Open-access O uso do ciberespaço pela administração pública na pandemia da COVID-19: diagnósticos e vulnerabilidades

El uso del ciberespacio por la administración pública en la pandemia de COVID-19: diagnóstico y vulnerabilidades

Resumo

A pandemia da COVID-19, por demandar isolamento social, impõe aproximação e coordenação de esforços de entes públicos e privados por intermédio da Internet e dos serviços digitais. O artigo analisa o uso e a operacionalização do ciberespaço pela Administração Pública no combate ao SARS-CoV-2 e apresenta um diagnóstico das vulnerabilidades e desafios referentes a essa crescente operacionalização. A administração pública passou a operacionalizar o ciberespaço com mais afinco a partir da década de 1990, com o e-government. Estratégias de coordenação (inter)governamental impostas pela atual conjuntura seriam impossíveis sem a intensificação da operacionalização do ciberespaço pelo aparato administrativo público, que transpõe para o domínio digital práticas e ações pouco usuais ou mesmo inéditas. Dada sua artificialidade, o ciberespaço só pode ser operacionalizado por detentores de meios para tal. A “democratização” cibernética esbarra na exclusão digital. O atual isolamento social evidencia desafios técnicos e socioeconômicos decorrentes da transposição do aparato de administração pública para o ciberespaço.

Palavras-chave: COVID-19; administração; ciberespaço; e-government; exclusão digital

Resumen

Por exigir aislamiento social, la pandemia de COVID-19 impone la aproximación y coordinación de esfuerzos de las entidades públicas y privadas por medio de Internet y de los servicios digitales. El artículo analiza el uso y operacional actual del ciberespacio por parte de la Administración Pública en la lucha contra el virus SARS-CoV-2 y presenta un diagnóstico de las vulnerabilidades y desafíos relacionados con esta creciente utilización operacional. La administración pública comenzó a usar el ciberespacio con mayor ahínco desde la década de 1990, momento en que surgió el e-government. Las estrategias de coordinación (inter)gubernamental impuestas por la situación actual serían imposibles sin la intensificación de la utilización operacional del ciberespacio por parte del aparato administrativo público, que transpone al dominio digital prácticas y acciones poco usuales o inéditas. Dada su artificialidad, el ciberespacio solo puede ser operado por quienes tienen los medios para hacerlo. La “democratización” cibernética choca con la exclusión digital. El aislamiento social actual destaca los desafíos técnicos y socioeconómicos derivados de la transposición del aparato de la administración pública al ciberespacio.

Palabras clave: COVID-19; administración; ciberespacio; e-government; exclusión digital

Abstract

The COVID-19 pandemic, while demanding social distancing, imposes approximation and coordination of efforts by public and private entities through the Internet and digital services. This article analyzes the use and operationalization of cyberspace by the public administration in the fight against SARS-CoV-2. It presents a diagnosis of the vulnerabilities and challenges related to this growing operationalization. The public administration began to operationalize cyberspace more vigorously from the 1990s, with e-government. Inter-governmental and governmental coordination strategies imposed by the current situation would be impossible without the intensification of the operationalization of cyberspace by the public administration apparatus, which transposes unusual and even unprecedented practices and actions to the digital domain. Given its artificiality, cyberspace can only be operated by those with the means to do so. Cyber-democratization comes up against the digital divide. The current need for social distancing highlights technical and socio-economic challenges arising from the transposition of the public administration apparatus into cyberspace.

Keywords: COVID-19; administration; cyberspace; e-government

1. INTRODUÇÃO

Tal como épocas de guerra e necessidade impulsionam inovações (Freeman & Soete, 2008), o isolamento social imposto pela COVID-19 traz à tona soluções e plataformas virtuais para auxiliar na digitalização da vida social, impulsionadas pela retórica política de “Guerra à COVID-19” (Bennet & Berenson, 2020; Nienaber & Carrel, 2020). A necessidade de transpor o aparato administrativo para o ciberespaço origina vulnerabilidades e desafios decorrentes das dinâmicas e lógicas do domínio cibernético que afetam eventuais estratégias no combate ao SARS-CoV-2. Com base em casos paradigmáticos, o artigo investiga implicações administrativas da transposição do aparato estatal para o ciberespaço, prática iniciada na década de 1990 que ganhou novos contornos com o advento da atual pandemia. O texto apresenta um diagnóstico das vulnerabilidades e desafios referentes à crescente operacionalização do ciberespaço pela administração pública.

