RESUMO
A partir de uma retomada analítica da noção de respeito tal qual aparece principalmente nas religiões de matriz africana e em outros coletivos afroindígenas, este artigo pretende mostrar não apenas a centralidade dessa noção para as práticas vinculadas a essas tradições, como, a partir daí, conectar a noção com a própria prática da antropologia. Por meio de uma cuidadosa justaposição entre filósofos, escritores, pensadores indígenas, afroindígenas, quilombolas e afro-brasileiros, especula-se, assim, a possibilidade de uma relação mais respeitosa com outras práticas de conhecimento, capaz de contribuir para uma renovação das nossas. A experiência dos chamados encontros de saberes funciona, nesse sentido, como um meio a partir do qual se tenta pensar essas questões de modo a estabelecer uma relação transversal com as práticas com as quais se busca dialogar. Ou seja, uma relação definida pelo mais absoluto respeito diante das fronteiras que temos que cruzar para estabelecer esse diálogo, e pela vergonha diante de qualquer possibilidade de assimilar ou destruir aquilo com o que se pretende estabelecer uma relação.
PALAVRAS-CHAVE Afroindígenas; cosmopolítica; encontro de saberes; racismo; religiões de matriz africana
ABSTRACT
Based on an analytical elaboration of the notion of respect, as it is formulated in African American religions and other afroindigenous groups, the article seeks to display the centrality of this notion in the practices linked to these traditions and, from that point onwards, to connect this notion with the practice of anthropology itself. Through a careful juxtaposition between philosophers, writers, indigenous, afroindigenous, Quilombola and Afro-Brazilian thinkers, it speculates about the possibility of a more respectful relationship with other practices of knowledge. A relationship that would be capable of contributing to the renewal of our own practices of knowledge. In this sense, the experience of the socalled "Encontro de Saberes" works as a context from which we set out to think about these issues in order to establish a transversal relationship with the practices with which we seek to dialogue. A relationship defined by the most absolute respect for the frontiers that we have to cross in order to establish this dialogue, as well as by the shame against any possibility of assimilating or destroying that what we intend to establish a relationship with.
keywords Afro-indigenous; cosmopolitics; encounter of knowledges; racism; African American religions
"Chega-se a um ponto em que convém fugir menos da malignidade dos homens do que da sua bondade incandescente. Por bondade abstrata nos tornamos atrozes. E o pensamento de salvar o mundo é dos que acarretam as mais copiosas — e inúteis — carnificinas".
(Carlos Drummond de Andrade)
"You can kill somebody with kindness".
(Bob Dylan)
A MALDIÇÃO DA TOLERÂNCIA
Há quase 25 anos, a filósofa Isabelle Stengers publicou uma série de livros cuja importância, alcance e potência, desconfiamos, ainda não foram inteiramente avaliados. Intitulada Cosmopolíticas1, a série prossegue a narrativa da "invenção das ciências modernas" (Stengers, 1993) de um ponto de vista simultaneamente não triunfalista e não crítico e, ao mesmo tempo, aprofunda o tema de uma possível "consistência" entre as diferentes ciências e destas com as práticas não-científicas, em especial as relacionadas aos que a autora denomina "não-modernos". Nessa narrativa, o primeiro passo consiste, justamente, em tratar o que em geral se denomina Ciência (no singular e com C maiúsculo) como um "amálgama" que é preciso dissolver a fim de encontrar a dinâmica muito mais interessante das "práticas científicas" efetivas. O que de imediato mostra que a consistência que se busca construir, o fato de as práticas científicas (e mesmo não científicas) apresentarem traços em comum, não permite supor nenhuma homogeneidade do campo científico, que faria com que todas devessem obrigatoriamente seguir o modelo original das "ciências de laboratório" ou ser por ele julgadas. Entre outras elaborações, isso permite a Stengers recolocar a velha questão da cientificidade das chamadas ciências humanas, que ela prefere incluir em um conjunto um pouco mais amplo que denomina "ciências da contemporaneidade": práticas científicas nas quais observadores e observados compartilham a mesma escala temporal e onde os primeiros não têm como evitar que os segundos deixem de colocar a questão "o que querem de mim", "quem é você para me formular esta questão" — o que deveria levar, por sua vez, os observadores a indagar "quem sou eu para te formular esta questão"?
Nessas ciências da contemporaneidade, o que poderia corresponder aos princípios que balizam as ciências de laboratório e as ciências de campo, julgamento e prova, aprendizagem e tato, respectivamente? Aqui, parece-nos, a resposta de Stengers não é direta e começa pela introdução do que ela denomina uma "obrigação" própria a esse terceiro campo de práticas científicas: como evitar e resistir ao que a autora denomina "maldição da tolerância". Expressão, sublinhemos, que visa designar essa cumplicidade em geral não percebida entre a tolerância propriamente dita, a intolerância e a indiferença. Maldição mais do que conhecida na prática antropológica, do desencantamento do mundo ao chamado princípio de caridade, passando pelas interpretações simbolistas, exegeses do inconsciente, a quase certeza de que atrás de tudo o que há é político, e assim por diante.
Se no que diz respeito às ciências de laboratório e de campo Stengers nos apresenta com clareza os princípios positivos (julgamento e prova, respectivamente) segundo os quais elas seriam elaboradas, o mesmo não parece ocorrer com as ciências humanas (no sentido amplo de ciências da contemporaneidade). Ou seja, a injunção negativa de resistir à maldição da tolerância não nos parece claramente acompanhada por um princípio positivo — ausência que para praticantes de uma dessas ciências como nós, ao contrário do que ocorre talvez para uma praticante da filosofia, não pode deixar de ser assinalada e problematizada.
Nossa intuição inicial, que se converteu no objeto mesmo deste texto, é que a noção de respeito, no sentido em que gostamos de imaginar que aprendemos com as religiões de matriz africana com as quais ambos trabalhamos, poderia justamente consistir em um princípio positivo permitindo que as ciências humanas fossem praticadas de um modo um pouco mais saudável do que costuma acontecer. Claro que estamos absolutamente cientes dos cuidados que esse tipo de cruzamento transversal entre pensamentos de proveniências distintas exige. Como toda encruzilhada que se preza, esta só deve ser cruzada com todo o respeito, diríamos desde o início.
Um agravante neste caso é que Stengers não costuma demonstrar nenhum apreço pela noção de respeito. Ela, em companhia de Philippe Pignarre, chega mesmo a formular o que poderíamos denominar o paradoxo do respeito:
Como, em nome do respeito por seus costumes, privar os outros de saberes que transcendem qualquer cultura, porque dizem respeito à natureza? E como respeitar esses costumes se isso implica rebaixar ao status de ‘culturalmente relativo’ aquilo que é nosso orgulho: ter compreendido que somos ‘todos humanos’, aos quais devem ser reconhecidos enquanto tais direitos inalienáveis? Como não esperar que, como nós, os outros aprenderão a fazer a triagem entre o universal que nos une a todos e o tão necessário ‘suplemento de alma’ cultural? (Pignarre e Stengers, 2005: 30).
É nesse sentido que a autora costuma reiterar que a fórmula "‘respeito sua diferença’ é um discurso um pouco vazio, que cheira a tolerância e não engaja em nada"; e que muito mais importante do que isso seria "que se honrem as divergências" (Stengers, 2009: 187). Evidentemente, não é difícil entender que alguém imersa na prática filosófica tenha todas as razões para desconfiar da noção de respeito como "uma espécie de imperativo moral", correlato desse abstrato "direito à diferença" que desde a década de 1970 vem sobrecodificando e laminando as asperezas suscitadas pelos movimentos que exigiam respeito por suas singularidades.
