. É por isso que a organização do consenso é a opção lógica do Brasil em função de seus objetivos políticos e, a partir dela, a única alternativa funcional no relacionamento com os demais países latino-americanos, pois toda aliança latino-americana, num contexto de autonomia, tem como alternativa implícita um acordo bilateral com os Estados Unidos, cuja primazia pulverizaria qualquer pretensão impositiva de qualquer país da região. Aliás, a importância desta observação, sobre a aliança latino-americana num contexto de autonomia, merece ser salientada pela análise de uma experiência histórica que cabe agora invocar para registrar a relevância da nota de consenso e de solidariedade. No século XIX o Chile propôs pela cláusula Bello um esquema de preferências latino-americanas cuja efetivação se traduziria numa aliança latino-americana dentro de um contexto de autonomia. Este esquema, no entanto, não vingou e caiu em dessuetude, pois a solidariedade dos países latino-americanos foi rompida, como o demonstrou Francisco Orrego, por contatos bilaterais com a potência hegemônica da época, a Inglaterra.31 31 Vicuña, Francisco Orrego. Estudio sobre la clausula Bello y la crisis de la solidariedad latino-americana en el siglo XIX. Trabalho apresentado na 2. Reunião do Grupo de Estudos Interamericanos de Carnegie Endowment for International Peace, realizada em Bariloche, em agosto de 1971.
Feitas estas ponderações sobre a modalidade e as dificuldades da aliança latino-americana, o que se pode dizer, para encerrar este item sobre o campo de manobra do Brasil, é o seguinte:
A persistência da bissegmentação exige a autoafirmação do Brasil dentro do sistema interamericano. Esta auto-afirmação explicitar-se-ia por uma diplomacia nacionalista, dogmaticamente insistente no desafio e na contestação à atual distribuição internacional de recursos. Tal diplomacia encontraria ressonância positiva nos Estados Unidos se este país, em função de sua crise interna, se encaminhasse por uma opção comunitária. Esta diplomacia teria a sustentá-la o acréscimo de poder que o Brasil tem experimentado nos últimos anos que, somado à diversificação dos contatos do país com o segmento desenvolvido do sistema internacional, vem conferindo-lhe maior capacidade de evitar comportamentos indesejáveis por parte de outros países. Esta diplomacia precisaria ser complementada por uma aliança com o resto da América Latina, pois a agregação de poder resultante atribuiria à aliança poder positivo para conseguir de outros países atuação mais compatível com a superação da bissegmentação. Na organização desta aliança, que implica a articulação de uma nova vontade política latino-americana, o Brasil deve desempenhar a função de catalizador de consenso que é a única função congruente com objetivos políticos que tenham como pressuposto a autonomia do Brasil e da América Latina.
Antes de concluir este trabalho, convém registrar algumas ressalvas de ordem metodológica, cujas implicações práticas são consideráveis. Toda análise política, normalmente, pressupõe, implícita ou explicitamente, um modelo, isto é, uma tentativa teórica, mais ou menos elaborada, de perceber a realidade. O modelo é sempre uma aproximação e nunca a própria realidade na sua inteireza; entre outras razões, porque resulta da escolha de algumas e não de todas as variáveis, em cuja seleção se insere a subjetividade do pesquisador.32 32 Uma discussão e um levantamento bibliográfico deste problema se encontra em Lafer, Celso. The planning process and the political system in Brazil - a study of Kubitschek's target plan - 1956-1961. cit. p. 280-97. Neste trabalho, conforme foi apontado, houve uma seleção deliberada de fatos e situações cujo desenvolvimento e encadeamento eventualmente poderão levar a uma reforma do sistema internacional capaz de compatibilizar segurança e desenvolvimento. Em outras palavras, e para recorrer aos versos de Camões que serviram de epígrafe, examinaram-se as condições de paz, ou seja: "... as leis iguais, constantes
Que aos grandes não dem o dos pequenos".
Naturalmente, esta não é a única opção logicamente possível. Outros modelos são necessários, para se tentar um levantamento mais abrangente da realidade, entre os quais, certamente, e para voltar aos versos de Camões, não se pode excluir as diversas modalidades das "armas rutilantes". Além dessa limitação, quanto ao escopo do trabalho, a análise construída a partir das variáveis selecionadas levou a algumas propostas de programação política. Toda programação política é difícil porque contém uma alta taxa. de incerteza. Como já nos advertiu Proudhon, "a fecundidade do inesperado excede a prudência do estadista", mormente no campo internacional onde a multiplicidade dos centros de poder implica uma certa anarquia que agudiza a taxa de incerteza.33 33 Cf. Aron, Raymond. The anarchical order of power. Daedalus, v. 95, n. 2, p. 479-502; 1966 (Conditions of World Order); Hoffmann, Stanley. Report of the Conference on Conditions of World Order, june 12-19, 1965, Villa Serbelloni, Bellagio, Itália. In: id ibid. p. 472. É por isso que Kissinger lembra (e já agora, com a articulação da viagem de Nixon à China tendo tornado vivência o que teorizara) que em matéria de política exterior, os juízos dependem de análises que não podem ser provadas, na ocasião em que as medidas devem ser tomadas, e a área da decisão é tanto maior quanto menor é a certeza.34 34 Kissinger, Henry A. Domestic structure and foreign policy. Daedalus, cit. p. 503-29. Evidentemente, estas ressalvas se aplicam à fidedignidade de minhas conclusões, mas isto não exclui a necessidade de programação política. Esta é imperiosa, sobretudo na multiplicidade de seus cenários, que nos ajudam a reavaliar situações e, conseqüentemente, minimizar a dissonância cognitiva entre novas informações e atitudes anteriores.35 35 Deutsch, Karl W. External influences on the internal behaviour of states. In: Farrell, R. Barry, ed. Approaches to comparative and international politics, cit. p. 24. Daí o esforço de clarificação deste trabalho que visa, para recordar o que foi anteriormente mencionado sobre objetivos políticos, ao estudo de algumas alternativas do poder do Brasil sobre seu próprio destino.