Originalmente, o artigo demonstra que a exclusão digital deve ser considerada uma vulnerabilidade do ciberespaço para a elaboração de políticas públicas, ao lado de problemas técnicos tradicionais. O trabalho aponta que a COVID-19 potencializou os efeitos da exclusão digital e que esta não foi devidamente considerada pelas autoridades brasileiras na elaboração de políticas para mitigar os efeitos da pandemia.

Estruturalmente, o artigo elucida a transposição do aparato administrativo para o domínio cibernético e o histórico de e-government. Em seguida, são esmiuçados os desafios decorrentes da natureza do ciberespaço referentes à virtualização da administração governamental. Por fim, implicações de tal transposição são analisadas no tocante às vulnerabilidades técnicas e socioeconômicas, tendo como foco ações desencadeadas pelo novo coronavírus.

2. O MEIO TÉCNICO-CIENTÍFICO-INFORMACIONAL E O "E-GOVERNMENT"

A virtualização administrativa é realizada mediante o arcabouço técnico-científico-informacional dos processos de globalização que, consoante Santos (2009), culminam no ciberespaço. Este é aqui entendido como domínio de interação humana, artificial, dotado de peculiaridades únicas (Cohen, 2007; Rattray, 2009; Kuehl, 2009; Medeiros, 2019), desenvolvido mediante o interligamento de camadas físicas (pessoas e hardware) com camadas digitais (software e informações) (Libicki, 2009; Ventre, 2012).

Dada sua artificialidade, o ciberespaço só existe mediante sua operacionalização por indivíduos e instituições. Como o acesso à tecnologia é fator limitante para o ciberespaço, a assimetria desse acesso acaba por aumentar disparidades socioeconômicas (Ruediger, 2003).

A manifestação mais evidente do ciberespaço é a Internet. Esta foi concebida durante a Guerra Fria pela administração pública estadunidense como uma rede de computadores interligados entre universidades e centros de pesquisa que se estendeu ao setor privado, originando o universo conhecido atualmente (Castells, 2003). Com a popularização da Internet nos anos 1990, parcelas da administração pública foram progressivamente digitalizadas, no intuito de utilizar as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) como vetores de eficiência e agilidade para os fluxos de informação entre governos e seus cidadãos (Chadwick & May, 2003).

Considerado no início do século XXI uma mera extensão da administração pública, com potenciais benefícios de velocidade, acessibilidade e conveniência (Jaeger, 2002), as visões mais recentes vislumbram o e-government como a combinação entre TICs e o aparato público administrativo, com repercussões para áreas que englobam melhorias de serviços públicos, arcabouços políticos, alta qualidade e eficiência de operações governamentais, engajamento civil em processos democráticos e reformas institucionais (Dawes, 2008; Choi & Chandler, 2019).

Processos de e-government consistem na capitalização das peculiaridades do ciberespaço pela administração pública. Isto é, a utilização da desterritorialização e interconexão do ciberespaço (Medeiros, 2019) para alcançar parcelas conectadas da sociedade, ao tempo em que a velocidade computacional e das conexões agilizam processos administrativos. Efetivamente, o e-government pode ser caracterizado como facilitador das relações entre Estado e sociedade (Ruediger, 2003), mediante a inovação, racionalização e adoção de modelos de gestão que priorizem a disponibilização de informações e serviços para os cidadãos. Simultaneamente, o governo eletrônico abre a administração pública para a participação e controle social e estimula o exercício da cidadania (Rampelotto et al., 2015), em conformidade com o princípio constitucional brasileiro da publicidade, previsto no Artigo 37, caput, da Constituição Federal (1988), e elucidado por Oliveira (1996).