De fato, não é muito fácil falar de respeito porque tendemos muito rapidamente a ser envenenados pelos dois sentidos dominantes que o termo costuma ter entre nós, sentidos que apenas aparentemente se opõem. O primeiro é o do respeito como algo que se exige de alguém, em geral algo que é exigido pelos que se consideram superiores dos que eles consideram inferiores ("o devido respeito", como se costuma dizer). A esse respeito, que poderíamos denominar vertical, costuma-se opor um respeito "horizontal" e democrático, aquele que alguma norma geral exige de todos e todas, espécie de submissão ao universal e ao reconhecimento (o respeito aos direitos humanos, por exemplo). Os clichês antropológicos e sociológicos acerca do "Brasil" parecem ser um bom exemplo desse falso dilema. Aos que sustentam que somos, como se diz, uma sociedade hierárquica na qual imperaria a exigência de respeito do "você sabe quem está falando" e/ou a falta de respeito do "jeitinho", costuma-se opor a necessidade de uma generalização e horizontalização democráticas desse mesmo respeito. No entanto, nada mais estranho aos nossos propósitos do que retornar seja ao culturalismo conservador desencarnado da primeira alternativa, seja ao sociologismo apenas aparentemente progressista da segunda.2
Como figura vertical da hierarquia ou horizontal do universal o respeito só pode mesmo ser posto de lado. Ocorre, contudo, que esses dois sentidos possuem algo em comum: justamente o fato de pretenderem colocar em relação seres que são pensados como "comuns", ou seja, como fundamentalmente homogêneos. Que o respeito vertical disfarce essa homogeneidade sob a forma de uma diferença de grau pouco importa, uma vez que como seu congênere horizontal é essa universalidade de fundo que está em jogo. E a única saída que costumamos entrever para isso é a de um respeito tão violento que levaria à evitação e/ou à indiferença. Assim, se o respeito vertical parece ser o caminho mais curto para a intolerância e o horizontal para a tolerância — atitude que, como já adiantamos e à qual retornaremos, só se opõe à tolerância, à evitação e à indiferença de modo muito superficial (Stengers, 2003) —, o que gostaríamos de especular é sobre a possibilidade de traçar uma linha de fuga em relação a esse desenho diabólico. No vocabulário geométrico de Guattari, que utilizamos até agora de modo implícito, a questão seria como imaginar uma espécie de respeito "transversal", capaz de pôr em relação diferenças enquanto diferenças, opondo às moralidades hierárquicas ou pseudo democratizantes do universal uma ética dos bons e maus encontros sempre locais ou situados?
Neste ponto devemos fazer intervir uma obrigação própria à prática antropológica tal qual a concebemos. Ao contrário do que pode ocorrer no exercício de pensamento e de criação de conceitos da prática filosófica (mesmo quando auxiliada pelos que estão fora dela), nossa prática exige buscar respostas ou saídas entre ou com as pessoas com quem nós, como praticantes, dividimos uma parte da nossa existência. Desse modo, o contraste entre os sentidos do respeito a que nos referimos e a recorrência e insistência do tema nas religiões de matriz africana e saberes afroindígenas em geral permite, talvez, vislumbrar essa dimensão transversal do respeito. Em termos também stengerianos, sugeriríamos que o respeito que se exige dos outros e o respeito como obrigação na qual nos engajamos existencialmente são coisas muito diferentes. E este é, pensamos, o sentido do respeito nos saberes afroindígenas, não sendo por acaso que a prática e a noção de obrigação são tão importantes nas religiões de matriz africana. Nestas, o respeito que se exige é uma versão do respeito experimentado como uma obrigação na relação que se tem com os espíritos, com as divindades e com os demais seres humanos como parte desse cosmo em que também habitamos. À verticalidade hierárquica e à horizontalidade universalizante — que só podem conduzir à tolerância, intolerância ou indiferença — a transversalidade das diferenças enquanto diferenças se abre para toda uma ética dos bons e maus encontros que se opõe em tudo às moralidades hierárquicas ou universalizantes. Porque "tolerar" sempre significa "aceitar" algumas diferenças na medida em que não incomodem, ou seja, que não interpelem nosso modo de existência e nossa maneira de pensar. O respeito, contudo, determina a busca, ao menos a busca de um modo de vida, de um mundo, onde as diferenças não estejam sempre em guerra, não se anulem automaticamente ou simplesmente se ignorem.
CONFLUÊNCIAS
Diante do que consideramos uma certa falta de clareza (que não tem nada de negativa!) por parte de Isabelle Stengers sobre o princípio que poderia fundar a possibilidade de uma investigação científica sobre os humanos e todos os seres que colocam os pesquisadores em questão, arriscamos, pois, a hipótese de que o respeito, entendido no sentido proposto pelas religiões de matriz africana, poderia ocupar essa posição. Nenhum lugar nos parece de fato mais adequado para perceber o sentido do respeito do que nessa arte dos encontros e das misturas cultivada pelos saberes e práticas afroindígenas em geral. Arte capaz de mobilizar potências que temos enorme dificuldade para compreender e descrever, o que em geral leva a tomar como quase natural que a mistura leva à integração e que o múltiplo só serve para fazer o um. Ao contrário, nosso problema é justamente como desfazer esse privilégio concedido à fusão e à integração e fazer aparecer a constância da diferenciação.
Como já observamos em outras ocasiões (por exemplo, Barbosa Neto, 2012; Goldman, 2017), os contradiscursos sobre a mistura que caracterizam esses saberes não pressupõem a homogeneização como horizonte da interação entre as diferenças. Ou seja, não supõem que a combinação de elementos de origem diversa deva necessariamente desembocar nem em um processo de simples confusão sincrética, nem em um processo de homogeneização laminadora. Esses contradiscursos procedem, ao contrário, por meio de modulações da diferença, um processo de variação contínua no qual elementos diferentes efetivamente se combinam em determinados níveis e permanecem de algum modo distintos em outros. O que caracterizaria assim uma modalidade de relação essencialmente heterogenética, no sentido estabelecido por Guattari (1992). Ou seja, uma relação que operando por variações contínuas e modulações da diferença, permite também superar a ideia de que recusar a mistura consiste necessariamente em acreditar em uma pureza qualquer.
Há muito interessados em encruzilhadas, os autores deste texto não poderiam, pois, ter deixado de se impressionar com a ressonância entre esses modos de pensar, afroindígenas, e alguns desenvolvimentos herdeiros de uma certa tradição filosófica ocidental. Queremos crer que não se trata de uma projeção da nossa parte, tampouco uma simples coincidência. Afinal, como ensina um dos grandes pensadores da primeira tradição "não existem coincidências, não há encontros casuais; existem confluências". Conceito, lembremos, criado por Antônio Bispo dos Santos para apresentar o modo de pensar e viver a diferença que singulariza o "pensamento plurista dos povos politeístas": "nem tudo que se ajunta se mistura, ou seja, nada é igual" (Bispo dos Santos, 2015: 89). Mais do que isso, no nosso caso parecemos estar às voltas com o que o autor poderia, talvez, considerar uma "transfluência", essa possibilidade de um encontro absolutamente improvável, "um rio brasileiro encontrando um rio africano". Transfluência que, se o entendemos bem, é também um convite para uma busca respeitosa de confluências: um encontro entre a filosofia europeia e o pensamento afro-brasileiro sem que nenhum dos dois tenha que renunciar ao que compõe a singularidade de cada um.
