Resumo
O Ministério Público (MP) brasileiro é conhecido por sua autonomia e seus baixos níveis de accountability. No entanto, a literatura ainda não explorou a diversidade entre os Ministério Públicos estaduais (MPEs), isto é, não considera a dimensão territorial em suas análises e como as diferentes dinâmicas políticas locais podem influenciar nos diferentes níveis de autonomia e capacidade dessas organizações. Dessa forma, o artigo tem por objetivo compreender em que medida os MPEs diferem em termos de autonomia e capacidade. Para tanto, foram utilizados métodos mistos de análise, além da construção de um indicador de autonomia financeira e capacidade. Observaram-se grande diversidade e enorme desigualdade entre os MPs. Ademais, foi possível notar como essas diferenças são reflexo da dimensão territorial, inclusive no que diz respeito às dinâmicas políticas locais.
Palavras-chave: autonomia; capacidade estatal; ministério público; federalismo
Resumen
El Ministerio Público brasileño es conocido por su autonomía y sus bajos niveles de rendición de cuentas. Sin embargo, la literatura aún no ha explorado la diversidad entre los ministerios públicos estatales, es decir, no considera la dimensión territorial en sus análisis y cómo las diferentes dinámicas políticas locales pueden influir en los diferentes niveles de autonomía y capacidad de estas organizaciones. Por lo tanto, el artículo tiene como objetivo comprender en qué medida difieen los ministerios públicos estatales en términos de autonomía y capacidad. Para ello, se utilizaron métodos mixtos de análisis, además de la construcción de un indicador de autonomía financiera y capacidad. Se observó una gran diversidad y una enorme desigualdad entre los ministerios públicos. Además, fue posible notar como estas diferencias son reflejo de la dimensión territorial, incluso en lo que respecta a las dinámicas políticas locales.
Palabras clave: autonomía; capacidad estatal; ministerio público; federalismo
Abstract
The Brazilian Public Prosecutor’s Office is known for its autonomy and low levels of accountability. However, the literature has yet to explore the diversity among the Public Prosecutor’s Offices in Brazilian states, neglecting the territorial dimension in analyses and how different local political dynamics influence these organizations’ autonomy and capacity. Thus, this article aims to understand to what extent the Public Prosecutor’s Offices in Brazilian states differ in terms of their financial autonomy and capacity. The study employed mixed methods of analysis and proposes an autonomy and capacity indicator. The results unveiled significant diversity and considerable inequality among the offices. Furthermore, it was possible to observe how these differences reflect the territorial dimension and local political dynamics.
Keywords: autonomy; state capacity; public prosecutor’s office; federalism
1. INTRODUÇÃO
Estados confrontados por diferentes desafios públicos, apresentando distintos níveis de capital social e dinâmicas políticas, originam organizações que se distinguem em relação a autonomia, capacidade e estruturas institucionais específicas. Além disso, essas organizações são impactadas pelas diversas relações políticas que as envolvem. Esta pesquisa busca compreender os efeitos do federalismo na diversidade de autonomia, capacidade e construção institucional de organizações de uma organização do sistema de justiça. Partimos, portanto, da seguinte pergunta: como diferentes contextos políticos e sociais contribuem para diferenças de autonomia e capacidade nos Ministérios Públicos estaduais (MPEs)?
A escolha do objeto se deu porque os MPEs são organizações inseridas no contexto federativo; são autônomos, em termos formais, sendo essa variável possível de isolar para investigar outras relacionadas com autonomia e capacidade estatal; apresentam estruturas formais parecidas, o que possibilita a análise comparativa; são autônomos entre si, isto é, sofrem interferência de contextos distintos e de dinâmicas sociais e políticas de cada estado.
Dessa forma, este trabalho tem como objetivo compreender em que medida os MPEs diferem em termos de autonomia e capacidade. Para isso, propomos uma matriz de análise comparativa dos Ministérios Públicos (MPs), que, utilizando literatura existente, define dimensões específicas para medir autonomia e capacidade. Foi possível, assim, propor um quadro dos MPs e investigar a relação entre os conceitos.
A literatura que aborda o MP, tanto no campo do direito quanto no da ciência política, frequentemente aponta para uma considerável autonomia institucional. Além disso, são comumente destacáveis a ampla margem de discricionariedade e a baixa prestação de contas associadas a essa instituição. No entanto, essa suposição, muitas vezes, se baseia numa visão normativa do órgão, que não leva em consideração o processo de construção social e política da autonomia que o MP exerce.
Em outras palavras, a compreensão tradicional da autonomia e da discricionariedade nem sempre reflete a complexa interação entre essa instituição, o contexto social e político em que atua e a maneira como tal autonomia é moldada por fatores diversos. Esse já tem sido um esforço mais comum na literatura que adota uma chave sociológica, porém poucos são os trabalhos comparativos e que consideram fatores como aqueles ligados ao contexto mais amplo, inclusive de problemas públicos próprios de cada estado.
O foco no MP, e não em outros órgãos de controle, se justifica por ser essa uma organização essencial nos contextos estadual e nacional, a qual acumula muitas e importantes funções, como o monopólio da ação penal, o controle externo da atividade policial, a defesa da ordem jurídica democrática e o controle sobre políticas públicas. Também é uma organização que não está vinculada a nenhum poder, tendo sua autonomia reconhecido pela Constituição.
Buscou-se investigar a relação entre autonomia e capacidade na apresentação da perspectiva territorial como essencial para compreender diferenças entre organizações públicas, na proposta de um indicador e de uma operacionalização desses conceitos, bem como, empiricamente, na apresentação de um primeiro quadro comparativo dos MPEs.