Por demandar meios para sua operacionalização, como dispositivos eletrônicos e redes de infraestrutura, o e-government tem potencial excludente, contrário à universalidade intrínseca do bem público. Governos costumam recorrer a métodos mistos de processos online e presenciais para mitigar a exclusão digital (Sampaio, 2016).

A preocupação com a inclusão digital, de certa forma, é refletida no Brasil pela mudança paradigmática do termo “governo eletrônico”, que se refere à informatização de processos internos à administração, para o termo “governo digital”, “cujo foco têm como centro a relação com a sociedade (visão do cidadão), a fim de tornar-se mais simples, mais acessível e mais eficiente na oferta de serviços ao cidadão por meio das tecnologias digitais” (Governo Digital, 2020).

A realidade imposta pela COVID-19 intensifica a operacionalização do ciberespaço pelo aparato administrativo, demandando que funcionários trabalhem remotamente (Hern, 2020), bancos priorizem serviços digitais (Almeida, 2020), lojas adaptem-se a modelos de compras online (Meyersohn, 2020) e a educação presencial seja modificada para continuar à distância (Star, 2020). Recai sobre o aparato governamental a responsabilidade de aprofundar medidas de e-government e adaptar suas comunicações e práticas para o ambiente virtual, em respeito às diferenças socioeconômicas vigentes. Contudo, a inserção social no ciberespaço é passível de exploração por uma miríade de atores capazes de operacionalizar as lógicas e peculiaridades do universo digital segundo agendas particulares.

3. A OPERACIONALIZAÇÃO DO CIBERESPAÇO, VULNERABILIDADES TÉCNICAS E DESAFIOS

Diante da digitalização do aparato administrativo e intensificação do e-government, a conservação dos arcabouços políticos e da eficiência de operações governamentais destacam-se como pontos focais para a administração pública. A manutenção das comunicações e serviços governamentais no ciberespaço é imperativa no contexto atual. Contudo, conforme a sociedade hodierna recorre ao ciberespaço, este, além de agravar diferenças sociais, torna-se vetor de disseminação de desinformação e ataques criminosos (Batista et al., 2020).

Parte das ações governamentais no atual cenário pandêmico volta-se para o combate à “infodemia”, isto é, a proliferação de informações falsas a respeito do SARS-CoV-2 por redes sociais (Cinelli et al., 2020). A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por exemplo, teve que desmentir informações falsamente atribuídas à entidade (Fiocruz, 2020).

Uma das formas de disseminação de notícias falsas e de ataque cibernético é o envio de links maliciosos por e-mail ou aplicativos de comunicação. No Brasil, links e sites indevidamente atribuídos às autoridades de saúde dão margem a golpes, incentivando o download de arquivos que supostamente conteriam dados sobre o SARS-CoV-2 (Mazzi, 2020). Após abrir o link ou o arquivo enviado, o dispositivo era infectado. Com isso, o atacante poderia obter diversos dados, como os bancários (Kaspersky, 2020).

A administração pública também é desafiada por ransomwares, softwares maliciosos que criptografam o conteúdo de um dispositivo e o liberam mediante pagamento de resgate em criptomoedas. O hospital universitário de Brno, na República Tcheca, centro de testes do novo coronavírus, sofreu um ataque de ransomware (Newman, 2020). Criminosos conseguiram acesso ao sistema do hospital e criptografaram os bancos de dados (Arbulu, 2020). O hospital não pagou o resgate e, como consequência, as atividades foram momentaneamente suspensas e os pacientes foram remanejados (Schwartz, 2020).

Outro exemplo recente de ataque de ransomware ocorreu no Distrito de Saúde Pública de Champaign-Urbana, em Illinois, EUA. Como a instituição possuía backup dos dados, seus serviços não foram severamente afetados com o não pagamento de resgate (Nichols, 2020). Os bilhões de dólares de prejuízo causado pelo ransomware WannaCry de 2017 deixou importantes lições de alfabetização digital para os entes administrativos, dentre elas a realização de constantes backups do sistema (Coughlin, 2017).