Desse ponto de vista, queremos deixar de antemão claríssima nossa absoluta ausência de pretensão, nossa recusa, em tentar explicar, compreender ou interpretar as pensadoras e pensadores que encontraremos ao longo deste texto à luz dos pensamentos com os quais estamos mais acostumados. Tampouco pretendemos reduzir os segundos às primeiras e aos primeiros. Confiantes que aprendemos algo com aquelas e aqueles com quem trabalhamos, nossa única veleidade é proceder a uma espécie de tradução antropológica, no sentido estabelecido por Talal Asad (1986), desses pensamentos em geral mantidos cuidadosamente afastados das universidades.
Os autores deste texto trabalham há muitos anos com o que gostam de designar como religiões de matriz africana no Brasil. Expressão que pretende fazer justiça simultaneamente ao que pensam ser o sentido da África para os praticantes dessas religiões (o território geográfico e existencial de onde foram desterritorializadas à força as pessoas que contra todas as probabilidades foram capazes de reterritorializar-se e de reterritorializá-las criativamente nas Américas) e àquilo que imaginam ser seu caráter transformacional (o fato de que suas múltiplas variações devem ser lidas à luz umas das outras).
Como quem quer que conviva com essas religiões, nunca deixamos de nos impressionar com a regradíssima etiqueta que nelas se cultiva, com a quantidade de pedidos de licença, perdão, desculpas que povoam a vida de seus centros e terreiros, com o cuidado e a delicadeza com a qual a maior parte das situações tem que ser tratada.
Como observava Malinowski (1922: 8) há quase um século, não há dúvida de que existe aqui, como em outras partes, "um código de comportamento e de boas maneiras tão rigoroso que, em comparação, a vida nas cortes de Versalhes e do Escorial parece bastante informal". Nós pensamos, contudo, que não se trata apenas dos protocolos, da educação, hierarquia, jogos de poder aos quais a antropologia tendeu em geral a reduzir essa complexa teia ética e existencial.
Para além do encontro intelectual e pessoal entre os autores, que trabalham sobre linhas, lados, encruzilhadas, contramestiçagens e contrassincretismos — mas que também apostam nas possibilidades abertas por práticas de simetrização radical entre práticas científicas e práticas afro-religiosas, quilombolas e indígenas —, trata-se de procurar e de promover um encontro entre pensadoras e pensadores situados em pontos muito diferentes da vida intelectual, alguns na academia, outros em quilombos, aldeias, movimentos sociais. Encontro que supere o destino em geral concedido a esses pensamentos outros nas universidades, onde só costumam ser admitidos como algo sobre o qual é preciso dizer alguma coisa e não como algo com o qual é preciso pensar — no duplo sentido de pensar junto e de instrumento de pensamento
Hoje, essa tarefa foi facilitada por um acontecimento ao qual, ao menos do ponto de vista de seus efeitos sobre os processos de conhecimento, ainda não se deu a devida importância: a eclosão das políticas de cotas étnico-raciais e daquela de cotas epistêmicas, esta associada à experiência do encontro de saberes, em muitas universidades brasileiras. Por meio das pessoas que as primeiras obrigaram as universidades a receber, o ambiente acadêmico se viu povoado por afetos, percepções e desejos que só muito raramente podiam aí ser encontrados. Autores sempre excluídos, críticas nunca levadas a sério, demandas sempre postergadas, a tudo isso a universidade se viu na situação de ser obrigada a responder, ainda que nem sempre do modo mais bonito.
Além disso, os chamados encontros de saberes abriram uma outra possibilidade ao trazer para a universidade pensadoras e pensadores que não foram excluídos da academia por razões talvez extrínsecas a ela — seu racismo, machismo, colonialismo etc. — uma vez que possuíam todas as credenciais acadêmicas necessárias; mas aquelas e aqueles que foram excluídos porque seriam apenas o que fomos ensinados a tratar como "informantes", "nativos", ou seja lá o que for. As ações afirmativas obrigam então a universidade a redescobrir o que dizia Lévi-Strauss há mais de 65 anos: que é preciso muita arrogância para imaginar que as outras sociedades "não têm (…) homens como um Pasteur ou um Palissy" (mas não faz tanto tempo assim que um de nós testemunhou a indignação de um professor de história antiga ao descobrir que Lévi-Strauss sustentava esse "absurdo").
As consequências dessa nova situação para a prática antropológica ainda estão para ser avaliadas e aqui nos limitaremos a lembrar que não se trata de uma nova "oportunidade" no sentido que o capitalismo entende o termo, ou seja, não se trata de "aproveitar" a situação para, por exemplo, fazermos nossas pesquisas de campo sem sair da universidade. E que isso nos obriga e renunciar definitivamente a essa pretensão de "explicar" o que dizem as pensadoras e pensadores de outras práticas; ou "descobrir" por que estão dizendo o que dizem; ou buscar "revelar" o que realmente estariam dizendo.
As ações afirmativas em geral oferecem a oportunidade de aprender por nossos próprios meios a evitar essa indignidade de falar pelos outros contra a qual nos advertiu Deleuze (1977) — mas também, acrescentemos, "sobre" os outros ou apenas "para" os outros. Talvez o máximo a que possamos pretender (e já é bastante pretensão) é falar com os outros, no duplo sentido de trocar palavras com eles (com a sempre incerta esperança de que as nossas também sirvam a eles) e de acrescentar sua voz à nossa para que a nossa se torne mais forte (e quem sabe possa ajudar a tornar a deles mais forte também).
Este texto é, pois, uma tentativa e um experimento nessa direção. De modo algo congruente, acreditamos que suas origens remetem às cotas e, de forma ainda mais imediata, aos encontros de saberes. Afinal, foi diante de um estudante guarani em sala de aula que um de nós teve que aprender que certas fórmulas, clichês e mesmo elaborações aparentemente sofisticadas não podiam mais ser pronunciadas do modo como vinham sendo por quase trinta ano. E que a vergonha sentida nesse momento era mesmo uma importante força motriz do pensamento, como escreveu Deleuze (voltaremos a isso), porque fazia hesitar e, consequentemente, pensar mais e, quem sabe, um pouco melhor. A questão do respeito, diante da qual este texto procura pensar, surgiu exatamente em um encontro de saberes, que, queremos crer, vem funcionando como uma espécie de intercessor para muitos outros encontros, como um meio favorável que cria condições para outras conexões autônomas em relação a ele.
RESPEITO E AMOR
Se a motivação mais geral para este texto provém do encontro entre nossas experiências com as religiões de matriz africana e o impacto em nós provocado pela leitura de alguns textos de Isabelle Stengers, sua causa imediata deve ser localizada em um episódio ocorrido justamente nesse meio criado pelos encontros de saberes. Mais precisamente, trata-se de uma aula do curso "Catar Folhas: Saberes e Fazeres do Povo de Axé", oferecido em 2016 pela "Formação Transversal em Saberes Tradicionais", que é o modo como o que vem sendo denominado encontro de saberes está organizado na Universidade Federal de Minas Gerais. Um de nós, que estava presente, contou ao outro o que aconteceu, e o que aqui apresentamos é o resultado, certamente provisório, desse acontecimento. Trata-se, pois, de um esforço para prolongar ideias e obrigações intelectuais e existenciais que a aula e sua narrativa criaram para nós ao nos forçar a pensar colocando-as em relação com nossas próprias trajetórias, encontros e experiências.
A aula foi dada por Washington Oliveira, Tata Kamugenan, e começou com um longo depoimento sobre sua vida e a exibição de um trecho do vídeo "Alabê de Jerusalém", de Altay Veloso. Por um período de oito anos, antes de se iniciar no candomblé angola, Tata Kamugenan foi evangélico, e muito embora tenha deixado de sê-lo, não vive a relação com esse passado como uma ruptura, trazendo consigo, como ele mesmo diz, muito daquilo que aprendeu durante essa época. Particularmente fascinante foi a inflexão à qual ele submeteu a palavra "testificação", extraindo-a de sua vizinhança majoritária com certas práticas judiciais e religiosas para as quais ela aparece como inseparável do perjúrio, o duplo moral que a confronta permanentemente consigo mesma.