Pode-se identificar grande diversidade em relação à autonomia, à capacidade e aos desenhos institucionais dos MPEs. Ademais, verificamos como o contexto estadual é um fator importante para as diferenças encontradas. A riqueza e o capital social de cada estado foram fatores importantes para compreender os níveis de autonomia financeira e de reputação organizacional, ainda que não sejam suficientes. Os índices de capacidade parecem estar ligados a outros fatores, como tamanho e porte estadual. No que se refere aos problemas públicos, eles influenciam o desenho institucional. Por fim, a relação com a política local também é importante quando se trata da conquista de autonomia financeira.
Além dos fatores exógenos, verificamos a importância de fatores endógenos, como fontes de explicação para as diferenças entre as unidades, o que merece aprofundamento em futuras pesquisas. Ele está atrelado à importância da liderança exercida pelos procuradores-gerais de Justiça (Rodrigues & Marinho, 2023).
Ressaltamos, porém, a possibilidade de uma investigação mais detalhada sobre como diferentes contextos políticos podem impactar as disparidades de autonomia e capacidade, o que não pôde ser feito neste trabalho. Essa questão requer uma exploração mais aprofundada por meio do desenvolvimento de estudos de caso utilizando análises comparativas.
Sobre a estrutura deste artigo, além desta introdução, apresentamos uma breve discussão sobre autonomia e capacidade e sobre MP no federalismo brasileiro. Depois, expomos os métodos e os dados adotados para a análise das diferenças institucionais e de capacidade e autonomia, detalhando como se deu a operacionalização do indicador. Por fim, há a discussão e as considerações finais.
2. AUTONOMIA E CAPACIDADE EM ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS
A autonomia administrativa, inicialmente, se refere à habilidade de organizações públicas em determinar as próprias preferências e traduzi-las em ações de autoridade (Bach, 2014). Esse é um conceito multidimensional (Cingolani, 2013; Verhoest et al., 2004), tornando cruciais diversos fatores para medi-la no sentido de que devem ser consideradas dimensões para além de seus desenhos formais (Maggeti, 2007; Verhoest et al., 2004). Neste trabalho, selecionamos algumas dimensões de autonomia e capacidade para medir as diferenças entre os MPEs.
É possível classificar a autonomia formal, que diz respeito ao modelo institucional que lhe dão forma, e a autonomia “de fato”, que são os reais poderes de tomada de decisão por parte das instituições (Bach, 2014; Busuioc, 2011) que se traduzem em ações regulatórias no dia a dia (Maggetti, 2007). Essa separação é importante para compreendermos que nem sempre a autonomia formal se traduz em autonomia de fato, isto é, uma organização formal em termos institucionais não necessariamente será autônoma em suas práticas.
Carpenter (2001) desenvolve a noção de conquista da autonomia com base em três grandes características: reputação organizacional, legitimidade burocrática e construção de coalizões múltiplas. Sabendo disso, podemos entender que a habilidade de alcançar seus objetivos não estaria somente atrelada à capacidade estatal ou organizacional, mas também a fatores que incluem a conquista de legitimidade entre stakeholders (Bach, 2014), de reputação e coalizões políticas em redes de atores diversos. Cabe salientar também o papel dos membros da organização na conquista da autonomia (Carpenter, 2001). Isso quer dizer que redes políticas e conexões importam para a autonomia de organizações (Lotta & Santigo, 2017).
Segundo Verhoest et al. (2004), os tipos de autonomia são: gerencial, aquela que diz respeito a ações gerenciais internas à instituição, como definição de princípios, procedimentos e transações; em procedimentos, aquela que se relaciona com a escolha de quais instrumentos utilizar, a definição de objetivos próprios e normas de implementação; estrutural, aquela que se refere a quem escolhe o chefe da agência e quem o avalia; financeira, aquela que remete à fonte dos recursos da agência; legal, aquela que avalia em que medida o status legal da organização está ou não ligado ao governo central; e interventiva, aquela que diz respeito a quanto as decisões internas à agência precisam ser reportadas ao governo central.
Elisson (1995) ainda identifica expertise, suporte público e político, vitalidade organizacional e liderança como elementos essenciais à autonomia das organizações. Além dele, Peters (2015) fala de habilidade em advocacy e comprometimento daqueles que a compõem. Fica claro, portanto, o aspecto relacional da autonomia, assim como a importância das características próprias e internas às organizações. Melhor dizendo, ela não se encerra na relação agente-principal; é a consequência da inserção das organizações em redes complexas e na sua relação com múltiplos atores (Maggeti & Verhoest, 2014).
Também é possível identificar diversidade quando tratamos de organizações autônomas. Mesmo aquelas que apresentam estruturas institucionais parecidas, podem se mostrar muito diversas (Bach, 2014). No que diz respeito ao nível de autonomia, Bach (2014) observa como o contexto afeta a autonomia na gestão de recursos humanos em instituições formalmente parecidas na Alemanha e na Noruega. Buta (2021), no mesmo sentido, identifica como condições associadas ao contexto social e institucional apresentam relações suficientes para altos níveis de autonomia formal nas Defensorias Públicas de dezesseis países latino-americanos. De modo similar, Buta et al. (2022) demonstram como, no caso de organizações de controle, autonomia é essencial para garantir o desempenho dessas organizações, como no controle sobre políticas públicas.
Debruçamo-nos sobre as dimensões de capacidade, as quais, segundo Grindle (1996 como citado em Grin et al., 2021), são: capacidade administrativa, institucional, técnica e política. Enquanto a primeira trata da eficiência organizacional, as capacidades institucionais e técnicas estão ligadas às habilidades de definir regras do jogo e formular e administrar políticas, respectivamente. Já as capacidades políticas estão atreladas a canais legítimos e eficazes para lidar com conflitos e demandas sociais.