Sites públicos são alvos de cibercriminosos, que buscam vantagens mediante a criação de clones que simulam sites oficiais. Recentemente, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA sofreu um ataque de DDoS (Distributed Deny of Service) que objetivava indisponibilizar o site da instituição. Com isso, pessoas perdiam a referência oficial e tinham que procurar outra fonte de dados sobre a pandemia que poderia não ser “legítima” ou estar infectada com códigos para “roubar” dados do usuário (Morrison, 2020).

Nota-se que os excluídos digitais têm permanente “acesso negado” aos sistemas de informação eletrônicos, razão pela qual, na prática, a exclusão digital guarda semelhanças sociais a uma das vulnerabilidades técnicas “tradicionais” do ciberespaço.

4. A TRANSPOSIÇÃO DO AMBIENTE SOCIAL PARA O CIBERESPAÇO: INOVAÇÕES, DESAFIOS, VULNERABILIDADES E LIÇÕES PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A crescente operacionalização do ciberespaço pela administração pública impulsionada pela COVID-19 engendra inovações, desafios, vulnerabilidades e lições.

Nas últimas semanas, noticiários televisivos mostram reuniões virtuais de autoridades nacionais, nas quais plataformas de videoconferência são utilizadas (Behnke, 2020; Matsuura, 2020; O Estado de S. Paulo, 2020). Visando a responder demandas impostas pela pandemia, entes públicos e privados têm transferido atividades para o ciberespaço. Contudo, a utilização dessa alternativa para atividades profissionais e educacionais e para a coordenação de políticas públicas potencializa as vulnerabilidades técnicas e sociais do ciberespaço. Segundo Sampaio (2016), enquanto é necessário admitir as vantagens da participação da sociedade no ciberespaço, é preciso reconhecer as limitações existentes.

A transposição de atividades laborais presenciais para o ciberespaço enseja um tipo de exclusão social, uma vez que somente parte da sociedade consegue manter seu emprego e renda. Ao universo de cidadãos que perderam drasticamente seu sustento, o Governo Federal lançou um programa de auxílio emergencial (Decreto 10.316, de 7 de abril de 2020) para mitigar os efeitos socioeconômicos da pandemia. Essa ação evidencia vulnerabilidades técnicas e sociais do ciberespaço.

Para cumprir as determinações do Governo, a Caixa Econômica Federal (CEF) lançou o site e o aplicativo “Caixa Auxílio Emergencial”, nos quais cidadãos assistidos pelo referido Decreto poderiam solicitar o auxílio emergencial. O banco disponibilizou uma central telefônica para esclarecimentos que, contudo, apresenta problemas (UOL, 2020). Beneficiários do Bolsa Família estavam automaticamente cadastrados e receberiam o auxílio extra na mesma conta do programa governamental regular.

Para receber o auxílio emergencial, os demais interessados realizam cadastro no site ou aplicativo da CEF, ação que demanda posse de CPF regularizado. Com essa exigência, a desinformação, problemas técnicos e a precariedade dos canais de informação não presenciais, muitos foram às ruas, formando filas e aglomerações e contrariando as recomendações de combate à pandemia (Lara, 2020). Mais grave, muitos brasileiros “invisíveis” não possuem CPF (Kerber, 2020).

Realizado o cadastro online, o interessado aguarda análise do Dataprev (Larghi, 2020). Problemas técnicos, demora e desinformação levaram novamente muitos às ruas sem necessidade (G1, 2020). Depois de aprovado, o beneficiado receberia o depósito em conta da CEF ou do Banco do Brasil. Aos não possuidores de conta nesses bancos, seria enviado um código para acesso à Conta Poupança Social, gerido pelo software “Caixa TEM” (CEF, 2020). Esta última alternativa apresenta outro problema: o código tem validade de duas horas (Branco, 2020), o que é uma dificuldade para aqueles com problemas de locomoção ou de acesso à internet e/ou que utilizam aparelhos emprestados para acessar o aplicativo ou site da CEF.