Ao invés de usar sua aula para testemunhar em nome de uma verdade acerca da qual caberia convencer as pessoas, ele sugeriu que cada um dos presentes perguntasse a si mesmo: "isso que escutamos ou vemos testifica em nós?" Se a resposta for sim, cria-se então a possibilidade de uma nova relação, de uma conexão com algo que nos faz fazer alguma coisa que, de outro modo, talvez não fizéssemos. Poderíamos dizer que testificar supõe a verdade não como uma oposição ao erro ou à mentira, mas como um encontro que essa mesma verdade, qualquer que seja ela, jamais pode antecipar. Há uma diferença fundamental entre o testemunho como prática proselitista e a testificação como forma de suscitar a criação.
Na aula, Tata Kamugenan fez amplo uso de um cuidadoso estilo proverbial, aforismático, oferecendo frases e pequenas histórias como formas de expressão para ideias especialmente importantes. Em uma dessas histórias, cuja fonte infelizmente não conseguimos recuperar, ele nos conta:
Um evangélico bate à porta de alguém. A pessoa pergunta o que ele deseja. Ele responde dizendo apenas que quer entrar. Ela insiste e pede a ele novamente o motivo. E ele então responde: para dizer o que vai acontecer com você caso não me deixe entrar.
Todas as portas deveriam estar necessariamente abertas para quem sente que tem algo fundamentalmente bom a dizer. Veremos em seguida que essa sensação de uma abertura universal está vinculada a um agenciamento religioso que permite extrair efeitos muito específicos do amor.
Quando pensamos nas situações em que terreiros de candomblé são invadidos e destruídos, lembramos que essas pessoas estão arrombando portas que, no entanto, não estão exatamente fechadas, o que não quer dizer que estejam simplesmente abertas. Elas jamais se encontram abertas de qualquer maneira, como se fosse possível entrar sem nenhum cuidado, como uma passagem que tornaria dispensável a atenção.3 Em um terreiro, passar de um lugar para outro, atravessar uma fronteira, cruzar um limite, são movimentos que requerem práticas rituais cuidadosas. É preciso, como se costuma dizer, "saber entrar e saber sair", saber que guarda segredos ligados às passagens, limiares, portas, portões, domínio, como se sabe, de uma divindade por ele responsável. O que talvez seja realmente difícil de imaginar, para quem negligencia esse segredo, é que uma porta aberta possa ser ainda uma porta. Para o evangélico da história acima, uma porta só pode estar aberta, caso em que ela praticamente não existe, ou fechada, quando então é experimentada como um obstáculo a ser superado. Tata Kamugenan nos permitiu compreender essa dificuldade com uma formulação que nos segue até hoje:
o cristianismo veio para ensinar o amor, mas as religiões de matriz africana vieram para ensinar o respeito. O amor não limita, mas o respeito limita. Eu posso amar até onde o respeito me limita. Os evangélicos amam tanto a sua religião que acham que podem dizer quem são os deuses que nós adoramos. Eles querem que a gente ame também.
Podemos aprender muito com essa maneira como Tata Kamugenan diferencia o amor e o respeito. A possibilidade de uma conexão entre a experiência do amor e a prática da assimilação é algo que deve reter a nossa atenção, pois ressoa muitas das coisas mais terríveis que foram pensadas e escritas, no Brasil, sobre a chamada "mestiçagem". Kabengele Munanga (2004: 121) nos conta que o escritor José Veríssimo, tomado pelo propósito de "tranquilizar" as elites brancas do final do século XIX, afirmou que "não haveria perigo de que o problema do negro viesse a surgir no Brasil", pois, antes que isso pudesse acontecer, ele "seria logo resolvido pelo amor". Essa equivalência entre o "amor" (as aspas indicam o abjeto eufemismo contido nesse uso da palavra) e aquilo que o escritor pensava sobre a miscigenação permitiu que ele associasse esse afeto à fusão hierárquica que sempre conformou o horizonte etnocida e genocida das políticas de branqueamento. As "relações amorosas" entre negros e brancos, imaginadas nos termos do que Kabengele Munanga chamou de "modelo racista universalista", levariam a uma supressão dessa diferença pela progressiva assimilação, e logo desaparecimento, da raça negra.
A possibilidade de imaginar o amor como associado a políticas de natureza colonialista e racista nada tem de abstrato. Ela depende de um agenciamento muito concreto. Pensamos que Deleuze e Guattari (1980: 218) caracterizaram perfeitamente a sua existência ao afirmar que se trata, aqui como alhures, de "propagar as ondas do mesmo até à extinção daquilo que não se deixa identificar (ou que só se deixa identificar a partir de tal ou qual desvio)". Essa configuração ondulatória do racismo "procede por determinação" de variações e desvios, construindo parâmetros majoritários — o "rosto Homem branco", o "amor cristão", etc. — que pretendem assimilar "em ondas cada vez mais excêntricas" um conjunto heterogêneo de "traços que não são conformes, ora para tolerá-los em determinado lugar e em determinadas condições, em certo gueto, ora para apagá-los no muro que jamais suporta a alteridade (é um judeu, é um árabe, é um negro, é um louco…, etc.)".
A terrível vizinhança entre o amor e o racismo religioso produz efeitos análogos e o seu pressuposto, para continuarmos com Deleuze e Guattari, é que o "exterior", as "pessoas de fora" não existem. "Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem". "Salvar o outro", afirmou ainda Tata Kamugenan em sua aula, "é entrar no espaço dele e tirá-lo de lá. Faço isso porque eu te amo".4 Trata-se de um amor que desterritorializa a existência daqueles que resistem a ser amados sem o mínimo de respeito e sem permitir sua reterritorialização em parte alguma. Antônio Bispo dos Santos nos conta que foi orientado por seus mais velhos "a tentar compreender por que o povo colonialista faz isso com outro povo". Foi na Bíblia, no livro do Gênesis, que ele encontrou aquela que lhe parece ser a melhor explicação:
O Deus Jeová disse ao homem: por que tu me desobedeceste? A terra será maldita por tua causa. Tu haverás de comer com a fadiga do suor do teu rosto. A terra te oferecerá espinhos e erva daninha. E todos os teus descendentes serão perpetuamente amaldiçoados". Nesse momento, esse deus da Bíblia do colonialista — melhor dizendo, eurocristão monoteísta — desterritorializou um povo. Se ele amaldiçoou a terra para aquele povo, este povo não poderia nem tocar naquela terra. (Bispo dos Santos, 2015: 45-46).
As ondas cada vez mais excêntricas liberadas por esse julgamento originário da terra reencontram-se no amor, tornando-o um afeto perversamente desterritorializante. É em seu nome que a salvação pode ser apresentada como uma espécie de desterritorialização absoluta e universal. O primeiro povo desterritorializado recebeu a missão "cosmofóbica" de desterritorializar todos os povos. O amor herdou essa missão e sua violenta dificuldade com o limite. Tata Kamugenan nos permitiu compreender que o respeito, por outro lado, é um modo de retomar um pouco de terra para o amor, de reencontrá-lo como uma força telúrica. Ele nos fez entender o respeito como uma maneira de desacelerar nossa relação com a diferença, um desacelerador de encontros, um modo de usar o tempo para criar esses últimos e para sustentar a primeira. "O tempo", como diz a sabedoria dos terreiros, "não gosta daquilo que se faz sem ele".