Cingolani (2013) vê a capacidade política como o nível de poder exercido por líderes eleitos, a fim de fazer valer suas prioridades, isto é, organizações autônomas precisam de recursos para ação, de forma que sejam capazes de perseguir seus interesses autonomamente. Assim como para o conceito de autonomia, as habilidades político-relacionais importam para compreender o poder da instituição em alcançar seus objetivos.
Parte da literatura vê no desenvolvimento da autonomia a construção de capacidade por parte das organizações. Investigá-la estaria ligado, por conseguinte, à análise das estruturas organizacionais essenciais para que governos cumpram suas tarefas (Evans et al., 2002) e significa o domínio de atributos técnicos e administrativos mobilizados para a ação estatal (Grin et al., 2021).
Para Peters (2015), os recursos da administração pública estariam pautados em quatro elementos: expertise, habilidade processual, estabilidade e recursos políticos. Sobre o primeiro ponto, ele diz respeito ao domínio na área de atuação da organização, ao conhecimento sobre os clientes e às condições no domínio político que atendem. Já a habilidade processual é a capacidade de instituições burocráticas de fazer as coisas acontecerem, ou seja, são especialistas nos processos necessários à implementação de políticas públicas. A estabilidade no cargo também é um importante recurso das organizações burocráticas (Carpenter, 2001; Peters, 2015), que detêm recursos políticos que são fruto de conexões com clientes e da capacidade de mobilizá-los para pressionar os tomadores de decisão a seu favor (Peters, 2015, p. 221).
Apesar de a autonomia pressupor algum nível de capacidade, essa relação não é necessariamente proporcional (Bersch et al., 2017). As diferentes dimensões de autonomia também podem, em alguma medida, ser empregadas para a investigação de capacidades. As pesquisas que tratam de capacidade estatal já vêm demonstrando essas diferenças em análises comparativas entre países, assim como nas diferenças notadas entre governos locais num contexto federativo (Cingolani, 2013; Grin et al., 2021).
Dessa forma, este trabalho se vale da literatura existente e define dimensões distintas para operacionalizar cada um dos conceitos. Escolhemos identificar as dimensões que podem ser mensuradas com base em dados e informações disponíveis sobre os MPEs. É importante notar que isso depende não só do arcabouço teórico, mas também do contexto empírico, ou seja, da organização que se pretende analisar e das informações disponíveis. Assim, concentramo-nos em dimensões específicas de autonomia e capacidade.
No que tange à autonomia, examinamos a dimensão financeira. Para facilitar a comparação e a análise abrangente de todos os estados, decidimos empregar dimensões que possam ser quantificadas, permitindo a comparação de um maior número de casos. Quanto à capacidade, levamos em consideração as variáveis técnico-administrativas e habilidade processual.
3. O MINISTÉRIO PÚBLICO NO FEDERALISMO BRASILEIRO
O federalismo brasileiro tem suas origens no estadualismo oligárquico, com forte poder dos governos dos estados no processo de redemocratização (Abrucio, 1998). O conflito entre União e governos locais estaduais é marca constitutiva da trajetória da federação, assim como as diversas heterogeneidades que a compõem e que se expressam em seus aspectos físicos, como tamanho e distintos ecossistemas, com regionalismos e um contexto de profunda desigualdade socioeconômica.
As desigualdades e as heterogeneidades constitutivas da federação são observadas no nível de implementação de políticas públicas e no nível entre organizações. No caso das de controle, essa realidade ainda é pouco conhecida. No caso dos MPs, já foi chamada a atenção para os efeitos do federalismo no seu desenho institucional e organizacional (Abrucio et al., 2021). Outro exemplo são os diferentes arranjos institucionais e capacidades dos MPEs para lidar com a temática da educação, apontando efeitos da autonomia organizacional (Taporosky & Silveira, 2023; Ximenes et al., 2022).
Como veremos, o contexto organizacional formal e o ambiente institucional no qual estão inseridos os MPs contribuem para diferenças organizacionais e desigualdades de autonomia e capacidade entre as unidades.
A divisão dos governos também confere dinâmicas políticas próprias ao território, em especial porque governos regionais podem exercer controle sobre organizações em seu domínio. As desigualdades e as heterogeneidades são percebidas no nível das políticas públicas e entre organizações. Dessa maneira, elas assumem diferentes graus de autonomia que variam segundo os distintos níveis de poder de ação e de características do corpo burocrático (Lotta & Santiago, 2017), de acordo com o contexto social e institucional no qual estão incluídos.
Para entender a atuação dos MPs, é preciso levar esses pontos em consideração. Melhor dizendo, compreender o ambiente institucional no qual estão inseridos, assim como seu contexto organizacional (Abrucio et al., 2021). Apesar de a Lei Orgânica ter definido uma estrutura de composição dos órgãos da administração superior, parte importante da definição e da estrutura dos órgãos de execução e auxiliares foram deixados para definição das leis orgânicas estaduais e resoluções internas. Isso significa que todos os MPEs detêm semelhanças e diferenças em seus desenhos institucionais. As distinções, além de aparecerem nos desenhos institucionais, também estão presentes no tamanho e na estrutura, bem como nos níveis de autonomia e capacidade de cada unidade, o que investigaremos nas próximas seções.
4. OPERACIONALIZANDO AS DIMENSÕES DE AUTONOMIA E CAPACIDADE PARA UMA ANÁLISE COMPARATIVA
4.1. Dados
Este trabalho adotou estratégia de métodos mistos para a compreensão das diferenças institucionais e da diversidade de autonomia e capacidade dos MPs. Para a análise das diferenças institucionais, realizou-se uma análise qualitativa e de conteúdo das Leis Orgânicas dos MPEs e pesquisa nos sites institucionais. Na análise quantitativa, foi empreendida a comparação dos níveis de autonomia e capacidade. Para a operacionalização, foram usados dados sobre os fundos especiais dos MPEs, a quantidade de membros por habitante e de servidores por habitantes e a quantidade de procedimentos por membro. A descrição dos dados e a identificação com a literatura previamente apresentada estão descritas no Quadro 2.