Os principais problemas enfrentados pela população não residem no desenho dos sistemas da CEF, mas nos requisitos para sua utilização. Inicialmente, dados de 2019 mostram que 6,8% da população brasileira acima dos 15 anos é composta de analfabetos (Gazeta do Povo, 2020). Esses, obviamente, são excluídos do universo digital. A desigualdade de acesso é outro problema: 50% da população de zonas rurais e regiões periféricas e 16,2% das áreas urbanas não possuem acesso à Internet (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica [IBGE], 2018); ao todo, no país, apenas 70,07% da população encontra-se ativa na Internet (Internet World Stats [IWS], 2020c). Além disso, interessados no auxílio ainda poderiam sofrer com problemas relacionados às regras impostas no cadastramento (GooglePlay, 2020) e/ou possuir dispositivos antigos incapazes de instalar o software.

A exclusão digital também se faz presente nas atividades de ensino durante a pandemia. Consoante dados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2018, 34% dos estudantes da rede pública de ensino não possuíam acesso à Internet e 55% não tinham computador (Saldaña et al., 2020). A despeito desses números, após a suspensão das aulas em todo o território nacional por conta da COVID-19, o Ministério da Educação (MEC) autorizou o uso de TICs como alternativa para a continuação do ensino (MEC, 2020).

Somente com forte pressão da sociedade o Governo concordou com o adiamento das provas do Enem deste ano (Betim, 2020). A respeito das desigualdades, o Ministro da Educação teria afirmado em reunião com senadores que “o Enem não foi feito para corrigir injustiças” (Lemos, 2020). O futuro dirá se a histórica desigualdade no desempenho de estudantes de escolas públicas e privadas no Enem (G1, 2016) será agravada pela atual pandemia.

Aulas e atividades laborais foram transferidas para o ambiente virtual via plataformas de videoconferência. A operacionalização do ciberespaço mediante essas ferramentas, inclusive pela administração pública, suscita questões sobre privacidade e segurança.

Ao analisar aplicativo de videoconferência, o Citizen Lab1 destacou que as chamadas passam pelo servidor central da empresa, que assim pode ter acesso às comunicações, arquivos e vídeos compartilhados por meio da plataforma. Ademais, o grupo identificou que chaves de criptografia foram transmitidas por servidores localizados em países diferentes dos que sediam a empresa (Marczak & Scott-Railton, 2020). Essas constatações ganham relevância porque entes públicos brasileiros usam a plataforma em questão para reuniões de trabalho. Logo, dados (potencialmente sensíveis) podem ser acessados por entes privados localizados fora do território nacional. Frisa-se que nenhum aplicativo de comunicação é 100% seguro e que problemas similares também podem ocorrer com o armazenamento de informações e arquivos “na nuvem”, que efetivamente são servidores físicos localizados em diferentes países. No mais, o caso Snowden já expôs vulnerabilidades relativas ao tráfego de informações digitais (Greenwald & MacAskill, 2013).

Outra vulnerabilidade dos aplicativos de videochamadas decorre da prática na qual ciber-atacantes conseguem entrar em reuniões públicas ou descobrem o código de identificação de uma reunião privada. Após entrarem, podem escutar as comunicações ou tentar acabar com reuniões ou aulas, constrangendo participantes com mensagens racistas e/ou pornográficas (O’Flaherty, 2020). Tal questão torna-se mais proeminente conforme usuários postam fotos de reuniões em redes sociais, exibindo o código de identificação da chamada, como fez o Primeiro-Ministro britânico, Boris Johnson, no final do mês de março (Corera, 2020).

Apesar das vulnerabilidades supracitadas, conforme demonstrado em noticiários televisivos, instituições brasileiras como o Supremo Tribunal Federal, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal continuam utilizando plataformas de videoconferências para a realização de sessões ordinárias e votações (Brígido, 2020). Destaca-se que os julgamentos são transmitidos pela Internet e pela TV Justiça, e que nenhuma votação do Congresso foi secreta (Ladeira, 2020).

O caso Snowden deixou importantes lições. No que se refere às iniciativas promovidas pelo Governo brasileiro no ciberespaço, destacam-se os temas “controle orçamentário” (Instrução Normativa nº 01, 2019), “segurança da informação” (Política Nacional de Segurança da Informação, Decreto n. 9.637, 2018) e “confidencialidade e transparência” (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A operacionalização do ciberespaço pela administração pública enfrenta desafios inerentes ao domínio cibernético. É imperativo que setores públicos considerem as vulnerabilidades técnicas e sociais desse ambiente e tomem medidas para combatê-las.