Não se trata aqui, evidentemente, de um libelo contra o amor. Como todas as mães e pais de santo que conhecemos, Tata Kamugenan ama seus inquices, seus parentes de santo, os lugares e objetos de culto. O problema, como ele diz, é o do limite, ou seja, como conciliar esse amor com uma distância capaz de manter a singularidade de quem ama e de quem ou do que é amado.
Em uma das muitas apresentações5 que fizemos deste texto, um de nós escutou, de uma jovem estudante de antropologia, a seguinte pergunta: "será que essa percepção do amor não revela alguma frustração amorosa?". Se mencionamos essa questão é por achar que pode haver algo a aprender com ela. A jovem se mostrava bastante preocupada com as consequências do que estávamos dizendo e procurou, com sua questão, restabelecer o amor como um afeto potente, capaz de nos fortalecer. Não discordamos dessa força e é precisamente ela que consideramos importante. Para aquela jovem, no entanto, é como se tivéssemos levado o amor a julgamento e então, depois de examinadas as provas, simplesmente decidido que ele era culpado, restando a ela somente a alternativa de proclamar a sua inocência. Como o amor, afinal de contas, poderia ser vulnerável? Vulnerável só pode ser a pessoa, vítima de alguma frustração, jamais o afeto.
Pensamos que sua vulnerabilidade decorre exatamente disso, do fato de que, pela sua importância e pela sua força, ele se torna abstrato rápido demais, resistindo ao tipo de atenção pragmática que aqui nos interessa. Amamos as abstrações, mas achamos que o juízo, assentado sobre essa alternativa infernal que desmembra a experiência em um lado inocente e outro culpado, não é uma boa abstração. Nossa relação com esse afeto não é jurídica e nem moral. Não pretendemos julgar absolutamente nada, mas pensar diante dos efeitos de uma situação que nos esforçamos para caracterizar em sua singularidade. Trata-se, em todos os casos, de uma pragmática dos afetos — ou seja, do modo como funcionam concretamente — e não de definir o que eles são.
Desse ponto de vista, tanto o amor quanto o respeito consistem no que os gregos denominavam pharmakon: bem administrados curam, mal administrados matam; e, ainda que administrados na mesma proporção, podem curar alguns e matar outros, ou curar em algumas situações e matar em outras; podem criar e destruir, vincular e desvincular, tudo, enfim, dependendo de uma arte da dosagem, uma farmacologia simultaneamente política, ética e ritual que não ultrapasse um certo limite, um limite que, no entanto, não parece dado ou garantido a priori.
O pharmakon é sempre contra-universal e, nesse sentido, pensamos poder caracterizar o respeito como uma arte da linha, do limite, da fronteira, capaz de dosar não apenas as exigências do amor como de tudo aquilo que ameaça a diferença. O não reconhecimento da instabilidade e da vulnerabilidade imanentes ao amor faz correr o risco de liberar uma potência e uma força excessivas, e cujo único limite seria, portanto, a destruição. É o que nos explica Célia Tupinambá ao falar da força dos encantados:
Geralmente as pessoas não estão preparadas pra ter uma incorporação de encantado (…). Porque é muita força. É tipo assim (…), tem uma cachoeira, aí você pega um saco (…). Aí você bota dentro pra você ver… vai quebrar (…). Não bate uma força tão grande que vai estourar, que pulsa? É tipo isso, uma força bem grande, enorme dentro de você que vai tomando (…), que é capaz de estourar todas as veias do seu coração, estourar sua corrente sanguínea, porque é muito forte… (Célia Tupinambá apud Übinger, 2012: 92).
ENCONTROS DE SABERES
Um dos temas mais importantes tratado no curso "Catar Folhas: Saberes e Fazeres do Povo de Axé", no qual Tata Kamugenan atuou como um dos professores, foi o das relações entre a universidade e o terreiro. A Capitã Pedrina Lourdes dos Santos, da Guarda de Massambique de Nossa Senhora das Mercês, situada na cidade de Oliveira (MG), quando questionada sobre o que havia achado de sua experiência como professora desse curso, respondeu dizendo que, do seu ponto de vista, a "universidade precisa de atendimento". Makota Kidoiale, do quilombo e terreiro de candomblé Manzo Ngunzo Kaiango, também ela professora desse mesmo curso, compartilha a percepção da Capitã Pedrina e recentemente escreveu algo que nos parece muito significativo:
Percebi que as kotas do terreiro, que na verdade nada tem a ver com cotas para negros, eram a cura tradicional, indo salvar as ciências humanas. Pois no decorrer dos Encontros de saberes, ao invés de atrair estudantes negras e negros, a gente estava sem perceber acolhendo os brancos, e o mais interessante disso, era a carência em que esses se encontravam. A necessidade de virem até a nós, denunciava uma carga depressiva. Eles — os brancos — estão doentes. Doenças oriundas dos processos de colonialismo, eles se perderam de si próprios, ao tomarem como referência a cultura do colonizador, ainda nos dias de hoje. Nós, mestras e mestres de ofício, percebemos sem precisar abrir livro algum sobre medicina, que se trata de processos de adoecimento da mente adquiridos na busca do suposto saber acadêmico. Nesse sentido, essas pessoas adoecidas precisavam reencontrar-se, e o caminho era a medicina do candomblé. (Carvalho, Kidoiale, Carvalho e Costa, 2020: 140).
A questão, para nós, não é imaginar a universidade como devendo ser equivalente ao terreiro, tentando imitar suas práticas ou algo no gênero. O importante é imaginar como, na relação com o terreiro — uma relação que inclui, no meio acadêmico, a presença de babalorixás e yalorixás como professores e professoras —, a universidade pode ser diferente de si mesma, sabendo, ao mesmo tempo, que esse é talvez apenas um lado da relação. Em outras palavras, essa é a maneira como o encontro acontece para quem está do lado da universidade, mas não sabemos quais são as relações que o povo de axé pode querer estabelecer com quem está na universidade. Pode ser que ela seja compreendida como parte de um "axé de cura", um dom que cria, para quem o recebe, a obrigação de curar, mas pode ser também que a universidade, por meio do encontro de saberes, seja apenas uma das muitas maneiras de criar encontros que, no entanto, nada têm a ver com ela.
Em sua formidável dissertação de mestrado, Ana Claudia Silva (Ana Mumbuca) conta que o encontro dela com Antônio Bispo dos Santos foi um encontro ancestral, mas que só ouviu falar dele no ano de 2012, permanecendo desde então à sua procura, até finalmente encontrá-lo em 2015, em função de uma atividade realizada na Universidade de Brasília (Silva, 2019). Estamos aqui diante de algo que nos parece de grande importância: a sensação de que a universidade pode participar da criação de experiências que, situadas dentro dela, funcionam como intercessoras para que encontros preparados pela ancestralidade tenham mais um lugar, entre tantos outros, para acontecer. O que acontece na universidade não pertence necessariamente a ela, mas pode ser interessante que ela descubra uma maneira de existir na relação com esse acontecimento que, de algum modo, ajudou a criar.
A universidade é o território no qual o encontro de saberes acontece, mas não é seu único meio. Por isso, a narrativa política da descolonização da universidade, embora inegavelmente importante, não totaliza o sentido da experiência, pois ela dá conta mais facilmente do que acontece de um lado, mas não necessariamente dos outros. José Jorge de Carvalho (2018: 91) sugere que o encontro de saberes seria o "resultado de uma aliança entre contracolonizadores e descolonizadores", o que nos parece muito importante. Mas gostaríamos de acrescentar que, no encontro de saberes, a universidade não é a única coisa que junta todas as pessoas que se sentem concernidas por essa experiência. Por outro lado, como afirmamos acima, o fato de que esses encontros aconteçam (também) no meio acadêmico pode contribuir para a criação de importantíssimas "trajetórias de aprendizagem" para as práticas daqueles que se conectam com essa experiência a partir de seus vínculos com a universidade.