Os dados não permitem identificar autonomia política ou “de fato” dessas organizações. Para isso, é indispensável realizar outro tipo de análise e uma natureza diferente de dados. Por fim, a escolha dos dados foi limitada no seu período de análise e na natureza dos dados selecionados por ausência de levantamentos mais completos sobre os MPs no Brasil.
4.2. Método
Para verificar as diferenças institucionais, foi empreendida uma análise de documentos e dos sites institucionais. Para o gasto com pessoal, uma análise descritiva dos dados, assim como a etapa quantitativa da pesquisa. Com a intenção de medir a diversidade entre os MPEs, optou-se pela construção de um indicador que permitisse realizar a análise comparativa entre os estados e interpretar as diferenças e as posições que cada um ocupa na federação, sem necessariamente julgar o nível ideal de autonomia ou de capacidade. Em outras palavras, trata-se de uma estratégia que visa à construção de um quadro comparativo para compreender as diferenças e as aproximações entre as unidades dos MPEs.
A partir dos dados coletados (Quadro 2), foi feita uma análise fatorial exploratória (AFE) para calcular os pesos de cada variável. A AFE permite reduzir o número de variáveis para um conjunto menor de fatores (Matos & Rodrigues, 2019). Esse é um método que não verifica dependência entre variáveis, e sim sua interdependência visando à identificação de uma estrutura entre elas (Hair et al., 2009). Em outras palavras, a análise fatorial “promove a redução de um conjunto de variáveis a um conjunto menor” (Matos & Rodrigues, 2019, p. 15). No caso em questão, foi escolhido o modelo exploratório, isto é, um modo indutivo a partir dos dados observados. Os resultados podem ser observados na Tabela 1:
Após o cálculo da AFE, foi aplicada uma técnica de normalização dos valores para as variáveis correspondentes, que converte os dados para uma escala comum, mas sem distorcer as diferenças nos intervalores. Dessa forma, os coeficientes puderem ser multiplicados aos valores das variáveis e pôde-se calcular a média do período selecionado. Abaixo, observam-se as equações (1 e 2) para o cálculo de autonomia e capacidade.
Equação 1 - Cálculo de autonomia financeira
Equação 2 - Cálculo de capacidade
Por fim, os MPEs foram classificados segundo a média de autonomia e capacidade. Isto é, agrupamos os estados segundo sua posição em relação às médias de autonomia e capacidade.
5. RESULTADOS
5.1. As dimensões políticas e territoriais e as diferenças institucionais nos Ministérios Públicos
Apesar de a Lei Orgânica Nacional do MP ter disposto normas gerais sobre a organização dos MPs, determinadas características contribuem para o surgimento de diversidades entre as unidades, como a liderança exercida pelo procurador-geral de Justiça (PGJ), os problemas públicos e a relação com a política local.
Foram definidas Leis Orgânicas distintas para os MPEs e o Ministério Público da União (MPU).1 Como o objetivo do artigo é compreender em que medida os diferentes contextos podem contribuir para diferenças entre os MPEs e estes são regidos por uma única Lei Orgânica, não foi incluído em nossa análise o MPU. No entanto, a partir de dados de 2021, é possível observar as diferenças, em termos de quantidade, entre as regiões, os MPEs e o MPU (Tabela 2). Chama a atenção a região Sudeste, que apresenta média muito acima quando comparada com outras, inclusive com a União.
Os MPEs, embora proporcionem um controle maior sobre o PGJ em comparação com o procurador-geral da República (PGR) no Ministério Público Federal (MPF), desempenham funções cruciais na instituição (Kerche, 2009). Em outras palavras, mesmo inexistindo uma hierarquia funcional entre os membros, o líder do MPE concentra funções administrativas relevantes, exercendo controle sobre a respectiva unidade. Como defenderemos, esse aspecto é um fator significativo para as disparidades institucionais entre os MPEs. Ademais, a criação de forças-tarefa e grupos especiais para tentar driblar as limitações encontradas pelo chefe do MP para incentivar ou desestimular determinados comportamento já foi identificada por Kerche (2018) na análise do contexto da Lava Jato.
As responsabilidades administrativas do PGJ abrangem a criação e a modificação de cargos e serviços auxiliares, assim como a designação de membros para ocupar posições que não requerem concurso público. Os órgãos auxiliares, que variam em nomeação, função e quantidade, compreendem instâncias como procuradorias adjuntas, gabinetes e secretarias, centros de apoio operacional e técnico, núcleos de especialização, centros de formação, estagiários, grupos de apoio operacional e, em determinadas situações, as ouvidorias. Eles representam domínios de autonomia para os MPs, permitindo ajustes conforme as necessidades de seus estados e as preferências dos membros, bem como os interesses específicos de grupos envolvidos (Abrucio et al., 2021; Rodrigues & Marinho, 2023; Viegas, 2020). Em suma, existe um aspecto formal que determina seu formato institucional, além de um espaço para decisões políticas nessas organizações.