- 1 Sobre a noção de sistemas, cf. Easton, David. A systems analysis of political life. N. York, Wiley, 1965. Sobre alguns dos problemas mencionados neste parágrafo, cf. Rosenau, James N., ed. International politics and foreign policy. N. York, Free Press, 1961; Rosenau, James N., ed. Linkage politics, N. York, Free Press, 1969;
- Farrell, R. Barry, ed. Approaches to comparative and international politics. Evanston, Northwestern University Press, 1966.
- Minha primeira tentativa de usar este esquema de análise para o estudo das relações internacionais encontra-se, em português, em Lafer, Celso. Uma interpretação do sistema das relações internacionais do Brasil. Revisto Brasileira de Politica Internacional, v. 10, n. 39/40, p. 81-100, set./dez. 1967;
- e em espanhol, em Lafer, Celso. Una interpretación del sistema de relaciones internacionales del Brasil. Foro Internacional, v. 11, n. 35, p. 298-318, jan./mar. 1969.
- 2 Liska, George. Imperial America. Baltimore, John Hopkins Press, 1967, p. 27, 36 e passim;
- Liska, George. Alliances and the third world. Baltimore, John Hopkins Press, 1968. p. 3-22.
- 3 Sobre o problema teórico da coincidência entre sistema internacional e sistemas regionais, cf. Liska, George. Nations in alliance. Baltimore, John Hopkins Press, 1962. p. 261. Sobre o problema específico da região, cf. Monroe, Elizabeth. Britain's moment in the Middle East - 1974-1956. Baltimore, John Hopkins Press, 1963; Williams, Ann. Britain and France in the Middle East and North Africa. Londres, Mac-Millan, 1968;
- Hurewitz, J. C. Middle-East politics: the military dimension. N. York, 1969;
- Hurewitz, J. C, ed. Soviet-american rivalry in the Middle-East. N. York, Proceedings XXIX-3, The Academy of Political Science, Columbia University, 1969;
- Safran, Nadav. From war towar - the Arab-Israeli confrontation 1948-1967. N. York, Pegasus, 1969.
- 4 Cf. Club Jean Moulin. Pour une politique étrangère de VEurope, Paris, Seuil 1966; Vernant, Jacques. El mundo, Europa y Francia. Estúdios Internacionales, v. 1, n. 2, p. 123-136, jul. 1967;
- Liska, George. Imperial America, cit. p. 61-80; Beaufre, General. L'enjeu du désordre. Paris, Grasset, 1969.
- 5 Jaguaribe, Hélio. Desenvolvimento econômico e desenvolvimento politico. 2. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969. p. 47-56; cf. também Aragão, José Maria. Algunos aspectos estratégicos del proceso de integración econômica de América Latina. Revisto de Ia Integración, n. 8, p. 6-35, maio 1971.
- 6 Organskí, A.F.K. World politics. 2. ed. N. York, Knopf, 1968, p. 338-376.
- 9The Rockefeller Report on the Americas. Chicago, Quadrangle Books, 1969. p. 38.
- 13 Cf. Wolff, Robert Paul. The poverty of liberalism. Boston, Beacon Press, 1968. p. 122-61. Defesas inteligentes do pluralismo encontram-se, inter alia, em Dahl, Robert A. & Lindblom, Charles E. Politics, economics and welfare. N. York, Harper and Row, 1953;
- Braybrooke, David & Lindblom, Charles E. A strategy of decision. N. York, Free Press, 1963;
- Lindblom, Charles E. The intelligence of democracy. N. York, Free Press, 1965.
- 14 Arendt, Hannah. On violence. N. York, Harcourt, Brace and World, 1970. p. 65-66.
- 15 Hacker, Andrew. The end of the american era. N. York, Atheneum, 1970. p. 220-1.
- 20 Deutsch, Karl W. On political theory and political action. American Political Science Review, v. 65, n. 1, p. 18, mar. 1971.
- 23 Cf. Deutsch, Karl W. The nerves of government. N. York, Free Press, 1966. p. 223 e seg.; Schwartzman, Simon Desenvolvimento e abertura política. Dados, v. 6, 1969, p. 24-56;
- Lafer, Celso. The planning process and the political system in Brazil - a study of Kubitschek's target plan - 1956-1961. Ithaca, N. York, Cornell University Latin American Studies Program, 1970. p. 45-6, 294-5 e passim. Dissertation Series n. 16;
- 27 A tradução é minha, apud Suárez, Eduardo L. Nueva actitud de América Latina hacia Estados Unidos: el consenso de Viña del Mar. Foro Internacional, v. 10, n. 39, p. 256, jan. mar. 1970,
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
14 Maio 2015 -
Data do Fascículo
Jun 1972