O encontro de saberes contribui, portanto, para o acontecimento de encontros heterogêneos em relação àqueles imaginados pela proposta com a qual a experiência começou. Em outras palavras, são encontros que funcionam porque ninguém ali sabe o que os outros participantes podem encontrar, e porque ninguém pretende dizer para os demais aquilo que deve ser encontrado. Isso significa, entre outras coisas, que em um curso ofertado pela Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG, para o qual há a exigência formal de algum tipo de avaliação, ninguém é avaliado a não ser pelos parâmetros que foi capaz de criar para elaborar, nos seus próprios termos, o sentido daquela experiência. Isso pode acontecer sob a forma de um poema, de um quadro, de uma música, de uma intervenção em sala, de um texto em prosa, e assim por diante. Cada uma dessas formas, por sua vez, pode ser expressa de modo individual ou mesmo transversal, formando-se, nesse último caso, um coletivo para o qual cada pessoa oferece uma contribuição diferente.
A avaliação procura substituir a lógica da "equivalência generalizada", na qual cada um precisa responder a questões de cuja formulação não participou, por aquilo que, como vimos, Bispo dos Santos chama de "confluência", um ajuntamento para o qual a fusão não constitui uma exigência e do qual pode resultar uma espécie de "unidade contrapontística", que nos parece traduzir, de forma mais precisa, o que talvez seja o sentido de uma aula no encontro de saberes. No lugar de uma avaliação cujo efeito é produzir uma imagem homogeneizada das diferenças que compõem o grupo, e sem a qual não é possível estriá-lo, uma avaliação que permita heterogeneizar essas diferenças, estimulando conexões múltiplas e variadas entre elas.
Para aquelas pessoas que estão vinculadas ao meio acadêmico, a expressão encontro de saberes é o nome que a maioria delas usa, nós inclusive, para se referirem a essa experiência que José Jorge de Carvalho (2018) tem interpretado como a possibilidade de uma "refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras". Ela está presente em várias universidades brasileiras, e em cada uma delas a sua organização obedece a arranjos diferentes, orientados, via de regra, por características locais. Há uma importantíssima variação decorrente de especificidades que são próprias a cada instituição de ensino e ao modo como ela se enraíza em seu respectivo contexto regional. O importante, no entanto, é observar que em todas elas o seu sentido é rigorosamente o mesmo: trata-se da inclusão remunerada de mestres e de mestras de saberes tradicionais como professores e professoras em cursos regulares de graduação e, em alguns casos, de pós-graduação.6
O encontro de saberes tem contribuído para a criação de um meio favorável à emergência de outras experiências, direta ou indiretamente, vinculadas a ele. Na Universidade Federal de Minas Gerais, assim como em outras universidades, está em curso uma importantíssima retomada do antigo instituto do chamado "notório saber", que tornou possível que muitas pessoas, em momentos diferentes da história da universidade, assumissem posições no ensino e na pesquisa sem dispor, por exemplo, de um doutorado.7 O título de notório saber, nesse caso, equivale a este último. Mais recentemente, por meio da atuação de pessoas diretamente envolvidas com o encontro de saberes, estamos testemunhando uma tentativa de redesenhar o "notório saber" para que ele possa ser atribuído a mestres e mestras de "saberes tradicionais", conferindo a eles e a elas a possibilidade de atuar mais amplamente dentro da universidade (cf. Carvalho, 2016). Um desses mestres, contudo, recusou o título.
Antônio Bispo dos Santos, em uma aula do curso "Confluências quilombolas contra a colonização", também ofertado pela Formação Transversal em Saberes Tradicionais no ano de 2017, explicou da seguinte maneira a sua recusa:
Eu não quero ganhar o título de notório saber. Eu quero vir para cá, chegar aqui, poder falar e ser escutado, e quero que as pessoas aqui saibam que, pelo mundo da escrita, eu tenho só até a oitava série. Pois aí, quando eu voltar para o Quilombo, todo o meu povo, que também só tem até a oitava série, e às vezes sabe mais do que eu, vai entender que também pode vir para cá. Se eu ganhar o notório saber, eles podem achar que só eu é que posso vir.
Bispo dos Santos nos convida, assim, a experimentar que o "notório saber" compreende também aquilo que neste texto, de acordo com Stengers (2009: 129), estamos chamando de pharmakon: uma substância, uma prática, cuja arte da dosagem determina, mas nunca de maneira absoluta, a sua natureza de remédio ou de veneno. Mais ainda, Bispo dos Santos nos leva a sentir que a mesma dosagem pode curar quando se está de um lado e envenenar quando se está de outro. Em outras palavras, teríamos, de um lado, o da universidade, a chance de aprofundar um processo de democratização, criando possibilidades interessantes para os lugares de "professor", de "pesquisador", de "extensionista"; de outro lado, teríamos o risco de que esse movimento de democratização, mudando de meio, passando para o lado do quilombo, introduzisse possibilidades de hierarquização em uma comunidade que se dedica a impedir a emergência de uma posição de autoridade. Antônio Bispo dos Santos não se dispôs a correr esse risco por intuir que contido nele havia a possibilidade de que um vetor colonialista pudesse ser introduzido na comunidade em que vive e na experiência quilombola. Mas em nenhum momento, e isso é especialmente importante, procurou convencer os outros mestres e mestras de que esse risco também deveria ser sentido por eles.
A intervenção de Bispo dos Santos fez simplesmente aparecer alguma coisa que não havia sido considerada. Ele fez surgir uma possibilidade que exigirá atenção e cuidado, e fez com que essa possibilidade tivesse importância, isto é, foi capaz de transformá-la em algo dotado de força para nos levar a pensar sobre aquilo que, implicado no que fazemos, teríamos dificuldade de perceber se estivéssemos sozinhos. Aqueles, como nós, que sentem que o notório saber é importante não podem ignorar o fato de que o efeito do título não se limita ao meio, no caso a universidade, que com esse título pretendem transformar. Essa transformação tem também o poder de transformar, e de uma maneira completamente diferente, outros meios.
Para quem está do lado daquilo que Bispo dos Santos (2019b) chama de "saber sintético", o lado da universidade, a eficácia do encontro de saberes, uma das provas que ele pode criar para nós, depende do "desencontro" que é capaz de produzir, pois o "desencontro", um certo "desencontro", é que pode fazer aparecer certas virtualidades implicadas naquilo que fazemos. Não se trata aqui, de forma alguma, de realizar um trabalho crítico que permitiria revelar uma verdade encoberta, inacessível a uma consciência desarmada. Definitivamente, não é nada disso. Trata-se de tornar sensível e perceptível para nós o que, na ausência de um encontro, provavelmente não conseguiríamos pensar. Um encontro, em suma, como criação de um possível, mas que requer de nós, como parte importante de sua própria afirmação, uma relação não inocente. Vemos nessa ideia um aspecto significativo do que aqui denominamos arte do respeito: não uma simples injunção moral, mas o fato de que em inúmeros coletivos o respeito é objeto de um verdadeiro cultivo, de um tratamento especial, de um cuidado, que, em algumas situações, faz dele efetivamente algo como uma obra de arte8 (voltaremos a este ponto).