Os PGJs têm a responsabilidade de conduzir investigações contra o governador, os presidentes da Assembleia Legislativa e do Tribunal de Justiça. De acordo com a Constituição de cada estado, essa prerrogativa também pode se estender a deputados estaduais, em casos de crimes comuns, e/ou secretários de governo. Em resumo, quando o governador nomeia o chefe do MP, está designando alguém com a autoridade para conduzir investigações contra seu próprio governo, conferindo a essa pessoa o papel de liderar a instituição encarregada pelo controle da administração pública em investigações envolvendo membros do governo.2
Os elementos essenciais dos órgãos de execução também se encontram na esfera de autonomia de cada MPE e estão sujeitos à influência dos interesses de seus membros, incluindo a organização de procuradorias e promotorias de Justiça. Além disso, outros órgãos, como grupos de atuação especial, núcleos e coordenadorias, podem ser incorporados. Contudo, a estrutura e a definição das funções entre os órgãos de execução e os auxiliares podem variar substancialmente entre os diferentes MPEs.
Como é possível observar no quadro 3, são diversos os temas dos centros de apoio identificados nos MPEs. Eles também representam o direcionamento de recursos humanos e sua estrutura administrativa para determinados assuntos. No entanto, variam enormemente em cada unidade, com algumas semelhanças, como a prevalência de alguns temas específicos, como meio ambiente, infância, juventude e criminal. Os cinco estados com maior número de centros de apoio são Mato Grosso do Sul (25), Ceará (23), Minas Gerais (23), Mato Grosso (22) e Rio Grande do Sul (22). Roraima, Rondônia, Rio Grande do Norte, Paraná, Goiás e Alagoas apresentam apenas um.
Há também semelhanças em grupos de atuação especial de combate ao crime organizado (Gaecos) em todos os MPEs (Viegas & Rodrigues, 2021). Tal constatação sinaliza que, para além das especificidades - como no Grupo de Trabalho para Recuperação do Rio Doce (GTRD), no Espírito Santo; no Centro de Apoio Operacional de Proteção ao Rio São Francisco e Nascentes, em Sergipe; nas promotorias especializadas na Defesa do Meio Ambiente da Bacia Hidrográfica do Baixo Acre, em conflitos agrários no mesmo estado e no Grupo de Atuação Especial em Grandes Eventos do Futebol (GFUT), em Goiás -, há objetivos em comum sendo perseguidos pelo MPs nas diferentes unidades da federação.
Diferenças no nível de especialização também já foram identificadas no tema específico da educação (Ximenes et al., 2022) e de capacidades para lidar com políticas públicas (Taporosky & Silveira, 2023). Nesse caso, a especialização não parece estar relacionada somente com fatores ligados ao tamanho do orçamento, mas também com características e problemas públicos próprios de cada estado, histórico e trajetória de cada MP e fatores endógenos, como as preferências de seus membros e o papel de liderança do PGJ.
Acerca da interação com o sistema político, apesar de ser impossível mapear de forma exaustiva, não são poucos esses momentos formalmente definidos. Três deles são óbvios: a escolha do PGJ pelo governador, a aprovação da proposta orçamentária para o Legislativo e a escolha do desembargador para a vaga do quinto constitucional. Ainda há fixação, revisão, reajuste e recomposição dos subsídios dos membros, bem como vencimentos de servidores. Como podemos observar no Gráfico 1, além de apresentar diferenças no que concerne ao tamanho do orçamento, o gasto com pessoal é crescente nos anos analisados.
O sucesso na interação com atores políticos dependerá das capacidades políticas dos membros do MP, que pode ser identificada, sobretudo, na aprovação do orçamento e dos subsídios. É importante notar que, mesmo que a Constituição tenha optado por um desenho institucional que privilegiasse a autonomia da organização, os MPs não estão completamente isolados de outros atores e do sistema político, (Kerche, 2009), sendo necessário considerar outros fatores além daqueles formais (Viegas, 2020).
5.2. Diferenças de autonomia e capacidade a partir de uma análise comparativa
5.2.1. Autonomia financeira
Uma medida comum de autonomia é a financeira (Verhoest et al., 2004). Para medir essa variável, utilizamos como proxy os valores dos fundos especiais dos MPEs. Os fundos especiais de gestão dos MPEs e os valores não dependem de repasses dos governos estaduais anuais, diferentemente do orçamento do MP. Além disso, representam a habilidade que representantes dos interesses institucionais têm em “conquistar” recursos adicionais para desenvolvimento institucional. Embora não sejam utilizados para pagamento de pessoal, os recursos dos fundos podem ser usados para investimento em estrutura organizacional e desenvolvimento institucional, ou mesmo em projetos externos à instituição e às políticas públicas. Inclusive, na interação com outras instituições, como as Polícias Civis e Militares, já que não são raros os casos em que os MPEs investem recursos de seus fundos para equipar essas instituições.
É essencial ressaltar a importância dos fundos de desenvolvimento, inclusive, para o processo de ampliação e estruturação dessas organizações. Como relatado por Silveira (2022, p. 123), foi com a conquista de maiores recursos para o fundo de desenvolvimento que o MP de Santa Catarina “ampliou a sua estrutura em algumas comarcas, instalando promotorias em espaços físicos independentes dos fóruns. Também foi a partir do fundo que o MP instalou sua nova sede na capital do estado”. Além disso, representam maior autonomia em relação ao controle sobre o orçamento.
Foram identificados dez tipos de fundos especiais (Tabela 3), somando um total de 44. A maioria é fundos de desenvolvimento, ou seja, voltados ao investimento institucional. O segundo tipo mais relevante são os fundos de reconstituição de bens lesados e de direitos difusos e coletivos, ligados a projetos que tenham relação com a defesa de direitos difusos e coletivos, o que não exclui defesa do consumidor. No entanto, são vários os casos de repasse dos valores desses fundos para o segundo tipo.
Quando analisada a média da soma dos valores dos fundos por estado, é possível observar diversidade (Gráfico 2). Apesar de refletir, em certa medida, os diferentes níveis de desenvolvimento dos estados, constata-se uma enorme discrepância. Como argumentaremos, só a riqueza do estado não explica essas diferenças, porém existem fatores políticos que contribuíram para a construção desse quadro.