A realização de cursos de capacitação e o desenvolvimento de plataformas e soluções próprias devem acompanhar medidas mais amplas de inclusão digital. Esse desafio não é inédito; sintetiza processos históricos de exclusão social.

Os problemas relacionados ao ensino por plataformas digitais e as dificuldades no acesso ao benefício emergencial do Governo Federal deixam relevantes lições para a administração pública: a exclusão digital é uma face nefasta da operacionalização do ciberespaço. Como visto, apenas 70% da população brasileira é ativa na Internet (Pop.AI).

Sobre o auxílio emergencial, as experiências de países de realidade digital e/ou social semelhante ao Brasil pouco oferecem como alternativa. Segundo Ozili (2020), no continente africano, apenas Nigéria (Pop.AI 61,2%, IWS, 2020a) e Malauí (Pop.AI 14,2%, IWS, 2020a) têm programas de auxílio emergencial de renda. O governo nigeriano realiza a distribuição de aproximadamente USD 52,00 para famílias registradas no National Social Register of Poor and Vulnerable Households via transferência bancária (Human Rights Watch [HRW], 2020). A Índia (Pop.AI 40,6%, IWS, 2020d) adota modelo parecido, distribuindo USD 6,60 para mulheres cadastradas no Programa Jan Dhan, mediante depósito em conta bancária (The Economic Times, 2020). Ambos os programas são similares à transferência que ocorre no Brasil para os beneficiários do Bolsa Família. A Argentina, que tem 93% da Pop.AI (IWS, 2020c), adotou medidas semelhantes à brasileira: cadastramento totalmente online dos beneficiários e pagamento direto em conta bancária (Argentina, 2020).

O Brasil poderia ter adotado soluções mistas praticadas por Estados igualmente afetados pela pandemia, conforme sintetizado no quadro seguinte:

QUADRO 1
DISTRIBUIÇÃO DE AUXÍLIOS EMERGENCIAIS

Apesar de possuírem elevado percentual de Pop.AI, nenhum dos países listados confiou tanto no ciberespaço para o pagamento do auxílio emergencial quanto o Brasil. O cadastramento via local de trabalho (Reino Unido e Espanha), base de dados da Receita Federal (EUA) ou Previdência Social (Itália), e o recebimento via Correios (EUA), folha de pagamento (Reino Unido e Espanha) ou depósito em conta de preferência do beneficiado (EUA, Reino Unido e Itália) poderiam minimizar os problemas enfrentados por muitos brasileiros. Questões sociais, como a informalidade, dificultariam a reprodução integral dessas medidas no país.

As vulnerabilidades do ciberespaço para a administração pública são técnicas e sociais e, em países de elevada desigualdade social, são mais difíceis de sanar. Ainda que seja impossível prever o mundo após o isolamento social, analogamente ao combate infeccioso, é possível vislumbrar que uma maior exposição do aparato administrativo à realidade cibernética engendre práticas e hábitos que levarão à criação de “anticorpos cibernéticos”. Com isso, setores governamentais não somente se tornariam mais conscientes das vulnerabilidades que emanam do domínio cibernético, mas poderiam combatê-las e evitá-las em seu trabalho cotidiano.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Grupo interdisciplinar baseado na Universidade de Toronto, especializado em pesquisa e desenvolvimento de políticas referentes a TICs, direitos humanos e segurança (The Citizen Lab, 2020).
  • O artigo faz parte dos esforços do projeto de pesquisa Ciência, Tecnologia e Inovação em Defesa: Cibernética e Defesa Nacional aprovado pelo edital 27/2018, Programa de Apoio ao Ensino e à Pesquisa Científica e Tecnológica em Defesa Nacional - PRÓ-DEFESA.
  • 3
    Os autores agradecem a leitura crítica da Prof.ª Dr.ª Karina Rodrigues e os aportes dos revisores da RAP e obviamente os eximem de qualquer falha porventura apresentada no artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2020
  • Aceito
    19 Jun 2020
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