Antônio Bispo dos Santos costuma dizer que as coisas só têm "começo, meio e começo". Pensamos que as suas aulas estão exatamente nesse "meio", neste lugar que faz acontecer, nas duas ou três horas de sua duração, um começo que começou muito antes delas, e cujo efeito, um deles pelo menos, é desacelerar de tal maneira o seu fim que só se possa experimentá-lo como um novo começo. No encontro de saberes, cada aula é virtualmente um encontro, e se o tempo, no seu sentido cronológico, não pode esgotá-la é porque, em muitos casos, ela existe numa vizinhança profunda com a ancestralidade. A aula como acontecimento é a aula em confluência com a ancestralidade. Para dizê-lo em termos mais filosóficos (apesar das aparências), acompanhar essas aulas é como pegar uma onda, uma vez que o problema, seguimos Deleuze, não é criar o movimento, mas encontrar os meios adequados para entrar em uma confluência com ele.9 A prancha de uns pode muito bem ser a palavra, ou o corpo, de outros, e se o surfe é uma arte da confluência que deve compor mar, técnica, corpo, objeto com inúmeros afetos (direção do vento, correntes marítimas, formação das ondas, valas, etc.), a aula deve compor afetos, perceptos, conceitos com ancestralidades, corpos, cores, raças etc.
A ancestralidade, ao contrário do que se costuma imaginar, tem menos a ver com origens e identidades fixas do que com um certo modo de tratamento dessas variáveis. Em seu belíssimo livro "Quilombola: Lamento de um Povo Negro" (2015), Maria Luiza Marcelino, matriarca do Quilombo Namastê da cidade de Ubá na Zona da Mata Mineira, e professora do curso "Confluências quilombolas contra a colonização", fala de sua avó, Deija, alternando de tal modo a referência pronominal que muitas vezes não sabemos quem é o sujeito da enunciação, se ela, sua avó ou mesmo Vovó Maria Conga, a preta velha de sua avó. Referindo-se a um parto realizado por esta, Maria Luiza escreve: "Desde então as parteiras passaram a me chamar quando tinha um parto muito difícil ou alguns doentes, mas ela ia com muito medo" (2015: 6, grifo nosso). A ancestralidade, em sua passagem pelo texto, faz do chamado "lugar de fala" um fascinante cromatismo pronominal.
Em uma de suas aulas na segunda edição do curso "Catar Folhas: Saberes e Fazeres do Povo de Axé", ofertado no segundo semestre de 2017, Pai Ricardo de Moura, da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, perguntou à turma: "o que vocês imaginam quando ouvem ou usam a palavra ancestralidade?" Muitos responderam: a minha tataravó, o meu tataravô etc. "Eu", ele disse, "imagino o meu tataraneto. O tempo da ancestralidade não é uma linha reta, mas um círculo. Tudo, para nós, é em círculo, é em roda. O tempo caminha comigo e eu caminho com o tempo". A roda e sua relação com a ancestralidade, essa "grande confiança no círculo", foi um dos temas das aulas de Bispo dos Santos, que durante sua estadia em Belo Horizonte fez questão de conhecer Pai Ricardo e de visitar o seu terreiro, um encontro mediado por Fernanda de Oliveira, na época aluna de doutorado da UFMG e filha da casa de Pai Ricardo.
Fernanda de Oliveira e Nicole Batista, filha da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, ensinaram a um de nós algo que Vovô Josias de Aruanda, preto velho de Pai Ricardo, costuma dizer para os filhos de sua casa: "Sozinho a gente vai mais rápido, mas junto a gente vai mais longe". Não se pode ir muito longe sozinho, e pensamos que esse tempo comunitário ensaia uma resposta à pergunta que constitui um importante refrão da obra A feitiçaria capitalista, muito bem enunciada por Anne Vièle em seu posfácio ao livro:
Como aprender a se proteger?’. ‘Como a gente tem que lidar com um tal fluxo reorganizador movediço [uma das maneiras como o capitalismo é nomeado nesse livro], realmente pode ser uma boa ideia sentir que a gente precisa dos outros, que a gente precisa mobilizar outras coisas. Felizmente não estamos sozinhos no mundo. Resta-nos aceitar correr o risco de mobilizar outros saberes, outras práticas, que, além de tudo, um dia menosprezamos (Vièle, 2005: 5).
A frase de Vovô Josias de Aruanda ganhou ainda mais força para nós quando soubemos que Maria Luiza Marcelino, em uma conversa com professores da UFMG, disse que suas aulas, ao contrário do que poderíamos imaginar, não seriam dadas por ela. "Fiquem tranquilos. Quem vai dar essa aula não sou eu"10. Maria Luiza não estava sozinha. Nenhuma mulher de sua família jamais esteve. Maria Luiza estava com os seus encantados, com os seus caboclos, com os seus orixás, cuja presença em sua família constitui uma missão que tem sido herdada por todas essas mulheres, começando com sua tataravó, Luz Divina. "Essa missão", disse Maria Luiza em uma aula, "me trouxe para esse lugar [a universidade] e vocês não estão aqui por acaso".
Maria Luiza manifestava aquela mesma "grande confiança no círculo". O seu corpo, o corpo confluente de uma mulher negra, estava ali inteiramente percorrido por essa sua aliança profunda com um povo. É como se aquele encontro fosse feito de todos esses muitos outros encontros que, passando por lugares e pessoas diferentes, nunca terminaram de acontecer. A aula, seguramente modulada por ela, aconteceu através dela. "Como posso saber o que vou dizer antes que a aula comece?", perguntou para a turma. É que o começo não pertence inteiramente a ela, mas à passagem, mediada por esse seu corpo "irradiado", entre o povo que a compõe e as pessoas que estão ali para escutá-la11. As duas ou três horas em que uma aula como essa acontece são como a precipitação de um tempo muito mais longo. A aula foi dada não apenas por uma pessoa, mas também por esse ajuntamento de forças, de mulheres, de divindades e de histórias que constituem a sua existência.
Os corpos confluentes — e existem corpos, como sugeriu Célia Tupinambá, que podem estar em confluência com uma cachoeira — funcionam como canais por onde passa o "axé", e é talvez por isso que em uma aula do encontro de saberes algumas pessoas podem se sentir "irradiadas" por aquilo que está acontecendo. A ancestralidade desobstrui a passagem de certos afetos, como a alegria, que a experiência da universidade, ou pelo menos uma parte dessa experiência, nem sempre nos prepara para acolher. Pensamos que essa desobstrução cria um meio que permite a certas forças vitais, forças de criação, encontrar uma passagem para que possam se expressar.
No que talvez tenha sido a sua primeira aula no curso "Confluências quilombolas contra a colonização", Bispo dos Santos pediu a cada um dos presentes que dissesse o que imagina quando escuta ou usa a palavra confluência. As respostas, muito variadas, distribuíram-se em torno de imagens como "encruzilhada", "árvore", "médium incorporado", "encontro", "raízes", "canto coletivo", "a formação da roda de capoeira", "as correntes marítimas", "a paquera", "o novelo", "o coração e as veias", entre outras. Em lugar de julgar as respostas e decidir pela melhor, Bispo dos Santos sugeriu que "o melhor é cada um trabalhar com a imagem de que gosta". A "lei da confluência" — "nem tudo o que se ajunta se mistura, ou seja, nada é igual" — compõe a experiência da própria aula, que se recusa, portanto, a "sintetizar" os modos heterogêneos pelos quais ela pode confluir na experiência de cada um. As imagens não precisam se misturar para que o povo ali possa se ajuntar. Não se pontifica sobre esse conceito porque ele não exige qualquer "síntese do diverso". Ao contrário. Ele existe na vizinhança com o "orgânico", mas não porque seja necessariamente mais natural, e sim por afirmar outra imagem da vida e do mundo, uma vida, por exemplo, em que os modos de ajuntamento não requerem a suplementação de qualquer "síntese". Afirmar, à maneira de Bispo dos Santos, que o estado, o capital, a universidade são "sintéticos" e os quilombos, os terreiros, as aldeias "orgânicos" é chamá-los para um confronto no plano das experimentações coletivas, naquilo que são capazes de criar.