Os estados podem apresentar tipos e quantidades distintos de fundos especiais, como é possível observar no Quadro 4. Eles variam em relação a diversas características, como ano de criação e composição de suas receitas. Na análise das leis de criação dos fundos especiais e de outras leis estaduais, como aquelas que definem a distribuição das taxas dos cartórios, podemos notar como alguns estados conquistaram receitas especiais para seus fundos. Porém, esse processo se deu de forma e em períodos distintos.
5.2.2. Técnico-administrativas: membros por habitante e servidores por membro
No caso dos MPEs, eles apresentam diferenças significativas em termos de corpo burocrático. São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro são os estados com o maior número de cargos providos de membros em 2020. Por sua vez, Roraima, Amapá, Acre e Tocantins apresentam os menores números absolutos de membros. Destaca-se a diferença entre Roraima e São Paulo, que varia em torno de 1,9 mil membros.
Entre os MPEs, desconsiderando os MPs da União, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná são os que apresentam maior número absoluto de servidores. Os menores estão em Alagoas, Roraima, Amapá e Acre. A diferença entre São Paulo e Alagoas, que apresentam maiores e menores números absolutos, respectivamente, é de mais de 5 mil servidores de carreira providos.
Além disso, o número de membros e de servidores dos MPs não segue a lógica da quantidade de habitantes por estado ou região, fortalecendo o argumento de que o ambiente organizacional influencia no desenho e na estrutura dos MPs. Também apresentam grande variedade técnico-administrativa, no que diz respeito ao tamanho do corpo burocrático e perfil - relação da quantidade de membros por servidores.
Apesar de os estados mais populosos terem menor cobertura de atendimento em relação à população, quando se comparam os termos absolutos, a diferença é gigantesca entre os estados. Todavia, ainda que a quantidade absoluta de membros e servidores seja importante, por exemplo, na quantidade de membros disponíveis para a construção de capacidade, não acreditamos ser a melhor medida de capacidade. Os estados mais populosos apresentam médias menores, porém, embora sejam também unidades localizadas em estados mais ricos, não significa que a riqueza esteja acompanhada da construção de capacidade (Gráfico 3).
A relação entre membros e servidores também é uma importante medida de capacidade técnico-administrativa. Dado o enorme acúmulo de funções dos integrantes do MP, o trabalho de servidores é essencial para uma atuação mais eficiente e técnica. Além disso, servidores são responsáveis por diversas funções administrativas que concursados na área do direito não demonstram expertise para realizar. Na atuação em políticas públicas, servidores especializados em áreas específicas também exercem uma função importante em vistorias técnicas e de relatórios que podem pautar as decisões de promotores e procuradores. Como é possível observar no Gráfico 4, não existe um padrão entre os MPEs na relação entre membros e servidores, assim como parece não haver relação entre esse índice e o tamanho do corpo burocrático de cada unidade.
5.2.3. Habilidade processual
A última medida utilizada foi a de habilidade processual, que é a capacidade de organizações burocráticas fazerem as coisas acontecerem, ou seja, são especialistas nos processos necessários à implementação de políticas públicas ou de suas metas (Peters, 2015). Analisando a atuação concreta dos MPs, podemos verificar diferenças expressivas entre as regiões (Gráfico 5). Destaca-se, por exemplo, a prevalência na região Sul do uso dos procedimentos como termo de ajustamento de conduta e recomendações. Já as regiões Nordeste e Sudeste concentram boa parte da quantidade de inquéritos civis e procedimentos preparatórios de inquérito civil instaurados, mas é a região Sul que tem o maior percentual de procedimentos finalizados.
Embora a quantidade de procedimentos esteja ligada também à quantidade de membros, verificamos, na região Sul, a prevalência de um estilo de atuação. Mais uma vez, foi identificada uma grande diversidade entre as unidades estaduais. Não constatamos relação entre MPEs em regiões mais ou menos desenvolvidas e eficiência na atuação de seus membros.
5.2.4. Autonomia x Capacidade
A construção do indicador permitiu analisar de forma comparativa os MPEs numa matriz de autonomia e capacidade. Pudemos identificar que autonomia e capacidade não são conceitos que necessariamente caminham de forma conjunta. Os MPs com maiores recursos em seus fundos (autonomia financeira) nem sempre apresentam altos níveis de capacidade; o contrário também acontece. Como apresentado, a construção de autonomia e capacidade depende do contexto no qual as organizações estão inseridas. Em outras palavras, o desenho formal não é determinante.
A análise da matriz, além de indicar o afastamento entre os conceitos de autonomia e capacidade, apresenta as disparidades entre MPEs e a enorme diversidade que eles evidenciam. As linhas pontilhadas no Gráfico 6 representam as médias dos valores de autonomia e capacidade. Destaque-se o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP). Ademais da distância em relação ao nível de autonomia em comparação com outros estados, a capacidade não acompanha o alto nível de autonomia financeira.
O Quadro 5 apresenta uma classificação dos MPEs com base na sua posição em relação à média nacional de autonomia e capacidade. Através dessa análise, é possível constatar que somente o MPSC e o MPMG se destacam por apresentarem, simultaneamente, níveis de autonomia e capacidade superiores à média dos demais estados.
Essa classificação também reforça o argumento de que autonomia e capacidade não estão necessariamente interligadas ou são diretamente proporcionais. Isso significa que um estado pode apresentar alta autonomia, mas não necessariamente possuir uma capacidade elevada, ou vice-versa. Essa constatação é evidenciada pela distribuição dos estados no Quadro 5, onde se observa que a maioria dos MPEs não se encontra no quadrante que representa autonomia e capacidade acima da média, demonstrando que esses dois aspectos podem se manifestar de forma independente.