O encontro de saberes é um modo pelo qual práticas muito heterogêneas podem se ajuntar e o que ele tem ajudado a criar são essas várias "experiências de co-aprendizagem recíproca" (Stengers, 2009) nas quais aquilo que cada pessoa pode aprender com as outras não inclui a obrigação de convergir, em plano algum, para uma experiência que seria a mesma para todas elas. Trata-se, portanto, de um encontro feito de muitos encontros, algo como uma "causa comum múltipla" (Stengers, 2009). A arte do respeito talvez seja uma arte porque se trata também, em cada caso, de compor modos de ajuntamento capazes de criar os mais diversos e heterogêneos encontros. Gostamos de pensar que o encontro de saberes pode ser um território inventado pela prática dessa arte, um território seguramente mais "alegre", no sentido de mais conectado com a nossa potência, com aquilo que nos faz ter vontade de criar, necessidade de pensar, do que muitos outros que a universidade reserva para nós.
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1
Publicados inicialmente em 1997, os sete livros que compõem a série foram posteriormente reunidos em dois volumes (Stengers, 2003).
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2
Preferimos certamente seguir Ursula K. Le Guin (2017: 14-15): "Os animais possuem códigos de etiqueta instintivos para evitar ou neutralizar esse medo e hostilidade irracionais (…). As sociedades humanas nos fornecem vários dispositivos mais elaborados. Um dos mais eficazes é o respeito. Você não gosta do estranho, mas seu comportamento cuidadosamente respeitoso para com ele provoca o mesmo da parte dele, evitando assim o estéril desperdício de tempo e sangue na agressão e na defesa (…). O respeito muitas vezes foi imposto de modo excessivo e quase universalmente mal colocado (os pobres devem respeitar os ricos, todas as mulheres devem respeitar todos os homens, etc.). Mas, quando aplicada com moderação e julgamento, a exigência social de comportamento respeitoso para com os outros, ao reprimir a agressão e exigir autocontrole, abre espaço para a compreensão. Cria um espaço onde o apreço e a afeição podem crescer".
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3
Em O contrato natural, Michel Serres sugeriu que a noção de negligência, contraposta àquela de religião, poderia ser mais importante do que habitualmente imaginamos para compreender o nosso tempo. "Os doutos dizem que a palavra religião poderia ter duas fontes ou origens. Segundo a primeira, significaria a partir de um verbo latino — religar […] De acordo com a segunda, mais provável, […] próxima da anterior, quereria dizer reunir, recolher, relevar, percorrer ou reler […] Mas não dizem nunca qual a palavra sublime que a língua coloca diante do religioso para o negar: a negligência. Quem não perfilha nenhuma religião não deve dizer-se ateu ou descrente, mas negligente […] A noção de negligência permite compreender o nosso tempo" (Serres, 1990: 79). Achamos muito importante essa observação de Michel Serres, mas só podemos segui-la até certo ponto. Não pensamos em termos de religião e suspeitamos das tentativas de definir essa experiência encontrando regularidades gerais para ela. Tentamos pensar a partir de práticas religiosas heterogêneas. Desse ponto de vista, não vemos a negligência como necessariamente oposta à religião, mas como alguma coisa que pode ser suscitada por certos agenciamentos religiosos e inibida por outros. Não pensamos a negligência, ou a desatenção, em abstrato, como se fossem valores que pudessem dispensar a existência de meios concretos capazes de fomentá-los ou de desestimulá-los.
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4
Impossível não lembrarmos do aterrorizante conto de Villiers de L’Isle-Adam, La torture par l’espérance (A tortura por esperança), que narra como um inquisidor submete sua vítima às piores atrocidades a fim de conduzi-la à salvação devido ao amor que por ela sente. A última dessas atrocidades é a própria esperança de liberdade que o inquisidor concede à vítima. Essa esperança seria a prova definitiva do amor: aquele que é amado ainda é capaz de desejar algo que seja diferente desse amor? O conto parece descrever uma espécie de experimento no centro do qual está o amor cristão: criar a sensação da liberdade para demonstrar que não existe nada fora da salvação.
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5
Uma primeira versão deste texto foi apresentada por nós em novembro de 2017 nos encontros Sextas na Quinta, do Núcleo de Antropologia Simétrica (NAnSi); em 2018, uma segunda versão foi apresentada no GT "Antropologias Afroindígenas: Contrassincretismos e Suas Políticas", coordenado Renato Sztutman e Gabriel Banaggia de Souza no 42º Encontro Anual da ANPOCS. Depois disso, juntos ou separados, apresentamos diversas versões em diferentes situações e lugares. Aproveitamos para agradecer a todas e todos que nos escutaram e que conosco discutiram nossas ideias, em especial a Gabriel Banaggia cujo trabalho sobre o Jarê da Chapada Diamantina (Banaggia, 2015) foi para nós de fundamental importância. Agradecemos, também, a Vladimir Moreira Lima pela cuidadosa leitura deste texto e pelas preciosas sugestões das quais só conseguimos aproveitar uma pequena parte — as demais ficam para depois!
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6
Para uma apresentação mais ampla e detalhada dos encontros de saberes, ver Barbosa Neto; Rose; Goldman (2020).
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7
A resolução, aprovada em 2020 pelo Conselho Universitário da UFMG, pode ser encontrada no Boletim da UFMG n. 2091, 46, publicado no dia 02 de julho de 2020. Outras informações sobre o notório saber e a Formação Transversal em Saberes Tradicionais podem ser obtidas acessando os links https://www.saberestradicionais.org/notorio-saber-paramestras-e-mestres-dossaberes-tradicionais-eaprovado-na-ufmg/ e https://ufmg.br/comunicacao/noticias/ufmg-vai-reconhecerdetentores-de-conhecimentostradicionais-com-o-titulo-denotorio-saber.
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8
Nossa inspiração aqui vem principalmente da distinção proposta por Pignarre e Stengers (2005: 221) entre o fato de que todos os humanos, bem como todos os viventes, só sobrevivem se tiverem "cuidado" ("faire attention") e uma "arte do cuidado" ("l’art du faire attention") cultivada em diversas tradições (ver também Vièle, 2005). E, também, do lindo texto de Ursula K. Le Guin (2017) ao qual já nos referimos (ver nota 3).
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9
"Os movimentos mudam, no nível dos esportes e dos costumes. Por muito tempo viveu-se baseado numa concepção energética do movimento: há um ponto de apoio, ou então se é fonte de um movimento. Correr, lançar um peso etc.: é esforço, resistência, com um ponto de origem, uma alavanca. Todos os novos esportes — surfe, windsurfe, asa delta — são do tipo: inserção numa onda preexistente. Já não é uma origem enquanto ponto de partida, mas uma maneira de colocação em órbita. O fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, "chegar entre" em vez de ser origem de um esforço" (Deleuze, 1990: 165).
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10
Agradecemos a Isabel Santana de Rose, que participou dessa conversa, por compartilhar conosco esse maravilhoso comentário feito por Maria Luiza Marcelino.
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11
Irradiação no sentido em que Mello (2020) aprendeu a noção em Caravelas, na Bahia.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Jul 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
18 Mar 2021 -
Aceito
05 Ago 2021