Portanto, o Quadro 5 não apenas classifica os MPEs de acordo com sua autonomia e capacidade em relação à média, mas também corrobora a ideia de que esses dois fatores não estão obrigatoriamente associados, podendo se apresentar em diferentes combinações nos diversos MPEs do país.
Conquanto seja viável apontar limitações nesse método de categorização, como os casos das unidades situadas na fronteira entre dois grupos e a carência de dados que permitiriam uma análise mais precisa e próxima da realidade acerca a medida de autonomia, ele contribui para uma compreensão mais aprofundada da diversidade e da heterogeneidade das MPEs. Além disso, vale destacar os vários casos em que eles se encontram próximo a média, mas que por uma margem pequena foram categorizados em grupos distintos. Pesquisas futuras com maior profundidade poderão explicar melhor esses dados e situar melhor a posição de casa caso.
6. DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho contribuiu para a investigação da relação entre autonomia financeira e capacidade em organizações públicas, na proposta de um indicador e da operacionalização dos conceitos, apresentando uma perspectiva territorial como essencial para compreender diferenças entre instituições públicas e um quadro inédito comparativo dos MPEs.
Sobre o primeiro ponto, os dados indicam a necessidade de a literatura adotar variáveis claras e transparentes entre medidas de autonomia e capacidade, inclusive demarcando as fronteiras entre esses dois conceitos. Esse achado vai ao encontro de estudos de Bersch et al. (2017). No entanto, nesta pesquisa, demonstramos como existe não só a diversidade quando se trata das diferenças entre autonomia e capacidade, mas também como ambas podem sofrer influência do território e das dinâmicas políticas.
Ademais, apresentamos a comparação entre organizações com as mesmas funções e com desenhos institucionais parecidos. A conquista de autonomia não significa necessariamente a conquista de capacidade por parte das instituições públicas. A análise dos MPEs reforça isso. O indicador apresentado pode ser utilizado em outros trabalhos, voltados à autonomia e à capacidade, aplicados de forma a tornar possível uma análise comparativa entre organizações.
Ainda que demande um aprofundamento, podemos identificar que as fontes de diversidade entre os MPs são várias, entre as quais se destacam: problemas públicos, riqueza/capital social de cada estado, histórico/trajetória de cada MP e relação da organização com a política local. Além disso, a influência de características estaduais nos níveis de autonomia financeira e capacidade, bem como o modo como as desigualdades entre estados se refletem na diversidade dessas instituições.
Analisando os Gráficos 5 e 6, é possível observar que apenas os estados de Santa Catarina e Minas Gerais foram classificados como detentores de capacidade e autonomia acima da média em relação aos demais estados brasileiros. No entanto, é importante ressaltar que, mesmo apresentando um desempenho superior, ambos os estados ainda se encontram próximos da fronteira que delimita a média nacional. Um fator que pode ter contribuído para essa posição de destaque é o fato de que tanto Santa Catarina quanto Minas Gerais conseguiram obter receitas especiais destinadas aos seus respectivos fundos estaduais, conforme evidenciado no Quadro 4.
É possível observar que Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Mato Grosso, Goiás, Mato Grosso do Sul, Acre, Roraima, Amapá, Tocantins e Rondônia, mesmo que apresentem altos níveis de capacidade, quando comparada com outras unidades, não apresentam melhores níveis de autonomia. O primeiro aspecto (capacidade) pode ter influência da quantidade de habitantes, enquanto o segundo (autonomia financeira) está atrelado à riqueza do estado e a fatores políticos que limitaram a maior conquista de autonomia financeira por parte dessas organizações. Apenas Rio Grande do Norte, Goiás e Mato Grosso do Sul conquistaram fundos especiais até o período de coleta de dados para essa pesquisa. É importante salientar que a desigualdade socioeconômica entre estados também se reflete nas organizações sobre sua jurisdição, ainda que não pareça ser determinante e ser o único fator explicativo.
A construção de autonomia e de capacidade passa por negociações políticas e de conquista organizacional na relação com Legislativo, Executivo e Judiciário, por estrutura e orçamento. O orçamento do MP, assim como a criação e a transformação de cargos, precisa ser aprovado pelo primeiro e deve ser incorporada pelo chefe do Executivo nos planos orçamentários. Sobre os fundos especiais analisados, pode-se perceber, por exemplo, um processo de conquista de autonomia financeira na aprovação de receitas para os fundos especiais dos MPEs, que competem por recurso com outras organizações, como o Judiciário e o próprio Executivo.
Os MPs de Ceará, Minas Gerais, Piauí e Paraíba são responsáveis por gerir os institutos de atendimento ao consumidor. Essa é uma fonte de receita adicional aos MPEs, uma conquista que se dá no âmbito da política estadual. O mesmo ocorreu com a conquista das taxas dos cartórios, originalmente repartida com Judiciário, mas que também tem sido disputada pelos MPs. Maranhão e Rio de Janeiro conquistaram para seus fundos o superávit do orçamento geral do MP, que, no lugar de voltar para os cofres estaduais, constituem uma receita adicional à organização.
A aprovação recente da receita especial aos fundos e a riqueza estadual explica os motivos pelos quais alguns MPs analisados ainda não alcançaram mais recursos para seus fundos, como é o caso da Bahia, do Piauí e do Maranhão. Também indica que esse é um processo recente, liderado por alguns estados, como Ceará, Minas Gerais, Paraíba e Santa Catarina, sendo que três deles alcançaram níveis de autonomia acima da média. Além disso, o tamanho da receita está relacionado com a riqueza de cada estado e, a depender do contexto, pode aumentar a capacidade de arrecadação. No entanto, apesar de explicar as diferenças de arrecadação, não explica as distinções institucionais ou no desenho das leis. Um exemplo é Santa Catarina, como relatado por Silveira (2022). O processo de conquista de receita para o fundo especial de modernização e reaparelhamento não se deu longe da disputa política com o Judiciário.
Esse fundo era formado pelas arrecadações dos serviços da Justiça e tinha sua receita voltada para os próprios setores associados ao Judiciário como a manutenção das unidades prisionais do estado, e ‘dos estabelecimentos de proteção aos direitos da Criança e do Adolescente, de responsabilidade do Estado de Santa Catarina’ (Art. 2º). A criação de um Fundo de Reaparelhamento do Ministério Público permitiria um controle maior do MPSC sobre seu orçamento, mas o judiciário estadual deveria repartir um montante de sua receita, o que gerou conflitos na relação entre as classes (Silveira, 2022, p. 123).
O estado de São Paulo se destaca nas análises tanto pelo tamanho do seu fundo especial quanto pela discrepância entre os indicadores de autonomia e capacidade. Em relação ao primeiro, existe um fator forte que diz respeito ao porte populacional dos estados, o que influenciou os valores atrelados à quantidade de membros por habitante. Porém, há também de considerar uma questão de perfil no resultado da quantidade de procedimentos instaurados por seus membros. Ainda assim, é possível identificar a enorme diferença em estrutura e orçamento destinados à unidade em relação aos outros estados.
O segundo ponto merece aprofundamento: por que organizações com altos níveis de autonomia financeira não alcançaram valores parecidos para a construção de capacidade? A despeito da relação de membros por habitante ter um peso importante e estar ligada às características do território, mesmo MPEs mais ricos não apresentaram maior eficiência na relação processos instaurados e quantidade de membros.
São Paulo apareceu como um caso especial na matriz apresentada. Esse é um caso especial por causa da proximidade da organização com a política estadual e por suas conquistas que têm a ver com o processo histórico de desenvolvimento organizacional (Bonelli, 2002; Zaffalon, 2017). Foi nas gestões Orestes Quércia e Luís Antonio Fleury que a organização expandiu enormemente sua estrutura (Bonelli, 2002). O ex-governador e ex-deputado Fleury foi promotor de justiça, presidente da Associação Paulista do Ministério Público (1982 a 1986), secretário de segurança pública no governo Quércia e grande defensor dos interesses da organização, o que refletiu em sua atuação política. Melhor dizendo, existe um peso da riqueza do estado, e isso se impacta nos indicadores, mas esse processo está atrelado a sucessivas conquistas da organização no âmbito da política, como a das taxas dos cartórios como incremento do fundo especial.
A expansão dos MPs nos estados se dá num contexto de enormes poderes institucionais destinados a essas organizações. São os chefes delas, os PGJs, os responsáveis por investigar o governador e os presidentes da Assembleia Legislativa e do Tribunal de Justiça. A depender da Constituição de cada estado, eles exercem a mesma prerrogativa também sobre deputados estaduais, em caso de crimes comuns, e/ou secretários de governo. Esse é um fator em comum, fruto do processo de constituição do nosso federalismo, que reservou enorme poderes aos governadores.
Como demonstramos, os PGJs são uma fonte endógena de diversidade entre as unidades. Eles adotam caminhos distintos na liderança que exercem na organização, sendo responsáveis pela negociação do orçamento e pelas mudanças institucionais que dependem de aprovação da Assembleia Legislativa.
Outro fator que pode estar ligado às diferenças institucionais é o processo histórico de formação dessas organizações, o que explica as diferenças nas leis orgânicas e os desenhos institucionais apresentados, assim como problemas públicos específicos que influenciam na construção de expertise e de diferentes especializações na atuação em políticas públicas. No entanto, as similaridades encontradas devem ser investigadas como uma possível influência de órgãos nacionais, como o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), e não excluir a possibilidade de aprendizado institucional entre as próprias unidades.
Este trabalho não esgota a discussão acerca das diversidades dos MPs. Na verdade, indica a necessidade de aprofundamento, pois as desigualdades estaduais parecem influenciar as desigualdades organizacionais. Porém, as características estaduais, como riqueza do estado e porte populacional, não explicam todas as diferenças institucionais e organizacionais apreendidas. Também não é o único fator explicativo para a discrepância observada em relação ao MPSP e o restante dos estados.
Destaca-se a importância de avançar para análises que olhem para autonomia “de fato” dessas organizações, o que não foi possível neste trabalho. Futuras pesquisas poderão investigar se os PGJs, dada a sua atribuição, atuam de forma autônoma em relação aos interesses dos governadores ou se o desenho institucional, antes descrito, impede que o controle externo seja realizado.
A exposição da variação territorial da autonomia e da capacidade dos MPs visa desviar a atenção dos analistas para o contexto social e político em que essas instituições estão inseridas e com o qual interagem. Isso busca superar a concepção do MP como uma entidade que opera sob uma única ideologia, sem considerar diferenças e singularidades entre suas unidades. Compreender essa diversidade é crucial para análises que buscam entender os impactos da atuação da instituição. Além disso, o objetivo não é fornecer uma conclusão definitiva sobre como mensurar a autonomia e a capacidade, e sim indicar as possíveis direções que podem ser refinadas em pesquisas futuras.
AGRADECIMENTOS
A autora agradece à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de doutorado no período de desenvolvimento da pesquisa e o pesquisador Lucas Falcão Silva pela revisão e apoio na análise dos dados.
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Apesar de o PGJ não processar criminalmente os governadores, função esta do PGR, ele pode atuar em casos de improbidade.
FINANCIAMENTO
Pareceristas:
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Jul 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
14 Jul 2023 -
Aceito
29 Dez 2023